Triunvirato

Acabamos de sair de uma situação deveras tocante no que diz respeito ao bipolarismo triunfal das conquistas sociais. Estávamos numa grande plataforma cujos equilibrios tornaram tediosas as Nações, frouxas as batalhas e ausente a memória. Vivia-se, no entanto, muito bem em terreno neutro, enriquecendo classes da maneira mais empate e empobrecendo outras até ao extermínio, mas a alvorada era assim, depois do lendário sistema único que deslocou como jogo de xadrez a peça preguiçosa para o sistema binário.

Ele há muito que vinha dando sinais de grave entorpecimento em nossos regimes democráticos, com uma tónica distraidamente tolerante para com as franjas “não-alinhadas” e a vida corria como um grande esgoto a céu aberto pelo dinheiro transbordante entre estes binários que em tempo de transsexualidade implementada tinham até dificuldade (num impasse situacionista) de escalar a complexa armadilha em que já estavam metidos. Nestas coisas recordamos outras e convidamos a frágil memória dos povos a ponderar.

Como Roma passou do período republicano para o Império Romano, só os deuses sabem e nós analisamos os factos: o Primeiro Triunvirato, tal como o nome indica, foi formado por três líderes, e marcado por perseguições políticas de tal ordem que mataram Júlio César – era ele, Pompeu, e Licínio Crasso. O Senado romano estava enraivecido e outras coisas se passaram divididas pelos três que levaram a um período ditatorial. Mesmo que os deuses amem os números ímpares na velha expressão “numero deus impare gaudit” o Triunvirato só chegou a segundo numa associação política com poderes excepcionais onde dois deles nutriam ferozes antipatias, outro fora exilado, e uma guerra fatal se deu entre as duas partes beligerantes. Um morreu, restava então ao vitorioso governar.

Estamos muito distantes de tudo isto, é um facto, mas não creio que as proporções do litígio se extingam articuladas apenas por uma masmorra de sombras pacificadoras. Para além do mais, povos altamente romanizados recriam no subsolo dos seus instintos grandes componentes miméticas, e é de esperar turbulência nos ciclos de governação que se aproximam pois que estamos num instante em que a memória tanto vai para a frente como vai para trás, e onde a fúria esquecida vem reclamar o seu lugar entre uma espécie que se imolou para evoluir, onde vai ainda ser preciso não deixar nada para trás em forma de quisto, paranoia ou complexidade.

O nosso sul tão benevolente virou a direcção, mas também muitos nazis que fugiram de Berlim Ocidental foram os mais importantes representantes de uma Berlim da R.D.A. Sabemos que não há concessos para quem vive no limite, que pode ser da paciência, do esquecimento, ou da superstição enfática de que além Tejo pode ser muito longe. E a Europa onde estamos metidos e muito justamente a jusante pertencemos, é agora um atoleiro em rota de colisão com movimentos relembrados desde as suas jovens nacionalidades, e que tais povos não serenam senão por grandes combates.

Vamos esperar um Messianismo austero? Não. As coisas podem-nos parecer as mesmas mas elas no fundo já evoluíram para patamares bem mais progressistas, mas o incómodo dos que se degradam pode ser uma arma letal, que nem reis, nem czares, estiveram preparados para deles se defenderem. Vamos para um Triunvirato e, a menos que as partes dissonantes se entendam na perspectiva do bem comum, uma guerra civil pode explodir nas barbas nos nossos insones outrora representantes. Nós acordamos sempre da pior maneira, aliás, o sono e a sua problemática é uma das epidemias do momento em que vivemos. É confrangedor, mas devemos tentar perceber a natureza humana no seio de um país também ele amordaçado por coisas tão inermes e sombrias que quase fazem desfalecer os cinquenta anos do 25 de Abril.

Estou plenamente à vontade para escrever este artigo, votei na C.D.U, não porque seja comunista ou o seu contrário, mas pela razão que tal monumento da identidade nacional dos últimos cem anos não deve acabar assim neste baile de espectros. Por outro lado, foram as pessoas mais bonitas que conheci. Não sei quem sejam hoje, talvez nem interesse, mas os de ontem foram raízes que a nossa essência não pode esquecer e quase rasantes a esse princípio prodigioso de um certo cristianismo original. Estamos sitiados! Mas a vida é assim e prosseguirá tão tecnologicamente monumental, quanto nós desfeitos pela última bruma que o Futuro já não nos concede. Entretanto, e subitamente, tornámo-nos este Terceiro Triunvirato sem grandeza nem memória.

15 Mar 2024

Samaritana

Diz uma lenda encantada que o bom Jesus morreu de amores, o que por si só é belo como as lendas, e muito mais maravilhoso se torna junto a uma fonte. E que fonte, que divisória é esta onde a sede jorrava entre povos tão desérticos e sedentos? A de Jacob. E foi ali, território dos seus antepassados, que dividiam o disputado elemento, que Jesus morto de sede pede o seu quinhão a uma bela mulher que sua urgência fez imperativa. O que se segue é deleite puro, Jesus oferece qualquer coisa como água da vida àquela mulher de cinco maridos que com relutância se esquivava à oferenda de um homem só vagueando pelo deserto onde suas profundas sedes se contemplaram. Seria a sede divinal que expandiu a sua legião para outras vertentes tão bonitas quanto derramadas por águas frescas de um sacerdócio que contemplou amores junto às fontes sem importar a origem de cada um?! Seria, certamente.

Esta fonte antiga está algures no local das trevas do conflito que vemos como uma queda no poço profundo da nossa Humanidade, e pensar em idílios como este é pura especulação neste nosso tempo onde existem “sacristias” para VIPES higienizadas em atmosferas nazis para recurso ao prazer, onde estes acasos estão certamente fora de uma qualquer lembrança. Mas talvez uma saudade indecifrável nos habite para nosso transtorno na funda natureza desse remoto amor de águas claras. Os lúbricos oásis «Spas» onde a água escorregue para adensar o des astre do vazio, e o sémen encolhe para não haver contacto, apenas para “apimentar” cadeias de desgraçados que não sabem onde meter os órgãos gentis nessas águas de Tântalo, são traições à sede da fonte, e já nada consubstanciam de dádiva ou acaso que façam dos encontros acasos destinados.

Esta plebeia de Sical que, não sendo da tribo de David, também pretendia água desta fonte, é afinal a mulher cuja saciedade também não fora encontrada, e diante de um homem que mais que implorando, procurava eliminar todas as sedes, ainda argumentara sua condição de estrangeira para impedir qualquer coisa que apesar de tudo simplesmente a encantou. – Que estes actuais charcos onde encontros se dão entre piscinas e invólucros são muito mais estrangeiros face ao elemento arquetípico, que este humano está secando como os velhos e refrescantes chafarizes das cidades.

A este estratagema todo líquido, fontanário, casual, chamamos enamoramento, mas nunca nessa visão vertiginosa no cimo dos mastros, porque bem sabemos que os Oceanos não dão de beber. E regressamos à fonte. É o enamoramento dado pela representação de quando estamos sós e vemos assombrados reflectir o ser que nos complementa – ele dá-nos água – e nós prometemos-lhe qualquer coisa de eterno que pode bem ser o registo de um momento onde as vontades se conjugam, mas se alguém se abeirar desse contemplar, verá um fogo que circunscreve sede imensa. Não havia nada ali para arder, apenas areia, mas por momentos este encontro tem a particularidade do Fogo, encontrando-se munido de seiva que se transfigura, que em região e circunstâncias assim, cada elemento fala.

Creio que esta é a verdadeira fonte da Ressureição; «tenho sede» que dar de beber é suprema maravilha, que Jacob ficou lá no fundo do poço dos seus sonhos na alternância dos que sobem e descem uma escada, que não tem riacho por perto, apenas uma pedra como receptáculo onde pernoitou, que um registo mineral traz ao sonhador outros encontros. O nome desta mulher era ainda como que misteriosamente designado por Fotina, e em nenhum instante deste transbordo de rota o local se avizinha como poço. As mulheres iam às fontes, e havia homens que por elas passavam, quando a sede era colectiva, também os homens munidos de bastões prodigiosos tocavam nas pedras e delas jorrava líquido, mas ela nunca foi tão vivificante como a da Fonte de Jacoh, o Poço de Sicar.

6 Mar 2024

BELA ADORMECIDA

Roubam-nos a paz, e que paz viria, se ela não for igual aquela paz que noutros havia?

É uma situação que nos inquieta o estilhaçar da serenidade por essa manobra insidiosa da sociedade gradualmente esfomeada em salvo-conduto para o ronco demagogo, instalado, empolgado, estéril e opressivo, um abrasão de indelicadeza que ecoa nos confins da Terra. Estamos demasiado vibráteis com restos de mortandade e configurações grotescas para retorno à “cápsula” onde se instala toda a substância que é a favor da vida, define um centro, irriga o ser, e se vê melhor que entre multidões.

O sono, esse deleitoso ritmo do universo, pareceu contrariar os mais frenéticos aposentos da hiperactividade, e a luta para manter tão natural condição foi varrida a ansiolíticos e corrigida com a vigília da regularidade mórbida. Coisas simples e boas elevadas à condição de dilema, corrobora ainda mais o desgaste, que para tudo se tem de dar para manter a trepidação em alta frequência, que o mito da felicidade se dá por enervamento constante, recorrendo cada vez mais a plenitudes sem sentido.

Nós já padecemos de tudo de todas as maneiras, já esperámos a salvação por outrem, quando não ele, por um grupo, e mais eloquente e mordaz, por esferas sociais. Dos receituários experimentámos alguns, convivemos com mestres da alegria, fomo-nos abaixo em alguns ataques de riso, e das ideologias havia um cimento tão duro que as dispensámos. Dito assim, ficaram-nos então os ritmos gregários, as finalidades, o tempo certo para adormecer as lágrimas, ficar duro de compreensão, e ainda legitimar a herança de um progresso que consideramos invencível. Neste desfile de objectores de consciência vêm agora dizer-nos que não temos Defesa. – Nem Defesa nem Agravo! Assim, só estamos em sintonia com o Mercado. Somos Mercantis.

É evidente a médio e longo prazo que vamos todos ser outra qualquer coisa e, para bem dos conquistadores, sabemos bastante de mercadoria, e não vale a pena andar a esconder os valores em estantes de Código Penal nem na lúbrica jornada de invasores ao fisco, que a mais-valia vai dar directamente ao invasor que se esforçou para não morrermos de martírios governativos e de péssimas conclusões. Aí podem serenar os mais nervosos da sociedade que não dorme para recarregar forças, e se mesmo assim, se estiverem possuídos de eloquente trepidação, terão de abrandar para não colocar rédeas ao sinistro que os apanhou como presas amedrontadas.

Com este acabrunhamento inesperado os grandes compulsivos terão a oportunidade de pôr os sonos em dia e se lhes faltar combustível podem sempre começar a andar a pé e fazer grandes paragens dormindo a ver as estrelas. As dissidências com o fervor que lhes assiste, terão sonhos visionários, e cobertos de lã dos últimos pastores, reversar-se-ão pela tomada de uma identidade desfeita. Aqueles que conseguem já conquistar Marte devem achar de menor monta uma conquista da Europa em modalidades várias (que ela se mantém bastante contrária a qualquer sossego) mas, e dada a explosão de centros vibratórios cósmicos onde até o sol pode fazer a sua tempestade, eu, aqui, neste Fevereiro, vejo o espectro de Gengis Khan a atravessar já a Beira Litoral. Isto tudo acontece porquê? Por que estamos na Grande Roda- tudo vai, tudo vem, assim é o caminho da imortalidade- o que fazemos deixa rasto, o que não fizemos atormenta-nos, só que tudo vai e volta mas de uma outra maneira. Por ora a gincana das competências está alinhada com a situação, e é vê-las como se não houvesse amanhã. Mas amanhã virá, e não será para muitos os «amanhãs que cantam» que em estado de coma induzido ainda permaneceremos.

Talvez não seja tarde nem cedo, nestas propostas ancestrais que passaram pelo grupo, forjando a célula (família) fomos aqueles que serviram a condição. Uns mais, outros menos, outros nada: mas quem sabe se essa negação lhes era devida? Tal qual aqueles que a serviram. Por ora não sabemos. Desejaríamos que tudo finda-se num indulto universal e capacidade de ver, mas o belo sono ainda não chegou, que as tormentas têm veios fundos como a própria memória que construímos unida por fileiras em rota de colisão com a paz trazida por estrelas muito mais distantes. Porém, a paz, pode ser dispensada. Aqui, só desejamos um tranquilo sono, e que quem nos beije finde o anterior ciclo, e com ele sejamos despertados.

18 Fev 2024

Dragão

Havia um adágio oriental que dizia: «se é Rato, nunca deixe fugir um Dragão» queria então tal máxima referir-se à grande complementaridade existente entre o roedor e a fera alada de grande ignição. Ora, deixar fugir um dragão, é aspecto de grande monta, sobretudo por um roedor pequenino, todo enervado, e creiam-me, em posse mesmo assim de ilimitados recursos. Mas, vamos a ele! Dragão abre o Ano Lunar Chinês no dia 4 de Fevereiro deste 2024, geralmente é no primeiro dia da Lua-Nova, que o calendário é lunar, nesse arranque marcado por um Bestiário formidável onde as festividades abundam. Buda não convoca os animais para nada, dá-lhes tarefas, impõe-lhes registos, coordena tempos e ainda características, o que é ligeiramente diferente de um Francisco que a todos atende com a mesma benevolência.

A China tremeu há quatro anos no início do Ano do Rato, que sendo como já disse de carácter lunar, se deu por isso um pouco mais cedo, 25 de em Janeiro de 2020, e todos arredaram pé da festa que estava a começar concomitante ao alarme público, daí o trauma ” Ratatouille” que justamente lhes advém, pois não sendo povo de espectro visionário tremia já pela má qualificação das lembranças de anteriores outros anos. Podemos dizer que se perdeu um dos festejos mais bonitos do mundo tendo por epicentro do mal o seu próprio território. Ninguém pensava muito bem na pandemia, mas de como deixar de festejar uma data quase sagrada. Bom, o ano passou, mais tarde outros vieram, como o do Gato que agora se despede (que Gato com Rato pode dar barafunda, mas nada que não se possa solucionar). E agora? Agora, como dizemos em bom (mau) português, é que vão ser elas! Estamos no Ano do Dragão.

Este nosso Dragão é de polaridade Yang, ou seja, imponente, varonil, dogmático, e porque não, na sua extrema composição, titânico. O facto de ser Dragão de Madeira (vários elementos distributivos na mandala) dá-lhe um duplo sentido de ignição, o que pode antever uma labareda que desnorteará ainda mais o mundo, se não tanto, pelo menos tórrido será. E estaremos atentos, que muita coisa vai arder de modo metafórico ou literal, pois que somos chegados ao instante inflamatório mais impactante na rede global. Os pequenos prazeres podem definitivamente estar em causa, pois que, ou serão grandes deleites, ou derrotas totais. Há este afã de totalidade que não nos deixará prosseguir na moleza sedentária, o que pode indicar que estaremos cilindrados em nossos espaços interiores, e nos exteriores, pulverizados. Das coisas boas, é que será certamente um Ano magnânimo. Mas, para onde corremos nesta fogueira acelerativa que troca deuses por escravos, e esquece a benigna capacidade de acender fogueiras?!

Em termos geopolíticos a China enceta a sua inusitada marcha expansionista, a Europa no seu derradeiro emblema, a mudança que é por demais evidente num acelerativo e confuso instante diante de todos a acontecer, que o fogo frio da Rússia ditará ainda um código onde nos precipitaremos como reféns, para que no fim das ilusões nos reste sobreviver da melhor maneira, que o nosso Dragão do ano que inicia trará a borrasca aos enfatuados desperdícios fátuos diante daqueles cuja ilusão só produziu “néons” e clarões artificiais. Estamos agora no sul europeu e as temperaturas são demasiado altas, o que faz prever um Estio quentíssimo por um Dragão cuspindo fogo em nossos flancos, que a energia mantida para aquecimento se fez divisiva na busca de tórridos tormentos e já não aguentaremos o que virá seguido do ardil mucoso deste ser mitológico.

A Oriente há uma encantada festa a ser vivida, e nós seguiremos a flama já um pouco entorpecidos, mas ainda não vencidos. O que virá por aí será de grande monta e de complexas lutas, Putin estará em pleno no seu Ano, e é só levá-lo a respirar no outeiro dos emergentes. Poder-se-ia dizer: cheira a esturro! Mas já estava assim. Por exemplo, em Lisboa cheira a azeitonas. – É o que todos dizem, mas eu, odorífica extremosa, nunca inalei o cheiro de uma azeitona. Se o ridículo matasse nestas latitudes prestes a sucumbirem, há muito que estaríamos todos mortos.

Também vou engalanar-me para o festivo instante, que o Carnaval me derruba, e a torpeza da sua modalidade me é ainda estranha. – Bem-vindo, Dragão. Afinal é o Ano anunciado para todos aqueles que não desejam morrer de tédio, que esta agitação não passa de um aglomerado de espectros em luta contra uma liquidadora mudança que a todos liberte. Piromania à parte, que se dê já por extinta tal doença humana, que vem aí a grande Labareda.

8 Fev 2024

Pedra

«Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja»

Um tempo mineral inaugura uma marcha doce como a espuma do mar. Jesus dá o sinal para uma jornada que já não será escrita a Fogo como as «Tábuas da Lei» e convoca o seu discípulo para uma grave e completa aventura-Pedro era um discípulo muito querido- não obstante no momento amargo disse que não conhecia aquele homem, mas tudo se passou na maior perfeição já que os desígnios são de condição supra-humana. Estamos no deserto, e a edificação de qualquer coisa escapa ao vegetal, daí o minério ser tão importante. Disse ainda que as portas do Abismo nada poderiam contra ela, e outras informações lhe terá passado que desconhecemos. Esta Pedra, tenaz, impossível de desvendar, este minério que vem da estrutura tribal das gentes, é a origem do próprio nascimento de Deus.

A noção patriarcal é por demais evidente enquanto corroboração ao duro minério, estamos quase perto de Saturno, o deus impiedoso que devora os filhos, e nem Abraão escapa diante do pedregulho onde em lágrimas esteve pronto a degolar seu Isaac. Esta saga que envolve a vida mineral é de uma rudeza sem limites, é um tumulto agreste entre as esferas masculinas na dureza e no poder que se mantiveram intactas até aos nossos dias. E o que tem isto a ver com a nossa espuma? Quase nada. Em Portugal por exemplo, a ocupação de antenas informativas de futebol, geringonças políticas, atavismos de morgados, explanações de incompetentes, estabelecem domínio que desejaríamos menos ilustrativos.

Mas a Pedra está no sangue patrístico destas estruturas! A Pedra que brota água a um Povo sedento será ainda assim a imagem ejaculatória de uma qualquer dádiva que forneça vida, e no prólogo a acontecer, se não fosse pedra, nada de milagroso em suspensão acontecia. A tenacidade imperiosa como o masculino teceu este formato, impediu que outras formas de vida tivessem espaço conversável no mundo, e por isso se volveu tão duro. Estranhas enfermidades se acumularam para edificação da estátua humanizada do Homem vazio. Ele pode estar entre a espécie complementar procurando a sua alma e nunca a encontrar. O roteiro da Pedra tende para a petrificação, e qualquer movimento é sempre uma ânsia de a implementar.

Nós, tecido mais vegetal, observámos o desastre, mas a Flor é frágil em seu domínio: ela “nasce, morre, renasce…” tem pétalas de orvalho, e pertence a outra Encíclica. Mortas as estruturas, elas reclamam a sua neutralidade, uma espécie de carbono, mortos os arquétipos, eles fulminam os corpos com desorientação apetecível, e a Pedra quase arde no meio da tempestade. Estamos curvados perante o Maciço Central da desintegração, e isso não deverá ser o problema maior, mas sim, o que fazer com o resto desta humanidade que nos advém. A Pedra já se foi, não há Tábuas, Templos conquistáveis, e passámos há muito o esteiro das edificações. Quando Deus quiser, que se faça nuvem, que nós transbordamos de mistério.

24 Jan 2024

Jerusalém

«A cidade santa de Jerusalém» traduz nesta nobilíssima expressão um oxímero e o que a reveste não foi jamais conseguido, os abismos não serão menos santos que as suas colinas- que eles não olham para penhascos- e se não é a santidade que a governa, nem por isso todos se sentem próximos dela. «Todos dizem que chegaram a Jerusalém (judeus, cristãos, muçulmanos, socialistas, anarquistas e reformadores do mundo) acudiram a Jerusalém, não tanto para a construírem ou serem construídos por ela, mas para serem crucificados ou para crucificarem outros. Há uma desordem mental muito arreigada, uma reconhecida doença mental chamada «síndrome de Jerusalém»: uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma igreja ou a uma sinagoga.» Assim a descreveu Amos Oz e, sem dúvida, que deve haver na sua origem uma qualquer influência alucinatória que ao longo dos tempos contribuiu para severas lutas, acontecimentos únicos, transcendência e queda, desolação e esplendor. Vimos como pela Porta dos Leões o movimento sionista conseguiu finalmente entrar e fazer que os judeus ausentes do Monte do Templo por mil e oitocentos anos caminhassem em júbilo destronando camadas de culturas instaladas junto ao Muro Ocidental.

David já tinha conquistado a cidade aos jebuseus e Maomé feito a sua viagem nocturna, Jesus entrado para celebrar a Páscoa, intricando a cidade numa seminal fundação religiosa de que nunca saiu. Jerusalém é santa, Jerusalém é noiva. Todos a disputam, por ela a humanidade enlouquece. Não será uma torrente de leite e mel e muitas vezes transforma-se mesmo num jorrar de sangue e fel, e nem mesmo assim perde a brancura da sua santidade e o encanto do seu legado. Agora são os arménios na Cidade Velha a chorar as ofensivas, estão ali há oitocentos anos, não crescem nem diminuem, fazendo parte intrínseca da paisagem, e claro, quem por lá andar pode sempre testar a possibilidade de estar entrando num outro umbral.

Nem Adriano tão cheio de seu Império consegue nomear por muito tempo o nome sombrio de Élia Capitolina, que o Templo destruído, não consentiu, nem o povo da Judeia alguma vez ousou pronunciar, em consequência, foram proibidos por séculos de lá entrar. Depois de persas e romanos, só no Califado, já sob o domínio árabe, os judeus tiveram autorização para regressar. Mas viriam os cruzados, que matariam uns e outros até ao extermínio. [Jerusalém, a Bela das Nações, foi palco da avaria rotineira da sede de conquista e da uma eloquência passional]

No turbilhão lançado podemos estar confrontados com um tipo de atracção fatal que, e voltando a Oz, enlouquece povos, nativos, e quiçá os de passagem, um umbigo nevrálgico para onde converge a saga do mundo para transcender do infortúnio de uma demasiada, e ainda, humana condição. Que somos atraídos para os centros do milagre, e somos dirigidos como taumaturgos por visões celestiais cuja presença ao não se dar, pode reverter em pasmo e dor. Por pouco tempo seria o anfitrião Saladino bem sucedido, viriam mamelucos agora correr com os cristãos, logo após ter ficado saqueada por tártaros. E a Bela não descansa! Mas vai adormecer por alguns séculos na regência do domínio otomano, não que tivesse estado parada, mas menos abrupta dentro das suas muralhas que se quebravam com trombetas. Esta Jerusalém quase vira Feiticeira no amplo emaranhado das transfigurações de uns e de outros, mas, como sabemos, ela será sempre a cidade de Deus.

Nos tempos bíblicos parece que tinha o odor do Paraíso, que as suas cercanias cheiravam a pinheiros, cedros, árvores de fruto, rosas de Sharon, e crê-se que corria pelos seus desfiladeiros leite e mel. Os santos homens comiam gafanhotos, alimentavam-se de néctar, oravam, enchiam os pés de areia e por ali seguiam o trilho de um percurso de retorno ao céu. Ao lado do Mar Morto ainda podiam andar sobre as águas vencendo assim a lei da gravidade… e ainda em seus rios há pássaros com asas. Todos nós já fizemos esta viagem nocturna como Maomé, e lá nos encontrámos com a sarça-ardente, os profetas, e o cheiro a rosas… todos caminhamos, somos expulsos, retornamos e choramos na margem de um qualquer Sião. E todos achamos que esse sonho foi único, profético e só nosso. Mas não! Esta é a saga humana.

E talvez Borges responda a este último parágrafo «Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Israel aconteceu quando era apenas uma antiga nostalgia. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos».

4 Jan 2024

Cânticos

A legenda de um português falado enquanto língua mundial parece-nos agora não estar vedada nas longínquas Nações. Por cá, falamo-lo por coisas tangíveis, mas por vezes basta escutar os que estão longe para saber que distante está a pátria dos grandes iniciados que a pensaram e continuam. Estamos por aqui envoltos em nevoeiros, e tão disformes, que desejamos os Cânticos, mas eles por vezes se nos negam. Estamos combatendo em densa treva.- Não há casas, não há sítios, não há lares, não há vigília. Concomitantemente a estes Cânticos produzidos, fui encontrar ainda a Oriente esta semana, um interlúdio em nossas funções alagadas, dando-me conta que os que nunca partiram não sabem da volta que nos foi destinada. «Via do Meio» e para o Alto! Assim devemos seguir. É Setembro, é Outubro, e vivenciamos o instante em que os acontecimentos se dão. Neste tempo vivemo-los mais ao centro, mais por dentro, a igualdade está presente e é tranquila toda esta Estação.

O Museu de Macau em Lisboa é um reduto silencioso, mas extremamente vivo – e foram precisos séculos para se compreender que a linguagem é uma longa viagem nos confins da nossa humaníssima condição. Traduzimos. Agora talvez com carácter de urgência, que a China é a placa tectónica que desliza, e não podemos alienar-nos pensando que se trata apenas de economia, que quando ela se dá em amplo escalão, já os povos tinham construído suas bases de pensamento.

Que o português será sempre falado, e se formos para os antigos espaços africanos, brasileiros, nos iremos ainda deparar com o melhor da linguagem, e perguntarmo-nos do porquê da nossa desdita. Seria ainda mor vantagem ao português continental, falar e escrever, língua projectável. Mas isso já não se passa. A insensibilidade para o Verbo atingiu as raias de auto-exclusão, e as pessoas falam de coisas, de dogmas, martírios, mas a linguagem nunca deverá ser apenas uma componente moral ou sensitiva, unitária, factual, que a língua cresce e se congrega a todos os futuros adjectivos que a presidem. A linguagem que produz efeitos moralistas é uma antecâmara para a morte colectiva, que a língua existe para compor o Poema, e ser de todos nós língua entendível. Ou seja, nós temos funções, economia, amplexos de personalidade, mas tudo isto não reverbera no transbordo de uma língua bem mais vasta que as nossas abastanças ou necessidades.

O aparelho fonador é o amplexo para aquilo que formaria em nós capacidade falante – esse sopro – mas na palavra escrita, é onde foi construída a nossa origem, afinal “palavras leva-as o vento” e não deixa ser um transtorno reconhecer da falta de espaço ambiental para a produção gráfica de termos novos. Porquê? O grafismo inicial destes alfabetos que afinal não passam de construções visuais, esbarraram diante das imposições visualizantes das imagens de cada um, e de todos, e a conceptualidade da ideia de Verbo, esmoreceu. Um poeta, por exemplo, não necessita ser compreendido, por outro lado, o culto da personalidade ainda lhe é estranho, e devemos interrogar-nos acerca disto mesmo nos nossos pensamentos, que sentimentos, afinal, todos nós temos. Mas valerá o sentir confessional, personalizado e fechado, abranger apenas este domínio? Claro que não! O primeiro impulso poético foi épico, e só séculos mais tarde nos vamos encontrar amarfanhadamente e cheios de nós em cintilações egóticas.

Não devemos expandir demasiado mesmo que o desejo seja louco – trilhar sempre a via do meio – e seguir adiante no vasto entendimento, que as conclusões são anátemas de muita injustiça, e nada se vislumbra até a Nuvem passar. Quero dizer que a tendência didáctica, escolástica, permanece activa nos ideais da Nação, mas agora contempladas como um mercado mais, que tem na sombra os dilectos, e que um dia quando acordarmos nos trarão ainda um português indisfarçável. Uma língua de Mar!

Se valeu a pena? Valeu, sim! Os nossos sonhos nunca recapitulam, e ficamos escrevendo Cânticos até ser outra vez no mundo, uma qualquer outra noite escura. Mas sabei que estamos atentos! Um certo horror percorre as nossas veias por ver a maré cheia da retrogradação, a bestialidade e o dogma. Estamos metidos num problema que os nossos pesadelos (outrora já tão leves) não equacionaram. Porém, e quando for necessário, o nosso colete de vento será o de um soldado.

Entre os ingovernáveis trilhos do confessionalismo, do intimismo e da notória falta de pudor de cada um, existe ainda o Poema, que se não for esse além, cosmonáutico, astral, inserido e completado nos céus, será apenas um refrão de sangue e vísceras. Naturalmente, e passe a saúde, esse conceito de Bem tão em voga, doenças ainda existem que serão antídotos para tais blasfémias. Ter saúde não significa ser-se são- que ela se nega ainda aos ressentidos- tal como à pobreza se nega o pão. Nós, vamos continuar, e ser o lado melhorado destas saudáveis e sacrificadas gentes, que precisam dos seus poetas, por que sem eles toda a estrada é estreita e vamos ainda necessitar das vozes acesas, dos locais fermentados pelas presenças, e se nada disto for tolerável, questionável, valorizado e condutor de diferença, o que andámos a fazer perder-se-á na voragem efémera dos dias.

A literatura de género, e o género imposto ao código literária, tende agora para um estilismo sem causa, por uma razão simples: sabe-se escrever ou não se sabe. O que cada um extrai da sua natureza sexualizante não deve perturbar a palavra em nenhum dos sentidos da marcha, nem tão pouco conferir arrojos capciosos que insultem as partes. Dito assim, a Poesia é definidora de um poder de síntese que a torna sem dúvida o mais aperfeiçoado registo da linguagem, e se o imponderável é o reino onde todos nos confrontamos, requer-se ainda transgressão e sublimação, em frente de uma Humanidade onde cada palavra pode ter ainda um poder salvífico. Andámos demasiado tempo a brincar com coisas sérias! Fizemos muitos «SNIS» inventados à boa maneira de entretenimento, mas o autor do seu Poema não é um diletante, nem um prazeroso amante de “poesia” isso são cargas letais para caminhos livres e rigorosos, como deve ser o de um poeta.

Um Cântico à República saída na madrugada de 4 de Outubro da rua de Campo de Ourique, sede do antigo Centro Escolar Democrático. Aqui, findaram os saraus! A Poesia iria continuar em marcha como todos os vivos que se abastecem de seu próprio visionarismo.

17 Nov 2023

Clímax

[ponto ou grau máximo, estado final da evolução de uma formação vegetal ou de uma outra comunidade biológica em determinado meio. Momento de maior intensidade na acção que vai acelerar o desfecho. Gradação crescente. Origem etimológica do latim; Escala.]

Por tudo isto, e passe a grande esfera da sazonalidade dos órgãos reprodutores, nós estamos metidos num enorme Clímax! Atingimos o ponto «G» o não retorno naquilo que diz respeito às alterações climáticas, onde, e por insistentes exercícios do descaso, fomos firmando com imensa soberba e alienação o estertor dos nossos dias, mas haverá sempre um momento em que olhamos a globalidade e não nos deixamos circundar por “fogos” brandos e olhamos o momento da Terra: e há de facto um alarme gigantesco que percorre a nossa humanidade enquanto todo. Tentar auscultar a grande transformação pode ser tarefa inútil diante de muitos que da vida têm escassos anos para viver com a verdade quimérica que foi ter vivido ainda no melhor dos mundos. O que se passa, ultrapassa, trespassa, qualquer “fogo-fátuo” da cada vez mais inútil acção política, capacidade humana, e poderemos afirmar que estamos perto de mais uma etapa de aniquilação.

Mas, como fazermos? É claro que todas as forças se conjugaram em termos de evolução para que nos fosse permitido firmar a nossa soberania crescente em meio hostil, e sem dúvida que fomos essa espécie vencedora, combativa e intrépida que evoluiu com características quase milagrosas. Tivemos a Terra, tivemos os recursos e transformámo-los, tivemos tudo o que procurávamos por tentativas constantes da vontade, e isso é maravilhoso. Fomos verdadeiros Filhos de Deus, e só agora compreendemos que para que haja de nós memória há que inventar rápido o Filho do Homem. O nosso tempo esgota-se e a noção de humano fenece. Não tenhamos dúvida que este estertor nos há-de mais além levar à desaparição por baixo do sol e não creio que seja num futuro longínquo. Estamos no transbordo de um cataclismo.

O que nos resta fazer é ainda uma grande jornada de incentivo e ajuste pois sabemos que as guerras nos deram grandes planos de como vislumbrar o futuro, e uns com os outros, cingimos as técnicas da reconstrução e adiantámo-nos face ao adversário (e vice-versa) como se a nossa humanidade fosse um inteligente jogo de xadrez, mas o que estamos a viver é outra coisa que ainda não chegou aos códigos desfeitos dos jogadores. Nós estamos sem excepção, todos ameaçados. A Terra nunca nos contou o seu segredo, e nós guardamos poucos em nossas lides existenciais, e o mais trágico é que não sabemos nada dessa origem, e assim, no grande vácuo que nos separa, fomos construindo realidades paralelas que nada servirão neste arrebatamento.

«Valeu a pena a travessia»? Valeu sim! José Mário Branco. Quero dizer que sim, que estou com ele, que foi assim (poderíamos, no entanto, neste caso ter impedido muita coisa) pois nada existe que apague agora desta retina que escreve estas simples linhas, a velocidade a que se foge por uma estrada ao lado de outra onde parece já não haver ter retorno. E fugimos para onde? Muitas dúvidas nos assolam neste tempo transfigurado. É preciso naves e neves, e saber como sair daqui, deixando a quem, em substituição de nós, consiga testemunhar um gigantesco erro universal, que nos mundos vindouros pode ser tido por grande maravilha. A Terra não nos segredou o seu segredo, mas todos a questionámos. Todos, todos, todos.

8 Set 2023

Agosto

Sim, é Agosto! E não poderemos dizer que se façam Primaveras na longa jornada que percorremos onde se multiplicam Verões, e assim distantes das duas outras, Agosto cerra fileiras de lassidão para os que veraneiam, bem como para todos aqueles que mesmo laborando parecem estar unidos a regimes de entretenimento. Agosto de tão apolíneo, é arrebatador!

Outrora se escutava «Agosto, mês do desgosto» (que no fundo são todos) mas era nele que incidia o extraordinário da expressão e a magnitude de seus efeitos, uma constante que nunca foi ultrapassada, nem mesmo pela desatenção aos aspectos cíclicos do tempo em nossas rotinas; que Agosto estava povoado de sortilégios e inesperadas manifestações e se propunha mencioná-lo com muito ardor e algum secreto temor, que foi sim, uma constante.

Ele fora nomeado em honra de Augusto, que mais para trás fora “Sextil”, o sexto mês do calendário de Rómulo, romano, portanto. O calendário lunar começava exatamente em Março no dia do equinócio da Primavera, e assim se iria manter até ao calendário juliano, que entrara em vigor no ano 45 a.C. Entramos no ciclo solar. Augusto, o grande impulsionador do novo calendário, emblema do mês que outrora tinha trinta dias, foi homenageado pelo senado que não quis que ficasse diminuído no que correspondia ao de Júlio César – Julho – e foi assim acrescentado mais um dia. Mas nem com o calendário gregoriano muito mais tardio, Setembro deixou de ser sete, Outubro oito… até Dezembro, dez. Agosto o sexto, passou para oitavo, e a soma é um soneto.

A gosto ou com desgosto, é Agosto que agora impera! Está assim correndo nos nossos dias como uma bela água nascente, e mesmo sendo quente, é o calor exacto, e nasce nele como desígnio que não deixa de provocar rios de expansão: é muito bom ter poucas vestes, andar deleitoso e livre, ser aquecido e simples, que o frio logo virá para nos dizer da morte e seu rigor. Fitam-nos coisas crescentes, o Sol que nasce cedo, o dia que tarda em ir, e as noites que parecem sempre de festa. O Zodíaco será uma zoologia unida aos ciclos agrícolas originais, e por isso iniciado com a pastorícia, onde à cabeça vêm Carneiros, Touros, mas aqui estamos em território indómito, na conjugação do Leão e sua beleza de ser, na representação solar de um mês com juba e dentes fortes.

Não é como o Centauro um animal mitológico, ele é o prodígio real, o emblema da ferocidade e da beleza, um radicalismo de que não damos conta, por que ele também pode estar cheia de solidão. Assim como a soberania. Nós temos ainda fresca a lembrança do mundial eclipse de 1999 em Agosto, como se fosse o primeiro na viagem cósmica do mundo, e de facto, foi. Assim sucedeu na era da globalização, e todos olhámos o fenómeno com uns óculos de papel, e a partir daí multiplicaram-se, mas foi no nosso imaginário progressista e terráqueo que tal fenómeno passou de facto a existir. Talvez tivéssemos a nível da percepção atávica achado estranho como o sol de Agosto, por momentos, se eclipsava assim…ou a nossa vida lunar, quem sabe, não ter já noção da sua grandeza… O Invictus sumira do nosso radar, as aves voaram baixo, a frescura reinou, e era de novo hora de recolher.

Não nos esqueceremos o rasgar de véu em nossa inocência naquele Agosto em Hiroxima, nem dos olhos abertos para o abismo, da magnitude do fenómeno da desolação, da força nova, incontida, nunca vista…Que nós podemos até esquecer que é Natal, mas nunca que é Agosto. Nós ferimos a Terra, mas ela, grande e soberana, grava e regista tudo, como um cérebro gigantesco e um útero renovável. A Terra e Agosto não são muito compatíveis, daí escolhermos ser diferentes nele, e tecer a nossa bem-aventurança neste mês tão peculiar na vida humana. Não somos gigantes, agigantamo-nos, só isso, mas nunca provamos nada de verdadeiramente grandioso.

Lorca foi assassinado a 19 de Agosto e tudo na natureza tomou um novo rumo. Há coisas que seres fazem a outros, que nunca mais outros se podem livrar. Ele tinha de sair, estava cansado de estar preso em casa e era um homem que confiava. Também eu teria confiado! Mas para os que confiam, haverá sempre os que desconfiam. Numa noite de Estio, um poeta é o ser menos perigoso do mundo, sendo ele o perigo mais estranho em todas as Estações. O Estio adensa as características que nos representam, e Agosto ainda nos instiga a uma coragem ostensiva que pode ser fatal. Os grandes poetas falam pouco ou quase nada deste mês, e ao que eles renunciam, devemos nós, ao contrário do que aqui foi dito, guardar silêncio.

17 Ago 2023

Um papa na cidade

Deviam ser umas nove horas da manhã quando um grande som nos céus despertou os notívagos das noites de Verão. Era o Papa! Estremunhados fomos logo ver a curva do projéctil que se insinuava nos céus de Lisboa, onde desceria um senhor gigantesco, risonho e velho, vindo das nuvens de um céu de Agosto. Estamos no começo de uma fábula.

Ele chegara. Vinha sentado, branco, sublime e encantador, no entanto pareceu-me cansado, como se a nuvem estivesse ainda em seu redor cobrindo-o de madrugada. Era Francisco! O Papa mais a sul do mundo conhecido, e na mais extremada periferia de um continente. Tinha havido uma Lua-Cheia com grandes recobros e vastas sombras, num tempo de Estio onde tudo sabia vagamente a múltiplos manjares de rosas. Havia jovens às centenas em grupos pacificadores que distribuíam sorrisos e gestos de bem-aventuranças, a que chamamos, peregrinos, e lembro de pensar que num instante toda a energia mudara, e mudaram as causas, as coisas e as gentes.

A cidade, outrora grisalha, volveu-se rubra, loura, morena, negra… e toda a velhice teve fim, como se uma corrente mágica tivesse eclipsado as esferas etárias mais pródigas em bem-estar e manutenção nas suas longas vidas, para um nada existente. Que o que se via, subia a escala de outras necessidades que não estavam à mostra em seu bem-estar todo poderoso por modalidades que se adentram: e gostei! Adorei esta vibração como se tivesse percorrendo um sonho sem recurso a qualquer análise. Há momentos em que a razão deve ficar de lado para não transtornar a delícia dos instantes, saber isso será mais um exercício de observação do que uma qualquer capacidade de averiguação de danos.

Danos, são aquelas coisas que sempre existirão. Somente o brilho do olhar nos pode devolver um estado de novidade em que nós mesmos seremos a excelência do novo, e se na cidade onde o Verão que nos dá a imagem branca de um Papa não se fizer sentir subitamente, branca e leve, ela ter-se-á já afundado na descrença da luminosidade. Nós vamos com todo o corpo ver o que se passa, e ele informa-nos das coisas a acontecer. Não vamos com uma ideia para ver, apenas estamos observando a partir do ponto único da realidade que nos é mostrada. Seguimos adiante. Neste pequeno terreiro onde o rio é amplo e a cidade alta, tudo fica subitamente tão branco como o luar da noite passada, e o mote serve de energia articulada para o fim dos conflitos mais bisonhos, acreditando que devemos a todos uma vontade de suplantar um atávico estado de consciência onde regra geral não fomos felizes.

O que rola de veículo automóvel deve ser suspenso em hora assim, e não se vê grande transtorno por causa desses navegadores solitários que seguem caminho entre os esteiros batidos do que julgam ser cordões de invioláveis liberdades. Podem parar, perscrutar, andar a pé, sentir o tempo a encaminhar sonoros outros passos. Nós sabemos que nada fica por tempo indefinido, e também o ciclo do carbono deve por momentos esmorecer para que se tenha uma perspectiva mais dinâmica de tudo aquilo que nos espera, e é aqui que a cidade se abre para qualquer coisa de radicalmente novo.

Um Papa na cidade pode ser como um guindaste que levantamos para ver o horizonte em todas as suas dimensões e se a coberto de um véu púrpura de cardialíssimas presenças não tivermos o discernimento do emblema do signatário representante, a confusão pode instalar-se como um sono blasfemo nos ardis de uma República que é frágil para julgar o que nunca soube vencer. Ela esmoreceu no tráfico, esqueceu a sua marcha, conserva ainda o seu desejo que nunca fez entender como símbolo de uma trajectória diferente. A nossa República deve ser tão esclarecida como os subtis dons que a corrompem, mas nunca avessa perante aquilo com que não sabe lutar.

Por ora o Papa veio dizer o que não pode deixar de dizer sob pena de não ser Papa, e mesmo que as leis o atravessem na zona de impacto, ele prossegue na voz única que não sabemos calar. Nem nós, nem os outros. Ninguém. É o quinto elemento no país das cinco quinas. O que ele vem fazer, só Deus sabe. O que nós demonstramos fazer há muito que até o Diabo esqueceu.

9 Ago 2023

O último sortilégio

Problemas de género à parte, indagações sobre sexualidade, e será bom reflectir acerca da complexa natureza de alguns, agora que se escrevem tratados sobre a hipotética homossexualidade ou não de Pessoa, à margem, creio, de tudo aquilo que deve ser preservado quando estamos diante de personalidades assim. Mais para trás, vamos encontrar os mesmos desvarios face à natureza celibatária do mesmo, das suas cartas de amor, seu idílio platónico, tentando explicar o que não é passível de explanação sem um grande estremecimento de ridículo, vacuidade e, por que não?, uma derrapante ingenuidade. Se fôssemos todos tão previsíveis enquanto títeres de uma espécie, seríamos ainda bem mais entediantes. Não se pede que se compreenda, mas deseja-se que se respeite com sujeitado encantamento estas naturezas tão diferentes de cada um de nós, nos cálculos, análises, formas de viver, pois que acrescentam dimensões novas ao estreito circuito das motivações alheias. Isto, um breve intróito ao que aqui nos traz.

Nenhuma mulher por aí conseguiria hoje na vertente “literatura feminina” acoplada a discursos de correntes várias, escrever este muito fêmeo poema feito por um homem. Ou se esqueceram, ou já são outra coisa, o que faz que tudo o mais seja revisto, dado que a natureza de uma tal realidade parece ter-se apagado, e quando não houver mais explicação para nada, vamos todos ler os poetas, em vez de andar a fazer e ler tratados de vacuidade frouxa, ou a deslizar para correntes de escritas derrapantes.

«[…] Mando-lhe uma composição minha.

Chamo a atenção… verificar como essa pessoa é mulher (e, digamos, bruxa) que os adjectivos não saiam no masculino onde a pessoa falante se refere a si mesma.

Estamos diante do seu Sortilégio!

Digamos que nem por um instante nos ocorre que este mesmo homem no início de um recuado século vinte, ousasse mesmo em seus sonhos mais improváveis mudar de sexo; afinal, não é preciso. Tinha os dois de tal maneira bem interligados que até lhe interessou o aspecto dramático da feiticeira. Confesso que jamais vi tensão maior na compreensão do feminino. Talvez até nem seja por acaso que recorra ao mais audaz da mulher, o encantamento, e que diga em forma de advertência: «este poema é uma interpretação dramática da magia da transgressão». O mais interessante é que não se prende aos aspectos juvenis da feminilidade (facilitismo martirizante dos homens) e recorra a uma maturidade que põe fim aos dons, no começo de uma ininteligível outra marcha. Memorável! A partir disto, e como foi referido acima, pouco ou nada interessa o folhetim de suas sexualidades, que deve ser visto como arrivismo áspero e grosseiro, aquém desta compreensão.

Vidas há, que são também um grande exercício de elegância “lançadas à sorte” e onde tudo se corrompe, entristece e se confunde, deveríamos para o bem da saúde mental deixá-las intactas. Nem todos sabemos afinal o poder de um sortilégio, que outros, parecendo maiores, não entram no futuro que nos bate à porta. Mas este tipo de seres estarão lá à nossa espera.

«Outrora meu condão fadava as sarças…………..

Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anónima presença que se beija,

Carne de meu abstracto amor cativo,

Seja a morte de mim em que me revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»

Se perscrutarmos as coisas vamos até aos altares de um país que duvidando de um certo “sortilegium” perdeu a capacidade de vasto entendimento. Não soube… não quis… não pôde… Não é subliminar, e muito menos sublime, e de seus ilustres acabou por fazer esteiras de conveniências. Reverberações que vêm de «Abdicação» para nos transformar na grande unidade, que é ser total no corpo e consciência repartidas.

25 Jul 2023

Tagore

Contemplamos-lhe o perfil e vemos de imediato que se trata de um aristocrata, de frente parece de uma imponência serena tal que não somos capazes de nos desviar daqueles olhos fundos, lindíssimos, impressionantes. Contemplamo-lo. E este brâmane ensina-nos que a beleza é uma conquista da alma, o seu melhor requisito, e que nestas castas ela se aperfeiçoo. Um poeta deve ter esta qualidade, ou então, o que o instrui pode correr muito mal. Não só pode, como geralmente assim acontece, e concluímos que muitos vingam soberbas ofensas através de uma lei que não lhes pertence, e assim na vingança absurda, atiram-se à corrente da escrita como camundongos. Rabindranath, “Rabi” nascido em Calcutá, o último de treze filhos (uma mesa de irmãos para nós de triste lembrança) e uma mãe que dava pelo nome de Sarada Devi, e de patriarcas fundadores da fé Adi Darma. Para além de ter sido o décimo terceiro filho, ganhará em mil novecentos e treze o Prémio Nobel de Literatura sendo o primeiro escritor asiático a ser agraciado.

Tagore não se extingue em um qualquer percurso lacrimoso a um tempo, e de herança tamanha, todos os caminhos da justiça social, da igualdade, de temas, de obras, de poderes, ele se fez presente. Foi ao que chamamos agora um homem do mundo, mas sobretudo, um homem para o mundo. E escreveu. Oh, se escreveu! Em primeiro lugar ele era o poeta, e por isso, o que se lhe seguia enquanto autoridade natural pronta a servir a sua própria humanidade, foi ouvida, valorizada. Mas não nos esqueçamos do prolífico compositor, sendo mesmo conhecidas como rabindrasangit ( Canção de Tagore) muitas das suas composições musicais, e o mais espantoso é que ainda hoje o Hino Nacional do Sri Lanka é daqui que sai, e também os Hinos Nacionais da Índia e Bangladesh estão consagrados pela escrita dos seus poemas, e se tudo isto não bastasse, aos sessenta anos, ei-lo pintor! Ele pintou a escrita, escreveu a música, mas a sua superioridade pareceu falhar no trabalho da imagem. Só os bárbaros gostam de imagens, efetivamente, para nós, basta não ser cego e poder olhá-lo: não necessitamos que se transforme em pintor. Aos sessenta anos todos achamos que pintamos. Mantas ( mas seria melhor, mantras) mas ele, estilisticamente mais talhado, vai trabalhar algumas noções visuais para embelezar os seus próprios manuscritos. Uma espécie de poesia visual a algumas décadas de distância

Percorreu o mundo, conheceu os do seu tempo, e estancou perante um beduíno do deserto do Iraque, para designá-lo a voz da humanidade essencial. Interessado pela ortodoxia – todas as ortodoxias – os movimentos nacionalistas indianos onde irá em 1920 liderar o de libertação: a guerra contra o imperialismo inglês tinha dentes fortes, mas não se crê que a sua relação com Gandhi tivesse sido muito compatível. Parece que Tagore era uma personalidade sistémica, com enorme capacidade associativa, de princípios e ideias, e pouco dado a interpretações através de castigos abstratos. Os homens cruzam-se, e nem sempre a cruz de cada um é perceptível para ambas as partes. Uma muito bela aparição foi sem dúvida « A Asa e a Luz» um livro que compreende duas obras, Pássaros Perdidos e Pirilampos, e cujo título é feito dos elementos que mais se destacam nos dois ( pássaros e pirilampos) pela primeira vez editadas entre nós. Este livro é todo a Oriente, a sua viagem à China e ao Japão.

Dizia: « Na China e no Japão pediam-me muitas vezes para, sobre leques e panos de seda, escrever pensamentos: assim nasceram pirilampos.».

Acrescentando então que o rigor e a escassez de palavra o norteiam, coberto por um guarda sol muito haiku.

Os nossos aforismos são mais ásperos… mas se quisermos, poderemos equipará-los.

Que esta Asa nos transporte e esta Luz nos ilumine.

19 Jul 2023

O Livro de Horas

«Tempo! Suspende o teu voo». Lamartine implorava assim num magnífico poema: «parai, horas propícias!», mas o tempo não se detém e circula até desfazer todas as Horas. Propícia se devastadoras. Outrora apelidava-se assim por uma questão litúrgica, sendo um missal da regência quotidiana composto no século VIII, ao tempo de Carlos Magno, por um dos seus abades que desenvolveu tanto os ritos consagrados, quanto a pintura, por suas ricas iluminuras. Um livro destes era mais que um grafismo alfabético, destinava-se a ser contemplado, mas também é certo que só uma escassa minoria teria acesso a tão precioso objecto dado que todos eram compostos manualmente.O conjunto dos leitores também seria restrito, daí que, as imagens trabalhadas se apresentassem para grupos mais alargados tendo em conta sempre a maior sensibilidade plástica dos povos. Escrever era tarefa prodigiosamente morosa, e a palavra escrita um hermetismo tamanho de signos visuais, que ainda hoje proferimos a expressão «uma imagem vale mais que mil palavras». Só que não!Podemos ter muitas imagens sem jamais imaginar o poder do sopro do verbo.

Os grandes poetas retomam os temas, por isso nada se perde e, neste circunscrito e audacioso tema, pouco ou nada se transforma, que Rilke assume para si esta grande marcha criativa que vai encontrar intacta pela forma como nos devolve, uma das suas mais honrosas obras, «O Livro de Horas», em busca da alma russa, tão em voga no século dezanove enquanto entidade espiritual. A devoção das gentes aos seus ícones e a forma como dialogavam com eles deve ter sido um sintoma forte de um veio longínquo que nele tomou posse, e vemo-lo encantado debruçando-se quase no sentido contrário como que a legendar imagens, que o paradoxo é toda uma temática russa, idem, em sua grande dimensão: pois foi aí que a propriedade privada se cancela e ganha corpo uma nova sociedade, que as mais pequenas são feitas de muros e basta levantá-los para que todos tenham direito a ela. Mas o paradoxo maior é que ele mesmo sendo tão frágil, derrubou nas estranhas estradas de Eros candidatos de maior monta quando a bela Salomé por ele também se apaixona, tão russa quanto os seus apaixonantes ícones onde encontrou leituras até então inimagináveis.

Primeiro Livro, Segundo Livro, Terceiro Livro, e temos o seu Livro de Horas. Primeiro: «O Livro da Vida Monástica». Segundo: «O Livro da Peregrinação». Terceiro: «O Livro da Pobreza e da Morte». Quando isto acontece num só Rilke, a única coisa que me vem ainda à lembrança é Outubro Les Très Riches Heures du duc de Berry», mas também aqui me sinto longe. Outubro é demasiado burguês, tendencial, ornamental e evasivo para nos transmitir tão completo memorando e, ao adentrarmo-nos, vemos enfim diálogos raros em forma de poema, que é a única forma de transmitir o que subsiste de toda a aparência, e encontramo-nos de novo em presença de um livro de orações. Que nós também não devemos politizar o mundo desta maneira áspera que nos inunda se desejarmos uma rectificação mais abrangente, que todo este artifício com que somos contemplados nos desvia de todas estas outras coisas essenciais.

 

A França arde, mas o mundo também aquece, exactamente pelas mesmas razões em que tudo entra em rápida ebulição, que o ensinar esqueceu uma silhueta que não se sombreia entre as gentes, mas que teria dado forma a realidades mais humanas, assim a Humanidade tivesse desejado. Que toda a aflição nasce de situações ofensivas, e que há muito passámos colectivamente a barreira de ajustados diálogos que não nos servem absolutamente para nada. Neste livro tocamos as lamentações dos desvalidos, mas Rilke é apenas um poeta, mas talvez que tudo o mais não passe afinal de um desesperante efeito pernicioso.

 

Minha vida tem a mesma veste e cabeleira

que todos os velhos czares a agonia….

 

Rilke, O Livro da Vida Monástica, Primeiro Livro de Horas

12 Jul 2023

Plume

Há sempre aqueles que parecem de vento e são artífices laboriosos da transparência. Este extremo refinamento é talvez a mais conseguida capacidade humana para uma transfiguração, que este saber em dimensões aperfeiçoadas, pode passar incólume aos pesados seres das sombras por causa de toda uma sujeição que elas imprimem.
Claro! Estamos num mundo pouco depurado, e não se sabe bem porquê, agora que as tecnologias permitiram avanços prodigiosos nessa matéria, também vieram com ela os pesos mais agrestes da nossa truculenta condição: a inteligência pode vir a ser artificial, que o ser natural é concreto demais para ser já às portas de um futuro breve, contemplado. Essa leveza que faz o cérebro fazer as melhores ligações, possuem-nos alguns poetas como ninguém, e também será por isso que lhes testemunhamos semblantes esguios e finos como se fossem catedrais. Revisamos as suas anatomias! Por incrível que pareça, há ali elementos de éter puro.
Henri Michaux. Se há beleza, que o vento a traga, sinalize a forma, e seja ” lointain intérieur” que a lonjura a que nos mantém destila pródiga maravilha. Essa lonjura será ainda um propósito severamente poético ( que para proximidade temos os narradores, e a descritiva composição, que não sendo artificial inteligência, deve ser considerada por vezes aberrante função naturalista). E a voluptuosidade também deverá esconder-se de vergonha ensimesmada perante a mais impressionante construção de beleza “gasosa” deste outro instante a que passamos a chamar, poema

Le Malheur, mon grand labourer,
Le Malheur, assois-toi,
Repose-toi,
Reposons-nous un peut toi et moi,
Tu me trouves, tu m´éprouves, tu me le
prouves.
Je suis ta ruine.

Mon grand théâtre, mon havre, mon âtre,
Ma cave d´or,
…………
Dans ta lumière, dans ton ampleur, dans mon horreur,
Je m´abandonne.

Não há muito a dizer acerca deste magnífico poema oxigénio que se respira mas que não se vê. Nós deciframos os signos linguísticos, damos reformulações aos enxames de associações comparativas…mas chega o vento, e perante o domínio do leve, calamos. Creio que interrompemos estes seres para que se escutasse o defeito generalista, e isso abriu feridas gigantescas, grotescas, no domínio da linguagem, que deve sempre servir para muito mais do que debitar ideias e estados sensoriais. Em última instância, poder-se-ia concluir que não tarda, seremos traduzidos até para esferas telepáticas, outras linguagens, portanto. Devemos somente, e doravante, dizer como Michaux aqui, o que descobrimos, que isso será futuramente o maior dom saído da palavra ” on veut trop être quelqu´un. Il n´est pas un moi… MOi n´est qu´une position d´équilibre”
Se formos para a sua obra gráfica, vamos ainda olhar para o desenho do vento, e não dissociamos as linguagens que formam um acordo onde tudo se lê, contempla, e ganha dimensão estranha e espacial. Olhamos a sustentabilidade de uma impressão que nunca se fixa, como a chuva e a sombra, e quando contempladas nos parecem diáfano nos seus impressionantes efeitos ideográficos. O autor de « Um bárbaro na Ásia» deseja o que a este lhe fascina, saber como pode penetrar na sua espiritualidade. Que ele de facto não quer descrever coisa nenhuma em termos factuais, romanceiros: é um poeta, e quer a rota daquilo que a sua natureza impele para o símbolo. Nunca deixou de percorrer os « Paraísos Artificiais» mas ao invés de um Baudelaire, vai bastante mais longe. Se a alucinação for tudo isto, então quem se deve sentir alucinado são aqueles que não sabem afinal de contas aquilo de que um cérebro é capaz. Escrever e desenhar o vento.

28 Jun 2023

Campo de flores

Os grandes poetas amadureceram no tempo e tornaram-se iguais às lendas. Ao falarmos deles não o fazemos com a linguagem devida, isto porque ao aludirmos a debutantes costumes de poemáticos desfiles, nos iludimos também quando pronunciamos a mesma língua por eles trabalhada. Aqui falamos de Drummond de Andrade a quem a língua deve momentos verdadeiramente abençoados. Herdeiro do modernismo brasileiro que irrompeu com o verso livre e se dividiu em duas correntes, a primeira mais lírica, a segunda mais factual e concreta à qual aderiu Drummond; porém, pareceu não marcar território em nenhuma parte onde a poesia se quisesse explicar, formatar, alinhar. Pessoal ou socialmente «a poesia é incomunicável», definição que não deixará de seguir. No longo exercício da escrita, não esqueceu, como era apanágio da sua época e dos melhores, ser um elemento activo do Partido Comunista, mas era um poeta e isso nenhuma estrutura, poder, regime ou força, sabe ainda exactamente o que seja.
Este título alude a um poema que se insere inteiro na Primavera; porém, não são primaveras contadas, mas desfeitas em tempo e longos anos por onde os Invernos foram acontecendo, e não será demais lembrar que entre toda a beleza estilística da sua obra, ele é ainda de uma concentração de forças que nos prende e sustém como a mais bela lucidez da alma. É um poema não muito longo, que nos interpela e relembra do dom do merecimento: fala então no amor no tempo da madureza, nesse assombro que já não é esperado nem acontece de forma calculada. Por ser tão tarde, as coisas tornam-se diferentes, raras, exatas, como um último presente de Deus, ou quem sabe do Diabo, mas sem dúvida uma conquista recebida por méritos que a vida desejou consagrar.
Quando analisado em seus componentes estilísticos reconhecemos como a sua embarcação na vanguarda dos sonhos foi importante para produzir semelhante compreensão: ele fala do que tece a vida, e o poema vai com ela como se desfia-se o conteúdo da sua melhor essência; temo-lo intensamente poético, sem suor, lágrimas e vontades extemporâneas, seguindo a marcha quase profética do acontecimento que tinha de ser manifestado, que o tempo que já não ambunda, é agora proporcional ao espaçoso exercício de o poder contemplar sem a dúvida que outrora fora tão presente, sendo por isso mesmo imagem de terror convertida agora em jubilação perante a visão de muitos amores desgovernados que o tardio amor olha e sente como um (talvez) agradecimento para ter chegado até aqui.
Será certamente um campo de flores a análise de um poema tão contido, total, e ferozmente crepuscular, instado no tempo numa reflexão sobre o amor e sua jornada, mas que em nós se adentra como mistério, e para resolver a questão, o poeta alude ao justíssimo merecimento. E ele agradece em forma de poema esse inusitado amor que tudo clareia como um raio de lucidez e vida de quem não foi esquecido. Há reserva e humildade nesta conduta, e bom trato com forças antagónicas, o que supera em muito o que podemos achar que amor seja, que ele, é voltado então para os “mitos pretéritos onde acrescenta aos que amor já criou” que o amante se torna “o mito mais radioso/ e talhado e penumbra sou e não sou/ mas sou”.
São campos que não esperávamos saudar no tempo da Flor onde o poeta consegue dar a entender como são diferentes as Primaveras, ladrilhando suas mãos na terra fecunda de um momento diferente. Que o vigor deixado talvez seja agora a lembrança dos despojos que procura arrastar para fora do tempo, para aceitar a bela luz que baixa e o confunde. Pode bem ser um dos mais belos poemas em língua portuguesa, reconstruída em acordos, só que talhá-la vale tudo o que não acorde em nós o esquecimento de quem tão bem assim a trabalha, que a ironia dilacera a melhor doação, e por isso há que a amar e calar.

22 Jun 2023

Imperatriz

Há jogos, como aqueles de Michel Tournier no seu Tarot de Marselha em «Sexta -feira ou os limbos do Pacífico», em que a jogada era estranha e dava repostas desconcertantes, mas todo o enredo acaba por corroborar a resposta de xadrez do jogo visionário. O herói cai ao mar, não morre, vai para uma ilha, e ali irá passar longos anos que vamos conhecendo pela narrativa do autor. Mas as cartas do Tarot não ficaram, contudo, naufragadas, circulando por aqui em forma oracular, que entre o Mediterrâneo e o Atlântico há forças bem diferentes, que mares não são oceanos, embora tudo seja água. A trajectória vai dar ao Pacífico e a passividade a lado nenhum, que viajar é preciso e viver não é preciso, trazendo à lembrança os velhos Argonautas. Preciso, só mesmo o acaso.

Pode uma Imperatriz ficar dentro da gaveta sem que no jogo oracular ninguém dê pela sua falta? Não só pode, como aconteceu. Também lá poderiam ter ficado o Diabo, o Imperador, o Mundo… enfim, todos afinal cabem dentro das gavetas, mas sentiriam sua falta os consulentes, que estas coisas são como os alfabetos, uma soma de caracteres que em média dá vinte e dois, e se aos diálogos faltar alguma destas componentes, lá estão os mestres escola a procurar as faltas, que estes atentos ao erro são em si mesmo uma paralisia que não deixam espaço livre a falhas alheias. Ora num jogo de imponderáveis vamos então saber que não há excluídos, e que a força do domínio de cada um, impera, e se nem com a razão altaneira conseguimos vislumbrar por vezes um elefante à frente do nariz, imagine-se fontes outras em que nada está de acordo com a sistematização da infalibilidade racional!? Não acreditar é como não saber, duvidar é medir com o ponteiro do relógio a vida que se teme, estar preso a si mesmo é a denúncia de uma condição tristíssima, e assim jogamos a extenuante falta do aprendizado que continua sem ver a falta de uma Imperatriz.

Mas vamos voltar então às nossas gavetas onde escondemos, guardamos, atolamos, vislumbramos… e saber que tal como escondemos as coisas, também as coisas se escondem de nós, e que na medida que as vamos possuindo elas também nos possuem, e que depois de nada estar a resultar no jogo desta travessia me lembrei então de súbito ir de novo à gaveta: e ei-la deitada, olhando para cima como um sinal. Neste aparato deveras transformador, lembrei todas elas e a marca deixada de um poder com raízes tão terrenas que os céus se fecharam para que as pudéssemos contemplar, e que um simples jogo de Tarot numa noite amena de quase Primavera fustigou a buscá-las. A primeira lembrada foi Teodora, depois Catarina, no centro uma impressão grave de que uma Imperatriz era muito mais que uma Rainha, que estas espectaculares mulheres não nascem na Europa Ocidental senão em forma de caricatura, e que a caricatura impressa por esposos governantes fê-las muito governáveis. Era a noite para contemplar a Imperatriz que não desejou pertencer a nenhum baralho onde a sua influência contemporizasse com forças outras. Ela ficou fechada, por fim falou. O que disse em sua divisa foi enorme; não estava ali para prestar favores, nem seguia nenhuma romaria ao altar dos poderes, ela era um poder. Esta impressão transversal ao que desejamos incluir, pode ser por momentos um instante extremamente angustiante…não sabemos se nos fustiga… interroga… suplica… ou nos dá um código para denunciar grandes equívocos.

Justiniano era forte e não lasso,

Justiniano era feito de aço.

E agora Justiniano, o bravo,

Está aí de uma mulher escravo

Situacionismo! Falamos do Código Justiniano. Teodora elaborara as leis que restringiam a liberdade dos homens, destronara de seguida um papa presidindo a todas as petições e julgamentos. Teodora não era a consorte, em termos de sorte também nem sempre fora bafejada, sendo aqui o império Bizantino a fonte imperial mais conseguida para uma evolução gigantesca que o mundo de então, e o de agora, ainda desconhecem. Julguei vê-la no baralho do Tarot, mas logo surgiu Catarina, e na contemplação arquetípica que se havia dado por esquecida, era evidente a supremacia a Leste destas figuras. Catarina, a Grande, a mediadora nata que já lá para trás pelejara na guerra Russa-Sueca, no Império Otomano, soube como transformar a relação com a Europa Ocidental, reduzir com firmeza o poder da igreja ortodoxa russa, e ainda ampliar as fronteiras do Império para sul e para ocidente: Crimeia, Ucrânia, Bielorrússia, acrescentando assim 518 000 quilómetros à nação. Uma Imperatriz que se ocupou das artes e da filosofia, um intercâmbio civilizador que viria a resultar como modelo humanista. E dito isto vamos omitir agora a sua águia de ouro e a cruz que encima o orbe e buscar sua outra imagem ao livro do Apocalipse:

“…e surgiu uma grande maravilha no céu;

uma mulher vestida de sol

com a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça,

uma coroa de doze estrelas”

Nada mais parecido que o seu desejo de um vestido branco em sua mortalha, apenas ornado com uma coroa dourada na cabeça.

7 Jun 2023

50 anos da morte de Picasso

Onde estava no dia 8 de Abril de 1973? Lembrei-me disto a propósito de Baptista Bastos e do Abril do ano que se seguiria. Ora, nós estávamos a crescer, pelo menos os da minha geração, muitos já iam avançados, outros não sabem, e muitos ainda hão de lembrar. Estávamos exatamente no dia da morte de Picasso […] sim, ele é um acontecimento como qualquer revolução, intempérie natural ou mesmo sobrenatural plasmado nesta nossa humanidade. Este, ainda por cima lindíssimo ser, nasceu lá para os lados das boas heranças peninsulares: Málaga, na Andaluzia, e nunca é demais vincular tal facto: é até bom lembrar a boa origem do sul, que por lá nasceu o melhor da Península Ibérica.

Por quê? Não sei. Talvez pressinta que nada há de melhor que estes mundos atravessados por povos tão morenos como luas, tocadores de cítara, amáveis e culturais, fecundos e macios. São católicos há tão pouco tempo na escala da civilização que nunca enfiaram bem o “barrete”, mas prodigalizaram-no à sua maneira tão terna e trágica! Afinal, é este Sul que nunca parou de jorrar as lendas mouras, a errância cigana, os judeus e os árabes, o vinho e as laranjas, a liberdade e a vida, que sempre nos trouxe a graça dos bem-nascidos.

Não se pode escrever acerca de Picasso sem uma humilde reverência e alguma natural intimidação, afinal falamos de um prodígio que marcou a arte do século vinte como nenhum outro e, por instantes, pensamos que ele tem qualquer coisa que nos escapa como se abordássemos a fonte por onde os feitiços nascem, a razão se esconde, e a prodigalidade acontece. A sua mãe dizia que, quando rapazinho, “ele era um anjo e um demónio de beleza”, ninguém se cansava de olhar para ele. Já o seu pai era um professor de desenho que muito cedo se apercebera da genialidade deste filho, passando-lhe os pincéis, e mais tarde todos os homens seriam esse pai destronado na versão do homem que o filho viria a talhar.

Ele é tido como alguém de muito generoso, preocupando-se com os outros, fazendo que um amigo dissesse que ele deu muitos mais quadros do que vendeu, mas Picasso era também um homem duro por necessidade de se autoproteger, e não perdoava faltas que talvez lhes parecessem absolutamente inestéticas. Mas estamos ainda nos primórdios e Espanha parece cada vez mais atarracada mesmo quando entra na Real Academia das Belas Artes, e vai então para Paris. Corria o ano de 1900. Passa da Fase Azul, passa para a Fase Rosa e rápido entra no Cubismo. O geométrico andaluz elimina o paisagístico e entra na sua herança cultural mais remota. Acabara-se o dom maneirista!

Mas Paris não é uma festa nestes primeiros anos ao contrário do romance de Hemingway e Picasso conhece a grande tribulação – mas Picasso é Picasso – e com seu amigo Max Jacob, que o acompanha no início da jornada, vai ensinar-lhe uma grande lição no meio dessa logística desesperança: aconselha-o a pôr de lado as suas lunetas e deixar de vestir-se como um lojista, dizendo-lhe: — Vive a tua vida como um poeta! Aqui sentimos-lhe a estirpe e a vocação de um anti-miserabilista, um certo garbo e lindíssima definição para neutralizar de vez o temor da sobrevivência. Tudo isto devemos reter.

«Nessa época, não nos preocupámos senão com o que fazíamos. E todos os que faziam se reuniam entre si. Apollinaire, Max Jacob, Salmom… Que aristocratas!» E, como a velha frase de Shakespeare «não há lembrança mais feliz que o tempo feliz na miséria», a morte de Apollinaire põe um fim definitivo à época extraordinariamente produtiva do «grupo Picasso». Era a Primeira Guerra Mundial. Prossegue. Vamos encontrar então mais tarde um Picasso mundano, bastante mais rico, frequentador de serões, dizendo: conduzir um carro é péssimo para os pulsos de um pintor. No seu “smoking” contrata também um motorista. Mas Picasso, rico ou pobre, nunca será um burguês. Já estávamos na Segunda Guerra Mundial, e Matisse afirma que se todos tivessem feito o seu trabalho como ele e Picasso, nada disso teria de novo acontecido. Picasso adere ao Partido Comunista em 1944 e conservará o seu cartão até à sua morte. No entanto a sua lúcida natureza de criativo insurgia-se contra o trabalho artístico poder ser inscrito nas lutas sociais, e dizia que um Rimbaud na Rússia seria tarefa impossível.

Picasso foi um ser humano devorador, pois que a sua noção de vida não era dada pelo cálculo da partilha ou de uma qualquer equidistância para a fastidiosa felicidade, por isso os seus amores foram sugados até ao tutano, mas creio com sinceridade na sua vocação de amante ilimitado, de tal forma que tudo brotou como alimento dado pelos efeitos das suas paixões. Tudo nele vibrou na presença da mulher que em seu tempo amou. Casou-se cinco vezes, por último comprou um castelo no sul de França, instalou-se com Jacqueline Roque, e o efeito foi como sempre: surpreendente. Picasso arde-nos entre os dedos, ele teve vida longa, ciclos diferentes, múltiplas vidas, e em todas elas encontramos o Avatar, aquele trabalhador incansável, o homem justo, o ser raríssimo, a treva e a luz, e a fecunda necessidade de se livrar do medo.

Nasceu a 25 de Outubro de 1881.

31 Mai 2023

Trágico

Meglio oprando obliar, senza indagarlo,
Questo enorme mister de l´universo!

 

Tem de ser! O tempo que levamos a fugir aos nossos medos atravessa-nos mais tarde em forma de destino, com ele vêm todas as figuras que dão forma manifesta ao fundo terror, e talvez que sem elas tivéssemos apenas impressões intangíveis de temores pouco governáveis e solicitudes nunca defrontadas. Queremos trabalhar, sim, e não indagar nenhum desses ângulos, mas a pesada forma visível não só nos impedem de sondar, como nos impõem medidas reais, duras e concretas. E quais são elas? O abdicar de tudo o que amamos. A isto podemos sem mais nada chamar de tragédia, e nem por isso ela se abate de modo a fulminar o herói.

No mito de Édipo, o oráculo desaconselhara a Laio que tivesse um filho, mas este desconsiderara o aviso entregando-o depois a um servo que o deixaria na encosta da montanha de Cinterão, e ao não morrer, teve outra existência e outra família, e mais tarde ainda procurou o oráculo de Delfos para saber da sua progenitura. E foi aqui que tudo claudicou! Édipo fugiu para Tebas para escapar ao oráculo acabando por matar o pai quando este também vinha de o consultar tomado por estranhos presságios. A cidade ficara entregue à esfinge.

Todas estas contemporâneas criaturas estão também entregues a ela, à Esfinge. Que ela falou, e o sombrio destino não deixou de perseguir a Humanidade verdadeira filha da Quimera, colando-a imperceptivalmente à sua imagem mas já sem rasgo nem merecimento, aquilo que fulminava toma então carácter depressivo.

A Humanidade não é a Esfinge, mas finge que essa esfinge é um mito que apenas resiste ao seu teor programático. É uma das desordens que em nós subsiste, o não saber acreditar num programa ulterior ao governável sentido de orientação que humanamente impusemos para nossa frágil e possível continuidade, que a tragédia bem que pode ser a funcionalidade activa de um memorando onde não sabemos como, e onde, poder indagar, mas ao ser respondida sempre arrancará gargalhada sonora repleta de lágrimas incontidas.

O Mar Negro, navegável pelas Fúrias, não nos parece contudo trágico, o Mediterrânio também não, a peste, a fome, a guerra, os naufrágios… tão pouco; e nada mais nos traz à memória Esfinges em silêncio que nos interpelam no emaranhado das análises, e da combustão lenta do armar territórios para o fim merecido da nossa extinção, olhamos ao redor, e tudo é o centro desta “qualificadíssima” civilidade que acreditámos cegamente ser o prodígio vivo de uma soberania quase eterna. Uns refazem-se na dupla cegueira investida por supremacia caricatural encadeados por mecanismos que o próprio diabo já não lembra.

Afinal a tragédia maior foi acreditar que tudo seria doravante um grande comércio livre, e que a beligerância pertenceria aos arquivos empoeirados da História. Sem consciência, e com a soberba dos velhos imperialismos, sentimos mudanças, mas o melhor é nem pensar nelas. Creio que isto tudo fora anunciado, ninguém escutou ou mesmo esteve atento, tal a alegria breve que nos tomava…!

O sentimento trágico não será recompensado com os alvores filosóficos, e mais tarde do bando dos cilindrados só um escapou que o reconheceu, Ezequiel. Toda a sua génese tem atributos poéticos, e os gregos bem que poderiam ter resistido ao fluxo do pensamento que hoje erguemos como bandeira, -que nós estamos presos, e ainda bem,- ao seu primeiro e secreto sentido trágico.

Mas quando a escrita terapêutica irrompe como uma conspiração contra o pensamento, também com ele atravessamos o chão para chegar a uma qualquer coisa que nos sirva de ponte para passar tal treva. Haverá sempre duas hipóteses: ou a humanidade já não é pensante, ou a tragédia será uma outra coisa.

A sublimação deixou de acompanhar o herói nas suas façanhas, e só dele se pode receber o dom da transformação que sagre a natureza humana como algo como jamais fora visto. Mas o que vemos, é que vendo e revendo a totalidade desta situação, tudo bruscamente nos parece igual, fruto de uma multiplicação do efeito traumático de um humano que expande numa semelhança para coisa nenhuma.

A morte da tragédia produziu uma impressão universal e profunda de vazio monstruoso… A própria poesia também morreu com ela!
Nietzsche

Não será menos trágico o que hoje nos acontece, só que há uma Comédia que insiste em preencher uma muito estimada lubrica jornada. «Esvaziando o cálice, ainda existe um tambor…mas esvaziado o cálice, não querer mais nada, eis a chegada» Metáfora do Apocalipse.

16 Mar 2023

Corpo a Corpo

Crescemos a espaços de coisas que nem lembramos, somos da cadeia um elo projetado à amplificação. Enquanto isso, as dores do crescimento quase ofuscam o prazer da expansão que deve ser acompanhado do sonho da vitória contra a morte insolente, presente em todos os caminhos- e esses seres tão frágeis diante tudo – de todas as adversidades, parecem sair vitoriosos quando dobram os seus cabos.

Temos um corpo guiado por forças tais, que na emboscada de um outro, revolve toda a soberania sonhada só para transitar para ele, sua cúspide revelada. Porém, a virgindade renova-se como a Lua, e ser mulher, altera esta noção de fusão latente, pois que semeia em fundos vales uma intrepidez que não pode ser adaptada a nenhuma circunstância.

Para um japonês, a melhor porcelana fabrica-se nas paragens onde as condições de vida são mais duras, já o coração é difícil de fazer arder em brasas acesas, e todo o hedonismo cai por terra se nos esforçarmos na reabilitação das fontes essenciais. Talvez nem seja necessário nenhum prazer entorpecedor e vinculado aos veios das comemorações mercantis, que o corpo do desejo é uma impermeável película que atrai o desespero para os confins de uma busca a que chamamos conquista. No corpo encontraremos as reservas de sombras e deslumbres que se aglomeram como ressonância do que somos.

A terra então se abriu, «fendida pelo amor», onde dizem para aí que o seu centro parou. Que centro sabemos nós ser esse, vasto manto ebulitivo da sua natureza?! Vamos até onde podemos ir por explosão ou implosão, no entanto, somos mais orgânicos no acto explosivo, que a paixão dos corpos provoca choques magnéticos que se dissipam na atmosfera, onde só por ela é possível embater para que se alinhem como fabricantes de energia viva, já os do prazer, não saberão reproduzir o rastilho dessa força transfigurável, nem saberão reconhecer a viagem entre correntes contrárias que levam a um certo estado de clarividência. Delfos, esse umbigo, falava e muito embora pudesse assustar, aterrorizando, falava de poesia. Continuamos a levantar questões no corpo que nos acolhe, mesmo quando estamos certos que cumprimos uma maldição.

Enterrados em lamas saem braços de mulheres com unhas pintadas – é a guerra – por instantes parece-nos que foram expelidas para a superfície da crosta exposta aos ventos, ao sol e às neves, mas não; foram empurradas para um fundo à superfície- corpo de terra- e ficamos magoados com a fina camada que separa os mortos dos vivos, que o abstrato encanto de mergulhar no Hades nos dava distância e gravidade. Ter visto os nossos corpos a partir dos recursos de transmissão tecnológica em transe mortuário foi um estrondo ainda imperceptível que nos levou à perspectiva da Terra oca. Os hiatos que criámos davam bem para atravessar desertos de tecido cerebral onde grandes ligações ficaram desfeitas.

Por ora as nossas mais elaboradas estruturas belicistas recriam o cenário terráqueo de uma guerra das estrelas, mas não anda longe a luta corpo a corpo, que das estratégias não sobrará muito mais que terra desfeita, e nesse abraço mortífero quem sabe se não penetraremos de novo no núcleo parado, que mais que tempo anulado, é rasura para qualquer memória futura?! O que nos acossa agora? Canibalismo.

Ainda hoje aterrou no aeroporto de Lisboa um homem com pedaços de carne do ser que subtraiu à vida.- Nós já chegámos aqui! E saber isso é como entrar nos abismos mas de olhos abertos. Quem não sente, é como quem não vê, e por isso, felizes os cegos que entrarão no reino dos céus. Essa brandura é tudo o que gostaria de resgatar antes dos altares do mundo serem extintos por força inferior que fora inscrita como alto desígnio.

Entretecidas por personagens modernas e antigas irrompem sem fronteiras nem contornos – corpo de texto – a descida e a metamorfose dos nossos corpos dados à combustão de uma sagrada desdita, e dos Triunfos, a Rosa obscena da trituração. Este é um índice remissivo de um livro que nunca escreverei «Disseste o que queríamos que fosse dito», que as odes confessionais perderam o seu tempo na emaranhada insanidade dos disfarces.

9 Mar 2023

Passarola voadora

Não é noite de João, mas há balão!
Ora, tanto balão, sugere que vigiados andam os céus do mundo.
Céu, essa grande abóboda que não é passível de ser tomada por tantos atiradores furtivos.

Efectivamente, não creio em extraterrestres, até porque o que se detona aqui é bem terrestre e volátil, de tal forma que caem como maduros cá em baixo. Há navios a carregar os destroços brancos das insufladas “mensagens “que a matéria não entra nas investidas dos visitantes extra Terra, eles devem ser só energia com movimentos súbitos, e tão rarefeita, que o rasto não será passível de ser apontado.

Esta história por incrível que parece deve tudo a um português, Bartolomeu de Gusmão, e quando em meados do século XVIII, quando a Revolução Francesa vinha ainda distante, preparava-se em território nacional aquilo que viria a ser para essa altura os balões de observação de uso militar, mais tarde a Guerra Civil Americana volta a usá-los, e assim continuou até à Guerra Franco-Prussiana. Havia balões por todo o lado!

E veio a Primeira Guerra Mundial, expoente máximo do princípio do uso dos balões, como tal é fácil saber que estão associados a beligerâncias de ambos os lados das trincheiras, havendo a equacionar no momento presente que eles andam aí, e que a bela forma posta nos ares indica: GUERRA. Se não formos só enchedores de balões, podemos sem grande destreza dar-nos conta da sua presença nos suaves enredos europeístas todos organizados para descalabro mais bicudo. A Europa vê os balões passar como se estivesse em fase constante de Lua-Cheia! Os mais quiméricos tentam descortinar salvíficas visitações ou culpar o seu oponente estratégico de disseminação, e aqui entra até a suspeita que aquele que se vê cada vez mais encurralado comece a dar tiros para os pés dizendo que são os outros.

Apanham aquilo tudo e não há nada que depois produzam de revelação encontrada!? Claro que é estranho.
Seja como for, eles andam nos ares. Há mesmo uma expressão que diz “O balão está subindo!” grito de guerra iminente, daí que devamos circular de modo a permitir que as nossas memórias deles não se esqueçam.

Efectivamente, o mundo hoje é mais tecnológico, bastante captativo pelo rigor mecanicista, mas lidamos com nós mesmos, que estamos ainda mergulhados nas práticas anteriores sem saber muito bem como lidar com outra consciência, e quando os tempos apertam, reconstruímos sinais conhecidos. Também é certo que foram realizados milhares de voos de observação por balonistas pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas estávamos em áreas circundantes bastante mais próximas.

«A China fica ao lado», belo título de um romance de uma saudosa amiga, Maria Ondina Braga, que hoje me parece de máximo interesse estratégico – sim, fica ao lado – mas um lado suficientemente centralizador para começar a ser aquilo que pode ser visto como um estremecimento a Ocidente que não sabe descodificar nenhum sinal. O cerebralismo impactante das nossas sociedades crê saber ver tudo e o seu contrário, mas nada se processa por antítese, e o tal Mundo muito unido não é assim tão unificador como julgáramos que fosse. Por outro lado, há os tais movimentos irreversíveis, nada dura no mesmo lugar para sempre, e nas voltas e rotas que a vida dá, os ajustes do todo e de cada um, são condição permanente. Parece que longe estamos dos tenebrosos ataques terroristas de um Islão em rota de colisão com o real, mas não estamos, foram ontem, e geraram analistas como cogumelos envenenados. Quando nos olhamos mais seriamente, parecemos enlouquecidos. Não estamos ainda em Guerra, mas toda ela nos faz estremecer como antevisão de um grande passado sangrento e comum. Aos poucos deixamos uma certa percepção inexorável para um atoleiro de alta definição que já não é real.

Voltando à nossa Passarola mãe de todas as infiltrações, ela partiu de uma bola de sabão elevada pelo ar quente da chama de uma vela, D. João V dá então permissão para tão insólita investigação, e Gusmão faz subir o seu balão, esse jesuíta, que acabará por fugir para Espanha sem beliscar a sua genial descoberta, apenas porque a Inquisição suspeitou que pudesse ser judeu. Passou o resto da vida, ao que consta, obcecado pelo Quinto Império e pela vinda do Messias. Eles talvez tivessem vindo, mas tão distantes da sua Nave de Ar, que o que nos resta são balões nos céus do mundo.

Agora estamos no patamar «A volta ao mundo em 80 dias» a bordo de um balão, e se neste espaço de tempo não houver borrasca, é porque a órbita da Terra se alongou.

27 Fev 2023

A Bailarina

A sua vida não saía agora de dentro das muralhas, o quarteirão era um país e a cidade fora há muito um local encantado onde se moveu por todos os seus recantos em passos de dança que pareciam não tocar o solo. Estava bem. Afinal era um belo sítio ainda não muito exposto ao êxodo dos seus moradores e com as formas intactas de um antigo feudo.

A vida permanecia um dom que se dançava no estreito local, e mesmo assim caminhos do mundo se entrecruzavam nos seus passos, faltava um certo vapor, uma cantata, mas habituamo-nos ao som livre dos nossos passos quando se conhecem de cor os percursos. «Ela canta pobre ceifeira!» Só um homem podia ter escrito frase assim. Cantariam os navegadores? Não se sabe… mas alguma dança trémula alcançariam na monotonia que também atinge a aventura.

Os passos titubeantes dos que visitam cidades tornam o rítmico processo, torpe, e ao nível do chão, causa de todo o desastre – rolam mecanismos insonoros, deslizamentos de velocidades várias – chegam carregamentos de malas, sacos, bagagens, e só não submergem porque a vontade impõe a resistência para as noites que hão de encontrar nas camas turísticas o conforto programado para populações exaustas.

Que a labuta dos que se esforçam para a logística doméstica dos novos nómadas não é menos imperativa que a de estes navegáveis. Uma componente em que todos os recursos se concentram para tirar dividendos flutuantes das vagas de passageiros, fazendo ispersos como um chão de ossadas em velhos caminhos, uma impermanência que é lei e gere a cidade, que a deita e acorda num quase tristonho cenário de «Nau a Haver» onde a natureza dos seus habitantes se virou para outros soalhos, que os salões escureceram à passagem das massas.

Dançar foi outrora uma função tão válida como hoje é andar, correr por aí contra o vento em festividade orgânica quase insolente, era uma proposta semanal, um estado de funcionalidade, que o corpo gosta da dança e lembra-se de como os seus passos ajudaram à árdua tarefa de se saber caminhar junto. Mas deixemos a dançarina entregue a seus cuidados!

As pessoas que saem de pijama para o emaranhado das ruas deviam ter na chegada a casa um manto púrpura para se cobrirem e tentar olhar-se com alguma parcimónia, que isto de se ser tão casual, entorpeceu a natureza das funções e levou à subjugação através da moda desportiva. Andam os seres todos a treinar. Para quê? Não se sabe. Um treino é aprendizado para cumprimento de actividade que se deseja desempenhar contribuindo para o bem comum, ora, o bem comum, pode ser também um mal comum, que não se dá por isso, a menos que haja um evidente bom senso no meio desta estranha projeção. Se falarmos ainda nos ensandecidos hábitos alimentares que cortam as fontes do balanço para as bailias, vamos entendo o porquê do cansaço extremo e da má resolução dos problemas.

A atmosfera não está para grandes carinhos, e sentimos que ela produz calafrios podendo estar a lançar madeixas de cabelos de uma cabeça decepada, que de forma lenta, tenaz e concreta, adoece a maleável natureza dos seres. – Não será então em mim louvada a conveniência da saúde ardente- que a saúde se saúda pela transformação constante desta luta até à inexorável falência orgânica.

A Dançarina em nós nunca deixa de bradar, ela é mais lata que os movimentos estipulados, e agora amordaça-nos numa orquestração sem harmonia que julga os nossos passos apenas como capacidade muscular para se manter activa mas lhe retirou o tributo da função cósmica que é dançar: dançar em todas as direcções, com todas as formas, com todos os sentidos, um tributo ao Universo que não retém a conveniência de se ter um corpo apenas para se encarcerar, a Bailarina, tende a mostrar-nos a escassez de fluído que está em marcha nas nossas sociedades nazis reinventadas. « Anima Mundi» ou a alma do mundo, consistirá sempre a desencarcerar na “prima matéria” a natureza inconsciente. O Mundo gira na roda evolutiva, e com toda a nossa retenção de marcha, acena-nos para não destruirmos os tributos circulares da sua natureza ( a Dançarina é feminina) e ainda nos diz que o impulso criativo no seio de toda a vida não poderá jamais ser revelado. Podem os seres vestirem-se para uma mesma dança, despindo-se destas vestes tributáveis? Esperemos que sim.

No ponto imóvel do mundo que gira. Nem
carne nem sem carne;
Nem de nem para; no ponto imóvel, lá está
a dança,
Mas nem parada nem em movimento.
T.S. Elliot

21 Fev 2023

Oitavos de final

O número oito tem as suas benesses. Toda a gente ao redor dizia: «quem nasce a oito é rico»; hoje já ninguém sabe o que tal adjetivação possa significar. Oito é um número, e como todos sabem é também esse octógono que testemunha a lição fantástica das Capelas Imperfeitas. Abertas estavam para o céu acreditando-se mesmo que alguém, ou alguma coisa, desceria para revelar o que não sabemos. Imperfeitas?! Talvez não. Elas foram deixadas assim para uma qualquer esperada manifestação.

Dito isto, há que os descobrir na arquitectura para sabermos quem vem ou virá que aterre em segurança, não vá por más escolhas ficar feito num oito ( significado contrastante com a boa estrela do número).

Quem está feito num oito não volta a ser numericamente mais nada, a menos que descubra que esse recolher em S possa ser um retorno perfeito, que a Oriente cede passagem como número sagrado e se inicia na profética demanda, mas quatro, ninguém imagina a tristeza que transposta! A própria língua dá-lhe sonoridade de morte, ele dobra, transcendendo assim condição mortífera.

Por outro lado, oito é bonito. Deveriam os signos alfabéticos e numéricos ser mais ou menos perfeitos? Sem dúvida. Foi essa definição gráfica que nos fez acercar do conteúdo verbal /numérico. Ao agrupá-los numa rede de signos, conceitos, abstracções, criámos estradas que a própria natureza desconhecia, alterando-a. Criados os signos, as condições estavam definidas para pensar grandes artefactos de um monumental esquema civilizacional. A China ama o oito, nós o cinco, e outros amarão o que muito bem lhes aprouver.

Por tudo isto cada um caminha para os seus domínios onde se encontra uma geometria muita própria. Cada um avança em sua deidade numérica entregue ao fluxo dos anos, e tende a expandir ciclos florescentes nos seus numerários «Ir aos oitavos» é ser escolhido para o duelo final “após os sete dias da lei veio o oitavo da graça”: prepúcio cortado, oito almas embarcadas na arca de Noé salvas pelas águas numa já muito marcada senda da transcendência do número que “ao seguinte dia de sábado” existiria ainda como símbolo de ressurreição.

Octávio, Outubral… Octávio Augusto, primeiro imperador de Roma, tinha a marca dos oitavos filhos nascidos das famílias romanas; por cá, a tradição dizia-nos apenas que entre sete filhas, a sétima era bruxa, e para escapar a isto, só um redondo numérico. Tudo expande para formas renovadas, ampliações fora do clã… tudo toca mais perto o longe que vem por força giratória ao ciclo da vida que se refaz.

Não há linear conduta, andamos no invólucro giratório onde a morte se descontrai para entrar na ordem invencível. Esta vitória da curva sobre a recta diz muito da sua composição gráfica que tendencialmente constrói nas correntes da visualidade o sucesso sem fim à vista deste número. A recta final não é uma oitava, e mesmo assim, ambas se confundem em seu términus.

Há que chegar à final! – E, afinal, quem pode escrever direito por linhas tortas?
E quem distende a recta quando o tempo começa a ser escasso?
Lebres e Tartarugas nas meias Finais.

Entre o círculo e o quadrado ele pode ser ainda uma clave de sol que penetra geometrias opostas servindo de melodia para os contundentes ângulos do pragmatismo, alisando as arestas das fronteiras agrestes… Ele dança! É a dançarina em nós. Deitamo-lo e eis o infinito.

A sua esfera totalizadora levantou-se, e como os antigos reis do Norte, abeira-se um extenso conflito para reparação das forças onde no centro da sua curvatura nada pare de girar.
G8 foi abatido. E agora aguardemos as voltas que o mundo dá.

15 Fev 2023

Ano do Gato

Começa assim na primeira Lua-Nova do Ano um ciclo a Oriente, que é também um momento de grande festividade, um rito de passagem repleto de significado dando a Buda o que é de Buda, que notificou como nas fábulas os animais.

O ciclo das doze Luas iria marcar cada Ano e inscrever na mandala as características de cada um, entrando este com as prerrogativas do nosso amado felino. No entanto, é também designado por Ano da Lebre ou do Coelho, existindo sem dúvida a conexão lunar que os associa, que seres míticos como o Dragão, estarão sem dúvida associados a Anos solares (mesmo que o horóscopo seja lunar) e o Cavalo, o Macaco, o Tigre, a virtudes mais “yang” num certo calor que marcará as suas regências.

É altura de calmaria! – Um Ano de Água no contraponto deste Bestiário trará enfoque ao elemento assinalado, esperando-se por isso manifestações aquosas de monta como bons banhos, óptimas viagens de barco… e na pior das hipóteses, naufrágios, tsunamis, chuvas torrenciais… a chamada «água pela barba» que quem as tiver, melhor será que estejam de molho.

No início de 2020 a China pareceu assustada com o singular Ano do Rato tendo razões para isso. As Festividades quase foram canceladas quando muitos estavam já a caminho quais Flautistas de Hamelin ao rebentar da temida pandemia.

Era aquele Ano do Rato que só se produziria ( reproduziria ?) de sessenta em sessenta anos sob a égide do Metal, que neste caso competiu com o vil metal, e tão dado como nefasto que cumpriu à regra a sua missão. Por isso (que mais coisas se passam ainda do lado do Sol Nascente) nada de superstições acerca do Gato, que mesmo que seja negro, será antídoto para um mal que não passa e parece recrudescer. Que o faça em silêncio, como fazem todos os felinos, e não se grite daqui: obscurantismo… de retro satanás… digam já…! Não digam nada, que a China não é um Parlatório.

E salve-se a qualidade social destes festejos cuja cor, alegria, fantasia e grande performance, corroboram o grande poder imaginativo, quase onírico, de um mundo que pouco lembramos agora de forma salutar. Há muito mais mundo para além da economia, da pandemia, da democracia, da tecnocracia e da autoridade política. Há os povos, os seus emblemas, os seus ritos, os seus cultos ( que os incultos não cumprem passagens nem estão alinhados com o movimento dos céus).

O desdém tristonho do aglomerado europeu tentou pela prática do prático valor dos instintos, (bizarramente apelidado de científico para as nomenclaturas de culto pragmático) esquecer a demanda dos povos em suas naturezas transcendentes, e fez-se então nestas gentes, nestes povos, prestes a morrerem de estrangulamento inoperacional, uma jangada deitada às águas infernais, estrebuchando a maioria em manifestações insolentes perdendo o ritmo dos questionamentos.

Esta via oral é uma reminiscência defeituosa das teorias, uma reverberação alargada de um ciclo civilizacional que não se soube cumprir. Nós vivemos todos muito bem sem ter Partido, Regime, mas falhas as regras civilizacionais nada subsistirá, que também este aspecto para um tempo próximo será de somenos: preparam-se as hostes para a aniquilação progressiva de uma Humanidade chegada a seu términus, suplantada por todas as formas de inteligência a seguir que nos hão de fazer inúteis. Se ao menos levássemos connosco uma certa saudade do remoto transcender… Nem isso! Morreremos como inqualificáveis herdeiros de coisa nenhuma.

Entrados que somos então no Ano do Gato (Lebre e Coelho são herbívoros) e testada a infalibilidade dos sondadores dos céus, este pequeno carnívoro nos irá conduzir a um ciclo novo. Sim, ele é um carnívoro, e tenho uma pena muito grande que não se respeite por quimérica partidarização a sua natureza. Isso não nos deverá preocupar. É assim!

Nós, a espécie dominante, devemos e podemos fazer escolhas, mas amar a vida não é condicionar os seres aos nossos dogmas: «Tu podes não comer carne, mas não te esqueças de a dar ao teu Tigre e ao teu Gato, caso contrário serão eles que te devorarão». Um felino não existe para ser bom ou mau, isso são juízos de valor, eles existem na Terra para nos indicar também que a beleza é terrível tal como o anjo de Rilke. A ambivalência de que são portadores não nos encaminha para uma conquista sem que haja muitos danos, mas que a beleza por fim enfim, e para sempre, esse grande elo divino que nossas prazenteiras essências temem ver de frente. A Beleza é Terrível?! Sim, é terrível. Para nós, que vamos em busca, a Beleza será tudo aquilo em que nos devemos tornar sem nenhum padecimento.

Os heráldicos seres — Águia, Touro, Leão e Anjo — ornam a imagem do Mundo dos arquétipos a Ocidente onde uma dançarina orlada por forma oval olha os Tempos defendida por estes personagens seus guardiões… que o Mundo não é plano, nem as teorias personalistas e conspiratórias entram no seio destes mistérios, mas na realidade a Oriente, entramos no Ano do Gato que nos fará sinais vindos de ângulos impensáveis. Estou certa que será um imponente Ano! Deveria temê-lo orientalmente falando? Não. O amor, ao não ser real por constatações diversas, sobe ainda assim, ao existir, como um Gato à Árvore mais alta para que testemunhemos a diferença entre nomeá-lo e saber sê-lo. Bom Ano para todos.

12 Jan 2023

Vozes

A palavra, esse estado gasoso, é a mais refinada das percepções sensoriais, tanto assim é que a divina presença se manifesta por essa brisa, em que o Verbo só depois se faz carne no corpo, ideia onde a transfiguração acontece pelo sopro, é a Teofania, o captar da voz.

Por isso, estar atento a uma certa constância deste estado faz aparecer no campo onírico o processo visual que tendemos a ajustar como primeira essência, e é aqui que entra a tão aclamada face de Deus, esse antropomorfismo que carrega estranhas feições «Ouvistes o som das palavras, mas não vistes forma alguma. Era apenas uma voz» (Deuteronómio 4:12)

Sim! Essa corporeidade não é aclamada na orquestra dada pelo som das vozes, mas nem por isso ela se torna menos verídica neste abismo da Transcendência, de que a Revelação é ponte. Mas, e pronunciando nas fontes, e o mais fascinante dos abstractos sistemas entre plasticidade visual e som, é pela primeira que neste caso procuro dar testemunho.

Nós chegaremos assombrosamente ao momento em que emanemos somente a consciência e mais que isso, a existência por fluxo, deixando para trás a complexa estrutura do peso das coisas e, de tal forma acontecendo, que separados do corpo originário também ninguém o poderá ver mais de frente sem risco de morte total.

O nosso corpo humano nessa outra natureza fabricada será então o mesmo que no discurso com Moisés «Porquanto homem algum verá a minha face e viverá» como se, remotamente e já, esta experiência se tivera passado num ângulo não visto da nossa visualidade, que sendo procura, não obteve jamais certezas, mas o que fazemos na língua construindo as Vozes, dá-nos sobeja experiência dessa dimensão em nós disfarçada, com um rosto que o volume do tempo só apagará se nele não tiver inscrito toda a renúncia a este real.

Não vivemos claro está, em todas as dimensões enaltecidas do nosso corpo sensível, que mesmo algumas épocas ou ciclos históricos são mais propícios ao desenvolvimento particular de um deles, vendo como a ideia da Voz se manifestou em corpo acolhido no Catolicismo, e como desenvolveu as técnicas visuais dando o melhor da pintura mundial, e somente o poeta se manteve cativo da experiência das Vozes como não reconhecendo mais nada para além dessa primeira essência. Procura ainda a ressonância da reverberação do efeito dado por essa natureza a cujo enigma não deseja fugir. Depois, a música, que ela iguala uma fórmula acrobática de dimensão maior, que nada que se projecte pode ser tão divino que a melhor das sinfonias.

Mas também os orientais, na subtilíssima essência florestal, escusam a imagem humana em seu instinto plástico, não tanto por impossibilidade canónica, mas por elegância de alma. Este aspecto é de sobeja importância para o reflectir da noção do corpo como não veículo, dando-nos por isso a conhecer a Árvore – que a Árvore da Vida vem do Oriente.

Entre filosofia e religião demarcamos com hastes a definição dos factos tangíveis. Para nós somam-se os Profetas, para eles os Mestres. Ninguém viu coisa alguma que fosse maior que a Voz transfigurada dessa essência comum, e a Teofania abrange ainda os aspectos da natureza que convém entender como linguagem.

Patologicamente designamos então, a todos os que escutam ainda as ” Vozes” de esquizofrénicos, uma tendência que a Árvore do Conhecimento infligiu no robusto Norte – seu reino – e área de provação dos males, onde as nossas vozes contemplam estridentes todas as peripécias de um aglomerado animal que nos é servido nos pratos. Parecemos confortáveis nesta demanda e somos alvejados pelo preconceito comum da sustentabilidade, mas os nossos sonhos talvez nem reflictam já a voz da imagem de alguém que do outro lado, sempre e de modos vários, desejou falar.

Quando não somos atendidos é apanágio a desaparição. O mais perto da consciência que estivemos actualmente foi a de um Grilo, que na nossa soberba nomenclatura foi designado por «Grilo Falante» e também ele nada conseguiu face às tormentas que esperavam o herói.

Como nuvens, como pó, como essência primeira, a Voz se uniu aos anéis de Saturno.

Poderemos saber da alma das gentes pelo som que emanam? Poderemos, sim. E também das coisas que faltam para concluir o ciclo das abominações. Longe estão os sermões de insuportáveis manejos frente ao Grito conjunto que nos espera para uma grande libertação. A uma só Voz.

29 Dez 2022