José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasSó o Rei pode abolir o exclusivo A solução achada pelo Leal Senado, que O Independente de 28 de Abril de 1892 escusou-se a referir, aparece transcrito n’ O Macaense de 22 de Abril: Ofício da Câmara Municipal de Macau sobre o exclusivo do vinho Liu-pun dirigida ao Exmo. Sr. Governador da província, transmitindo a representação dos chineses, pedindo a abolição do exclusivo do vinho liu-pun. N.º 7. – Illmo. e Exmo. Sr. – Em conformidade com a deliberação do Leal Senado, do qual tenho a honra de ser presidente, levo ao conhecimento de V. Exa. que os negociantes chineses desta cidade vieram em deputação no dia 2 de Abril solicitar os bons ofícios deste Leal Senado para alcançar de V. Exa. a abolição [do exclusivo entregue ao] negociante de Hongkong; e que tendo sido a dita deputação chinesa informada de que esta corporação do Leal Senado não podia anuir ao seu pedido sem que lhe fosse apresentada uma petição por escrito, voltaram de novo os chineses no dia 5 deste mês, com o requerimento que incluso passo às mãos de V. Exa., acompanhado dos selos que representam a mór parte da comunidade chinesa. Para a discussão e deliberação deste pedido convoquei a Câmara para uma sessão extraordinária no dia 7 do corrente mês, a qual, porém, não se efectuou por falta de maioria, e foi por isso que este requerimento foi lido e discutido na sessão ordinária da Câmara do dia 9 do presente mês. Trocaram-se nesta sessão entre vereadores ponderações e informações que elucidaram a questão, acabando o Leal Senado por convencer-se de que o pedido dos chineses é de certo modo justificável. Antes de tudo, deseja o Leal Senado acentuar bem a sua convicção de que no meio da numerosa população chinesa em que vivemos, é de suma necessidade que o governo tenha o máximo prestígio, e, por isso, considerará este Leal Senado como seu dever impreterível apoiar o governo em tudo quanto seja tendente a manter o máximo respeito ao princípio da autoridade; e neste ponto o Leal Senado se apraz de declarar que tem prestado e prestará sempre o seu apoio incondicional, dedicado e leal a todas as medidas que V. Exa. tem adoptado, ou que vier a adoptar, para fazer respeitar as determinações das autoridades constituídas. Mas, como até agora os chineses não têm feito mais do que usar do direito constitucional de petição, não duvida este Leal Senado em prestar os seus bons ofícios para solicitar de V. Exa. uma anuência equitativa às suas reclamações, baseando-se este Leal Senado nas razões seguintes: Este novo exclusivo de liu-pun, como V. Exa. sabe, não fez incidir o imposto sobre o consumo local, que daqui não pode fugir, mas abrangeu a totalidade do comércio do mesmo vinho, autorizando ao arrematante cobrar 3 caixas de prata, ou 4 sapecas, por cada cate [604,79g] desse género, importado ou aqui fabricado. E como é sabido que a imensa quantidade de liu-pun que Macau importa anualmente, não é só consumido nesta cidade, mas, pelo contrário, a maior parte é reexportado para Hongkong, como se mostra da estatística do capitão do porto publicada no Boletim da Província de 24 de Abril de 1890, e daí (…) depois de preparado e confecionado em Macau com várias frutas e outros ingredientes, que lhe dão diversos sabores, cores e cheiro, o referido exclusivo onerou, por tanto, o comércio em geral, dificultando a reexportação e a indústria, pois o referido imposto de 3 caixas de prata por cate, equivalente a 10 avos por boião de 24 cates, vem a importar em uma percentagem média de 14% sobre o preço do vinho liu-pun, que varia de 60 a 90 avos de pataca por boião, ou jarro de 24 cates. Além de ser inconveniente o novo exclusivo do vinho liu-pun, não está de harmonia com o Decreto de 20 de Novembro de 1845 [da Rainha, a Senhora D. Maria II, referendado pelo Ministro da Marinha e do Ultramar Joaquim José Falcão, onde, devido à abertura de alguns portos do império da China ao comércio e navegação de todas as nações, cessado as circunstâncias excepcionais que favoreciam o comércio da Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, por o Artigo 1.º foram declarados francos ao comércio os seus portos, – tanto o interno, denominado do rio, como os externos, da Taipa e da Rada, – podendo ser neles admitidas a consumo, depósito e reexportação todas as mercadorias e géneros de comércio, sem pagamento de direitos. O artigo 2.º, sobre a importação em Macau refere dever ser em todo o caso completamente livre.] O referido imposto lançado sobre o vinho liu-pun logo no acto da importação destrói a franquia do porto de Macau, garantida por uma lei em vigor, e tenderá a fazer afastar desta cidade o comércio e a indústria desse género, obrigando-os a ir buscar outro país, talvez Hongkong, pois como acima se disse, para aí é reexportado a maior parte do vinho liu-pun importado em Macau; pois é claro que uma diferença de 14 % sobre o preço de um género é suficiente para induzir os negociantes a buscar mercado mais barato. E, vista deste inconveniente, e sendo de interesse geral evitar tudo quanto possa diminuir o número de industriais em Macau, resolveu este Leal Senado pedir a V. Exa., para benefício do comércio e da prosperidade desta cidade, se digne V. Exa. solicitar do governo de sua majestade a abolição do exclusivo do vinho liu-pun; e, se essa abolição não pode ter lugar imediatamente em consequência do contrato já celebrado com o arrematante, pede o Leal Senado, que a dita abolição seja decretada para se tornar efectiva depois do prazo pelo qual foi adjudicado o exclusivo na dia 2 de Abril, ou para quando seja possível vir a um acordo com o arrematante. Essa abolição, assim decretada, removerá do ânimo dos negociantes toda a ansiedade sobre o futuro, e animará a indústria de preparação de vinho a permanecer em Macau, suportando temporariamente o ónus a que acima me referi. Este pedido do Leal Senado é ditado pelo desejo de evitar que uma indústria fuja desta cidade para outra, e espero que V. Exa., que sempre se mostrou animado da melhor boa vontade de beneficiar esta cidade, o tomará em devida consideração, providenciando como julgar mais conveniente aos interesses legítimos do comércio desta cidade. Deus guarde a V. Exa., Macau Paços do Concelho, 11 de Abril de 1892. Assinado por Câncio Jorge, Presidente do Leal Senado. Dez dias depois, a 21 de Abril chegou ao Leal Senado a resposta em ofício de Sua Exa. o Sr. Governador comunicando não estar nas suas atribuições abolir imediatamente o referido exclusivo, visto que foi estabelecido em virtude de um decreto de Sua Majestade Fidelíssima El-Rei de Portugal, mas que Sua Exa. havia enviado o requerimento dos chineses e o ofício do Leal Senado ao Governo de Sua Majestade, esperando que por ele será resolvido assunto consoante aos interesses desta província. Ainda comunicou Sua Exa. que o governo provincial não tem em vista criar e lançar novos impostos. Em vista deste ofício, o Presidente do Leal Senado aconselhou à comunidade chinesa continuar pacífica, referindo apoiar o seu pedido.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO tuofei A belíssima Montanha da Ovelha Negra — cujo nome ignoramos a origem ou se, de algum modo, assume as características negativas da denominação ocidental —, além do xiao, alberga nas suas encostas esmeralda uma estranha ave, a que chamam tuofei. Tendo o corpo semelhante a uma grande coruja, o tuofei distingue-se por apresentar uma face humana e ser capaz de se equilibrar na sua única perna. Além do seu fantástico aspecto, este bizarro pássaro parece apostado em tudo fazer ao contrário do que é apanágio na Natureza. Assim, mal os frutos começam a exalar o perfume da sua madurez, anunciando a chegada do Verão, os tuofeis recolhem-se nas grutas da parte mais alta da montanha e aí hibernam durante toda a estação quente. Só quando as temperaturas descem, as folhas se desprendem das árvores e os campos se preparam para vestir os mantos da geada invernal, é que os tuofeis se dignam abandonar as grutas e encher o ambiente com os seus alaridos. Dizem as crónicas ser um espectáculo extraordinário observar os tuofeis quando estes resolvem, já depois das primeiras luzes outonais terem enrubescido os céus, voltar de novo à vida. Durante os primeiros dias, assiste-se a um certo caos no bando, pois as antigas relações são desfeitas ou esquecidas durante a hibernação e aquela sociedade de pássaros com face humana parte novamente da estaca zero. Formam-se novos casais e estabelecem-se novas solidariedades. Contudo, estes processos não são simples e implicam animadas, por vezes violentas, discussões entre as aves, o que propala nos ares um som obsessivo, parecido com os que emitem as cagarras. Finalmente, quando de novo alguma ordem é restabelecida, o bando esboroa-se em grupos mais restritos, de dois ou três casais, e cada um segue a sua vida, aproveitando a abundância e segurança proporcionada por aquele magnífico ambiente. Os machos que se quedam sem companheira, por alguma razão difícil de discernir, abandonam tristonhos a Montanha da Ovelha Negra e acabam vítimas de caçadores, que vendem as suas penas a altíssimo preço. É que, segundo os especialistas, quem as usar junto ao corpo, não terá receio de tempestades, de raios, de trovões e de outras calamidades. Já as fêmeas solitárias, geralmente mais velhas, erram pelos bosques, sozinhas ou em grupo, anunciando ao mundo em inexcedivelmente belos trinados a sua profunda desdita, o que parece comover os outros tuofeis. Como paga, o resto do bando vai-lhes deixando comida e oferecendo protecção.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasGreve ou fim do comércio em Macau “De uma parte está a ordem superior de governo da metrópole e o compromisso do governo provincial com o arrematante do exclusivo [do liu-pun, o comerciante Chan Iü San de Hong Kong,] já concluído, tendo sido celebrado com todas as formalidades. De outra parte estão os lojistas chineses ligados pelo interesse comum, e unidos por meio de seus respectivos grémios, convencidos da necessidade de abolir este exclusivo para poder continuar o comércio a funcionar desafogadamente.” Assim se discorre n’ O Macaense de 7 de Abril de 1892 e continuando: “Estudando bem a questão, não nos parece que esta reacção dos chineses seja uma oposição acintosa à acção do governo, mas é mais um acto de desesperação, causado pela decadência do comércio, que hoje sofre do mal-estar geral e não dá lucro algum. Esta situação angustiosa, agravada pelo novo imposto, produziu um ressentimento contra o governo, que longe de auxiliar os negociantes, aliviando-os dos ónus que sobre eles pesam, veio ainda sobrecarregá-los tão inoportunamente, com um novo exclusivo que ameaça afugentar daqui para a frente.” Impressão deixada “após uma discussão desapaixonada com vários lojistas sob o assunto, e aqui a consignamos franca e lealmente.” E prosseguindo: “Para os chineses a greve funda-se no espírito de associação de que vem a força, e tanto pode significar uma pressão suave e indirecta aos poderes públicos, como uma manifestação colectiva de vontades, mui eficaz nos resultados práticos e imediatos, o que – diga-se a verdade – nunca pode ser condenado em vista do regime da liberdade d’ indústria e livre concorrência, sobretudo quando não seja acompanhado de ameaças ou violência. A intervenção das autoridades é só justificável quando haja ameaça contra a segurança dos direitos individuais, ou receio da perturbação da ordem. Folgamos de ver que estes princípios são respeitados e até afirmados no edital de S. Exa. o Governador, (…) Nem outra cousa era de esperar do ilustrado e enérgico governador.” O Edital do Governador, publicado a 6 de Abril por causa da suposta greve dos negociantes de vinho, foi lido pela cidade. Em cortejo, “o procurador dos negócios sínicos acompanhado de um intérprete e de todo o pessoal administrativo, precedido de uma escolta de polícia com dois tambores à frente, percorreu todas as ruas da cidade. A leitura do edital foi feita por um amanuense chinês da repartição do expediente sínico, que se punha em pé sobre o jenricksha [riquexó] para daí o ler. Um grande grupo de garotos acompanhava esse séquito fazendo uma vozearia infernal de mistura com os rufos do tambor.” Do edital [transcrito já em anteriores artigos] faltava-nos apenas publicar a apresentação do Governador feita por o próprio: <Custódio Miguel de Borja, capitão-de-fragata da marinha real portuguesa, ajudante de campo honorário de Sua Majestade El-Rei, comendador da ordem militar de S. Bento d’ Aviz, da de Leopoldo da Bélgica e do mérito naval de Hespanha, cavaleiro da ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, da de Aviz e da Legião de Honra de França; condecorado com as medalhas militares de prata das classes de bons serviços e comportamento exemplar; antigo deputado da Nação, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Sua Majestade Fidelíssima nas cortes da China, Japão e Siam, Governador da província de Macau e Timor e suas dependências, …” Refere o articulista, “Não podemos prever por enquanto qual a solução. Confiamos, porém, na alta inteligência e reconhecida prudência do chefe de colónia, que decerto não trepidará perante qualquer medida quando ela seja necessária para conservação do prestígio da autoridade, mas ao mesmo tempo não deixará sua Exa. de estudar a questão sob todos os seus aspectos.” Opinião chinesa Na rubrica Comunicado, ainda n’ O Macaense de 7 de Abril, um negociante chinês publicou a opinião: Os chineses consideram o vinho liu-pun como um dos géneros de primeira necessidade. Não há chinês, desde o mais rico até o mais pobre, que não faça uso do liu-pun nas suas refeições. Os da classe de operários e de carregadores preferem ficar sem comer a ficar sem beber o liu-pun. Acontece muitas vezes, quando o seu trabalho diário não dá o suficiente para o jantar, em que o arroz é indispensável para os chineses, compram um bocado de carne ou de peixe e comem-no acompanhado sempre do liu-pun, empregando no vinho a verba com que deviam comprar arroz. Na generalidade os chineses, principalmente os da classe dos operários e carregadores, destinam 10 a 12 sapecas para vinho por cada refeição, o que corresponde por mês a 70 avos pouco mais ou menos. Para o arroz que é indispensável para os chineses e que constitui o principal género alimentício, os operários em geral não gastam mais do que 30 a 40 sapecas por dia, isto é, pouco menos do que o dobro do que se gasta com o vinho. O liu-pun é tão necessário como o arroz para os trabalhadores; portanto se esses homens tiverem de despender mais 3 ou 4 sapecas por cada refeição ou 20 avos por mês, deixarão de beber ou diminuirão a porção usual. Em qualquer desses dois casos o resultado será decerto prejudicial ao comércio de vinho. Asseguram os negociantes de vinho que, se tiverem de pagar a taxa de 4 sapecas por cada cate, pouco ou nenhum lucro auferirão; e o vendedor precisando de baratear o vinho, ver-se-á na necessidade de adulterá-lo para poder conseguir algum lucro. As lojas chinesas de Macau não dão bons salários aos seus empregados, mas dão-lhes cama e mesa livre e nas suas refeições é indispensável o vinho, portanto o exclusivo de liu-pun virá não só lesar os indigentes como os donos das lojas que terão de despender mais com o salário do pessoal. De mais o negócio do liu-pun está ligado ao do arroz. Rara é a loja de arroz que não tenha um ou mais alambiques para destilar o vinho, por tanto qualquer prejuízo que sofrerem os negociantes de vinho, terão nela parte os negociantes de arroz. Finalmente é natural que as lojas de vinho mudem para Lapa ou Chin-san, onde quase nenhum imposto terão de pagar, levando consigo muitas outras lojas de diferentes géneros, o que contribuirá para enriquecer a ilha da Lapa com grande prejuízo desta cidade, como ainda há poucos anos aconteceu com o negócio de peixe salgado, que custou muito ao governo trazê-lo de novo para Macau. Os chineses não se sublevarão por causa deste imposto; mas ver-se-ão obrigados a abandonar paulatinamente esta cidade por não poderem suportar tantos impostos com que já estão sobrecarregados. É esta a opinião de um chinês. Os negociantes enviaram no dia 5 uma petição ao Leal Senado.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasRomantizar o mundo – Neste asfalto em que tudo é a causa de um efeito imediato e onde a casualidade se interpreta como sendo ela mesma matriz de esperado movimento, todos os seres deviam estar unidos por vínculos perecíveis, sim, porém de longo afecto, até se atingir no grupo a quintessência de um movimento maior. «Le Monde doit être romantisé» – é Novalis quem o afirma de sua época nada remota e que ecoa agora como necessidade e urgência: se não o conseguirmos, perecemos. Abandonados ao medonho das configurações onde se ajuíza tudo de todas as maneiras, retemos o grau de aceitação para mostrar os caninos ungidos em despudoradas formas felizes onde se nota o predador triunfante e grosseiro de um mundo “trincado”. Este triunfalismo “sadio” tem de ser abatido! – Devemos então romantizar o mundo dando espaço aos mais constantes temas da nossa civilidade que vão muito para lá da sepultura das políticas locais, dos pareceres domésticos, e do transe obsessivo da fealdade do atrito como segmento de complexidade cheio de interesse sórdido mas nunca buscado pela inteligência pura. É claro que o desassossego de se ser algo para o qual não se tem aptidão pode provocar em sociedades assim embustes medonhos, onde alguns apelam a uma certa reserva de bom-senso para não partilhar do seu alarme. Por derivas misteriosas, encontram-se os seres manifestamente repulsivos, e em suas manifestações tributáveis são ainda a senda de todos os pareceres em tentativas de torturante afirmação; decrescemos em civilização perdendo o pulso sanguíneo de nossa lenda distante. – Há vidas acelerativas! Novalis viveu vinte e oito anos, a sua vida breve produziu longos tratados e a sua romantização sincopou o estatuto dos mais fiéis depositários do estilo. Não falamos de “efebos” politicamente tidos por alguns governantes como grandes beneficiários das ablações entediantes produzidas pela longevidade, falamos de um homem que num espaço curto de tempo não teve intenção de reproduzir vícios, e através de um sintoma autónomo cujo grau de competência desconhecemos, nos vem dar mensagens essenciais para os dias de hoje. Pode-se escrever em fragmento de uma forma concebível, mas apenas e só, aqueles que de tão inteiros se não querem imobilizar no labor da inércia narrativa, que o que existe de belo na fragmentação excede os ciclos de composição passiva das descrições, pois que este livro, se encontra alinhado na grande correspondência de um monumental alerta contra as derivas mórbidas dos especulativos exercícios das personagens esdrúxulas. – São cinco manuscritos escritos por Novalis a Freiberg, na primeira metade do ano de 1798, e não creio que exista ainda uma tradução portuguesa, mas nós faremos o melhor na esperança de conjugar o que está suspenso na esfera salvífica que é dar a conhecer em português transfigurado aquilo que na grande composição foi ainda, e também, o nosso Romantismo. Descrer de tantos dons por imposição de uma época é uma forma de assassinato colectivo, e nada existe mais fácil de reverter que a tendência suicida. É fácil, sim, porém, não ajustada a um princípio que a impeça. Já todos jogámos às originalidades, porém «Le monde doit être romantisé. C´est ainsi que l´ on retrouvera le sens originel.» Tal operação, diz ainda- é totalmente desconhecida- (já o era no seu tempo?) – [apesar disso dou ao trivial um sentido elevado, às coisas comuns um aspecto misterioso, e ao conhecido a dignidade do incomum, ao finito a aparência de infinito, e é então que tudo romantizo] – Paramos diante das lendas dos sonhos por resolver, que eles esperam de nós maiores proezas que não correspondam à ruptura do pensamento, fórmulas estilísticas de omissão, e outras coisas assim… – Estamos diante de uma beleza prestes a ser conceptualizada sem a afronta temível da razão obscura dos ideais gregários, estamos na Romantização que precede o mundo, onde um dia encontrar um Homem será felicidade tanta que ficaremos ardendo de memória universal e de contentamento constante. Pode ser para breve esse tempo em que iremos enquanto espécie sentir saudade imensa. Depois, virão «Os filhos do Homem» mas não serão Românticos, ou aqueles que considerámos romantizados para inaugurar aquilo que foi este nosso destino. Comum. Que incomuns serão sempre os humanos que farão obras como esta: “cada palavra é encantamento, e todo aquele que a chama pelo espírito o fará aparecer” que o nascimento do Amor requer a proeza de não sermos ninguém, apenas essa grande centelha que uma luz transmite pela eternidade fora.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEliot 2 E a influência de Eliot foi tão grande e universal que não admira que tenha sido um filósofo italiano, cinquenta e três anos depois da sua morte, no prólogo à edição mexicana dos “Cantos” de Ezra Pound, de 2018, a recortar com meridiana clareza o que se estava em jogo nesse livro seminal que foi “A Terra Sem Vida”. Falamos de Giorgio Agamben, que escreveu o seguinte: «Existem três momentos decisivos na poesia em língua inglesa do século xx. O primeiro, “A Terra Sem Vida” (1931), nascido da estreita colaboração entre Eliot e Pound («il miglior fabbro», a quem o poema está dedicado), foi lido como um texto enigmático e profundo, cuja compreensão necessitava de um deciframento preliminar de suas densas estruturas ocultas. Trata-se, na realidade, de uma colagem de frases e figuras provenientes de toda a história da cultura ocidental (e a que se juntam referências orientais), em cujo tecido se sucedem a Sibila de Cumas e o Graal, Ludovico II da Baviera e o Rei Pescador, Tirésias e S. Agostinho, Filomela e o baralho do Tarot, os sermões de Buda e Gérard de Nerval, Dante e as Upanishad, Ovídio e Flebas o fenício… Estes fragmentos não compõem, como sugeria Curtius, metendo em paralelo Eliot com um poeta alexandrino, um mosaico inteligível: estão, em vez disso, dadaisticamente isolados e desprovidos de qualquer correspondência recíproca, porque o seu único sentido consiste na sua incompreensibilidade. As tentativas dos intérpretes de sacar à luz um significado oculto através do paciente, inesgotável, inventário das fontes, só podem fracassar. A “terra sem vida” é, de facto, a terra da cultura ocidental, cuja tradição se interrompeu, e ao poeta só lhe resta juntar, mais ou menos ao acaso, os restos: these fragments I shored against my ruins, conclui Eliot, actuando aqui certamente como um filólogo alexandrino que recolhe os fragmentos que escaparam ao incêndio da grande biblioteca.» Mero registo duma falência soteriológica de cujas promessas só restam os fragmentos que escaparam “ao incêndio”. O que instaura a poesia como derradeiro contacto com o númen perdido ou o último e fugaz flagrante do Belo. Entretanto, não esqueçamos que o que torna o Belo intemporal e não descartável é o que Schopenhauer nele descobriu, e Hegel e uma série de estetas ulteriores corroborariam, e que se prende ao seu modo de operar. Diz Schopenhauer: «O prazer estético que a beleza produz consiste em boa parte no facto de, ao entrarmos no estado de contemplação pura, ficarmos de momento desembaraçados de todo o querer, isto é, de todo o desejo e cuidado, como que, de certo modo, livres de nós próprios.» O Belo é o que nos coloca fora de nós. Onde estamos quando ouvimos uma peça musical que nos comove e transporta? Fluímos com a peça, algures, no sulco do imponderável. A ausência de querer e de interesse detém o tempo, aplaca-o. Esta detenção ou dilatação do tempo (refiro-me ao tempo psicológico) é o que sucede na presença do Belo, diluindo-se aí a separação entre sujeito e objecto. O sujeito mergulha contemplativamente na obra e unifica-se, reconcilia-se com ela e consigo. «A experiência do belo desnarcifica o sujeito e desinterioriza-o», anota Simone Weil em “A Graça e a Gravidade”, que definiu os efeitos disso com exactidão: «a beleza exige de nós que renunciemos à nossa posição figurada como centro». Eliot encena este descentramento, mesmo que compelido, mesmo que seja o Inferno a olhar-nos e a deslumbrar-nos com a beleza das ruínas. Eliot, ao contrário de tantos, não quis alhear-nos do mal do mundo, mas dignificar a memória das ruínas, o seu modo decaído de oráculo fragmentado. Uma das últimas e inesperadas influências de “A Terra Sem Vida” sobre um artista, e num campo inesperado, encontro-o no filme “Ao Correr do Tempo” (1976), de Wim Wenders, que leio como uma paráfrase cinematográfica do poema de Eliot. Um homem, Robert, num Volkswagen a alta velocidade atira-se com o carro para dentro do rio Elba e, salvando-se das águas, é “recolhido” por um outro homem que nas margens do rio, na cabina do seu camião, tentava barbear-se, Bruno, conhecido por King of the Road. Sem uma explicação, Robert, aceita boleia no camião que Bruno (uma espécie de Rei Pescador) conduz e assim se inicia uma viagem pela Alemanha, ao correr do tempo… Qualquer dos dois lacónico q.b.; Bruno percorre a Alemanha no exercício de uma profissão à beira da extinção, reparando projetores de cinema pelas pequenas terras de província e levando bobines. É, por outro lado um filme sobre a nostalgia do cinema, funcionando a viagem como símbolo do reiterado on the road das imagens, ao som dos Velvet Underground, que toca numa music-box que Bruno leva no camião. Ambos são personagens absolutamente exaustos de si. Ambos carregam consigo as ruínas de dois mundos que já viveram o seu esplendor, o do cinema com Bruno, e o do amor com Roberto, uma espécie de terapeuta da fala. No final da fita os personagens passam a noite numa casa semi-destruída e cheia de marcas de guerra, onde os soldados americanos, trinta anos trás, picharam as paredes com dizeres e nomes, testemunhando a sua passagem por ali. E às duas por três, destaca-se um nome na parede, Eliot. Não é exactamente T.S. Eliot, mas quem quer saber o que significam as vogais, estas ou as outras que lá se encontram. Está lá o apelido do poeta como uma evocação, uma referência oblíqua (sim, no cinema, tudo é signo), para não dar a chave por inteiro. Tão oblíqua como essas duas letras que na cena final se grafam como um néon na vidraça do camião e onde se lê WW (como se fossem as iniciais de Wim Wenders) e que afinal são o reflexo de Weisse Wand (Parede Branca), o nome de um cinema. Este e “As Asas do Desejo” serão as obras-primas de Wenders, e Eliot anda por ali.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasLiu pun e a versão d’ O Macaense A Biblioteca do Leal Senado, onde se poderia consultar os jornais antigos de Macau, encontra-se, segundo aviso na porta, encerrada desde Março e apesar de na Biblioteca Central existir o microfilme d’ O Macaense de 1892, em todas as páginas falta parte do texto e muitas são ilegíveis. No entanto, com as informações aí apresentadas conseguimos complementar e esclarecer muito do que escrevemos até agora sobre o vinho Liu-pun e por isso, nos próximos artigos recapitulamos a história. Assim, começamos por transcrever d’ O Macaense de 7 de Abril de 1892 : “Circulou na cidade o boato de que ia haver greve dos chineses do bazar, fechando eles as suas lojas, e deixando de negociar. Tratámos de colher informações fidedignas a este respeito, e eis o que se apurou a limpo das nossas investigações. Dizem que há pouco mais de um mês que os lojistas do bazar terão estado a requerer ao governo local pedindo para não pôr em hasta pública o exclusivo do vinho liu-pun, que o governo da metrópole, pelo decreto de 1 de Outubro de 1891 criou (…). Os requerimentos não obtiveram deferimento e o exclusivo foi em 2 de Abril adjudicado a um chinês de Hongkong por $7,810, que era o preço mais elevado das três propostas apresentadas. Os industriais chineses em vista desta amarga decepção, foram, logo depois da licitação, aos Paços do Concelho, onde os vereadores estavam reunidos em sessão ordinária, e pediram à câmara municipal para solicitar do governo da província, que fosse abolido o exclusivo; responderam-lhes o presidente que fizessem por escrito a sua petição. Retiraram-se os chineses para fazer o requerimento, e consta que em 5 do corrente o entregaram ao mesmo presidente, rogando-lhe que conseguisse do Sr. Governador da província a graça de suster o exclusivo de liu-pun, até que o governo da metrópole desse uma decisão sobre o pedido da sua abolição. Ficou a questão nesta altura. No entanto, têm havido muitas reuniões, bastante numerosas, dos chineses do bazar, para discutir a influência que esse exclusivo poderia exercer sobre o comércio deste porto, e chegaram à conclusão de que a reexportação do vinho que Macau costuma fornecer às povoações circunvizinhas, e aos barcos de pesca, viria a sofre muito, porque o imposto de 4 sapecas por cate importa em 11 a 20% sobre o preço do vinho, e por isso esse aumento de preço poria o mercado de Macau em grande desvantagem com relação a Hongkong, e aos portos chineses do distrito de Heungshan; do que resultaria que os antigos fregueses de Macau iriam fornecer-se do vinho em qualquer outro porto, e que ao fazerem este fornecimento se abasteceriam também de outros géneros, prejudicando assim o comércio desta cidade, que consiste principalmente na distribuição de géneros pelas povoações circunvizinhas. Em vista desta influência nefasta que o exclusivo de liu-pun exercerá sobre o comércio de Macau, resolveram os negociantes empregar todos os esforços para conseguir a sua abolição e, quando isso não fosse possível, a única alternativa que eles adoptariam, era abandonar paulatinamente esta cidade, porque estão convencidos de que com esse exclusivo viriam as suas transacções a definhar e sofrer perdas. Dizem-nos que foi essa a resolução a que chegaram os negociantes e mercadores chineses nas suas reuniões, que se efectuaram na casa do bazar conhecida pelo nome de Sam-kai-hui-cun (…), tendo as reuniões corrido sempre pacificamente.” Análise dos factos “Lamentamos deveras que se suscitasse este incidente desagradável, devido à excessiva centralização com que o governo português governa as colónias longínquas, decretando da metrópole medidas sem tê-las bem estudado, e sem atender às circunstâncias especiais da localidade. Se o governo da metrópole se tivesse limitado simplesmente a criar o exclusivo de liu-pun, sem fixar a quantia que serviria de base à licitação, teria decerto o governo provincial a liberdade de taxar o consumo local do vinho liu-pun, deixando completamente livre o comércio de importação e exportação, como deve ser de direito, porque Macau é porto franco, e o seu comércio é livre de impostos na importação e exportação. Mas infelizmente a quantia de $5,000 que o governo da metrópole exigiu como preço mínimo do exclusivo de liu-pun, não podia provir só do consumo local. Para restringir o imposto do vinho liu-pun só ao consumo local, não havia outro sistema fiscal a seguir senão o de licenças às lojas que vendessem este género a retalho. Suponhamos que houvesse 50 lojas de vender a retalho; e que lhes fossem exigidas 20 patacas por cada licença anual, o resultado não passaria de $1,000. Vê-se, por tanto, que o governo provincial, compelido pela exigência do governo da metrópole, que impôs a cifra de $5,000 para a adjudicação desse exclusivo, teve de onerar o comércio de liu-pun com a taxa de 4 sapecas, ou 3 caixas de prata sobre cada cate de vinho liu-pun importado em Macau. Este imposto corresponde a 10 avos de patacas por cada boião de 24 cates de vinho, e é com efeito mui elevado, atendendo-se à barateza do liu-pun, cujo preço varia entre 50 a 90 avos por cada boião de 24 cates; vindo assim a importar em 20%, quando o preço é de 50 avos por boião, ou em 11% quando cada boião custa 90 avos. Deve-se admitir que o imposto é caro, mas também não podia ser menor desde quando o governo fixou a quantia mínima para base da licitação. Com franqueza, visto que os chineses não nos leem, diremos que o novo exclusivo é um grande mal para esta colónia. (…), porque é bom que digamos mais uma vez, alto e bom som que, por via de regra, fazemos sempre causa comum com os chineses, porque os interesses são comuns e recíprocos. Se eles continuam a habitar aqui, é porque incontestavelmente encontram um certo número de conveniências e de lucros nos seus negócios; e a nós convém a permanência deles para a sustentação das poucas indústrias que são ainda a seiva da colónia. Mas ao governo de Lisboa pouco se lhe dá isso; quer só dinheiro, venha de onde vier, e não sabe ou finge não saber que os industriais chineses não são oriundos daqui e não lhes custa fazer o ablativo de viagem para Lapa, Oitem, Hong Kong e outras terras ao redor de Macau logo que assim reclamem os seus interesses.” “Felizmente não se realizou a greve dos lojistas, graças à índole pataca dos chineses e aos bons conselhos que não lhes faltaram, tendo eles resolvido aguardar a decisão das representações que fizeram subir ao governo da província por meio da câmara municipal. Cumprimos o dever de ponderar ao governo que é conveniente e necessário abolir o exclusivo de liu-pun, não somente para desafrontar a franquia do porto de Macau, mas para que o comércio não tome outro rumo e para que a distribuição do vinho chinês pelas terras circunvizinhas se não faça por Hong Kong.” Pel’ O Macaense ganhamos novas explicações para os acontecimentos expostos nos artigos anteriores e escritos na visão d’ O Independente.
Paulo Maia e Carmo h | Artes, Letras e IdeiasRetratos Que Gu Jianlong Fez na Horizontal e na Vertical «Os lotos murchos, as pétalas dobrando-se para se proteger da chuva,/ Os crisântemos despidos ainda orgulhosos nos seus ramos estendidos atravessando a geada./ Há que lembrar que este é o tempo oportuno para a paisagem ser observada,/ Se as laranjas estão amarelas e os cunquates verdes, é esta a estação adequada.» Wu Weye (1609-72) o poeta, pintor e literato atento e celebrado que viveu num desconfortável tempo de desencontros foi representado na pose habitual dos retratos de ancestrais, sentado de face virada para a frente como se olhando o tempo que passou e o que virá. Observando o rolo vertical (tinta e cor sobre seda, 149,7 x 89,8 cm, no Museu de Nanquim) como que se pressente a verdade sobre os seus arrependimentos no olhar desolado, debaixo da cabeça coberta com um tradicional barrete de tecido preto do tipo fujin, que já se usava na dinastia Han. E que contrasta com as vestes claras acinzentadas, mais escuras perto dos pés, calçados de vermelho tal como a espécie de almofada confortável que cobre a inesperada cadeira grosseira onde está sentado, construída com ramos nodosos de madeira não tratada. Uma peça de mobiliário cujo significado foi evoluindo em pinturas, desde iconografia característica de personalidades budistas até caracterizar agora a elegância espiritual de personalidades cultas. Que se reconheciam em palavras do Daodejing: «Bloqueia as aberturas, fecha as portas, amacia as arestas, desfaz os nós, abranda o teu olhar; deixa que as tuas rodas se movam apenas em antigos sulcos. Isto é conhecido como a misteriosa paridade.» (Cap.56) O autor da pintura, que em algum momento certamente se espelhou no olhar humilde do retratado, era um pintor de Suzhou chamado Gu Jianlong (1606-depois de 1687) que se relacionou com essas distintas figuras de literatos tendo acompanhado o poeta Qian Qianyi (1582-1644) a Pequim onde esteve nos anos de 1660-70 e realizou pinturas e retratos nos mais diversos estilos para outras relevantes personalidades da corte e da cultura, afirmando a sua vocação de apreender o olhar do outro. No retrato horizontal de Wang Shimin (1592-1680) que está no Instituto de Arte de Minneapolis (rolo, tinta e cor sobre seda,35,2 x 119,7 cm) ele moldaria o conteúdo da representação ao formato do suporte. Gu Jianlong faz nessa pintura um retrato que é a detalhada descrição da morada organizada de um homem de letras, que se vê no centro na única divisão que abre para a rua, numa pose descontraída de perna traçada. Está rodeado de álbuns perfeitamente arrumados dispostos sobre mesas e armários. Separados dele, em corredores, quartos e outras divisões da mansão aninhada entre nevoeiros e árvores, como pinheiros, salgueiros e canas de bambu, encontram-se mulheres, criados e até crianças. Num desses quartos, o mais sumptuoso, diante de um tieluo está na sua pose digna, a esposa do pintor e numa janela velada ao seu lado, percebe-se ainda uma outra senhora. É um retrato da vida habitual muito diferente do de 1616, que o mostra isolado, feito por Zeng Jing (1564-1647) quando Wang Shimin tinha pouco mais de vinte anos e que o mostra sério, concentrado no futuro.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasO Xiao É longa e vetusta a discussão sobre a perigosidade de certos animais, geralmente de porte relevante, para os seres humanos. Alguns entendem esses bichos como bestas insensíveis, por vezes puros predadores — como os tubarões; doutras meramente perniciosos, ainda que sem intenção — como os ratos. Já sensibilidades de outro tipo, estribadas em observações científicas e numa forma derivada de compaixão, consideram escassas as situações em que um animal ataca um ser humano sem ter sido antes ameaçado. Alegando ser na Natureza extremamente raro o assassinato com fins não-alimentares, replica esta gente não existir nos animais a maldade abundantemente constatada na espécie humana. O tema adopta contornos mais sinistros quando os humanos desejam muito frequentar uma determinada área, mas receiam a presença de um certo animal, cujas práticas agressivas neles inspiram tamanho receio que só em extensos grupos se atrevem a desafiar a presumida ferocidade das bestas. É o caso da Montanha da Ovelha Negra, um lugar belíssimo, pontuado de cerejeiras e bambus de variadíssimas qualidades. Do seu ventre, emergem o jade e o cobre; e pelas suas encostas desce o Rio da Laca que, num vale esmeralda, se funde no Rio Wei. Trata-se de uma paisagem arrebatadora, sobretudo em certas épocas do ano, sedutora de pintores, poetas, calígrafos e aventureiros de sensibilidade requintada. O problema é que, neste paraíso terreal, habita uma espécie de macaco de grande porte, dotado de longos braços, cujo carácter o predispõe para sentir um profundo desagrado pela presença humana nos que considera seus territórios. E, motivado por essa antipatia, não se exime em atirar pedras e mesmo atacar com ferocidade os incautos viajantes. Para o efeito, usa os seus fortes braços, capazes de um abraço mortal, e mesmo os dentes, extremamente afiados por extraírem alimento de cascas de áceres e bambus. Conhecido pelo nome de xiao, este animal mantém os humanos à distância, sem os atacar de surpresa. Pelo contrário, o seu nome (xiao, que quer dizer barulhento) indica que se desdobra em múltiplos guinchos e urros, de carácter agonístico, numa óbvia tentativa de espantar os visitantes. No entanto, se estes insistem em passear pelos territórios que considera como seus, o xiao é bem capaz de partir para a violência e a sua tremenda força e circense agilidade fazem dele um inimigo temível e difícil de derrotar. Certos textos admitem que o grupo de xiaos da Montanha da Ovelha Negra será, na verdade, uma tribo de humanos que, desde a queda de uma dinastia em tempos imemoriais, ali se terá isolado e, desde então, escusado a qualquer contacto com o mundo exterior àquela maravilhosa montanha. A aparência símia, os longos braços e mesmo a cauda, seriam artifícios utilizados para inspirar terror nos que se atrevem a percorrer aqueles domínios. Contudo, poucos subscrevem tão fantasiosa teoria. Mestre Zuo diz: “O mal é uno, embora se manifeste na multiplicidade. Daí que não possamos atribuir a um animal especiais intenções ou mesmo outro objectivo que não seja cumprir um destino que não escreveu. Talvez vos surpreenda saber que incluo os humanos neste grupo.”
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasNão nomeado Sabemos, sim, que não podemos nomear o inominado até por uma exclusão de partes que não é mencionável, e mesmo assim, nós que fizemos da linguagem o agente criador de realidade, ficamos aquém do dizer que a palavra transmite, que em última instância a linguagem não se quer agente para demonstração lógica de factos, mas sim para uma inventividade que é necessária para ultrapassar o limite- todos os limites- que a sua própria corroboração nos ordenara. Entre a intenção do dizer, e o “trans- dizer” existe ruptura e novo diálogo. O domínio da sua transfiguração cabe aos poetas, aqueles da insondável formatação por vertentes não equacionáveis, recusando-se talvez aos do bem – dizer nas suas bases de mero exercício formal, que em última instância só têm linhas tortas. Sempre será preciso muito além para se prescindir de aspectos seguros e bem acabados, rompendo por dentro a expectativa de se ser compreendido. O poeta, por que o é, será sempre o ser de fronteira e do limite das coisas, e ao mencioná-lo enquanto elemento transgressor não o devemos servir a frio numa plataforma de quentes centralidades e inspiradas melodias. Nada disso lhe é subjacente, ou então ninguém saberá para o que vai, dado que depois de todas as conquistas e actividades laborais, cada ser, quer afinal, e no topo de seu desejo absurdo, ser um poeta. Ainda bem que tais desejos não implicam resoluções, e que nesta dobragem um tanto ou quanto falaciosa, vamos encontrar uma massa do grande SNI em nossos “artistas de fim de semana”. « Sentimentos todos nós temos» F.Pessoa.- Sim, e depois? Estranhamente não são os sentidos e os sentimentos que fazem poetas, mas como dizê-lo numa sociedade que se pensa livre e que “livremente” exercita a sua anedota de grupo de maneira tão libertinantemente natural? Creio que a grande resposta é enfim não dizer nada, mas sempre retirando qualquer vestígio de soberba e de cinismo. Kabir exemplifica este ser só no meio da jornada onde em vão se deseja colocar a natureza entre uma e outra influência, este poeta cuja primeira edição aparece na Europa na tradução inglesa de Tagore em 1915, foi um poeta de uma India Medieval nascido no século XV que muitos crêem ter sido uma síntese sincrética do Hinduísmo e do Islamismo. Mas não! Foi deles um crítico, indo até ao insuspeito Sufismo. De todas elas, por educação e herança cultural teria de ter total conhecimento, mas que transformou em outra visão e iniciação. Mais tarde reindivicaram todos a sua posse decididos a chamar para si o poeta que ousara não ser nenhum deles. E eis então que nos surge entre as mãos um maravilhoso título «O Nome daquele que não tem nome», Kabir, numa pequena e preciosa edição, e sabemos qualificar a dimensão de um poeta assim. Basta ter saído das estruturas que fabricam talvez essa ilusão do ente criador, para sem dúvida ter sofrido alguma opressão no tempo que lhe fora dado viver, e depois, talvez se tivesse inexoravelmente colocado nessa parte silenciosa do difícil poder criativo. Não o vamos porém encontrar circunscrito ao nada niilístico gratuito e solitário. Não! Esse não foi o caso – ele fizera parte de um grande movimento iniciático da Índia, no conceito de Absoluto, e por aí trilhou caminhos cujo alcance estão fora da rota canónica e das grades das vontades alheias, crê-se que no seu caixão foram encontrados manuscritos de negação a essas duas correntes teológicas bem como um “bouquet” com as suas flores preferidas, isto porque, uns queriam cremá-lo segundo os costumes hindus, e outros enterrá-lo de acordo com os costumes muçulmanos, mas nunca ninguém viu o seu corpo morto. Talvez que entre céu e terra e muitas certezas, muitas outras coisas existam que desconhecemos e que preparam o tempo de serem vistas. «O nome daquele que não tem nome» continuará a ser uma busca na definição de coisas outras ( não em forma de metáfora) e de um além não nomeado: os Hebreus sabiam lidar com esta componente por meio de uma exegese magistral dando sempre nomes vários, dezenas, mesmos, mas em nenhum se retiveram, procurando sempre, o que os tornou sem dúvida muito fortes ao nível da inteligência pura, os católicos também sabem por inerência que não se deve pronunciar o nome de Deus em vão, mas vã foi esta determinação na Família Católica. Há no entanto a ressalvar que na antiga Pérsia os povos oravam aos poetas, e talvez essa prática tenha passado para o Islão. Não havia separação entre estas coisas cuja simplicidade Kabir deu testemunho extraordinário, talvez por serem os mais próximos daquilo que não pode ser encontrado, ou seja, nomeado. Lendo livro após livro o mundo inteiro morreu e nunca ninguém aprendeu!
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasDiscurso Sobre o Ritual, Parte VII Xunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho Discurso Sobre o Ritual, Parte VII O ritual assegura que os eventos felizes ou infelizes não se intrometem uns nos outros. Quando chega o momento em que temos de colocar gaze sobre o rosto de alguém e escutar a sua respiração, o ministro leal e o filho filial sabem que a doença da pessoa é muito grave. Ainda assim, não buscam peças de roupa para vestir o cadáver nem o colocam em câmara ardente. Choram e enchem-se de medo. Ainda assim, não deixam de esperar que, miraculosamente, a pessoa viva e não deixam de tentar manter a vida da pessoa. Só quando a pessoa morre deveras preparam o que é necessário. Assim, mesmo as casas mais munificentes passam um dia antes da câmara ardente e três dias antes de prepararem as vestes de luto. Só então são enviados mensageiros a quem está longe; só então começam a trabalhar os responsáveis pelos vários artigos [funerários]. A câmara ardente deve durar, no máximo, não mais de setenta dias e, no mínimo, não menos de cinquenta. E porquê? Para que aqueles que estão longe possam vir; para que muitas necessidades possam ser supridas e para que muitos assuntos possam ser resolvidos. A lealdade expressa nisto é do mais alto grau. A regulação apropriada envolvida nisto é do mais alto nível. A boa forma patente nisto é do mais alto género. Depois, quando a lua se levanta, recorre-se a adivinhação para determinar a data do enterro e, quando a lua se deita, recorre-se a adivinhação para determinar o lugar do enterro, só então se procedendo ao enterro. Seria possível realizar o funeral de forma proibida por yi [justiça]? Quem poderia impedir as coisas que são realizadas de acordo com yi? Assim, quando o funeral se realiza no terceiro mês, toma por aparência exterior a parafernália dos vivos para ornamentar os mortos. Porém, tal não acontece simplesmente por não se querer abrir mão dos mortos, mas ao invés para consolo dos vivos. E essa é a mais elevada expressão de yi em termos de saudade e memória. A prática padrão dos ritos funerários é mudar a aparência do cadáver através da adição gradual de mais ornamentação, afastando-o gradualmente para cada vez mais longe e regressando lentamente à rotina dos dias. A forma como a morte funciona significa que se não ornamentarmos os mortos começaremos a sentir repugnância por eles e, sentindo repugnância, não sentiremos tristeza. Se os mantivermos por perto, a eles nos habituaremos, e, habituando-nos, nos cansaremos deles. Cansados deles, esqueceremos o nosso lugar e, esquecendo o nosso lugar, deixaremos de ser respeitosos. Quando perdemos o nosso senhor ou pai, mas os enterramos sem tristeza ou respeito, ficamos muito próximo de sermos animais. A pessoa exemplar tem vergonha disto e gradualmente adiciona mais ornamentação ao cadáver para eliminar qualquer repugnância; afasta o cadáver gradualmente para cada vez mais longe para demonstrar respeito; regressa lenta e gradualmente à rotina dos dias de modo a ajustar a sua vida com propriedade. Nota Xunzi (荀子, Mestre Xun; de seu nome Xun Kuang, 荀況) viveu no século III Antes da Era Comum (circa 310 ACE – 238 ACE). Filósofo confucionista, é considerado, juntamente com o próprio Confúcio e Mencius, como o terceiro expoente mais importante daquela corrente fundadora do pensamento e ética chineses. Todavia, como vários autores assinalam, Xunzi só muito recentemente obteve o devido reconhecimento no contexto do pensamento chinês, o que talvez se deva à sua rejeição da perspectiva de Mencius relativamente aos ensinamentos e doutrina de Mestre Kong. A versão agora apresentada baseia-se na tradução de Eric L. Hutton publicada pela Princeton University Press em 2016.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasLiberalização da venda de Liu pun A solução achada pelo Leal Senado, que O Independente de 28 de Abril de 1892 se escusa a referir, dizendo apenas não concordar, sem dela nada mais descrever e faltando-nos o que escreve O Macaense, na visão local em oposição à do reinol jornal, encontramos a exposta por Filomeno Izidoro dos Santos Victal: A 20 de Abril de 1892 as lojas chinesas começaram a deixar de abrir até que em 20 de Maio, todas as lojas fecharam e ninguém trabalhava, os barcos pararam e desde o início de Macau nunca a cidade tinha visto uma tal manifestação. A greve ocorreu devido ao governo aprovar em Outubro de 1891 entregar o monopólio da venda do vinho para dois anos e a associação dos negociantes de vinho demandaram ao governo para não ser cobrada taxa na venda do vinho, mas o governo não aceitou. Ao ser arrematado o monopólio do vinho, os comerciantes recusaram-se a participar e ninguém concorreu, até que em Março de 1892 um comerciante de Hong Kong Chan Iü San ofereceu 7810 yuan para ficar com o monopólio da venda de vinho de 1 de Maio de 1892 a 30 de Junho de 1894. Perante este contrato cada meio quilo de vinho era cobrada à taxa de 5 cêntimos, mas quem produzia localmente vinho teria também de pagar. Tal colocou o preço do vinho 16 por cento mais caro, o que levou a um aumento do custo de vida em Macau. Assim o Governo de Macau necessitou de ir a Hong Kong comprar arroz e colocar os presos a trabalhar nas necessidades portuguesas, até que o governo enviou os militares portugueses a obrigar os chineses a abrir as lojas. No dia 22 de Maio, o Visconde Sena Fernandes representando o governou negociou com a associação dos comerciantes chineses e comprometeu-se a retomar o monopólio da venda do vinho ao comerciante Chan pagando-lhe 8000 yuan para ele libertar, ficando durante seis meses esperando ordens de Lisboa. Resolvido o problema, as lojas chinesas reabriram e assim liberalizou-se a venda de vinho chinês, segundo Filomeno Izidoro dos Santos Victal. Outra versão refere: A implantação deste monopólio provocou uma greve dominada com prudência e firmeza pelo Governador. Fala-se ter o comércio subornado por avultada peita o arrematante que apenas pagou a primeira prestação e depois ausentou-se abandonando Macau e o exclusivo. O monopólio foi lançado às margens e substituído pelo regime de licenças com o parecer favorável da junta consultiva do Ultramar. No entanto, ainda a 5 de Maio de 1892 O Independente, em Comunicados anota, durante a greve, que durou apenas dois dias, a venda de carnes verdes se fazia em algumas lojas com as portas encerradas. Notícia talvez proveniente d’ O Macaense, pois, segundo O Independente, <se fosse somente a carne de porco, ninguém se importaria com tal asserção; mas como é público e notório que o talho da carne de vaca se conservou aberto como de costume, e como o empresário deste exclusivo, o Sr. Cong-pac, preparou a sua gente para resistir à força contra os grevistas, quando estes tentassem invadir o seu estabelecimento, é justo que seja conhecido por quem não o presenciou o modo digno e corajosos do Sr. Cong-pac em manifestar publicamente a sua indignação contra a atitude estúpida dos grevistas. Além disto, o Sr. Cong-pac fez grandes sacrifícios em mandar vir de Hong Kong muito gado que lhe custou caro, para fornecer a comunidade inteira desta província na falta de outros géneros, o que não fez o arrematante do exclusivo da carne de porco. RESCISÃO DO CONTRATO O B.O. n.º 24 de 15 de Junho de 1892 anuncia: <Por esta repartição e para os efeitos da condição 19.ª do contrato do exclusivo do vinho Liu-pun em Macau, Taipa e Colovane, celebrado nesta repartição em 6 de Abril do corrente ano com o chinês Chan-Iü-San, se faz público que por S. Exa. o Governador da Província foi rescindido em data de ontem [14 de Junho] o referido contrato, por contravenção da condição 18 e seu parágrafo por parte do mesmo chinês arrematante. Repartição de Fazenda Provincial de Macau e Timor, em 15 de Junho de 1892. O inspector de Fazenda Arthur Tamagnini Barbosa. Interessante no contrato publicado no B.O. de 16 de Abril de 1892 não constarem as condições 17, 18, 19 e 20. Em forma de Anúncio aparece no B.O. de 23 de Junho de 1892: <Por determinação de S. Exa. o Governador da província, baseada em autorização telegráfica de S. Exa. o Ministro da Marinha e Ultramar, faz-se público: 1.º Que a contar de 15 do próximo mês de Julho, a ninguém é permitido vender, fabricar e importar vinho Liu-pun em Macau na Taipa e em Coloane, sem que tenha para esse fim obtido licença especial passada por esta repartição. 2.º As pessoas que desde o referido dia 15 de Julho queiram vender por grosso ou a retalho, fabricar ou importar, vinho Liu-pun, em qualquer das localidades mencionadas, apresentarão as suas declarações em papel selado nesta repartição até ao dia 5 de Julho. 3.º No dia 6 pela 1 hora da tarde comparecerão os declarantes nesta repartição, a fim de, perante a comissão de que trata a régia portaria n.º 114 de 11 de Dezembro de 1891, se lhes designar a taxa que cada um terá de pagar. 4.º Esta taxa poderá ser paga uma só vez, por ano, por semestre ou por trimestre mas sempre adiantada. 5.º É de dois anos o prazo máximo porque se concedem as licenças. 6.º A ninguém mais, além dos licenciados pela forma que aqui se consigna, é permitido importar, fabricar e vender por grosso ou a retalho vinho Lui-pun, sob pena da multa de cinquenta patacas e confisco de todo o vinho encontrado no estabelecimento não licenciado. 7.º É permitido aos negociantes e fabricantes de vinho constituírem-se em grémio, a fim de entre si fazerem a divisão da taxa que cada um deva pagar para completo da importância total que a todos os declarantes possa ser exigida. 8.º Querendo aproveitar-se da faculdade que é concedida no número anterior deverão declará-lo no referido dia 6 de Julho perante a comissão a que se refere o n.º 3 e nessa ocasião apresentarão uma lista de todos os agremiados devidamente autenticada com o selo da loja de cada um. 9.º A direcção dos negócios do grémio, no que toca a relações com a fazenda provincial, será cometida a uma comissão de três membros escolhidos pelo grémio entre os negociantes de grosso. 10.º A direcção do grémio é responsável individual e solidariamente pelos pagamentos do total das taxas devidas à fazenda. 11.º Dado o caso do pagamento se não efectuar dentro dos três primeiros dias do ano, semestre ou trimestre a que disser respeito, considera-se cada um dos agremiados sujeitos à penalidade expressa no número 6. Repartição da fazenda provincial de Macau e Timor, 22 de Junho de 1892. O inspector de fazenda Arthur Tamagnini Barbosa. Parecia estar o assunto encerrado quando durante uma reunião, às 8 horas da noite de 6 de Julho de 1892, foram presos 40 indivíduos chineses, todos negociantes de arroz e de vinho, por estarem a conferenciar num dos grémios chineses denominado Vong-ngi-t’ong, sem prévia licença da autoridade competente.
Paulo Maia e Carmo h | Artes, Letras e IdeiasComo Li Song Viu a Onda Sob o Luar «Montanhas verdes atrás de montanhas, mansões atrás de mansões,/ Quando terminarão as canções e as danças no Lago do Oeste?/ Um vento quente aquece os visitantes, tornando-os desnorteados,/ Parece que a justa Hangzhou se vai assemelhando à velha capital, Bianzhou.» Su Shi (1036-1101) preservou em emocionantes poemas a árdua experiência de estar no meio de tempestades embarcado no meio de um rio. Quando em 1082 escreveu as suas reflexões sobre o passado e as guerras no Penhasco Vermelho (Qianchibi fu) após uma viagem com amigos no rio Changjiang, foi esta situação que o poeta descreveu como «pairávamos livres como se tivéssemos deixado o mundo para trás, nos tivessem nascido asas e voássemos como os imortais», que se tornou de tal modo visual que os pintores repetidamente a evocariam. Como no caso de uma notável pintura feita alguns anos após a morte do poeta e que o mostra nessa embarcação com amigos no meio das ondas e rochedos sem margens e, o único vestido de vermelho é o poeta que volta a cabeça para um penhasco. Essa memória visual (folha de álbum montada como rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 24,7 x26,3 cm, no Museu Nelson-Atkins) é atribuída a um pintor de Hangzhou, que estava ao serviço da corte, num tempo em que era fluida a fronteira entre os pintores literatos e académicos, e se notabilizaria por ilustrações da irrupção do incomum no habitual da vida quotidiana, chamado Li Song (1166-1243). Existiria uma afinidade do pintor com o poeta atento às mudanças e que anotava as permanências, como ele escreve no poema da Lua do meio-Outono (…) «A Via Láctea está silenciosa, volto-me para o prato de jade,/ O bem desta vida não durará muito tempo./ No próximo ano onde observarei a lua brilhando?» Essa mesma velha lua do meio-Outono cuja claridade na disponibilidade da noite, permite reconhecer os amigos foi observada por Li Song através de um espantoso fenómeno natural que ocorre anualmente perto de Hangzhou. Em Observando a onda numa noite de luar (folha de álbum, tinta e cor sobre seda, 22,3 x 22 cm, no Museu do Palácio em Taipé) o pintor alcança uma memorável síntese poética. Li Song dispôs os poucos elementos da sua pintura num cuidadoso equilíbrio. Uma mansão construída à beira das águas colocada entre duas árvores nuas, com um pátio onde estão rochas e pinheiros, dentro da casa pequenas personagens deixadas em branco, parecem fantasmas, como se adquirindo a cor da lua, que na pintura tem uma coloração que dir-se-ia humana. Só algumas estão na varanda a assistir a essa violenta maré que empurra as águas do rio Qiantang no equinócio do Outono, fazendo-as correr ao contrário e é um acontecimento raro no mundo (no Brasil designado pororoca) e é o que ocupa o centro da pintura. Está alinhada debaixo da lua e de uma inscrição que refere que é preciso abrir a porta e «observar a onda nocturna sob o luar» e é acompanhada pelo vistoso carimbo da Senhora Gongsheng (1162-1233) a imperatriz Yang dos Song, que nas suas três linhas cortadas é o trigrama kun, da terra, o receptivo, que dialoga com a onda dita localmente do «dragão de prata», yinlong.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasGreve e lojas fechadas A arrematação do exclusivo do vinho Liu-pun para Macau, Taipa e Coloane e suas dependências para o período de 1 de Maio de 1892 até 30 de Junho de 1894 foi feita a 2 de Abril de 1892 por proposta em carta fechada do capitalista Chan-Iü-San, chinês de Hong Kong, pela quantia de 7,810 patacas. As condições do contrato do exclusivo do vinho Liu-pun respeitantes a terceiros aparecem no anúncio da repartição de fazenda provincial no Boletim Official do Governo da Província de Macau e Timor n.º 15 de 16 de Abril de 1892, parte já publicada no artigo anterior. Aqui se complementa com a Condição sexta – O imposto que o arrematante tem direito de cobrar, três caixas por cada cate de vinho Liu-pun que seja importado em Macau, Taipa e Coloane, ou aí fabricado com sua licença, é devido, no caso de importação, logo que o vinho entre nessas localidades e no caso do fabrico local, logo que esteja preparado. Sobre a peça oficial, o edital do Governador publicado a 6 de Abril de 1892 no Suplemento ao n.º 13 do B.O., o jornal O Independente de 21 de Abril refere, Não produziu o efeito desejado, antes foram desprezadas pelos chineses as determinações nele contidas a despeito das quais resolveram fechar todas as suas lojas, tendo havido previamente, segundo se diz, várias conferências na Lapa. Abertura das lojas A 28 de Abril de 1892 O Independente anuncia: . “Parece que o governo provincial andava mais sôfrego de ver a solução da crise, e estava firmemente resolvido a fazer terminar até com violência a greve no começo do terceiro dia”, segundo O Macaense, que , mas a impossibilidade de consultar esse jornal, devido ao actual encerramento das bibliotecas, retira-nos essa valiosa informação. Ainda a 28, o jornal O Independente apresenta em comunicados: Soluções Continuando n’O Independente de 28 de Abril de 1892: É que, com efeito, brada aos céus que importando-se e fabricando-se em Macau não menos de 36 mil picos de liu-pun, por ano, se autorizasse a cobrança de 3 caixas por cate, o que produz aproximadamente $15:000, recebendo o governo apenas $7.800, quando teria sido mais justo, regular e mais político anunciar a taxa de 3 caixas, provocar pelos meios de que o governo pode dispor um princípio de reacção, chamar então os negociantes a agremiarem-se, cedendo caixa e meia, o que dava ao governo 7.500 patacas por ano, aliviando os contribuintes de igual quantia. (…) Tentou-se obrigar os chineses a abrirem as suas lojas, quando nos parece que seria mais acertado usar do direito que assiste ao governo de cessar as licenças, proibindo aos grevistas tornarem a abrir as suas lojas, se o não quisessem fazer, pura e simplesmente, sem condições de espécie alguma, no termo de 24 horas. Iam para a Lapa? Pois fossem, que primeiro está o prestígio do governo! Era ocasião de se dar um impulso à actividade dos macaistas, que seriam levados a estabelecer-se e tornar-se negociantes, para não tornarem a ficar na completa dependência dos chineses.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPães de Deus _ Insurgiu-se a caridade por via católica com aspectos que nos parecem iniciais e só por ela continuados como um solfejo de garantias eternas, mas esta interpretação que nos remeteu para o Humanismo actual não é ainda uma originalidade nascida no ventre de Maria. Já Buda nascera contemplando a caridade, enquanto uma certa apostasia monoteísta inventava os seus dogmas para a circunscrever a eventos só seus, que um tal dissidente judeu, pertencia ainda a um grupo ascético dos «Puros do deserto» e não fora jamais por si mesmo capaz de criar o seu próprio dogma. Neste xadrez das coisas feitas e pensadas, não facultaremos a vinculação aos dados de quem por inépcia e mau caminho, recriou uma narrativa que por séculos fez vítimas e Concílios de terror. _ A fome faz parte da condição humana, e também animal, sendo o grande impulso para a capacidade da manutenção das espécies, a fome feroz obrigou a legislar e a capacitar os seres a uma justa retribuição das fontes alimentícias, o que acabou por fazer proliferar a nossa espécie com redobrado sucesso, mas, não é uma componente caritativa, e muito menos dirigida aos menos ou mais necessitados; trata-se de função vital. Ser-nos-ia inconcebível enquanto alcateia maior condenar um outro à fome, essa – monstruosidade de grupo- e alguém ainda se robustecer de influência no cumprimento de tal matéria. É por interpretação irregular que nasce a subserviência e a triste condição daqueles que têm fome. Se por incapacidade mental os seres não se sabem nutrir, haverá sempre recurso médico para a disfuncionalidade, e garantias de que a situação se reverta com as leis certas do tempo social. Que Bancos Alimentares são Bancas Rotas de imodéstia, e por que não dizer, de redes mal posicionadas para a dignidade e transparência enquanto práticas maiores. – Não ao escuteiros meninos nos peditórios! Não às senhoras fedorentas nas actividades de nutrição no espaço social- . Sabemos que há fomes atávicas, e a memória dela como instinto maior gera a ganância produzida por esse indomável espectro que leva a armazenar ao que a outros faz falta. Mas, voltemos aos pães. _ Os pães que prodigalizam o produto da primeira transformação tal como o vinho, nascem longe no tempo, inserindo-se no sedentário caminho de Noé quando planta a vinha depois do Dilúvio, e vamos posteriormente encontrar no «Livro dos Reis» o efeito socializante da sua multiplicação e a dádiva benigna daqueles que repartem « REIS 42»:( mais tarde iremos ver a adaptação desta passagem em São Lucas « Primeira multiplicação dos pães») e constatamos que não há muita capacidade para interligar os diálogos que ficaram interrompidos no sectarismo de séculos junto aos povos cristianizados. A mesma história não requereu entre estes últimos a exegese merecida para cumprimento da compreensão, e foi nesta base semi-ignorada que levámos a outros povos batalhões de equívocos que bastaram. Esta multiplicação, no entanto, é mais que uma noção de quantidade (ambas chamam a atenção para tal facto) nas duas passagens elas mostram-nos a consciência do bem que é repartir e comer na boa repartição de grupo; não precisamos de muito, talvez do melhor que a vida dá e transforma em Ceia comensais satisfeitos. Como o alimento era abençoado ele percorria a divindade do ser que estaria nutrindo, tudo isto ainda à margem da conspiração prazerosa das inqualificáveis receitas culinárias dos nossos dias. _ Para dizer que não desvendaremos jamais a “Encíclica” imposta sem nos debruçarmos nos Hebreus que ditaram nas muitas transformações do texto bíblico as bases da composição que fez nascer um Cristo. Mas, também, toda esta trança entre língua hebraica, aramaica, grega e romana (latim) nos distanciou, quem sabe, do sentido profundo da mensagem.- Que uma Mensagem existe! O nosso poeta, aquele judeu da Covilhã, interpretou-a poética e conscientemente à sua maneira, e talvez lhe tenhamos perdido o rasto, de tão absortos que andamos na genialidade individual fruto do acaso e de outras patranhas. «O Reino da Quantidade e os Sinais do Tempo» de René Guénon dá-nos ainda ampla amostragem da derrota que foi a avidez, aqui, onde já nada havia a fazer para a transfiguração maravilhosa da « Multiplicação dos Pães».- Quatro planetas não bastavam para tanta fome! Aqui chegados, talvez ir de novo ao «Livro dos Reis» que um Cristo é afinal de contas tão alto que não há guindaste para o alcançar. Mas ele veio deste veio de vida que um Povo em marcha ditou nestes sinais.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEliot 1 A arte não começa senão no instante em que resulta e não pertence à esfera dos objectos mas dos acontecimentos. Atesta-o o sucesso de T.S. Eliot e a sua influência por décadas, apesar de A Terra Sem Vida (1922) ilustrar a ruína do espírito humano. Para se perceber o grau de sucesso de que Eliot gozou, lembremos que, em 1956, catorze mil pessoas se juntaram no estádio da Universidade de Minessota para escutar a sua conferência sobre “As fronteiras da crítica”, ou, como dezasseis anos depois de ter falecido, em 1981, se estreou “Cats”, o musical de Andrew Lloyd Weber baseado em “Old Possum’s Books of Pratical Cats”, com um tal êxito popular (desiderato que o poeta, com sete peças escritas, havia perseguido em vão) que, após a sua estreia em Londres, se manteve em cartaz na Broadway por dezoito anos. Eliot foi uma figura unânime e tão grande a sua irradiação que na Europa central, na Polónia, um poeta central, como Zbigniew Herbert, escreverá: «Não muito permanecerá de verdade não muito/ da poesia deste século enfermo/ certamente Rilke Eliot alguns outros grandes xamãs/ que resgataram o segredo de conjurar/ uma forma com palavras que resiste/ à acção do tempo/ porque sem essa forma não há frase/ digna de ser lembrada/ e a linguagem se esboroa como areia». Aliás, podemos medir a inusitada transversalidade da sua popularidade pela deliciosa correspondência trocada entre T.S. Eliot e Groucho Marx, nos anos 60, e traduzida por Helder Moura Pereira, para o nº2 da revista “Magma”, dirigida por Carlos Alberto Machado e que eu coordenei. Transcrevemos, desse corpo de missivas, um excerto da final, de Groucho Marx para Gummo Marx, referindo o jantar em casa de T. S. Eliot, jocosamente, assinada como Tom Marx: «Junho, 1964, Querido Gummo: A noite passada a Eden e eu fomos jantar a casa do meu famoso pen pal, T.S. Eliot. Foi uma noite memorável. O poeta recebeu-nos à porta na companhia de Mrs. Eliot, uma senhora de meia-idade, loira e com muito bom aspecto, cujos olhos se enchiam de adoração sempre que olhava para o marido. Ele, por sua vez, é alto, magro e encurvado; não sei se isso se deve à doença, à idade ou a ambas as coisas. Devo dizer-te que este que te escreve chegou à casa dos Eliot completamente preparado para o que desse e viesse, no caso da conversa se tornar mais literária. Durante a semana li duas vezes “Assassínio na Catedral”, três vezes “A Terra sem Vida” e, pelo sim pelo não, li também umas coisas do “Rei Lear”. Bom, passou-se então, meu caro, que, enquanto serviam os aperitivos e durante um daqueles silêncios sempre inevitáveis quando estranhos se encontram pela primeira vez, eu, a propósito de coisa nenhuma (e “não com o som de um estrondo, mas com o de um lamento”), lancei para o ar uma citação de “A Terra sem Vida”. Isso demonstraria, pensava eu, que costumava ler umas coisas para lá das notícias do mundo do espectáculo. Eliot sorriu vagamente – como a querer dizer que sabia os seus poemas de cor e salteado e não precisava que lhos recitasse. Posto isto, atrevi-me a uma incursão pelo “Rei Lear”. Disse que o rei era um velho incrivelmente tonto, Deus bem o sabia; e que, se fosse meu pai, eu teria fugido de casa aos oito anos – nem esperava até aos dez. Também não foi coisa que impressionasse o poeta. Parecia estar mais interessado em conversar sobre “Os Galhofeiros” ou “Uma Noite na Ópera”. E contou mesmo uma piada – uma das minhas – de que já nem eu me lembrava. Foi a minha vez de esboçar um sorriso vago. Eu não ia deixar ninguém – nem mesmo o poeta britânico de St. Louis – estragar o meu serão literário. Assinalei que o discurso de abertura do “Rei Lear” era o cúmulo da idiotia. Imaginem (disse eu) um pai a perguntar aos três filhos: Qual de vocês gosta mais de mim? E renegar depois a mais nova – a doce e amável Cordélia –, porque, ao contrário da irmã mais nova, uma perversa, era incapaz de se desfazer em falsas bajulações. Além do mais, Cordélia era, lembremo-nos, a favorita do pai! Os Eliot escutavam educadamente. Mrs. Eliot começou então a defender Shakespeare e também Eden, lamento dizê-lo, se pôs do lado do Rei Lear, apesar de eu ser a única pessoa em todo o mundo que a apoia. (Para ser justo para com a minha mulher, devo dizer que, tendo representado o papel de Princesa numa produção escolar de “O Cisne”, soube reter da peça o calor humano que advém da dignidade). Quanto a Eliot, perguntou-me se eu me lembrava da cena do tribunal em “Os Grandes Aldrabões”. Felizmente que eu nem de uma palavra me lembrava. E assim chegámos ao fim do Serão Literário, que foi, apesar de tudo, muito agradável. Descobri que Eliot e eu temos três coisas em comum: 1. uma verdadeira paixão por bons charutos e 2. por gatos; e 3. pelo vício de fazer trocadilhos – um vício que tento deixar há muitos anos. T.S., pelo contrário, faz gala disso – até sente um certo orgulho. Inventou o Gus, por exemplo, o Gato do Teatro, cujo “verdadeiro nome é Asparagus” (Espargos). (…) Quando lhe disse que a minha filha Melinda andava a estudar a sua poesia na Faculdade de Beverly, ele afirmou que o lamentava, pois não tinha o mais pequeno desejo de tornar-se leitura obrigatória. Não ficámos até muito tarde, dado que ambos sentimos que ele não aguentaria uma longa noite de conversa – sobretudo comigo. Já te disse que o tratámos por Tom? Se calhar por ser esse o nome dele. Eu, como é óbvio, pedi-lhe que me tratasse também por Tom, mas só porque detesto o nome Julius. Teu, Tom Marx!
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO vinho Liu Pun fecha lojas Após se efectuar a arrematação do exclusivo do vinho Liu-pun a 2 de Abril de 1892, os comerciantes chineses de Macau foram-se reunindo para concertarem medidas a fim de contrariar a execução do referido exclusivo [todo o vinho feito pela destilação do arroz seja qual for a espécie, denominação ou procedência]. Escreve O Independente de 9 de Abril: “Espalhou-se por esta cidade o boato de estarem os chineses muito descontentes com a criação do exclusivo do vinho liu-pun e pretendiam fazer greve fechando todas as lojas. Já era de esperar esta estulta e absurda ameaça que só poderia causar susto aos ingénuos. O que não esperávamos era a importância que se deu a esses boatos com a peça oficial publicada” a 6 de Abril de 1892 no Suplemento ao n.º 13 do Boletim Oficial do qual no artigo anterior publicamos parte do Edital do Governador Custódio Miguel de Borja, e agora seguimos com o restante: . O ARREMATANTE As condições do contrato do exclusivo do vinho Liu-pun respeitantes a terceiros, aparecem no anúncio da repartição de fazenda provincial no Boletim Official do Governo da Província de Macau e Timor n.º 15 de 16 de Abril de 1892:
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO renyue Nesta peregrinação pelas montanhas da China – numa virtuosa demanda por animais nunca referidos nos compêndios do Ocidente – somos invadidos pela felicidade de aportar ao sopé da Montanha do Bambu, que se caracteriza pela profusão vegetal e pela beleza insuperável das suas encostas. Delas se inclinam árvores retorcidas sobre abismos temperados de musgos, pelos vales cabriolam rolos de nuvens, no seu íntimo repousam metais preciosos, dos quais somente o ferro ousa mostra-se, dotando a paisagem de marcas rubras sob o sol da manhã. A temperatura é amena praticamente todo o ano e do seus bosques emerge uma sinfonia vital, que causa o espanto dos homens e parece ter adquirido o beneplácito dos deuses. Além da vegetação prolífica, da Montanha do Bambu brotam numerosas nascentes de uma água puríssima, cujo caudal, ao longo de barrancos e vales, se transforma em ribeiros, cascatas e lagos. Num desses cursos de água, o rio Cinábrio, vive um peixe chamado renyu que, apesar do seu nome (peixe humano), em nada se assemelha a uma pessoa, sequer às tribos habitantes de certos subúrbios. O renyu não é uma sereia, não apresenta uma face humana, não passará de um peixe vulgar, com quatro barbatanas. No entanto, a sua carne é extremamente apreciada porque se diz ter o poder de curar ilusões. Que ilusões?, perguntará o visitante, abismado, na sua inocência, com a pretensa capacidade deste peixe de afugentar das mentes pensamentos desviantes e perigosos. Sim, respondem os alfarrábios, mas também a imaginação doce e subtil é bloqueada pela carne deste animal, impedindo a piedade e o amor. Por isso, o renyu é servido apenas a pessoas com graves problemas psíquicos, soterradas em estranhas ilusões, despedaçadas interiormente por visões tenebrosas e maléficas. Segundo o historiador Sima Qian, no túmulo do primeiro imperador da dinastia Qin ardiam milhares de velas, feitas com gordura de renyu. Tal facto tem sugerido numerosos comentários ao longo dos séculos. Alguns atribuem-no ao extremo brilho que proporciona. Mas outros consideram-no uma velada crítica às ilusões do imperador relativas à imortalidade, como se a gordura do renyu, ardendo na sua câmara funerária, finalmente o libertasse da ilusão de se tornar imortal, algo em que torrou largas fatias do tesouro estatal, uma despesa que o cadáver ali presente claramente revelara infrutífera. Poderia a gordura do renyu ter sido usada para eliminar as ilusões do imperador morto ou, simplesmente, para lembrar que a imortalidade nunca passará de isso mesmo – uma ilusão? Mestre Zuo, no seu comentário, não deixa de espetar uma ínfima alfinetada na questão: “O que se me torna menos digerível é a demanda da imortalidade por parte de alguém que acredita na vida depois da morte ou não teria gastado tantos recursos do país na construção do seu mausoléu.”
Hoje Macau h | Artes, Letras e Ideias“Na margem do rio. Diálogos com a morte nos versos de quatro poetas polacos” In https://revistapiparote.com.br/ Apresentação e tradução de Piotr Kilanowski Quatro poemas, quatro poetas, um tema. Ou quase um. Temos três diálogos antes da viagem para o paradeiro mais misterioso das nossas vidas e um poema que reflete a solidão dessa viagem inconcebível. Dois dos poemas, o de Jarosław Iwaszkiewicz e o de Tadeusz Różewicz, ambos marcando seu silêncio pela falta de um título, ambos saindo da garganta apertada (talvez a articulação de Różewicz esteja mais apertada, mais essencial e mais simples e por isso mais impactante) nos colocam diante do último diálogo da mãe e do filho. A figura de pietá, na qual a ordem da natureza está revertida, obriga a doadora da vida ser também a pessoa que ajuda a fazer a transição para a não-vida, a outra margem. O que está nela? O nada? Se for, dentro dele também há uma réstia de esperança, como no poema de Iwaszkiewicz, o infinito do não saber. Todos esses poemas contêm em si a escuridão e a tentativa de expressar o inexpressável. Todos são um grito, um protesto que ele mesmo sendo mudo, por tentar expressar o silêncio, emudece o leitor. O protesto contra a condição humana e, em algum nível, também a aceitação da sua inevitabilidade. O drama existencial nos primeiros três poemas é encenado pela primeira forma de um drama: diálogo. E se no poema de Aleksander Wat temos a situação que pode se referir ao último diálogo apenas metaforicamente, o mais essencial dos poemas, o mais dramático, da autoria de Różewicz, é também aquele que nos despoja de quaisquer ilusões. As palavras mais banais, mais gastas, quase todas com marcas de oralidade são dispostas pelo poeta de uma maneira que não apenas rasga o leitor mas também o obriga a mergulhar no infinito das palavras como “tudo” e “nada” colocadas em uma oposição completa. Começando pela situação coloquial, que sugere uma partida ou viagem, Różewicz por meio de absoluta economia de palavras, que ecoam ao longo do poema e do diálogo, fortalece o efeito da nossa impotência diante do inevitável. Renovando as palavras gastas nos aproxima daquilo que não pode ser dito. “Busco as palavras que não existem”, disse Jerzy Ficowski no livro A leitura das cinzas, que por meio da palavra poética tentou instaurar o monumento à ausência provocada pelo Holocausto. Różewicz não procura essas palavras. Por meio das que existem nos aproxima à não-existência que sustenta a nossa existência. Tudo isso, “a vida inteira”, para nós, seres compostos da eterna insatisfação, será sempre um espantoso “só isso” … Jaroslaw Iwaszkiewicz (1894-1980) foi poeta, prosador, dramaturgo e político polaco. O amor e a morte e sua relação, assim como efemeridade da vida sempre figuraram como temas importantes na sua obra. Vários dos contos de Iwaszkiewicz serviram como inspirações para os filmes de Andrzej Wajda. Foi um dos fundadores e membro de Skamander (Escamandro) o mais importante grupo poético do entreguerras polaco. Sua obra lírica, extremamente melódica e pessoal é marcada pela constante presença de elementos contrários: afirmação da vida e fascinação pela morte, fé no poder da arte e dúvida no poder das ações humanas, elementos contemplativos e sede de viver. Jaroslaw Iwaszkiewicz Mamã, eu fiquei cego? “Não, filho. Só a noite escura”. Por que é tão terrível? “Nada, filho. Não tarda”. E ainda frio por cima “Depois não sentirás mais nada”. Mesmo assim, tenho medo. “Deus é bom – diz Epicuro”. Oh, tem uma réstia na frente. “Chamam isso de existência”. Roma, IV-V, 1975.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasArrematação do vinho Liu pun Macau, em 1891, pedia ao Reino permissão para criar o exclusivo do vinho Liu-pun, quando em Portugal, mais propriamente no Porto, na revolução republicana de 31 de Janeiro de 1891, os populares cantavam um hino com música de Alfredo Keil e letra de Henrique Lopes de Mendonça, que referia contra os bretões marchar e após vinte anos deu o actual Hino Nacional, passando os bretões a canhões. Tal devia-se ao Governo Britânico ter feito a 11 de Janeiro de 1890 um Ultimato a Portugal para retirar as tropas dos territórios do Centro de África inseridos no Mapa Cor-de-Rosa, sendo pouco depois definidos os limites de Angola e Moçambique. A 7 de Maio de 1891, o Estado Português declarava bancarrota parcial após se financiar com um empréstimo de 36 mil contos de reis a 5 de Fevereiro, levando à desvalorização da sua moeda em 10%. A 17 de Janeiro de 1892, o Rei D. Carlos, o Diplomata (1889-1908), promovia um governo patriótico de aclamação partidária dirigido por Dias Ferreira e Oliveira Martins como ministro da Fazenda tentava reduzir o défice através da austeridade e aumento da carga fiscal. Já “para colmatar o grande défice das finanças de Portugal, a 10 de Junho de 1891 o Conselheiro José Bento Ferreira de Almeida (1847-1902) propusera no Parlamento em Portugal a venda ou abandono da maior parte das colónias portuguesas (Guiné, Ajudá, Macau, Timor e Moçambique), com excepção de Angola, ilhas do Golfo da Guiné e Cabo Verde. Não inclui a Índia, pois a Inglaterra já denunciou o antigo tratado a que se fez em tempo uma guerra enorme e se ela o denunciou, é porque não lhe era favorável e há-se impor-nos um novo tratado, em que se desforre, deixando-nos a escorrer sangue, o que nos obrigará a largar aquele domínio”, segundo o P. Manuel Teixeira. Entretanto, em Macau o grande aumento do consumo de vinho de arroz de qualidade inferior, o destilado liu-pun, levara o Governo da cidade a prosseguir a política de atribuição da venda de alguns produtos em forma de exclusividade efectuada desde 1849, quando foi arrematado o monopólio da venda da carne de vaca. Adjudicado o exclusivo Os Governadores de Macau pediam ao Reino para autorizar a concessão exclusiva da bebida espirituosa Liu-pun e o Governador Custódio Miguel de Borja (16/10/1890-1894) recebeu em 1 de Outubro de 1891 a resposta positiva do ministro e secretário d’ Estado do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar Júlio Marques de Vilhena, sendo o Decreto do exclusivo do Liu-pun publicado no B.O. n.º 50 de 10-12-1891. A arrematação foi marcada para 17 de Março de 1892 e seria por meio de licitação verbal, como consta no B.O. de 3 de Março de 1892, onde também aparecem as condições para a licitação, que deveria ser feita perante uma comissão. Esta, nomeada em 16 de Março de 1892, era composta por o Governador como presidente, do delegado do procurador da coroa e fazenda e do inspector da Fazenda e serviria também para propor a redução de despesas públicas que possam ser adoptadas e melhorar a reorganização dos diferentes ramos de serviços subsidiados pelo Estado sem prejuízo da sua boa execução. O inspector da fazenda Arthur Tamagnini Barbosa na semana seguinte 10 de Março voltava a publicar o mesmo anúncio no B.O. n.º 10. Chegado ao dia 17 de Março de 1892 foi posto em praça o exclusivo do Liu-pun, referindo o jornal O Independente terem sido quatro os pretendentes que depositaram dinheiro para entrar na licitação e S. Exa. o Governador presidiu à arrematação. O preço fixado pelo Governo foi de $5.000 ao ano, abrindo-se a praça por esta cifra. O melhor lanço foi de $6.000; mas não convindo à Fazenda adjudicar o exclusivo por este preço, mandou fechar a praça, devolvendo aos concorrentes as quantias que depositaram. “Consta-nos que na próxima arrematação um pretendente oferecerá $7,500.” A repartição de fazenda provincial publicava um novo anúncio no Boletim Oficial do Governo da Província de Macau e Timor n.º 12 de 24 de Março de 1892: Não se tendo efectuado a adjudicação do exclusivo do vinho Liu-pun cuja arrematação foi anunciada no Boletim oficial do governo desta província n.º 9, da série do presente ano, para o dia 17 do corrente mês, d’ ordem de S. Exa. o Governador novamente se publica que pela uma hora da tarde de 2 de Abril próximo futuro, se procederá, perante a comissão de que trata a portaria régia n.º 114, de 11 de Dezembro de 1891, na sala das arrematações desta repartição, à arrematação do referido exclusivo, pelo espaço de tempo a decorrer desde 1 de Maio de 1892 até 30 de Junho de 1894 por meio de proposta em carta fechada. Nas condições já não aparece determinado o valor de oferta, deixando-se aberta a proposta ao arrematante do preço que anual oferece em patacas pelo rendimento do exclusivo do vinho Liu-pun em Macau, Taipa e Coloane. No próprio dia 2 de Abril O Independente refere: “Foi hoje adjudicado este exclusivo por proposta em carta fechada a um dos capitalistas chineses de Hong Kong pela quantia de 7,810 patacas.” Publicada a adjudicação do exclusivo da bebida Liu-pun no Suplemento ao B.O. n.º 13 de 6 de Abril de 1892, que apenas trata esse assunto e onde em Edital o Governador Custódio Miguel de Borja, faz saber que: Destas palavras se percebe ter sido a atribuição do exclusivo do vinho Liu-pun ao chinês de Hong Kong mal recebida por os comerciantes e industriais chineses de Macau, que logo resolveram fazer greve e fechar todas as lojas.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAnimais Fantásticos da China XXI – A Feiyi Alguns animais pertencem a um só lugar, pois as suas características estão intimamente ligadas à terra onde nasceram. São, pois, incapazes de surgir como habitantes de outros territórios. Uma vez nascidos, para sempre ali ficam como se existisse uma lei natural que os impedisse de noutro sítio existir. O mesmo fenómeno ocorre com as plantas. Contudo, outros bichos existem que não se eximem de percorrer o mundo e são mesmo capazes de se adaptar a outros habitates. É o caso da feiyi, uma bela serpente, cujas quatro asas implantadas no seu dorso lhe permitem voar pelos céus, feito que executa com vívido prazer. Um dos lugares onde podemos encontrar uma feiyi é na Montanha do Grande Lótus (assim denominada por causa da sua forma). E repare-se que esta bela mas inóspita montanha não acolhe plantas ou animais, à excepção desta extraordinária cobra, capaz de sobreviver num sítio cuja míngua todos os outros animais assusta. Avistar uma feiyi é, para alguns da escola pessimista de Wuhan, sinal de que uma tremenda seca assolará o país. Já as escolas de Emei adoptam uma postura radicalmente diferente, entendendo a feiyi como um sinal de que algo positivo ocorrerá. E lembram o episódio em que Tang, o primeiro rei da dinastia Shang, ainda antes de adquirir o mandato do Céu, terá avistado uma feiyi, facto interpretado como sinal de desgraça para a moribunda dinastia Xia. Bom ou mau presságio, a feiyi tem sido vista em diversas lugares e por variadas ocasiões. Numa lenda taoista, a feiyi aparece ligada ao culto da imortalidade e à beberragem capaz de proporcionar outras dimensões à vida. Não é claro se ela é capaz de produzir o tão almejado elixir ou se ela conduz um mestre à fonte de onde brota o licor que nos torna transcendentes, precisamente situada na Montanha do Grande Lótus. De igual e desgraçado modo, não sabemos de alguém que tenha experimentado o elixir da imortalidade – ou porque esses felizardos migram para as ilhas do imortais; ou porque vivem discretamente entre os comuns mortais sem alardear a sua relevante condição. Ao que sabemos, a própria feiyi busca continuamente fontes sábias de onde haurir vida. Quando as encontra, nelas se enrosca e suga-as até não restar uma gota. Daí que mestre Zuo tenha erguido perguntas, cujas dimensões se confundem com a própria grande muralha: “Por que precisa um ser imortal de continuamente procurar outras fontes de imortalidade? Não será o seu estado perene e infinito? Precisará este ser de ciclicamente renovar a sua condição? Poder-se-á ser imortal mas não para sempre?”
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPerante o teu rosto 2 Desde o princípio, instala-se no filme uma impressão de latência: um sonho que é aludido mas não contado; um regresso cuja causa fica silenciada; o que se declara ter ficado por dizer, pela irmã da protagonista e em casa de quem esta se hospeda, nas suas visitas anteriores e cujo teor volta a não ser esmiuçado… como se a relação entre ambas não tivesse por esteio qualquer intencionalidade declarada e antes fosse feita de intervalos, do que, estando ainda invisível, engendra o movimento da vida. Aliás, o filme começa com o despertar da protagonista e acaba com ela a velar o sono da irmã. Terá tudo sido um sonho? Será a vida um sonho? A estrutura da trama conta-se numa linha – ao retorno da filha pródiga sucede-se o desfazer das ilusões – e resume-se a quatro movimentos: as irmãs tomam o pequeno-almoço, passeiam um pouco nas imediações (fazendo tempo), a visita solitária da protagonista à casa de infância, o seu encontro com o realizador. Como há um prelúdio e um epílogo, o filme poderia chamar-se Entre Sonhos. Nada do que habitualmente denominamos acção, intriga, permeia este filme, pura música de câmara, ensaiada à medida que se apresenta à nossa frente, ao jeito de uma conversa em surdina entre “ressonâncias”. E, no entanto, não despegamos do filme e comove-nos. Primeiro, um espantoso “efeito de presença” compensa-nos da escassez das incidências: de hábito, nos filmes, seguimos uma história que as personagens ilustram, melhor ou pior. Aqui prendem-nos as microtonalidades da expressão que desponta do jogo das personagens, como se em vez de um propósito, de um engatar da acção no mecanismo do seu “plot”, nada mais houvesse para além daquele presente nascido à nossa frente. Há tensão, mas fomos dispensados de um suspense expectável. O que é comum aos filmes é colocarem-nos num estado de ansiedade. Hong Sang-Soo subtrai-nos isso; no seu lugar impõe-nos um estado de imanência, sendo esse, de antemão, um conseguimento. Chega então o encontro com o realizador. Aí ficamos a saber algo mais da protagonista: que foi uma actriz de relevo e a sua aura marcou a memória desse espectador que é agora um realizador experimentado. E o espantoso é que quando emerge o nó que constituirá o verdadeiro “atractor” da fita, já aceitáramos à narrativa o seu fluir-“desinteressado” (onde aquilo que emerge “espontâneo” nos dispensa de ansiar por um fio causal para o ethos das motivações); o assombroso, nesta narrativa, é que, no momento em que a revelação que muda tudo é feita, esta é mais um bónus que o factor determinante para iluminar a motivação das personagens; já nos acomodáramos a que criaturas simples mas soberbas transpirassem à nossa frente, sem mais. Portanto, esse “segredo” de repente exposto consegue ser, à vez, ou uma “certa” verdade sobre a personagem ou uma segunda história que surge sob a primeira: ela não pode participar no filme para que ele a convida, diz-lhe, porque vai morrer. Está condenada, diz. Regressou dos EUA (a “terra dos sonhos”) à Coreia para morrer. É uma regra: em grande parte das melhores narrativas acabará por emergir uma segunda história, até aí invisível, do subsolo da primeira. Mas, neste caso, outras ambivalências se desatam, de imediato. Será verdade o que ela conta, ou provoca o realizador, mede-lhe o pulso e à sua declarada máxima ambição em fazer um filme com ela. Afinal, não há prova quanto ao que ela diz, não sabemos se é uma rábula para, pelo extremo da razão emocional que a sua revelação coloca em cena, mais facilmente arrancar ao realizador a confissão da secreta intenção em dormir com ela. Ademais, num contraste vivo, ela conta-lhe uma história espantosa: a de como a proximidade da morte carrega de brilho e intensidade os rostos que a rodeiam e como isso a deixa grata; por uma vez como “espectadora”, sente-se, face à realidade, num estado de unicidade. Repare-se: ela conta-lhe que “está a morrer e como se sente mais viva”. Nunca saberemos se não estará a ser irónica em relação às cenas de filme que ele citara como os momentos dela que o haviam marcado – evocando na relação com tais rostos iluminados o transe de identidade que caracteriza o espectador no escuro da sala de cinema -, posto que as cenas do filme que ele referia eram afinal planos mais icónicos e atmosféricos do que propriamente exemplos do seu particular talento para a representação. Esta ambivalência nunca nos abandona, subjaz à tensão do filme. Ela diz-se em ars moriendi mas há uma grandeza no comportamento dela que simetricamente só pode ter uma resposta deceptiva, o realizador não tem, como ela, a vida para apostar; ele recua, desejava apenas a fugaz vantagem do sexo e não o compromisso com a efervescência do espírito que se apazigua com a beleza. Será então a matéria do conflito do filme o rosto verdadeiro da actriz perante o da mentira do realizador? É verdade o que ela conta, o que vimos, ou tudo não passou de um sonho, visto que no princípio e no fim ela está com a mesma roupa de dormir? Uma das qualidades do filme é que podemos lê-lo das duas maneiras. Outra razão porque “Perante o Teu Rosto” é, para mim, uma obra-prima está em que, como detectou Marc-Mathieu Münch em estudos comparados sobre obras de arte de todo o mundo, se encontra nele uma das invariantes que atestam uma qualidade superlativa nas obras artísticas: o “efeito de vida”. O que este seja (a começar pela “poética” que funda) explicá-lo-ei noutra crónica, mas talvez se comece a elucidar neste pronunciamento do Livro do Desassossego: «A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade.”
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSentido figurado Parece ser, sim, o que suporta a narrativa quando falamos de realidade, longo epílogo de conclusões que se fecham sem que a atenção tenha de ir ao princípio retomar fôlego, que sem tempo para a origem, recriaremos frágeis originalidades, não estando nada acontecendo que não tenha acabado já. Este escalar de rupturas sucessivas reúne fragmentos que pode condicionar a tenacidade, derrubar a ternura e romper com ligações nervosas fundamentais para a transparência do ser. «Vocês, melhor aprenderem a ver, em vez de apenas arregalar os olhos, e a agir, em vez somente falar;… O ventre que gerou a coisa imunda continua». Bertolt Brechet no arrebatador Epílogo! Esta pressa de rematar nas várias formas de abordagem é contrária às leis da vida, e pode fazer que tudo se precipite para a tal “coisa imunda” que compõem as dissertações finais. A figuração é como a desfiguração, formas que se contraem e distendem à medida da ressonância do tempo, que também existe a transfiguração, essa capacidade que se tem em ser-se tocado por forças tais, que redobra em outras maneiras, quase iluminadas, como Moisés descendo a Montanha todo repleto de luz pelo contacto com essa escrita ditada…aquelas coisas que os outros notam e alguns carregam… Em sentido figurado podemos falar de toques assustadores, mas carregados de esperança. A mente que pode ser de Fogo, é capaz de ir buscar a essência para nortear as aleatórias vidas que nem a alma quer, só para colocá-las no rumo da sua viagem. Parece-nos sempre que o fim nos inquieta, mas que há mesmo assim uma vontade arrebatadora de se chegar a uma conclusão, e como o mundo se encontra numa grande deriva, há essa necessidade de términus que pode bem apressar tal desafio [não andamos sobre brasas acesas] que essas atestam o pulsar de vida pela dor que infligem, mas muito mais numa órbita cansada por não entender o propósito do encantamento para o próprio suicídio. Talvez que o sentido fundamental já não esteja entre nós, e nem figuradamente o possamos reclamar nesta grande epopeia das lutas finais. Não há «Epístolas aos Vindouros» que o significado da não “vinda” diz muito acerca de tudo aquilo que também já não esperamos, o que deixa remota saudade daqueles que acreditavam num futuro para além da sua circunstância. Somos um documentário em andamento forjado pelo peso das contemplações de todos os abismos, acresce que nos entendemos sem esperança renovada, nem capacidade de fazer mudanças que não sejam fugas, e nesta diáspora os sentimentos embrutecem. Tolhidos por todos os lados pela complexa rede que o capitalismo impõe para nos absorver toda a atenção para substâncias mais vastas, irrompem ainda alguns como cegos no meio de ilusões ditas pensantes: são os mais desgraçados, apenas por que não recriam a liberdade de ser de outra maneira. Não há plasma que embrulhe um negociante de artefactos numa dimensão que se veja ao longe! Ao embrutecer neste sentido figurado que se prende à grande caricatura, esta frágil Humanidade já na orientação de outra qualquer coisa “imunda” requer atenção. Tanto garantismo volveu-a à estaca zero em face dos seus valores fundamentais, que nós somos humanos não por causa dos sentidos, mas por tudo aquilo que foi elaborado nitidamente, e de tal forma, que concebemos a noção do amor. Somos todos mais ou menos espectadores e directamente criámos o espaço certo para o discurso traumático que pode irromper dentro de momentos na orbe que nos une, pois tudo agora nos distancia se não for decretado, dado que deixámos de viver de maneira a saber impor as nossas leis de forma consciente, irrepetível e soberana. Somos o reduto das provas que os sonhos desejaram resgatar da insolvência a um sonho ainda maior que não se deu, e mesmo assim, achámo-nos dignos de valorosas atenções que tendíamos a não distribuir. Uma fumaça de egos em quadrigas incendiárias fizeram regredir tudo isto para o tempo de um relógio cósmico que dávamos por certo ter sido ultrapassado, mas todos os dias ele acelera um pouco mais, até a um tempo ulterior à frágil memória. Em sentido figurado, somos agora a coisa imunda.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasVinho de arroz em Macau O arroz, cultivado no Sudeste Asiático pelo menos desde 8200 a.n.E., era em Macau plantado nas várzeas junto à aldeia de Mong-há e serviria apenas para consumo da população agrícola, sendo pouco provável fazer-se com ele vinho, ou se produzido, era em pequenas quantidades e apenas consumido pelos agricultores locais. O arroz, género alimentício de primeira necessidade para os chineses do Centro e Sul da China, era de excelente qualidade o produzido no distrito de Heungshan (Zhongshan), de onde provinha também o vinho feito com esse cereal. No reinado do Imperador Qianlong (1735-95), em Macau havia lojas a vendê-lo, sobretudo o proveniente de Guangdong, sendo comercializado dois tipos de vinhos de arroz, o no-mai-chau, 糯米酒 adocicado feito com arroz glutinoso e o de pior qualidade, o destilado liu-pun, 料半, significando liu=material e pun=metade. Na década dos anos 60 do século XIX, o grande aumento da população chinesa em Macau levou a um enorme consumo de vinho de qualidade inferior, o liu-pun, florescendo o negócio da sua venda e importação e muito mais ainda no decénio seguinte. Logo aí viu o Governo português de Macau uma forma de arrecadar dinheiro e como em 1849 a administração do Governador Ferreira do Amaral introduzira a política de atribuição da venda de alguns produtos em forma de exclusividade, deste modo, “eram subtraídos à iniciativa privada alguns ramos de negócio sendo concedidos, quase sempre por arrematação, a indivíduos ou a empresas instaladas no território”, segundo Fernando Figueiredo. O Governo cedia ao arrendatário, mediante o pagamento de uma quantia, a exclusividade da venda do produto integral por um determinado período de tempo e assim ficavam os cofres públicos com uma regular receita fixa. A razão era a situação das finanças de Portugal obrigarem à redução drástica das despesas públicas em todas as províncias ultramarinas, devido a terem em cinco anos passado de 1.198:668$933 réis entre 1885-86 para 3.476:860$100 em 1889-90, segundo o Boletim Official do Governo da Província de Macau e Timor N.º 48 de 26-11-1891. O B.O. N.º 12 de 24 de Março de 1892 apresenta o mapa das receitas cobradas em Macau nos anos económicos de 1886-87 a 1890-91: em Impostos directos [Décima predial e industrial; direitos de mercê; Selo; Contribuição de registo; Renda de carne de porco; Renda do peixe; Lotaria de Vae-seng; Lotaria de Pacapio; Fantan; Licença para venda de ópio cozido; Multas; Emolumentos sanitários] 1.482:077$729 e só entre 1890-91, 320:213$980. Já nos Impostos indirectos [Direitos da renda do sal; Direitos da pesca das ostras; Licenças para pesca no litoral da cidade; Rendimentos do Porto; Rendimentos da Taipa] entre 1886 e 1891 recebeu 159:049$231 e a quantia no ano 1890-91 de 40:965$457, existindo ainda outros rendimentos colectados. Condições de arrematação O ministro e secretário d’ Estado do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar Júlio Marques de Vilhena enviou em 1 de Outubro de 1891 à 2.ª Repartição da Direcção Geral do Ultramar o seguinte: O Rei ordenou que se faça executar. O Decreto autorizando o governador da província a estabelecer em Macau o exclusivo da bebida denominada Liu-pun saiu no B.O. n.º 50 de 10-12-1891. No B.O. n.º 4 de 28-1-1892 foi publicada a portaria régia N.º 114 a determinar que as arrematações sejam feitas perante uma comissão, lavrando-se em seguida ao encerramento da praça o contrato definitivo. 2.ª Repartição N.º 114: O anúncio da repartição de fazenda provincial sobre a arrematação do exclusivo do vinho Liu-pun é publicado no B.O. de 3 de Março de 1892: As condições para a licitação são: Primeira – Apresentação por parte de cada um dos licitantes do documento comprovativo de terem em seu nome depositado no cofre geral desta província, a quantia de quinhentas patacas que serão restituídas, encerrada a praça, àqueles a quem não seja feita a adjudicação ou que sendo-o, reverterá para a Fazenda se o adjudicatário se recusar a assinar o respectivo contrato ou a completar a caução exigida para garantia do mesmo contrato, logo em acto contínuo à adjudicação. Segunda – A Fazenda reserva para si o direito de fazer a adjudicação quando e a quem mais lhe convenha. Terceira – No caso de ser feita a adjudicação, o respectivo contrato será desde logo assinado por ambas as partes contratantes. Macau, 2-3-1892, o inspector da fazenda Arthur Tamagnini Barbosa. Chegou o dia 17 de Março e quatro pretendentes depositaram dinheiro para entrar na licitação.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasO yu Esta longa viagem, que a miríficos lugares nos leva e estranhas criaturas nos desvela, lentamente ensina certas ideias, expõe certos factos (imaginários ou não), que não deixam de contribuir para dissipar um pouco da névoa que constantemente se interpõe entre nós e o mundo. Mesmo se o nosso conhecimento da Natureza pouco se altera, devido à grandiosidade, complexidade e mudez do objecto, talvez seja o nosso próprio olhar, suas incidências e divagações que mereça uma interrogação, uma análise, uma investigação. Surge esta reflexão a propósito dos animais de face humana, amiudamente encontrados nas montanhas e nos vales, nos lagos e nos rios, dessa China cuja existência igualmente mergulha na bruma dos tempos e das mentes. Desta vez encontramo-nos na Montanha das Colinas Excelentes, nome misterioso para uma formação geológica que nenhuma árvore exibe, nenhuma planta alimenta, nenhuma flor a decora. As rochas permanecem nuas, cruelmente expostas a intensos banhos de sol e a uma atmosfera radicalmente seca. Talvez por isso, a Montanha das Colinas Excelentes emita um fortíssimo brilho, que encandeia que nela demorar a vista. Ora nas suas encostas mais a sul, existe um vale, a que chamam Central, onde, aliás, nasce o Vento Nordeste. Não conseguimos encontrar uma explicação para este fenómeno, de algum modo semelhante às cavernas gregas, de onde emanam os vários ventos que sopram sobre a terra. Trata-se de um estranho vale, seco como a boca de Hades, quase uma antecâmara do inferno, onde dificilmente alguma vida encontrará meios de subsistência, a não ser que se alimente de pedras e de algum minério que por ali houver. É, precisamente, nesta paisagem lunar e maléfica que se diz existir um pássaro, parecido com uma coruja, mas que apresenta uma face humana, com quatro olhos e quatro orelhas. Chamam-lhe yu, talvez por causa do som que regularmente emite e que os homens muito apreciam ouvir. Por quê?, perguntará o viajante desprevenido. É que, mal esse som atravessa os ares, mal o yu se põe a cantar nas imediações do Vale Central, logo os homens se colocam em fuga, de olhos nos chão e coração sobressaltado, pois avistar este pássaro é presságio de que uma terrível seca vai abraçar o mundo. Assim, embora dotado de um comportamento pacífico, o yu é um pássaro maldito entre os homens. Talvez estes se interroguem sobre a sua capacidade de sobrevivência num ambiente tão hostil e isso os faça atribuir ao animal a capacidade de espalhar as características do seu habitat pelo resto do mundo. O pensamento humano funciona muitas vezes por contiguidade, metonímia, de forma mágica e irracional. Como se os habitantes de um lugar pedregoso, por exemplo, tivessem de ser pessoas ariscas, desconfiadas, bicudas.