Universos intransferíveis

[dropcap]C[/dropcap]ristiano Reinaldo, és o meu maior fã!”, lia-se num cartaz exibido na bancada do Portugal-Luxemburgo. Percebe-se nesta frase como nas experiências performáticas o activo e o observador fazem um, é uma mera questão de transferência, neste caso assumida. Não actua Ronaldo “para” a bancada?

De igual modo se explica o êxito da autoficção nos últimos anos. Segundo Régine Robin, vinga nela um desejo de Proteu, o desejo de “ocupar todos os lugares”, desempenhando todos os papéis: “Representar todos os outros que estão em mim, me transformar em outro, dar livre curso a todo processo de virar outro, virar seu próprio ser de ficção ou, mais exatamente, esforçar-se para experimentar no texto a ficção da identidade; tantas tentações fortes, quase a nosso alcance e que saem atualmente do domínio da ficção”. Precisamente, o sujeito narrado é um sujeito fictício na medida em que se transformou num ser de linguagem. Para nós, filhos de Pessoa, isto é uma banalidade de base. A diferença é que Pessoa foi pioneiro. Foi pioneiro da estética da banalidade que se projectou com tais premissas, sem culpa própria ou retroactiva.

Em 39 houve o caso extraordinário de Idade do Homem, de Michel Leiris, seguido de perto pelo furacão Henry Miller, e no declinar dos setenta há um caso muito interessante de autoficção, Le Roman Vécu, de Alain Jouffroy, um poeta francês que merecia ser mais lido. Em Espanha fez furor o Francisco Umbral, e em Portugal também deveria tê-lo feito o Ruben A., era o país demasiado triste. Todos os demais casos de autoficção que vingaram, Bukovski ou o cubano Gutierrez parecem-me francamente menores em relação aos primeiros exemplos, e só a vulgaridade que se emula pela identificação, no plinto para a transferência, explica o sucesso.

Hoje, a autoficção satura, porque, entretanto, se premiaram a trivialidade e a arte de não ter talento. Basta figurar que a todos nos parecemos, para isso ser sinónimo de êxito pois o mecanismo da transferência é também expediente da psicologia dos carneiros.

Também andei por essas águas, metade dos meus livros narrativos, nomeadamente As Cinzas de Maria Callas, Tormentas de Mandrake e Tintin no Congo, A Maldição de Ondina e Éter – sulcam esse território.

Com os dois últimos livros, A Paixão Segundo João de Deus, e agora, Fotografar Contra o Vento, estou nos antípodas. Construo um universo paralelo e avanço fantasia dentro. E há (desde as Tormentas…) um trabalho sobre a linguagem, só me apanharão em descrições do tipo “a marquesa saiu de casa às cinco da tarde” se o relógio da marquesa estiver menstruado. Aos lugares comuns, uso-os, aconselhava o Hitchcock, para os desconstruir.

Fotografar Contra o Vento é uma “valsa de inadaptados”. Um romance de personagens, não exactamente “ratés”, mas que simplesmente procedem segundo uma lógica muito diversa.

Hoje, ao calcorrear a caminho do pão, pensando na frase do cartaz, percebi porquê. Quando procedemos segundo o bom senso e temos um comportamento “normal” situamo-nos numa dimensão de permutabilidade. Temos um valor situacional mas somos substituíveis na dinâmica do grupo. Pertencemos a algo maior que nós, e neste sentido aquele fã de futebol é facilmente substituível por outro, é apenas uma parcela momentânea na equação. As personagens dos livros/filmes realistas são habitualmente criaturas que atravessam uma crise, após o que voltam a ser “normais”.

Os meus personagens são peões de universos intransferíveis. Com eles não há clonagem, só têm a diferença para oferecer, não são convertíveis à troca. Como Quixote, como Bartebly, como o Capitão MacWhirr, do Tufão, de Conrad, como João de Deus, perdoem-me a pretensão.

Eis a contracapa: «Madrid, 22 de Maio de 2004. Após o desfile dos noivos Felipe de Bourbon e Letícia Ortiz pela cidade, os madrilenos seguem fascinados a cerimónia do casamento pela televisão. A esplanada do bar Katmandu, em Lavapiés, está à pinha e quando à pergunta do arcebispo se seguiu o juramento de Letízia Ortiz, que não gaguejou, parecia ler um teleponto, o gáudio encheu a esplanada de saúdes.

De repente, um homem vestido de toureiro sai numa corrida de dentro de bar, aos gritos de “terrorista”, e, com o capote aberto, aplaca a jovem que atravessara a esplanada e se preparava para se fazer explodir.

Como chegou ali Tomás Pinto Lume – aquele português bizarramente em traje de luces e com um ar combalido, que, logo a seguir a ter abortado o atentado, se retirou discretamente, furtando-se aos louros para mergulhar no mais enigmático anonimato?

Fotografar Contra o Vento segue o rasto deste anti-herói, um homem com sonhos e, sobretudo, uma ideia de dignidade um pouco entorpecente para qualquer trajectória de sucesso.

E quem é aquela figura, Cosmo, o aragonês – ex-jornalista internacional no Afeganistão, de onde regressou a pé para expiar uma culpa e se tornar vagabundo -, que por toda a parte se move como a sombra daquele falho toureiro, como se fossem dois palhaços fugidos ao cirque du soleil?

É confiável quem assegura ter por ideia fixa a mania de que Cervantes terá inutilizado a mão direita (e não a esquerda) na batalha de Lepanto, ou é um lunático, um aproveitador inescrupuloso? Como se encontraram as duas criaturas, tão diferentes entre si?

Pode um mundo mergulhado no cinismo ser ainda resgatado por uma história de amor, no trânsito entre um decadente bar de alterne (que há vinte anos abre com Life on Mars, a canção de Bowie) e a pensão Assis, tendo aos pés da cama um galgo afegão que dá pelo estranho nome de Beverly Hills? E como raio se relacionam estes personagens com o rapto daquela criança numa quinta dos arredores de Madrid?»

Alguma vez Pinto Lume fará uma faena? Nunca se tratou da tauromaquia. É apenas um homem que persegue um sonho e que rapidamente se entediaria se este se realizasse. O direito ao sonho é que o move. E no encalce deste direito paga todos os preços.

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