Agosto

A gosto nos encontramos nestes dias quentes de um farto Agosto, ignição, que desde que descobrimos o fogo fomos deixando que ele se apoderasse de nós, e de tão hipnotizados nem demos conta que a Terra arde, conspira, e ele nos hipnotiza em nossa frágil condição. Vivemos numa constante combustão, recriamos círculos de fogo, e nas horas festivas utilizamos o artificial. Não há água de artifício, nem ar, nem terra, porém há fogo, e nessa expressão festiva estamos a louvar o elemento que mais nos encanta.

A partir daquele tempo remoto em que à volta das fogueiras construímos sociedades humanas, cozinhámos alimentos e afastámos as feras, que o fogo é todo nosso em tragédia, festejo e renovação. Ele seria ainda um baptismo para o banditismo atmosférico das mentes inquisitoriais que banharam com labaredas os relapsos, os não-alinhados, e tantos outros que renunciando às águas baptismais seriam purificados pelas grandes labaredas. Foram espectáculos públicos fortemente carregados de púrpura e “santificados” por altas pressões (mais tarde foram as câmaras de gás, bastante escondidas, disfarçadas, mas tendo por base, e sempre, a fornalha)

Agosto honra o Imperador Augusto, e os imperadores têm sempre esplendor, esse reflexo apolíneo, e hoje mesmo nasceu Napoleão ao meio-dia – sol no zénite – e sua mãe disse que fora tão rápido que caiu num tapete com motivos militares e de lá não sairia até pegar fogo a um continente inteiro.

Nasceu de uma rajada em forma de incêndio, que o mês ficou-lhe nas veias. Há que atestar que nestas dimensões olímpicas a generosidade também impera (por isso, imperador) só que a vida está presa à carroçaria das delongas que se decompõem docemente, embora haja seres que entrem também em combustão sentados nos seus cadeirões. Há muitos relatos de pessoas que arderam sem que um fósforo tivesse presente, que os afogados em mágoas são o que mais há.

Mas voltemos o olhar para os combustíveis, as energias fósseis, o arranque ígneo de uma civilização terrestre que se funda na travessia de tudo o que arde, e ei-la agora no centro do furacão sem conseguir controlar a paixão que a norteou. Como se o fogo tivesse ouvidos, visão e vida própria, aproxima-se agora de todos nós sem que o saibamos controlar, sem culpa, que ele braseia até à Cidade.

Estamos queimados – vamos à praia – mas os que atravessam desertos também se queimam, embora seja mais fácil as águas arderem que a vasta areia que só pega fogo por guerras sem fim, em todo o caso, curtidos pelas fortes ignições solares, parecemos que utilizamos o ardor dos raios para serviço lúdico. Mas é um erro. O que se passa não é já do domínio estético ou lúdico, é um martírio imposto a uma humanidade como um todo que periga a sua existência.

Pela primeira vez em nossas vidas repensamos os mitos, tentamos interpretar o que falhou pois nunca nos sentimos tão vulneráveis. O fogo avança mais rápido que a ciência, a cidadania, e a nossa mais chã compreensão. Nós sempre iremos insistir nesta tarefa da oliveira dando o seu fruto para nos alumiar a um tempo talvez onírico em que controlávamos o fogo e os elementos concordavam, em que o fogo era luz… mas hoje estamos barricados. Se não arder, aquece. Mas quanto mais aquece, mais arde. Se não vem em superfície vem dos vulcões que prometem estar activos em muitas frentes e fronteiras. Estamos numa caldeira para a qual as mais fundas lendas com suas neblinas já não podem ser interpretadas.

A gosto com o vosso gosto, nos diz Agosto. Que um velho adágio ainda nos adverte como mês do desgosto.

27 Ago 2024

Parsifal

– O Verão no hemisfério norte faz-nos sonhar com nevoeiros, brumas bretãs e povos escondidos no verde-escuro das montanhas em ritos tão longínquos quanto encantados, faz-nos ir até às sombras de um tempo mítico, à ilha das Maçãs, sonhar com reis Pescadores e visitar Morgana; a saga brumosa ajuda a quebrar a intempestiva luz estival com hora marcada para festejos grotescos. E vamos até lá com nossos vestidos de vento e cotas de malha. Parsifal ou o romance do Graal é o «magum opus» de Chrétien de Troyes, trovador e pioneiro dos romances de cavalaria, e toda a sua obra é uma extensa narrativa do ciclo arturiano, a chamada Matéria da Bretanha que este poeta francês do século XII elabora em directa influência com a canção de gesta mas dando-lhe mais elegância na sua busca amorosa que vai desaguar no amor cortês. Ele inicia a narrativa do Graal numa elaboração amorosa até aí muito pouco exercitada.

– Parsifal está unido a uma profecia redentora anunciada pelo mago Merlim como alguém de pouco eficiente, belo, valente, e desconhecedor de realidades em seu redor, coabitando entre várias aventuras sem saber de suas causas e origens, mas com uma chave preciosa, a pureza, sendo por isso designado por cavaleiro sem mácula. O seu casual encontro com o rei-Pescador vai encaminhá-lo para a confirmação da profecia: ele escuta o chamamento de dois homens que estavam numa barca, ajudando-os na travessia vai até ao castelo onde as feridas do rei não saravam, e passa por rituais onde nada pergunta: parte para a corte de Artur com o propósito de voltar ao castelo de Corbenic para indagar finalmente a estranha maravilha daquela vez – muitos procuraram- ele não o fez, e foi então o único que viu o Cálice do Graal. Só perguntando a origem da ferida o rei seria curado, e neste Ciclo Arturiano, ele era aquele que vira o Cálice, e na metáfora do cristianismo o vemos aparecer ainda como um Cristo e seus apóstolos pescadores, que no relatar da narrativa inacabada de Chrétien de Troyes lembrará num memorável trocadilho «pêcher/ pécheur».

– É claro que antes do mito cristão pelas terras enevoadas da Bretanha todas estas personagens já se tinham feito sentir, estamos em pleno reino celta onde as vozes da floresta nos indicam que os desertos, embora mais sublimes, são incapazes de esconder os injustiçados e não narram vegetais palavras que ninguém entende, tal como nunca se entenderá as setenta e duas designações do nome de Deus, porém, há sombras frescas para esconder os que fogem das perseguições do chumbo, que o lugar onde Merlin desenhou um círculo era apenas um outro pedaço de terra que também recebia sol. Se Morgana é emblemática, Madalena não o foi menos, uma e outra integram a consciência sempre um pouco turva do herói, Perceval era filho de Sir Lancelote, morto em combate com o seu irmão, e só quando conhece a realidade dos factos é capaz de ser encaminhado para escutar as feridas de todos que o porão na via de uma descoberta e da razão do porquê das coisas serem feitas. Parsifal era o menos ardiloso dos cavaleiros, talvez por isso tivesse a componente que seria indispensável para encontrar o que todos procuravam.

– Parsifal é um curandeiro, dito assim, parece mais um mago em busca de uma panaceia, mas todo o seu encanto reside numa certa inocência, em termos de similitude ele será o anti-herói dos nossos tempos, um desconhecido de nós mesmos, aquele alguém onde todos falhamos por excesso de zelo. Porém, ele ergue-se pelos tempos fora, convocam-no, inspira, e Wagner, que até pode ter sido uma má pessoa, mas (fundamental) um grande artista, vai buscá-lo para nos deslumbrar de beleza que afinal esta nossa humanidade transporta. É inspirado o drama musical num poema de Wolfram von Eschenbach. Foi a sua última obra, como Oscar Wilde no De Profundis. São os cenários redentores.

(E quando nas Olimpíadas aparece a barca de fogo sobre as águas com aquela voz cristalina em «Imagine» todos ainda julgáramos ver o rei Artur na sua última morada)

21 Ago 2024

Olímpicos

E entramos numa musculada semana de força e beleza, treino e competição, um momento muito afeito a marcas de perfeito domínio, mas já desfeito daquelas singularidades por onde os deuses expressam a sua confiança na humanidade. Estamos expectantes, atentos, e até com alguma preocupação, que o seio da Europa não é uma competência com que possamos contar, e o momento bastante difuso, instável, e França um palco mundial para o Ólympos (grego romanizado) mostrar grandiosidade.

Vamos então para a cidade Luz que o inferno também ilumina os que transgridem para a direção do fogo, e pensar no Monte das distantes colinas onde o ponto mais alto dava pelo nome de Miticas. Já vimos aquela animação exemplarmente bem-feita onde os arquétipos funcionam na medida grande num florescente panteão na esperança de que ” esse assento etéreo” nos inspire e acalente no tempo inqualificável do mundo.

«Os deuses tiram quanto dão. Ter é tardar.» Olímpia já não mora aqui, e todo o nosso jogo é um plasma a ser visto sem altar, que o mundo não altera nada à sua natureza de vórtice em busca de diversão em escalada, que ao passar para Delfos mais nenhum mistério acrescentou aos desígnios singulares dos heróis. Eles começaram em Olímpia no ano 776 a.C., tendo por designação Olimpíada – que um monte, é só um monte, e Olimpo uma morada. Agora Páris volta para o seu jogo de Tróia, onde Paris por estas horas já é uma cidade sitiada. Vamos assistir. É Verão e os corpos transluzem, tornam-se formidáveis, e mostram que os deuses habitam ainda dentro deles e a chama já está acesa para o momento. Outra vez a velhice a cobrar danos entre as Nações ocidentais, que um Papa veio há um ano a Portugal, velho e feliz, para uma jornada de juventude onde ninguém reparou na idade e com tal pugilismo que remetemos até para a face apolínea da era estival. Em nossa escala foi apoteótico, podendo ser designada como uma Olimpíada inesperada tão súbita quanto os milagres.

Todos gostaríamos muito de estar em Paris vestidos de branco com coroas de flores e ramos de oliveira assistindo a tão memorável evento, que Paris, por pior que esteja o mundo, é a Cidade. As vilas deram os vilões, as aldeias, os aldeões, mas agora de tão unidos que estamos, sabemos que não nos poderemos esconder no Olimpo que fora outrora forte cidadela, e que em Paris estarão como na primeira festa em Olímpia a mesma humanidade dando um espectáculo para que as tochas sejam distribuídas como fogo sagrado. – Parísios, esse povo gaulês que nunca deixou jamais de mostrar o que neles sempre ardeu de intempestivo e cruente… mas estamos mais com Píndaro de Tebas, o maior poeta grego, o das Odes Olímpicas: (…) nem trovaremos torneio mais nobre que Olímpia… ele estará presente em espírito em todas as Olimpíadas do mundo pois acreditava na sua glória eterna.

Aquilo de que um corpo é capaz, a alma não espelha, mas ele, animado, total e grandiloquente qual poema helénico, nos vai ainda maravilhar pelo espírito. É um distintivo da nossa inteligência, e veículo de dança que só mesmo os deuses concedem. A literatura amante dos jogos tinha certa predileção pela água, e todos pareceram fiéis ao mote de Píndaro.

“O que me encanta é a linha alada

das tuas espáduas, e a curva que descreves…

tua fina, ágil cintura…pássaro de água”

Cecília Meireles

31 Jul 2024

Estilhaços

« …uma das suas cabeças parecia ferida de morte; mas a ferida de morte tinha sido curada. E maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta»

Apocalipse, 13

Um livro do fantástico encerrará sempre muitas casualidades adicionais e outras que vamos acrescentando, porém, e ressalvadas as devidas comparações, ainda se admitia que a segunda quinzena de Julho traria coisas assim como as relacionadas com a temível estrela Algol fazendo conjunção com Marte e Úrano numa área reservada a partir do pescoço, inclusive. Mas se é certo que a sorte protege os audazes, já o azar nos bate à porta com os fragmentos dos impactos balísticos, que as balas, vá-se lá saber porquê, atingem mais os idólatras, que esses sim, em horas descomunais dão lições de grande abnegação e pura valentia.

Acontece sempre a mesma estupefacção dianta da «Alice no País das Maravilhas» e do monumental livro do Apocalipse, faltando-lhes ali qualquer coisa de sustentabilidade humana, graça, leveza, e algum secreto amor. Mas nem por isso se deixam de revisitar como se fossem tratados das nossas próprias incompetências interpretativas, e não há que iludir a pouca capacidade e desconhecimento que a humanidade tem perante universos que escapam ao dom da sua própria sobrevivência. São dois livros brutais.

Mas o que aqui nos traz é o arrojo do não baleado tendendo a um reino bem mais protegido que aquele de uma rainha de Espadas, um reino trevoso, que tem certamente os seus guardiões e precisa dele para um grande ataque final ao reino dos adormecidos. Aliás, todo aquele reino é já uma derrocada, o amigo, o inimigo, figuras patéticas: exemplos terminais de um estado civilizacional num espectáculo moribundo e senil que não lembra ao diabo.

No entanto, a mal fadada estrela Algol preside à mais temível estrela de Perseus com cabeça de Medusa, essa Górgone que ele decapita com espada certeira tornando-se um semideus benigno e de grande coragem com referência mais tarde na Revolução Francesa – cortando tudo aquilo que ao corpo não pertencia. E as datas são as mesmas. Para os chineses ela foi considerada muito simplesmente como a esposa do diabo, mas a China parece muito distante destes confrontos mediterrânicos que galgaram o Atlântico até ao outro lado. Seja como for, estávamos já a festejar a Revolução Moderna da nossa civilização, mas eis senão quando interrompemos a Marselhesa.

Hoje 15 de Julho, era Júlio César a nascer – e é claro que ninguém faz Revoluções no Inverno – e pensar que nada de profundamente significativo mudou nas trincheiras da nossa humanidade causa em todos nós reflexão e desespero. Ele nasce da primeira cesariana – daí, o nome César – que nesta Algol transcendente, capciosa e total, vislumbramos essa injustiça que os homens não podem esquecer. Há grandes terrores subterrâneos, supremacias tresloucadas, jovens efebos atirando contra velhos decrépitos e malsãos, e punhados de homens amantes esquartejando-se.

Que Trump fosse ferido é sem dúvida de lamentar, mas isso não nos deve interessar; afinal, ele está aí para o que der e vier em todo este imbróglio, e que o outro esteja neurologicamente afectado pouco interesse também transmite, que a velhice se tornou uma constante com a qual todo o Ocidente tem de lidar, mas onde outros bem mais velhos parecem ainda muito mais respeitáveis, isso é um facto.

«Quem semelhante à Besta? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras eloquentes, e deram-lhe também o poder de agir durante quarenta e dois meses»

16 Jul 2024

Biografia do orvalho

Manoel de Barros leva-nos à ponte das Fadas, esse local lindíssimo numa localidade francesa, e no entanto ele é um poeta brasileiro do século XX, um modernista, fazedor de neologismos, que disse apenas ser de uma vanguarda primitiva. É um poeta do mais excepcional que os locais oníricos relembram como padroeiro, um talvez imenso duende que transformou a competência de ser numa alegria imprópria aos atormentados que se alongam nos mistérios sem a abrangência da maravilha. E este é o título da sua demonstração de poeta transfigurado.

As fadas aparecem quais gotas de orvalho aos primeiros raios da manhã fazendo da condensação notas musicais de suavidade quase imperceptível, caiem em ramos e folhas bem ao ritmo das suas intérpretes bretãs e germânicas que galvanizaram os seus feitos que tanto influenciaram a geração poética dos anos 30, estando este estatuto ainda quase imerso num envolvente e maravilhoso pansexualismo. Manoel de Barros foi criador de gado, aquelas culturas, criadoras de mitos, e todos eles se levantavam provavelmente ao despontar da alba retendo o embrião feérico dessa hora: as bênçãos do orvalho são ainda, e mais que tudo, as rosas «rosée» que quer dizer exatamente, orvalho. E quando pelas noites quente de Verão o feminino se delícia com este denominado vinho, é ainda um brinde às fadas que quer transmitir.

O nosso poeta pertenceu na adolescência à União da Juventude Comunista, e num imenso desaire persecutório apenas foi salvo por ter escrito uma coisa chamada «Nossa Senhora da escuridão» que fez balançar algozes e chorar simpatizantes, e só terá sido salvo por esta intercepção vinda da noite.- Já eram as Fadas! Aliás, ele viveu tanto, que só as pétalas das rosas contaram os seus dias. Mas fadas andam por todo o lado! Até Italo Calvino fez uma obra a partir de recolhas folclorísticas italianas para uma abordagem do conto popular onde vemos a importância da sua nomeação: «Sobre os Contos de Fadas» e será impensável não se mergulhar nesta obra com carácter de urgência. Ou então, nunca a conhecer. Vivemos aqui, na Terra, ninguém sabe quem são estes seres, e sobretudo, as novas gerações nem leram contos de fadas.

« Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas»

Pessoa tê-lo-ia adorado neste poema, e como se de grandes feéricos aqui se tratasse, a borboleta da biografia do orvalho é a plena metamorfose do tempo que se transmuta: mas partamos de um paradigma inverso onde a coisa amada primeiro se possui, e só depois a temos de conquistar. A janela está sobranceira aos primeiros orvalhos matutinos, e toda a graça da ressurreição condensada vem por ela, mas o sono fundo faz sonhar com dias outros sem a fronteira de orvalhos que são lembranças de lágrimas não choradas, e caímos então num lodo de finitas competências que não contemplam alvoradas.

«Vertido em seis pratos dispostos em forma de triângulo de fogo, o orvalho é agora exposto ao fluído cósmico, para aumentar a sua força (grego, «rosis»). E ao fundo as cortinas protectoras desapareceram das janelas».

12 Jul 2024

Livro Negro

Há cada vez mais cortejos de fétidas tendências desembocando nas agruras da edição, que provocam calafrios, e um mais que hediondo arbitramento autoral à mistura com editoras que não passam de pólos terroristas do conceito literário e, com toda esta superabudância de vacuidade degenerativa, não andamos longe de uma vingança gratuita feita paulatinamente por todos aqueles que em vórtice convocam as Nações para a morte do poeta.

Só que ele ficará. Aliás, mais nada restará que a visão do Poeta, esse Felino que olha do cimo da Árvore da Vida, frondosa e alta, toda a existência a passar de um ângulo quase intangível – um gato também não dirige o seu olhar a partir de baixo, mesmo em doméstica convivência irá sempre para o cimo das estantes contemplar a disposição humana na arquitetura da sala.

Sabemos muito bem que não somos guindastes, e por mais que transformemos em altura as nossas arquiteturas, fazemo-lo no estrito conceito de casulo, que a vertigem augura sempre na espécie razões de sobra para grandes projeções que se equiparam a Ícaros na ânsia terráquea por se lançarem no sol(o) onde estas agoras gentes não passam de seres paisagísticos, bilhetes-postais para tráfico de venda das suas próprias raízes, onde neste assistir do contrabando auspicioso se espelham ainda com sorrisos triunfalistas que selam o fim de uma civilização por alienação sem paralelo no tempo dos “autores” indutores… Induzimos os seres a sentirem-se estranhos em seus corpos, a procurarem a sua alma, as suas reminiscências, a mudarem, em vez de conservar, corrigir, adaptar. Impulsionamos a desordem biológica, o fim do contributo distributivo da espécie, e há agendas que pagam fortunas para estas manifestações e que esquecem a justiça social de uma outra humanidade explorada nos afãs de um jogo obscuramente propagandístico.

Lemos este embuste como nos tirassem a luz das coisas começadas, dos mais belos instantes em que o espírito ganhou aquelas asas prestes a cruzar o Bojador da nossa ignorância, ultrapassando os nossos medos

E

No Livro

Dizemos:

Nós somos os povos do Livro. Inadiáveis, traumatizados, confusos, hierárquicos, suspensos, em transe. Ele se fez Negro pela opaca interpretação dos séculos, e nós, transgressivos sem causa, muito embora lembrando as fontes remotas da linguagem – esse sopro – língua escrita, fascinante código: chegámos ao atoleiro das frágeis reservas individuais ao serviço de pontos de vista, sentimentos, especulações e engrenagens. Estamos quase a dizer adeus ao primeiro parágrafo do Livro, e numa incongruente, demagógica e infernal tendência do culto da personalidade, ele é agora, e mais que nunca, inundado por pragas bem à porta de um outro patamar onde deve começar a sua acção: a linguagem telepática!

O Livro vai mudar. Esta nossa etapa tão escapatória, escatológica, improvável, vulnerável, não será inscrita na sua proeza, a dos registrados. Para trás, lindos seres, belas fontes, e grandes, todas as experiências…

Mas o Livro é apenas um. Nós achamos que ele é Negro como todos os buracos que engolem galáxias inteiras por este universo fora, mas também há homens que têm medo da penetração tal como qualquer estrela que não deseja dissipar-se, que o ser que penetra entrará para sempre na combustão do desaparecimento. E há ainda no Livro esse insidioso pecado de Onã.

28 Jun 2024

Uivo

Falamos de Allen Ginsberg, o poeta do limite que nunca será fácil abordar, e que um assomo no dia em que nasceu fez despertar sua memória. Pequenos instantes em que os sinais nos interpelam como a um convite. «Uivo para Carl Solomon». Mas quem é afinal este poeta transgressivo, de nacionalidade americana, que vai combater o capitalismo e as normas do seu próprio país de origem? Ele nasceu efectivamente a 3 de Junho de 1926 no seio de uma família judia de Nova Jersey com ligações íntimas ao Partido Comunista por parte de sua mãe que lhe iria transmitir também os transtornos psíquicos de que padecia levando-o mais tarde a internamentos exaustivos onde nunca perdeu a sua imensa intrepidez, inteligência e prodigalidade.

Digamos pois que estamos diante de Ginsberg um pouco retardados naqueles grandes ideais, sentimento radical, cultura profunda, e mal apetrechados para o elo magnífico na cadência das coisas que demostrou ser, nada disponíveis, portanto, para lhe prestar a saudação vanguardista que transmitiu. Com tais pessoas, poderemos apreender muitas coisas por vir- do provir – que nelas sempre nasceram embrionariamente como instinto visionário. Apela-nos o enunciado que não estaremos em presença de hedonismo, intimismo, compadecimentos e confessionalismos circunstanciais, aliás, nem convinha, a ver pela degradação escrita que todas essas características vêm produzindo em quem lê, pensa e sente. Carlos Williams numa introdução a este livro de poemas diz isto: «segurem-se bem às bainhas dos vossos vestidos, minhas senhoras, vamos atravessar o inferno».

Digamos que tal como Pavarotti depois de atuar comia dois quilos de carne, neste «Uivo» até o mais loquaz vegetariano da causa, se imiscuiria, que a fome produz este poema e a carne a mata para se robustecer de beleza tamanha… estranha… onde toda a falha será banida. A arte penetra uma dimensão que não estamos seguros nem de compreender, nem de analisar, que há coisas que não se explicam, apenas acontecem. Desejo aqui cingir-me única e estritamente ao poema, a este poema, que ele foi caleidoscópico na busca incessante de uma modernidade que se iniciou revolta contra todos os sistemas. Seria uma espécie de anarquista? – Também não. Ele foi uma criança comunista, admirador de Fidel de Castro, estudante do budismo, experimentalista voraz, errante, imigrante, anti – guerra do Vietname e de todas outras coisas mais, mas que guardara como íman a loucura a sua herança judaica plena de paradoxos. Ele e Bob Dylan qual “opus ensemble” tiveram em conjunto o seu Kadish.

Devemos por contenção abster-nos de queimar os dedos na transcrição de tais poemas, o Fogo é elemento que inflama até a forma dele pensarmos, mas nele existia ainda em alta combustão a arte de pensar, ou seja, o dom de escrever como se o pensamento mais voraz se não transcrito fosse adoecer o ritmo essencial que requer a palavra escrita, mas nós, todos tão compulsivo- dialécticos estranhamos o que a literatura afinal quer dizer perante desdobramentos assim. Faz lembrar Ângelo de Lima, mas este seria por conduta induzida bastante mais suave, menos escatológico, portanto, mas a beleza dos que passaram por infernos é de considerar como experiência de escrita.

Existe ainda a «Nota de Rodapé ao Uivo» e começa estrangulada: … [ Santo! Santo! Santo…. ] vão ver, cinjam-na, aconteçam-na: Santo o perdão! a misericórdia! a caridade! a fé! Santos! Nossos! corpos! sofrimento! magnanimidade! Santa a sobrenatural super brilhante inteligente amabilidade da alma!

Jamais me será possível decifrar a beleza dos signos linguísticos de poetas assim. De tanta coisa que fez, foi a parte escondida do lobisomem aquela que encantou. Estejamos então mais perto de construir harmonia ao invés de felicidade, transtorno, ao contrário de perturbação, e olhemos as últimas alcateias que por mais que uivem estão agora blindadas por torrentes de sons de indigentes. Faltará uma última nota a tudo isto: ele foi um jovem muito bonito. Tal qual como qualquer lobo.

12 Jun 2024

Opus Magnum

Vimos estupefactos aquele instante de forte voltagem cósmica produzindo na Terra claridade tamanha – dezanove de Maio de 2024 – sem boletim meteorológico capaz de o prever, onde coube ainda a cada um retirar suas ilações ou, tão-somente, mergulhar na beleza do contacto inesperado nessa maravilhosa e cálida madrugada de Primavera, que enquanto êxtase, não poderia ter sido mais intenso. A Península Ibérica fora contemplada por feéricas luzes azuis e verdes como se tivesse permissão para um vislumbre celeste, um rasgão de auroras, uma súbita maravilha, e mesmo assim, foram tímidas as pronúncias e confusos os depoimentos.

Em todo o caso foi de natureza onírica o que se passou em nossos céus tão falhos de acontecimentos excepcionais, e talvez que a alma do Universo nos obrigue agora a depor, de como é ser rasgado de luz tamanha nestes céus noturnos do hemisfério norte.

Os sinais são sinais, ou seja, sinalizam, e eu creio que há sinais dos céus. Até mesmo há sinais corporais quando estamos em caminhos benéficos ou menos bons, quanto mais em esferas superiores em termos de manifestação tamanha! A nossa vida, toda a vida, é um radar, disponibilizamos energia telepática para coordenarmos movimentos e sabemos de modo instintivo dimensionar a textura das coisas sem aludir a grandes factos, que também não saberei dizer onde caiu fonte de energia tal, crendo mesmo que não caiu em lado nenhum. A energia arrefece, quem cai são os corpos.

Acredito que o que se passou foi sem sombra de dúvida uma obra-prima «Opus Magnum» estamos abeirando-nos de uma Guerra que não somos capazes de interpretar, e tudo aquilo que nos acontece nem sabemos já descodificar – dizem uns; sempre caíram meteoros, mas este foi bastante diferente, e se dúvidas houver, delas não me apartarei, somente acrescento grande esplendor de instante feito.

Este nosso refrão está assente em tangíveis etapas que cientificamente corretas acusam falhas, só que a ciência prossegue, é futuro, transformação, e aos poetas a noção de transcendência dos efeitos manifestos. Buscamos nuns e noutros, certitude, esse amplo domínio de precisão, mas quando o inqualificável transborda, são os poetas que têm uma palavra a dizer: não acredito que tenha sido um meteoro, por outro lado, nem sequer deixo de acreditar, que: «o olho no qual vejo Deus é o mesmo olho no qual Deus me vê; o meu olho e o olho de Deus, são um único olho, uma única visão, um único reconhecimento e um único amor» que nesta alquimia os invisuais transbordam de ternura por tudo aquilo que a visão alcança.

Que o azul não nos falte nem a verde composição se deixe de manifestar. Maio pode ser verdejante, mas ondas tão fortes de azul esquecido, nos deu qualquer coisa capaz de achar o mar uma sombra, uma pradaria, um aterro, e os néons artificiais, grosseiras formas de luz. Estivemos assim diante de uma obra-prima, de algo melhorado que parece acontecer só uma vez no espaço de uma época, o factor surpresa não foi visto como grande sinal, mas sentido por muitos apenas como temor. Dito isto, e aqui nas funduras da Terra, o que importa afinal são outras coisas, todas as coisas, tangíveis, risíveis, modelarmente humanas, que ninguém parece receptivo ao acaso, nem ao seu teor vibrante que talvez pareça querer despertar-nos. As evanescentes vozes foram então de jovens para quem os fenómenos são expressos com um misto de sagrado e de deleite, e nas suas vozes entrecruzadas captámos aquilo que falta em grande escala, ser maravilhado, deixar-se maravilhar. Escutando-os: não era parecido com nada que até agora conhecêramos!

« Chef- d´oeuvre» ou a beleza do céu vindo a nós como sinal de coisas melhoradas. Que obra de arte é clarão tamanho em diferentes áreas, que muitos de seus obreiros até se esquecem de assiná-las.

28 Mai 2024

Cernuda

Um andaluz será para o mundo o grande civilizado, não o entendamos como a uma gratificação da espécie, mas apenas enquanto sentimento meridional que tudo reverte em luz, fruto de umas poderosas entranhas onde até a lua toma contornos de vasto clarão.

Esta energia nunca deixará de jorrar nos nossos sonhos pelo muito que a Terra nos deu, fecundou, e fez conciliar em terreno andaluz, seu jardim das Hespérides. Falar dos seus naturais também nos dá prazer, que neles perpassa um denominador comum difícil de ser ocultado pela graça de suas naturezas de um sul enfeitiçante. Luís Cernuda nascido em Sevilha é um dos muitos ilustres filhos da terra que nos deu a alma inteira na sua excepcional poesia. Cernuda é um imenso poeta que nos enche de reverência e encanto.

Nasceu logo no início do século vinte e foi na universidade de Sevilha que teve um professor, de seu nome Pedro Salinas, que o viria a inspirar, e definitivamente conduzi-lo a ser esse grande poeta em que se tornaria, indo então para Madrid onde nasceria o embrião da “Geração de 27” que integrou, e onde publicaria a sua primeira obra “Perfil Del Aire”.

Um grupo que marcaria um movimento moderno, revolucionário, que durante a Guerra Civil de Espanha foi a maior oposição ao fascismo, vanguarda de que nunca deixara de participar activamente nas trincheiras com a sua voz, intervenções e congressos. Cernuda era no entanto apaixonado pelos românticos, e deles certamente recebeu influências, sendo que, e ainda, vamos encontrar essa marca em sua poesia que transporta sempre o cunho dessa aura e o eleva, e como dizer – um utópico no meio da realidade do século vinte- mas os poetas são os poetas, e sem a marca de água das suas simpatias nenhum século tem nada para lhes oferecer.

Depois, parte para Toulouse, sul de França como leitor de espanhol na universidade desta cidade, mas ficaria aí por pouco tempo, fora proclamada a República, e tinha de estar presente no seu país para ajudar com seu tributo à causa que desejava livre, menos bravia e culturalmente mais humana. Não duraria muito a sua jornada em terras nacionais, a guerra instalara-se, e segue para Inglaterra inaugurando o seu exílio, e foi nele que aparecem “As Nuvens” no ano de 1940.

Estas Nuvens têm contacto com este nosso nevoeiro, as nossas, envolvem-nos de forma mais impenetrável, estão rentes ao chão e levam à cegueira o branco enquanto guia, as de Cernuda, porém, eram altas- alto- cúmulos- e falam-nos daquele que não regressa mais ao seu país e o vê por entre os céus desses flocos altos onde já não lhe é permitido tocar. Ninguém pode explicar melhor a dor que um livro de poemas assim “ya la distancia entre los dos abierta/ se lleva el sufrimento, como nube”

E agora errante, o nosso poeta parte para os Estados Unidos da América onde irá lecionar, mudando-se pouco depois para o México onde outras obras de relevo apareceriam ” Desolación de la quimera” uma continuação de “Nuvens” e todo um trabalho ensaístico em jornais e revistas mexicanas. Dos seus amigos da “Geração de 27” só Alberti chegaria a velho, muito velho, e creio que ainda manteriam contacto, aliás, ambos nasceram no mesmo ano Ano de 1902.

Afinal foi em Sevilha que o movimento começara, celebrando o mais alto instante da participação cívica nacional pela iniciativa de grandes poetas, nessa Andaluzia onde a justiça se impõe, a beleza se faz lei, e todas as formas de arte acontecem, e foi a partir de Gôngora que esta saga intrépida se juntara, também ele um andaluz, na conquista de um marco radicalmente novo e civilizacional. A sua proximidade ao surrealismo fê-lo um artesão continuado de certa intimidade, mas longe ainda do seu amigo Garcia Lorca que se fez matar em jovem idade e onde as abordagens às suas homossexualidades nem sequer coincidiram.

Enquanto amante do romantismo escreve “Pensamento poético na lírica inglesa” talvez em honra de Keats, poucos anos antes de morrer em 1963. É um poeta que a Ibéria deve tentar refletir na sua assombrosa diáspora onde nos foi dando razões sempre para partir. Mas não voltar a essa Andaluzia natal, tê-lo-á interpretado como sendo expulso do paraíso, que ela viu nascer em seu ventre os seres mais impressionantes desta nossa Península.

aos vossos escritores de hoje não os leio já.

daí o paradoxo: sem terra e sem povo, sou

um escritor muito estranho; sujeito fico ainda mais que outros

ao vento do esquecimento que mata quando sopra.

In «Aos seus compatriota», tradução e selecção de José Bento

16 Mai 2024

A noite funda do tempo

Sem preces o mundo adormece. Estamos no ciclo mais baixo das alvoradas e dessas madrugadas que trouxeram as boas-novas e que passaram a lendas encantadas face a este escurecer de todas as auroras. Como se chegou tão rápido a esta realidade é questão de maior interesse. Nunca seríamos capazes de abranger num só diálogo coisa tamanha, mas por algum lado devemos começar. E comecemos por este instante todo em ebulição guerreira onde faltam soldados e onde a devassa da opinião atingiu níveis de guerrilha e a mordaça do sentido da vida uma caricatura que fere uma certa noção de humano, e veremos que estamos aqui, silenciados no meio do ruído em modo de espera por uma coisa qualquer que virá calamitosa. Não vem como o chamado ladrão na noite – não, não- todos nós estamos formatados para uma disrupção de nível avançado que nos tirará da jaula do nosso [melhor dos mundos] e nem por isso a nossa atenção se volve pertinente, precisa e urgente. Vamos ficando até a corda partir.

A Guerra é a Guerra. Ponto. Temos toda uma certa componente guerreira inserida nos genes e dela não parecemos sair, nem distantes nos foram ficando as tormentas do sangue assassino da espécie que a matança elegeu como seu mais alta representante, e nesta exorbitância toda feita de razões, pretextos e códigos armamentistas, vamos flutuando como escribas de um duelo eterno. Só que não. Está tudo à beira de um qualquer fim. Basta abrir o tabuleiro de xadrez e passar ali dois dias seguidos para compreender a perfeição do organismo assassino que integrará os vates, valetes, reis e cavalos da parte potestativa do desejo de ação, que nós veremos como a matéria negra engole toda a formatação do jogo, onde, e sempre, as táticas de defesa, perfídia, crueldade, acabam tão menorizadas como o próprio Xeque- Mate. Dois dias a jogar serão dois anos…ou, dois anos jogando a razão cruente de uma extinção certeira.

«O acaso não traz nada de novo, encontra cada um como está» por isso não será de forma abrupta todo este desvincular para um trevoso quaternário onde a memória faltará ao ciclo dos vindouros. Vamos ser desprogramados – grande ” crash”…apagão, apagar… – começar de novo sem a faculdade da memória para bem do ciclo futuro, que desta consciência agreste e difícil não restará nos espelhos aquilo que fora a nossa imagem, creiamos então que todo este fulgor destrutivo será somente o ardil varonil do suposto herói, e que no mais distante dos mundos será finda a insígnia que o segura. Ver para crer? Não se acredita que tenhamos de ver mais do embuste que fora chamado ” evolução” pois que involuímos já com hora marcada para as calendas onde só o Inferno nos nomeia.

Gaza derrubou de vez a esperança na inteligência humana, a Europa fartou-se de pensar e está exangue, o muito que resta do planeta deixará a marca da sua futura vinda global, e mesmo assim, atravessada por transformações abissais que não comportam nenhuma sustentação, que outrora falávamos no fim dos Impérios, mas o Fim dos Fins, nunca foi falado, e Impérios são calendas que o nosso imaginário já nem comporta. Se estamos tristes? Não. Não estamos coisa nenhuma. Estamos a festejar a Batalha de Aljubarrota, o 25 de Abril e o 14 de Julho como se isto tudo fosse uma una e grande Festa. Ao menor sinal de empolgamento dizemos logo em coro: estamos contra a escalada dos conflitos! Há um Napoleão que quer ir para a Rússia armado em Valquíria, e lá vamos fazendo os nossos negócios, mudando os sexos (cansados e irreprodutíveis) escalando ainda mais a montanha da irrelevância. Pode haver um senão, como aquele antídoto da Bruxa da Branca de Neve: e se nos galgarem por cima e o bruxedo se desfizer? Pois bem, encontrarão apenas povos desolados a jogar futebol e a palitar os dentes artificiais. As dentadas nas carnes frescas desses caçadores- recolectores desfizeram-se em estrelas «Michelin» de aldrabices gastronómicas tais, que mais vale morrermos todos. Ai ai ai… que não! Afinal foi este o melhor dos mundos…! Até ao dia em que se tornaria também o mais anacrónico.

E nunca esquecer que o melhor que a Terra tem, os poetas o fundam. Eles desapareceram no meio deste enxame de banditismo escrevente, mas sem eles, também perdemos de vez a única solução.

17 Abr 2024

Triunvirato

Acabamos de sair de uma situação deveras tocante no que diz respeito ao bipolarismo triunfal das conquistas sociais. Estávamos numa grande plataforma cujos equilibrios tornaram tediosas as Nações, frouxas as batalhas e ausente a memória. Vivia-se, no entanto, muito bem em terreno neutro, enriquecendo classes da maneira mais empate e empobrecendo outras até ao extermínio, mas a alvorada era assim, depois do lendário sistema único que deslocou como jogo de xadrez a peça preguiçosa para o sistema binário.

Ele há muito que vinha dando sinais de grave entorpecimento em nossos regimes democráticos, com uma tónica distraidamente tolerante para com as franjas “não-alinhadas” e a vida corria como um grande esgoto a céu aberto pelo dinheiro transbordante entre estes binários que em tempo de transsexualidade implementada tinham até dificuldade (num impasse situacionista) de escalar a complexa armadilha em que já estavam metidos. Nestas coisas recordamos outras e convidamos a frágil memória dos povos a ponderar.

Como Roma passou do período republicano para o Império Romano, só os deuses sabem e nós analisamos os factos: o Primeiro Triunvirato, tal como o nome indica, foi formado por três líderes, e marcado por perseguições políticas de tal ordem que mataram Júlio César – era ele, Pompeu, e Licínio Crasso. O Senado romano estava enraivecido e outras coisas se passaram divididas pelos três que levaram a um período ditatorial. Mesmo que os deuses amem os números ímpares na velha expressão “numero deus impare gaudit” o Triunvirato só chegou a segundo numa associação política com poderes excepcionais onde dois deles nutriam ferozes antipatias, outro fora exilado, e uma guerra fatal se deu entre as duas partes beligerantes. Um morreu, restava então ao vitorioso governar.

Estamos muito distantes de tudo isto, é um facto, mas não creio que as proporções do litígio se extingam articuladas apenas por uma masmorra de sombras pacificadoras. Para além do mais, povos altamente romanizados recriam no subsolo dos seus instintos grandes componentes miméticas, e é de esperar turbulência nos ciclos de governação que se aproximam pois que estamos num instante em que a memória tanto vai para a frente como vai para trás, e onde a fúria esquecida vem reclamar o seu lugar entre uma espécie que se imolou para evoluir, onde vai ainda ser preciso não deixar nada para trás em forma de quisto, paranoia ou complexidade.

O nosso sul tão benevolente virou a direcção, mas também muitos nazis que fugiram de Berlim Ocidental foram os mais importantes representantes de uma Berlim da R.D.A. Sabemos que não há concessos para quem vive no limite, que pode ser da paciência, do esquecimento, ou da superstição enfática de que além Tejo pode ser muito longe. E a Europa onde estamos metidos e muito justamente a jusante pertencemos, é agora um atoleiro em rota de colisão com movimentos relembrados desde as suas jovens nacionalidades, e que tais povos não serenam senão por grandes combates.

Vamos esperar um Messianismo austero? Não. As coisas podem-nos parecer as mesmas mas elas no fundo já evoluíram para patamares bem mais progressistas, mas o incómodo dos que se degradam pode ser uma arma letal, que nem reis, nem czares, estiveram preparados para deles se defenderem. Vamos para um Triunvirato e, a menos que as partes dissonantes se entendam na perspectiva do bem comum, uma guerra civil pode explodir nas barbas nos nossos insones outrora representantes. Nós acordamos sempre da pior maneira, aliás, o sono e a sua problemática é uma das epidemias do momento em que vivemos. É confrangedor, mas devemos tentar perceber a natureza humana no seio de um país também ele amordaçado por coisas tão inermes e sombrias que quase fazem desfalecer os cinquenta anos do 25 de Abril.

Estou plenamente à vontade para escrever este artigo, votei na C.D.U, não porque seja comunista ou o seu contrário, mas pela razão que tal monumento da identidade nacional dos últimos cem anos não deve acabar assim neste baile de espectros. Por outro lado, foram as pessoas mais bonitas que conheci. Não sei quem sejam hoje, talvez nem interesse, mas os de ontem foram raízes que a nossa essência não pode esquecer e quase rasantes a esse princípio prodigioso de um certo cristianismo original. Estamos sitiados! Mas a vida é assim e prosseguirá tão tecnologicamente monumental, quanto nós desfeitos pela última bruma que o Futuro já não nos concede. Entretanto, e subitamente, tornámo-nos este Terceiro Triunvirato sem grandeza nem memória.

15 Mar 2024

Samaritana

Diz uma lenda encantada que o bom Jesus morreu de amores, o que por si só é belo como as lendas, e muito mais maravilhoso se torna junto a uma fonte. E que fonte, que divisória é esta onde a sede jorrava entre povos tão desérticos e sedentos? A de Jacob. E foi ali, território dos seus antepassados, que dividiam o disputado elemento, que Jesus morto de sede pede o seu quinhão a uma bela mulher que sua urgência fez imperativa. O que se segue é deleite puro, Jesus oferece qualquer coisa como água da vida àquela mulher de cinco maridos que com relutância se esquivava à oferenda de um homem só vagueando pelo deserto onde suas profundas sedes se contemplaram. Seria a sede divinal que expandiu a sua legião para outras vertentes tão bonitas quanto derramadas por águas frescas de um sacerdócio que contemplou amores junto às fontes sem importar a origem de cada um?! Seria, certamente.

Esta fonte antiga está algures no local das trevas do conflito que vemos como uma queda no poço profundo da nossa Humanidade, e pensar em idílios como este é pura especulação neste nosso tempo onde existem “sacristias” para VIPES higienizadas em atmosferas nazis para recurso ao prazer, onde estes acasos estão certamente fora de uma qualquer lembrança. Mas talvez uma saudade indecifrável nos habite para nosso transtorno na funda natureza desse remoto amor de águas claras. Os lúbricos oásis «Spas» onde a água escorregue para adensar o des astre do vazio, e o sémen encolhe para não haver contacto, apenas para “apimentar” cadeias de desgraçados que não sabem onde meter os órgãos gentis nessas águas de Tântalo, são traições à sede da fonte, e já nada consubstanciam de dádiva ou acaso que façam dos encontros acasos destinados.

Esta plebeia de Sical que, não sendo da tribo de David, também pretendia água desta fonte, é afinal a mulher cuja saciedade também não fora encontrada, e diante de um homem que mais que implorando, procurava eliminar todas as sedes, ainda argumentara sua condição de estrangeira para impedir qualquer coisa que apesar de tudo simplesmente a encantou. – Que estes actuais charcos onde encontros se dão entre piscinas e invólucros são muito mais estrangeiros face ao elemento arquetípico, que este humano está secando como os velhos e refrescantes chafarizes das cidades.

A este estratagema todo líquido, fontanário, casual, chamamos enamoramento, mas nunca nessa visão vertiginosa no cimo dos mastros, porque bem sabemos que os Oceanos não dão de beber. E regressamos à fonte. É o enamoramento dado pela representação de quando estamos sós e vemos assombrados reflectir o ser que nos complementa – ele dá-nos água – e nós prometemos-lhe qualquer coisa de eterno que pode bem ser o registo de um momento onde as vontades se conjugam, mas se alguém se abeirar desse contemplar, verá um fogo que circunscreve sede imensa. Não havia nada ali para arder, apenas areia, mas por momentos este encontro tem a particularidade do Fogo, encontrando-se munido de seiva que se transfigura, que em região e circunstâncias assim, cada elemento fala.

Creio que esta é a verdadeira fonte da Ressureição; «tenho sede» que dar de beber é suprema maravilha, que Jacob ficou lá no fundo do poço dos seus sonhos na alternância dos que sobem e descem uma escada, que não tem riacho por perto, apenas uma pedra como receptáculo onde pernoitou, que um registo mineral traz ao sonhador outros encontros. O nome desta mulher era ainda como que misteriosamente designado por Fotina, e em nenhum instante deste transbordo de rota o local se avizinha como poço. As mulheres iam às fontes, e havia homens que por elas passavam, quando a sede era colectiva, também os homens munidos de bastões prodigiosos tocavam nas pedras e delas jorrava líquido, mas ela nunca foi tão vivificante como a da Fonte de Jacoh, o Poço de Sicar.

6 Mar 2024

BELA ADORMECIDA

Roubam-nos a paz, e que paz viria, se ela não for igual aquela paz que noutros havia?

É uma situação que nos inquieta o estilhaçar da serenidade por essa manobra insidiosa da sociedade gradualmente esfomeada em salvo-conduto para o ronco demagogo, instalado, empolgado, estéril e opressivo, um abrasão de indelicadeza que ecoa nos confins da Terra. Estamos demasiado vibráteis com restos de mortandade e configurações grotescas para retorno à “cápsula” onde se instala toda a substância que é a favor da vida, define um centro, irriga o ser, e se vê melhor que entre multidões.

O sono, esse deleitoso ritmo do universo, pareceu contrariar os mais frenéticos aposentos da hiperactividade, e a luta para manter tão natural condição foi varrida a ansiolíticos e corrigida com a vigília da regularidade mórbida. Coisas simples e boas elevadas à condição de dilema, corrobora ainda mais o desgaste, que para tudo se tem de dar para manter a trepidação em alta frequência, que o mito da felicidade se dá por enervamento constante, recorrendo cada vez mais a plenitudes sem sentido.

Nós já padecemos de tudo de todas as maneiras, já esperámos a salvação por outrem, quando não ele, por um grupo, e mais eloquente e mordaz, por esferas sociais. Dos receituários experimentámos alguns, convivemos com mestres da alegria, fomo-nos abaixo em alguns ataques de riso, e das ideologias havia um cimento tão duro que as dispensámos. Dito assim, ficaram-nos então os ritmos gregários, as finalidades, o tempo certo para adormecer as lágrimas, ficar duro de compreensão, e ainda legitimar a herança de um progresso que consideramos invencível. Neste desfile de objectores de consciência vêm agora dizer-nos que não temos Defesa. – Nem Defesa nem Agravo! Assim, só estamos em sintonia com o Mercado. Somos Mercantis.

É evidente a médio e longo prazo que vamos todos ser outra qualquer coisa e, para bem dos conquistadores, sabemos bastante de mercadoria, e não vale a pena andar a esconder os valores em estantes de Código Penal nem na lúbrica jornada de invasores ao fisco, que a mais-valia vai dar directamente ao invasor que se esforçou para não morrermos de martírios governativos e de péssimas conclusões. Aí podem serenar os mais nervosos da sociedade que não dorme para recarregar forças, e se mesmo assim, se estiverem possuídos de eloquente trepidação, terão de abrandar para não colocar rédeas ao sinistro que os apanhou como presas amedrontadas.

Com este acabrunhamento inesperado os grandes compulsivos terão a oportunidade de pôr os sonos em dia e se lhes faltar combustível podem sempre começar a andar a pé e fazer grandes paragens dormindo a ver as estrelas. As dissidências com o fervor que lhes assiste, terão sonhos visionários, e cobertos de lã dos últimos pastores, reversar-se-ão pela tomada de uma identidade desfeita. Aqueles que conseguem já conquistar Marte devem achar de menor monta uma conquista da Europa em modalidades várias (que ela se mantém bastante contrária a qualquer sossego) mas, e dada a explosão de centros vibratórios cósmicos onde até o sol pode fazer a sua tempestade, eu, aqui, neste Fevereiro, vejo o espectro de Gengis Khan a atravessar já a Beira Litoral. Isto tudo acontece porquê? Por que estamos na Grande Roda- tudo vai, tudo vem, assim é o caminho da imortalidade- o que fazemos deixa rasto, o que não fizemos atormenta-nos, só que tudo vai e volta mas de uma outra maneira. Por ora a gincana das competências está alinhada com a situação, e é vê-las como se não houvesse amanhã. Mas amanhã virá, e não será para muitos os «amanhãs que cantam» que em estado de coma induzido ainda permaneceremos.

Talvez não seja tarde nem cedo, nestas propostas ancestrais que passaram pelo grupo, forjando a célula (família) fomos aqueles que serviram a condição. Uns mais, outros menos, outros nada: mas quem sabe se essa negação lhes era devida? Tal qual aqueles que a serviram. Por ora não sabemos. Desejaríamos que tudo finda-se num indulto universal e capacidade de ver, mas o belo sono ainda não chegou, que as tormentas têm veios fundos como a própria memória que construímos unida por fileiras em rota de colisão com a paz trazida por estrelas muito mais distantes. Porém, a paz, pode ser dispensada. Aqui, só desejamos um tranquilo sono, e que quem nos beije finde o anterior ciclo, e com ele sejamos despertados.

18 Fev 2024

Dragão

Havia um adágio oriental que dizia: «se é Rato, nunca deixe fugir um Dragão» queria então tal máxima referir-se à grande complementaridade existente entre o roedor e a fera alada de grande ignição. Ora, deixar fugir um dragão, é aspecto de grande monta, sobretudo por um roedor pequenino, todo enervado, e creiam-me, em posse mesmo assim de ilimitados recursos. Mas, vamos a ele! Dragão abre o Ano Lunar Chinês no dia 4 de Fevereiro deste 2024, geralmente é no primeiro dia da Lua-Nova, que o calendário é lunar, nesse arranque marcado por um Bestiário formidável onde as festividades abundam. Buda não convoca os animais para nada, dá-lhes tarefas, impõe-lhes registos, coordena tempos e ainda características, o que é ligeiramente diferente de um Francisco que a todos atende com a mesma benevolência.

A China tremeu há quatro anos no início do Ano do Rato, que sendo como já disse de carácter lunar, se deu por isso um pouco mais cedo, 25 de em Janeiro de 2020, e todos arredaram pé da festa que estava a começar concomitante ao alarme público, daí o trauma ” Ratatouille” que justamente lhes advém, pois não sendo povo de espectro visionário tremia já pela má qualificação das lembranças de anteriores outros anos. Podemos dizer que se perdeu um dos festejos mais bonitos do mundo tendo por epicentro do mal o seu próprio território. Ninguém pensava muito bem na pandemia, mas de como deixar de festejar uma data quase sagrada. Bom, o ano passou, mais tarde outros vieram, como o do Gato que agora se despede (que Gato com Rato pode dar barafunda, mas nada que não se possa solucionar). E agora? Agora, como dizemos em bom (mau) português, é que vão ser elas! Estamos no Ano do Dragão.

Este nosso Dragão é de polaridade Yang, ou seja, imponente, varonil, dogmático, e porque não, na sua extrema composição, titânico. O facto de ser Dragão de Madeira (vários elementos distributivos na mandala) dá-lhe um duplo sentido de ignição, o que pode antever uma labareda que desnorteará ainda mais o mundo, se não tanto, pelo menos tórrido será. E estaremos atentos, que muita coisa vai arder de modo metafórico ou literal, pois que somos chegados ao instante inflamatório mais impactante na rede global. Os pequenos prazeres podem definitivamente estar em causa, pois que, ou serão grandes deleites, ou derrotas totais. Há este afã de totalidade que não nos deixará prosseguir na moleza sedentária, o que pode indicar que estaremos cilindrados em nossos espaços interiores, e nos exteriores, pulverizados. Das coisas boas, é que será certamente um Ano magnânimo. Mas, para onde corremos nesta fogueira acelerativa que troca deuses por escravos, e esquece a benigna capacidade de acender fogueiras?!

Em termos geopolíticos a China enceta a sua inusitada marcha expansionista, a Europa no seu derradeiro emblema, a mudança que é por demais evidente num acelerativo e confuso instante diante de todos a acontecer, que o fogo frio da Rússia ditará ainda um código onde nos precipitaremos como reféns, para que no fim das ilusões nos reste sobreviver da melhor maneira, que o nosso Dragão do ano que inicia trará a borrasca aos enfatuados desperdícios fátuos diante daqueles cuja ilusão só produziu “néons” e clarões artificiais. Estamos agora no sul europeu e as temperaturas são demasiado altas, o que faz prever um Estio quentíssimo por um Dragão cuspindo fogo em nossos flancos, que a energia mantida para aquecimento se fez divisiva na busca de tórridos tormentos e já não aguentaremos o que virá seguido do ardil mucoso deste ser mitológico.

A Oriente há uma encantada festa a ser vivida, e nós seguiremos a flama já um pouco entorpecidos, mas ainda não vencidos. O que virá por aí será de grande monta e de complexas lutas, Putin estará em pleno no seu Ano, e é só levá-lo a respirar no outeiro dos emergentes. Poder-se-ia dizer: cheira a esturro! Mas já estava assim. Por exemplo, em Lisboa cheira a azeitonas. – É o que todos dizem, mas eu, odorífica extremosa, nunca inalei o cheiro de uma azeitona. Se o ridículo matasse nestas latitudes prestes a sucumbirem, há muito que estaríamos todos mortos.

Também vou engalanar-me para o festivo instante, que o Carnaval me derruba, e a torpeza da sua modalidade me é ainda estranha. – Bem-vindo, Dragão. Afinal é o Ano anunciado para todos aqueles que não desejam morrer de tédio, que esta agitação não passa de um aglomerado de espectros em luta contra uma liquidadora mudança que a todos liberte. Piromania à parte, que se dê já por extinta tal doença humana, que vem aí a grande Labareda.

8 Fev 2024

Pedra

«Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja»

Um tempo mineral inaugura uma marcha doce como a espuma do mar. Jesus dá o sinal para uma jornada que já não será escrita a Fogo como as «Tábuas da Lei» e convoca o seu discípulo para uma grave e completa aventura-Pedro era um discípulo muito querido- não obstante no momento amargo disse que não conhecia aquele homem, mas tudo se passou na maior perfeição já que os desígnios são de condição supra-humana. Estamos no deserto, e a edificação de qualquer coisa escapa ao vegetal, daí o minério ser tão importante. Disse ainda que as portas do Abismo nada poderiam contra ela, e outras informações lhe terá passado que desconhecemos. Esta Pedra, tenaz, impossível de desvendar, este minério que vem da estrutura tribal das gentes, é a origem do próprio nascimento de Deus.

A noção patriarcal é por demais evidente enquanto corroboração ao duro minério, estamos quase perto de Saturno, o deus impiedoso que devora os filhos, e nem Abraão escapa diante do pedregulho onde em lágrimas esteve pronto a degolar seu Isaac. Esta saga que envolve a vida mineral é de uma rudeza sem limites, é um tumulto agreste entre as esferas masculinas na dureza e no poder que se mantiveram intactas até aos nossos dias. E o que tem isto a ver com a nossa espuma? Quase nada. Em Portugal por exemplo, a ocupação de antenas informativas de futebol, geringonças políticas, atavismos de morgados, explanações de incompetentes, estabelecem domínio que desejaríamos menos ilustrativos.

Mas a Pedra está no sangue patrístico destas estruturas! A Pedra que brota água a um Povo sedento será ainda assim a imagem ejaculatória de uma qualquer dádiva que forneça vida, e no prólogo a acontecer, se não fosse pedra, nada de milagroso em suspensão acontecia. A tenacidade imperiosa como o masculino teceu este formato, impediu que outras formas de vida tivessem espaço conversável no mundo, e por isso se volveu tão duro. Estranhas enfermidades se acumularam para edificação da estátua humanizada do Homem vazio. Ele pode estar entre a espécie complementar procurando a sua alma e nunca a encontrar. O roteiro da Pedra tende para a petrificação, e qualquer movimento é sempre uma ânsia de a implementar.

Nós, tecido mais vegetal, observámos o desastre, mas a Flor é frágil em seu domínio: ela “nasce, morre, renasce…” tem pétalas de orvalho, e pertence a outra Encíclica. Mortas as estruturas, elas reclamam a sua neutralidade, uma espécie de carbono, mortos os arquétipos, eles fulminam os corpos com desorientação apetecível, e a Pedra quase arde no meio da tempestade. Estamos curvados perante o Maciço Central da desintegração, e isso não deverá ser o problema maior, mas sim, o que fazer com o resto desta humanidade que nos advém. A Pedra já se foi, não há Tábuas, Templos conquistáveis, e passámos há muito o esteiro das edificações. Quando Deus quiser, que se faça nuvem, que nós transbordamos de mistério.

24 Jan 2024

Jerusalém

«A cidade santa de Jerusalém» traduz nesta nobilíssima expressão um oxímero e o que a reveste não foi jamais conseguido, os abismos não serão menos santos que as suas colinas- que eles não olham para penhascos- e se não é a santidade que a governa, nem por isso todos se sentem próximos dela. «Todos dizem que chegaram a Jerusalém (judeus, cristãos, muçulmanos, socialistas, anarquistas e reformadores do mundo) acudiram a Jerusalém, não tanto para a construírem ou serem construídos por ela, mas para serem crucificados ou para crucificarem outros. Há uma desordem mental muito arreigada, uma reconhecida doença mental chamada «síndrome de Jerusalém»: uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma igreja ou a uma sinagoga.» Assim a descreveu Amos Oz e, sem dúvida, que deve haver na sua origem uma qualquer influência alucinatória que ao longo dos tempos contribuiu para severas lutas, acontecimentos únicos, transcendência e queda, desolação e esplendor. Vimos como pela Porta dos Leões o movimento sionista conseguiu finalmente entrar e fazer que os judeus ausentes do Monte do Templo por mil e oitocentos anos caminhassem em júbilo destronando camadas de culturas instaladas junto ao Muro Ocidental.

David já tinha conquistado a cidade aos jebuseus e Maomé feito a sua viagem nocturna, Jesus entrado para celebrar a Páscoa, intricando a cidade numa seminal fundação religiosa de que nunca saiu. Jerusalém é santa, Jerusalém é noiva. Todos a disputam, por ela a humanidade enlouquece. Não será uma torrente de leite e mel e muitas vezes transforma-se mesmo num jorrar de sangue e fel, e nem mesmo assim perde a brancura da sua santidade e o encanto do seu legado. Agora são os arménios na Cidade Velha a chorar as ofensivas, estão ali há oitocentos anos, não crescem nem diminuem, fazendo parte intrínseca da paisagem, e claro, quem por lá andar pode sempre testar a possibilidade de estar entrando num outro umbral.

Nem Adriano tão cheio de seu Império consegue nomear por muito tempo o nome sombrio de Élia Capitolina, que o Templo destruído, não consentiu, nem o povo da Judeia alguma vez ousou pronunciar, em consequência, foram proibidos por séculos de lá entrar. Depois de persas e romanos, só no Califado, já sob o domínio árabe, os judeus tiveram autorização para regressar. Mas viriam os cruzados, que matariam uns e outros até ao extermínio. [Jerusalém, a Bela das Nações, foi palco da avaria rotineira da sede de conquista e da uma eloquência passional]

No turbilhão lançado podemos estar confrontados com um tipo de atracção fatal que, e voltando a Oz, enlouquece povos, nativos, e quiçá os de passagem, um umbigo nevrálgico para onde converge a saga do mundo para transcender do infortúnio de uma demasiada, e ainda, humana condição. Que somos atraídos para os centros do milagre, e somos dirigidos como taumaturgos por visões celestiais cuja presença ao não se dar, pode reverter em pasmo e dor. Por pouco tempo seria o anfitrião Saladino bem sucedido, viriam mamelucos agora correr com os cristãos, logo após ter ficado saqueada por tártaros. E a Bela não descansa! Mas vai adormecer por alguns séculos na regência do domínio otomano, não que tivesse estado parada, mas menos abrupta dentro das suas muralhas que se quebravam com trombetas. Esta Jerusalém quase vira Feiticeira no amplo emaranhado das transfigurações de uns e de outros, mas, como sabemos, ela será sempre a cidade de Deus.

Nos tempos bíblicos parece que tinha o odor do Paraíso, que as suas cercanias cheiravam a pinheiros, cedros, árvores de fruto, rosas de Sharon, e crê-se que corria pelos seus desfiladeiros leite e mel. Os santos homens comiam gafanhotos, alimentavam-se de néctar, oravam, enchiam os pés de areia e por ali seguiam o trilho de um percurso de retorno ao céu. Ao lado do Mar Morto ainda podiam andar sobre as águas vencendo assim a lei da gravidade… e ainda em seus rios há pássaros com asas. Todos nós já fizemos esta viagem nocturna como Maomé, e lá nos encontrámos com a sarça-ardente, os profetas, e o cheiro a rosas… todos caminhamos, somos expulsos, retornamos e choramos na margem de um qualquer Sião. E todos achamos que esse sonho foi único, profético e só nosso. Mas não! Esta é a saga humana.

E talvez Borges responda a este último parágrafo «Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Israel aconteceu quando era apenas uma antiga nostalgia. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos».

4 Jan 2024

Cânticos

A legenda de um português falado enquanto língua mundial parece-nos agora não estar vedada nas longínquas Nações. Por cá, falamo-lo por coisas tangíveis, mas por vezes basta escutar os que estão longe para saber que distante está a pátria dos grandes iniciados que a pensaram e continuam. Estamos por aqui envoltos em nevoeiros, e tão disformes, que desejamos os Cânticos, mas eles por vezes se nos negam. Estamos combatendo em densa treva.- Não há casas, não há sítios, não há lares, não há vigília. Concomitantemente a estes Cânticos produzidos, fui encontrar ainda a Oriente esta semana, um interlúdio em nossas funções alagadas, dando-me conta que os que nunca partiram não sabem da volta que nos foi destinada. «Via do Meio» e para o Alto! Assim devemos seguir. É Setembro, é Outubro, e vivenciamos o instante em que os acontecimentos se dão. Neste tempo vivemo-los mais ao centro, mais por dentro, a igualdade está presente e é tranquila toda esta Estação.

O Museu de Macau em Lisboa é um reduto silencioso, mas extremamente vivo – e foram precisos séculos para se compreender que a linguagem é uma longa viagem nos confins da nossa humaníssima condição. Traduzimos. Agora talvez com carácter de urgência, que a China é a placa tectónica que desliza, e não podemos alienar-nos pensando que se trata apenas de economia, que quando ela se dá em amplo escalão, já os povos tinham construído suas bases de pensamento.

Que o português será sempre falado, e se formos para os antigos espaços africanos, brasileiros, nos iremos ainda deparar com o melhor da linguagem, e perguntarmo-nos do porquê da nossa desdita. Seria ainda mor vantagem ao português continental, falar e escrever, língua projectável. Mas isso já não se passa. A insensibilidade para o Verbo atingiu as raias de auto-exclusão, e as pessoas falam de coisas, de dogmas, martírios, mas a linguagem nunca deverá ser apenas uma componente moral ou sensitiva, unitária, factual, que a língua cresce e se congrega a todos os futuros adjectivos que a presidem. A linguagem que produz efeitos moralistas é uma antecâmara para a morte colectiva, que a língua existe para compor o Poema, e ser de todos nós língua entendível. Ou seja, nós temos funções, economia, amplexos de personalidade, mas tudo isto não reverbera no transbordo de uma língua bem mais vasta que as nossas abastanças ou necessidades.

O aparelho fonador é o amplexo para aquilo que formaria em nós capacidade falante – esse sopro – mas na palavra escrita, é onde foi construída a nossa origem, afinal “palavras leva-as o vento” e não deixa ser um transtorno reconhecer da falta de espaço ambiental para a produção gráfica de termos novos. Porquê? O grafismo inicial destes alfabetos que afinal não passam de construções visuais, esbarraram diante das imposições visualizantes das imagens de cada um, e de todos, e a conceptualidade da ideia de Verbo, esmoreceu. Um poeta, por exemplo, não necessita ser compreendido, por outro lado, o culto da personalidade ainda lhe é estranho, e devemos interrogar-nos acerca disto mesmo nos nossos pensamentos, que sentimentos, afinal, todos nós temos. Mas valerá o sentir confessional, personalizado e fechado, abranger apenas este domínio? Claro que não! O primeiro impulso poético foi épico, e só séculos mais tarde nos vamos encontrar amarfanhadamente e cheios de nós em cintilações egóticas.

Não devemos expandir demasiado mesmo que o desejo seja louco – trilhar sempre a via do meio – e seguir adiante no vasto entendimento, que as conclusões são anátemas de muita injustiça, e nada se vislumbra até a Nuvem passar. Quero dizer que a tendência didáctica, escolástica, permanece activa nos ideais da Nação, mas agora contempladas como um mercado mais, que tem na sombra os dilectos, e que um dia quando acordarmos nos trarão ainda um português indisfarçável. Uma língua de Mar!

Se valeu a pena? Valeu, sim! Os nossos sonhos nunca recapitulam, e ficamos escrevendo Cânticos até ser outra vez no mundo, uma qualquer outra noite escura. Mas sabei que estamos atentos! Um certo horror percorre as nossas veias por ver a maré cheia da retrogradação, a bestialidade e o dogma. Estamos metidos num problema que os nossos pesadelos (outrora já tão leves) não equacionaram. Porém, e quando for necessário, o nosso colete de vento será o de um soldado.

Entre os ingovernáveis trilhos do confessionalismo, do intimismo e da notória falta de pudor de cada um, existe ainda o Poema, que se não for esse além, cosmonáutico, astral, inserido e completado nos céus, será apenas um refrão de sangue e vísceras. Naturalmente, e passe a saúde, esse conceito de Bem tão em voga, doenças ainda existem que serão antídotos para tais blasfémias. Ter saúde não significa ser-se são- que ela se nega ainda aos ressentidos- tal como à pobreza se nega o pão. Nós, vamos continuar, e ser o lado melhorado destas saudáveis e sacrificadas gentes, que precisam dos seus poetas, por que sem eles toda a estrada é estreita e vamos ainda necessitar das vozes acesas, dos locais fermentados pelas presenças, e se nada disto for tolerável, questionável, valorizado e condutor de diferença, o que andámos a fazer perder-se-á na voragem efémera dos dias.

A literatura de género, e o género imposto ao código literária, tende agora para um estilismo sem causa, por uma razão simples: sabe-se escrever ou não se sabe. O que cada um extrai da sua natureza sexualizante não deve perturbar a palavra em nenhum dos sentidos da marcha, nem tão pouco conferir arrojos capciosos que insultem as partes. Dito assim, a Poesia é definidora de um poder de síntese que a torna sem dúvida o mais aperfeiçoado registo da linguagem, e se o imponderável é o reino onde todos nos confrontamos, requer-se ainda transgressão e sublimação, em frente de uma Humanidade onde cada palavra pode ter ainda um poder salvífico. Andámos demasiado tempo a brincar com coisas sérias! Fizemos muitos «SNIS» inventados à boa maneira de entretenimento, mas o autor do seu Poema não é um diletante, nem um prazeroso amante de “poesia” isso são cargas letais para caminhos livres e rigorosos, como deve ser o de um poeta.

Um Cântico à República saída na madrugada de 4 de Outubro da rua de Campo de Ourique, sede do antigo Centro Escolar Democrático. Aqui, findaram os saraus! A Poesia iria continuar em marcha como todos os vivos que se abastecem de seu próprio visionarismo.

17 Nov 2023

Clímax

[ponto ou grau máximo, estado final da evolução de uma formação vegetal ou de uma outra comunidade biológica em determinado meio. Momento de maior intensidade na acção que vai acelerar o desfecho. Gradação crescente. Origem etimológica do latim; Escala.]

Por tudo isto, e passe a grande esfera da sazonalidade dos órgãos reprodutores, nós estamos metidos num enorme Clímax! Atingimos o ponto «G» o não retorno naquilo que diz respeito às alterações climáticas, onde, e por insistentes exercícios do descaso, fomos firmando com imensa soberba e alienação o estertor dos nossos dias, mas haverá sempre um momento em que olhamos a globalidade e não nos deixamos circundar por “fogos” brandos e olhamos o momento da Terra: e há de facto um alarme gigantesco que percorre a nossa humanidade enquanto todo. Tentar auscultar a grande transformação pode ser tarefa inútil diante de muitos que da vida têm escassos anos para viver com a verdade quimérica que foi ter vivido ainda no melhor dos mundos. O que se passa, ultrapassa, trespassa, qualquer “fogo-fátuo” da cada vez mais inútil acção política, capacidade humana, e poderemos afirmar que estamos perto de mais uma etapa de aniquilação.

Mas, como fazermos? É claro que todas as forças se conjugaram em termos de evolução para que nos fosse permitido firmar a nossa soberania crescente em meio hostil, e sem dúvida que fomos essa espécie vencedora, combativa e intrépida que evoluiu com características quase milagrosas. Tivemos a Terra, tivemos os recursos e transformámo-los, tivemos tudo o que procurávamos por tentativas constantes da vontade, e isso é maravilhoso. Fomos verdadeiros Filhos de Deus, e só agora compreendemos que para que haja de nós memória há que inventar rápido o Filho do Homem. O nosso tempo esgota-se e a noção de humano fenece. Não tenhamos dúvida que este estertor nos há-de mais além levar à desaparição por baixo do sol e não creio que seja num futuro longínquo. Estamos no transbordo de um cataclismo.

O que nos resta fazer é ainda uma grande jornada de incentivo e ajuste pois sabemos que as guerras nos deram grandes planos de como vislumbrar o futuro, e uns com os outros, cingimos as técnicas da reconstrução e adiantámo-nos face ao adversário (e vice-versa) como se a nossa humanidade fosse um inteligente jogo de xadrez, mas o que estamos a viver é outra coisa que ainda não chegou aos códigos desfeitos dos jogadores. Nós estamos sem excepção, todos ameaçados. A Terra nunca nos contou o seu segredo, e nós guardamos poucos em nossas lides existenciais, e o mais trágico é que não sabemos nada dessa origem, e assim, no grande vácuo que nos separa, fomos construindo realidades paralelas que nada servirão neste arrebatamento.

«Valeu a pena a travessia»? Valeu sim! José Mário Branco. Quero dizer que sim, que estou com ele, que foi assim (poderíamos, no entanto, neste caso ter impedido muita coisa) pois nada existe que apague agora desta retina que escreve estas simples linhas, a velocidade a que se foge por uma estrada ao lado de outra onde parece já não haver ter retorno. E fugimos para onde? Muitas dúvidas nos assolam neste tempo transfigurado. É preciso naves e neves, e saber como sair daqui, deixando a quem, em substituição de nós, consiga testemunhar um gigantesco erro universal, que nos mundos vindouros pode ser tido por grande maravilha. A Terra não nos segredou o seu segredo, mas todos a questionámos. Todos, todos, todos.

8 Set 2023

Agosto

Sim, é Agosto! E não poderemos dizer que se façam Primaveras na longa jornada que percorremos onde se multiplicam Verões, e assim distantes das duas outras, Agosto cerra fileiras de lassidão para os que veraneiam, bem como para todos aqueles que mesmo laborando parecem estar unidos a regimes de entretenimento. Agosto de tão apolíneo, é arrebatador!

Outrora se escutava «Agosto, mês do desgosto» (que no fundo são todos) mas era nele que incidia o extraordinário da expressão e a magnitude de seus efeitos, uma constante que nunca foi ultrapassada, nem mesmo pela desatenção aos aspectos cíclicos do tempo em nossas rotinas; que Agosto estava povoado de sortilégios e inesperadas manifestações e se propunha mencioná-lo com muito ardor e algum secreto temor, que foi sim, uma constante.

Ele fora nomeado em honra de Augusto, que mais para trás fora “Sextil”, o sexto mês do calendário de Rómulo, romano, portanto. O calendário lunar começava exatamente em Março no dia do equinócio da Primavera, e assim se iria manter até ao calendário juliano, que entrara em vigor no ano 45 a.C. Entramos no ciclo solar. Augusto, o grande impulsionador do novo calendário, emblema do mês que outrora tinha trinta dias, foi homenageado pelo senado que não quis que ficasse diminuído no que correspondia ao de Júlio César – Julho – e foi assim acrescentado mais um dia. Mas nem com o calendário gregoriano muito mais tardio, Setembro deixou de ser sete, Outubro oito… até Dezembro, dez. Agosto o sexto, passou para oitavo, e a soma é um soneto.

A gosto ou com desgosto, é Agosto que agora impera! Está assim correndo nos nossos dias como uma bela água nascente, e mesmo sendo quente, é o calor exacto, e nasce nele como desígnio que não deixa de provocar rios de expansão: é muito bom ter poucas vestes, andar deleitoso e livre, ser aquecido e simples, que o frio logo virá para nos dizer da morte e seu rigor. Fitam-nos coisas crescentes, o Sol que nasce cedo, o dia que tarda em ir, e as noites que parecem sempre de festa. O Zodíaco será uma zoologia unida aos ciclos agrícolas originais, e por isso iniciado com a pastorícia, onde à cabeça vêm Carneiros, Touros, mas aqui estamos em território indómito, na conjugação do Leão e sua beleza de ser, na representação solar de um mês com juba e dentes fortes.

Não é como o Centauro um animal mitológico, ele é o prodígio real, o emblema da ferocidade e da beleza, um radicalismo de que não damos conta, por que ele também pode estar cheia de solidão. Assim como a soberania. Nós temos ainda fresca a lembrança do mundial eclipse de 1999 em Agosto, como se fosse o primeiro na viagem cósmica do mundo, e de facto, foi. Assim sucedeu na era da globalização, e todos olhámos o fenómeno com uns óculos de papel, e a partir daí multiplicaram-se, mas foi no nosso imaginário progressista e terráqueo que tal fenómeno passou de facto a existir. Talvez tivéssemos a nível da percepção atávica achado estranho como o sol de Agosto, por momentos, se eclipsava assim…ou a nossa vida lunar, quem sabe, não ter já noção da sua grandeza… O Invictus sumira do nosso radar, as aves voaram baixo, a frescura reinou, e era de novo hora de recolher.

Não nos esqueceremos o rasgar de véu em nossa inocência naquele Agosto em Hiroxima, nem dos olhos abertos para o abismo, da magnitude do fenómeno da desolação, da força nova, incontida, nunca vista…Que nós podemos até esquecer que é Natal, mas nunca que é Agosto. Nós ferimos a Terra, mas ela, grande e soberana, grava e regista tudo, como um cérebro gigantesco e um útero renovável. A Terra e Agosto não são muito compatíveis, daí escolhermos ser diferentes nele, e tecer a nossa bem-aventurança neste mês tão peculiar na vida humana. Não somos gigantes, agigantamo-nos, só isso, mas nunca provamos nada de verdadeiramente grandioso.

Lorca foi assassinado a 19 de Agosto e tudo na natureza tomou um novo rumo. Há coisas que seres fazem a outros, que nunca mais outros se podem livrar. Ele tinha de sair, estava cansado de estar preso em casa e era um homem que confiava. Também eu teria confiado! Mas para os que confiam, haverá sempre os que desconfiam. Numa noite de Estio, um poeta é o ser menos perigoso do mundo, sendo ele o perigo mais estranho em todas as Estações. O Estio adensa as características que nos representam, e Agosto ainda nos instiga a uma coragem ostensiva que pode ser fatal. Os grandes poetas falam pouco ou quase nada deste mês, e ao que eles renunciam, devemos nós, ao contrário do que aqui foi dito, guardar silêncio.

17 Ago 2023

Um papa na cidade

Deviam ser umas nove horas da manhã quando um grande som nos céus despertou os notívagos das noites de Verão. Era o Papa! Estremunhados fomos logo ver a curva do projéctil que se insinuava nos céus de Lisboa, onde desceria um senhor gigantesco, risonho e velho, vindo das nuvens de um céu de Agosto. Estamos no começo de uma fábula.

Ele chegara. Vinha sentado, branco, sublime e encantador, no entanto pareceu-me cansado, como se a nuvem estivesse ainda em seu redor cobrindo-o de madrugada. Era Francisco! O Papa mais a sul do mundo conhecido, e na mais extremada periferia de um continente. Tinha havido uma Lua-Cheia com grandes recobros e vastas sombras, num tempo de Estio onde tudo sabia vagamente a múltiplos manjares de rosas. Havia jovens às centenas em grupos pacificadores que distribuíam sorrisos e gestos de bem-aventuranças, a que chamamos, peregrinos, e lembro de pensar que num instante toda a energia mudara, e mudaram as causas, as coisas e as gentes.

A cidade, outrora grisalha, volveu-se rubra, loura, morena, negra… e toda a velhice teve fim, como se uma corrente mágica tivesse eclipsado as esferas etárias mais pródigas em bem-estar e manutenção nas suas longas vidas, para um nada existente. Que o que se via, subia a escala de outras necessidades que não estavam à mostra em seu bem-estar todo poderoso por modalidades que se adentram: e gostei! Adorei esta vibração como se tivesse percorrendo um sonho sem recurso a qualquer análise. Há momentos em que a razão deve ficar de lado para não transtornar a delícia dos instantes, saber isso será mais um exercício de observação do que uma qualquer capacidade de averiguação de danos.

Danos, são aquelas coisas que sempre existirão. Somente o brilho do olhar nos pode devolver um estado de novidade em que nós mesmos seremos a excelência do novo, e se na cidade onde o Verão que nos dá a imagem branca de um Papa não se fizer sentir subitamente, branca e leve, ela ter-se-á já afundado na descrença da luminosidade. Nós vamos com todo o corpo ver o que se passa, e ele informa-nos das coisas a acontecer. Não vamos com uma ideia para ver, apenas estamos observando a partir do ponto único da realidade que nos é mostrada. Seguimos adiante. Neste pequeno terreiro onde o rio é amplo e a cidade alta, tudo fica subitamente tão branco como o luar da noite passada, e o mote serve de energia articulada para o fim dos conflitos mais bisonhos, acreditando que devemos a todos uma vontade de suplantar um atávico estado de consciência onde regra geral não fomos felizes.

O que rola de veículo automóvel deve ser suspenso em hora assim, e não se vê grande transtorno por causa desses navegadores solitários que seguem caminho entre os esteiros batidos do que julgam ser cordões de invioláveis liberdades. Podem parar, perscrutar, andar a pé, sentir o tempo a encaminhar sonoros outros passos. Nós sabemos que nada fica por tempo indefinido, e também o ciclo do carbono deve por momentos esmorecer para que se tenha uma perspectiva mais dinâmica de tudo aquilo que nos espera, e é aqui que a cidade se abre para qualquer coisa de radicalmente novo.

Um Papa na cidade pode ser como um guindaste que levantamos para ver o horizonte em todas as suas dimensões e se a coberto de um véu púrpura de cardialíssimas presenças não tivermos o discernimento do emblema do signatário representante, a confusão pode instalar-se como um sono blasfemo nos ardis de uma República que é frágil para julgar o que nunca soube vencer. Ela esmoreceu no tráfico, esqueceu a sua marcha, conserva ainda o seu desejo que nunca fez entender como símbolo de uma trajectória diferente. A nossa República deve ser tão esclarecida como os subtis dons que a corrompem, mas nunca avessa perante aquilo com que não sabe lutar.

Por ora o Papa veio dizer o que não pode deixar de dizer sob pena de não ser Papa, e mesmo que as leis o atravessem na zona de impacto, ele prossegue na voz única que não sabemos calar. Nem nós, nem os outros. Ninguém. É o quinto elemento no país das cinco quinas. O que ele vem fazer, só Deus sabe. O que nós demonstramos fazer há muito que até o Diabo esqueceu.

9 Ago 2023

O último sortilégio

Problemas de género à parte, indagações sobre sexualidade, e será bom reflectir acerca da complexa natureza de alguns, agora que se escrevem tratados sobre a hipotética homossexualidade ou não de Pessoa, à margem, creio, de tudo aquilo que deve ser preservado quando estamos diante de personalidades assim. Mais para trás, vamos encontrar os mesmos desvarios face à natureza celibatária do mesmo, das suas cartas de amor, seu idílio platónico, tentando explicar o que não é passível de explanação sem um grande estremecimento de ridículo, vacuidade e, por que não?, uma derrapante ingenuidade. Se fôssemos todos tão previsíveis enquanto títeres de uma espécie, seríamos ainda bem mais entediantes. Não se pede que se compreenda, mas deseja-se que se respeite com sujeitado encantamento estas naturezas tão diferentes de cada um de nós, nos cálculos, análises, formas de viver, pois que acrescentam dimensões novas ao estreito circuito das motivações alheias. Isto, um breve intróito ao que aqui nos traz.

Nenhuma mulher por aí conseguiria hoje na vertente “literatura feminina” acoplada a discursos de correntes várias, escrever este muito fêmeo poema feito por um homem. Ou se esqueceram, ou já são outra coisa, o que faz que tudo o mais seja revisto, dado que a natureza de uma tal realidade parece ter-se apagado, e quando não houver mais explicação para nada, vamos todos ler os poetas, em vez de andar a fazer e ler tratados de vacuidade frouxa, ou a deslizar para correntes de escritas derrapantes.

«[…] Mando-lhe uma composição minha.

Chamo a atenção… verificar como essa pessoa é mulher (e, digamos, bruxa) que os adjectivos não saiam no masculino onde a pessoa falante se refere a si mesma.

Estamos diante do seu Sortilégio!

Digamos que nem por um instante nos ocorre que este mesmo homem no início de um recuado século vinte, ousasse mesmo em seus sonhos mais improváveis mudar de sexo; afinal, não é preciso. Tinha os dois de tal maneira bem interligados que até lhe interessou o aspecto dramático da feiticeira. Confesso que jamais vi tensão maior na compreensão do feminino. Talvez até nem seja por acaso que recorra ao mais audaz da mulher, o encantamento, e que diga em forma de advertência: «este poema é uma interpretação dramática da magia da transgressão». O mais interessante é que não se prende aos aspectos juvenis da feminilidade (facilitismo martirizante dos homens) e recorra a uma maturidade que põe fim aos dons, no começo de uma ininteligível outra marcha. Memorável! A partir disto, e como foi referido acima, pouco ou nada interessa o folhetim de suas sexualidades, que deve ser visto como arrivismo áspero e grosseiro, aquém desta compreensão.

Vidas há, que são também um grande exercício de elegância “lançadas à sorte” e onde tudo se corrompe, entristece e se confunde, deveríamos para o bem da saúde mental deixá-las intactas. Nem todos sabemos afinal o poder de um sortilégio, que outros, parecendo maiores, não entram no futuro que nos bate à porta. Mas este tipo de seres estarão lá à nossa espera.

«Outrora meu condão fadava as sarças…………..

Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anónima presença que se beija,

Carne de meu abstracto amor cativo,

Seja a morte de mim em que me revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»

Se perscrutarmos as coisas vamos até aos altares de um país que duvidando de um certo “sortilegium” perdeu a capacidade de vasto entendimento. Não soube… não quis… não pôde… Não é subliminar, e muito menos sublime, e de seus ilustres acabou por fazer esteiras de conveniências. Reverberações que vêm de «Abdicação» para nos transformar na grande unidade, que é ser total no corpo e consciência repartidas.

25 Jul 2023

Tagore

Contemplamos-lhe o perfil e vemos de imediato que se trata de um aristocrata, de frente parece de uma imponência serena tal que não somos capazes de nos desviar daqueles olhos fundos, lindíssimos, impressionantes. Contemplamo-lo. E este brâmane ensina-nos que a beleza é uma conquista da alma, o seu melhor requisito, e que nestas castas ela se aperfeiçoo. Um poeta deve ter esta qualidade, ou então, o que o instrui pode correr muito mal. Não só pode, como geralmente assim acontece, e concluímos que muitos vingam soberbas ofensas através de uma lei que não lhes pertence, e assim na vingança absurda, atiram-se à corrente da escrita como camundongos. Rabindranath, “Rabi” nascido em Calcutá, o último de treze filhos (uma mesa de irmãos para nós de triste lembrança) e uma mãe que dava pelo nome de Sarada Devi, e de patriarcas fundadores da fé Adi Darma. Para além de ter sido o décimo terceiro filho, ganhará em mil novecentos e treze o Prémio Nobel de Literatura sendo o primeiro escritor asiático a ser agraciado.

Tagore não se extingue em um qualquer percurso lacrimoso a um tempo, e de herança tamanha, todos os caminhos da justiça social, da igualdade, de temas, de obras, de poderes, ele se fez presente. Foi ao que chamamos agora um homem do mundo, mas sobretudo, um homem para o mundo. E escreveu. Oh, se escreveu! Em primeiro lugar ele era o poeta, e por isso, o que se lhe seguia enquanto autoridade natural pronta a servir a sua própria humanidade, foi ouvida, valorizada. Mas não nos esqueçamos do prolífico compositor, sendo mesmo conhecidas como rabindrasangit ( Canção de Tagore) muitas das suas composições musicais, e o mais espantoso é que ainda hoje o Hino Nacional do Sri Lanka é daqui que sai, e também os Hinos Nacionais da Índia e Bangladesh estão consagrados pela escrita dos seus poemas, e se tudo isto não bastasse, aos sessenta anos, ei-lo pintor! Ele pintou a escrita, escreveu a música, mas a sua superioridade pareceu falhar no trabalho da imagem. Só os bárbaros gostam de imagens, efetivamente, para nós, basta não ser cego e poder olhá-lo: não necessitamos que se transforme em pintor. Aos sessenta anos todos achamos que pintamos. Mantas ( mas seria melhor, mantras) mas ele, estilisticamente mais talhado, vai trabalhar algumas noções visuais para embelezar os seus próprios manuscritos. Uma espécie de poesia visual a algumas décadas de distância

Percorreu o mundo, conheceu os do seu tempo, e estancou perante um beduíno do deserto do Iraque, para designá-lo a voz da humanidade essencial. Interessado pela ortodoxia – todas as ortodoxias – os movimentos nacionalistas indianos onde irá em 1920 liderar o de libertação: a guerra contra o imperialismo inglês tinha dentes fortes, mas não se crê que a sua relação com Gandhi tivesse sido muito compatível. Parece que Tagore era uma personalidade sistémica, com enorme capacidade associativa, de princípios e ideias, e pouco dado a interpretações através de castigos abstratos. Os homens cruzam-se, e nem sempre a cruz de cada um é perceptível para ambas as partes. Uma muito bela aparição foi sem dúvida « A Asa e a Luz» um livro que compreende duas obras, Pássaros Perdidos e Pirilampos, e cujo título é feito dos elementos que mais se destacam nos dois ( pássaros e pirilampos) pela primeira vez editadas entre nós. Este livro é todo a Oriente, a sua viagem à China e ao Japão.

Dizia: « Na China e no Japão pediam-me muitas vezes para, sobre leques e panos de seda, escrever pensamentos: assim nasceram pirilampos.».

Acrescentando então que o rigor e a escassez de palavra o norteiam, coberto por um guarda sol muito haiku.

Os nossos aforismos são mais ásperos… mas se quisermos, poderemos equipará-los.

Que esta Asa nos transporte e esta Luz nos ilumine.

19 Jul 2023

O Livro de Horas

«Tempo! Suspende o teu voo». Lamartine implorava assim num magnífico poema: «parai, horas propícias!», mas o tempo não se detém e circula até desfazer todas as Horas. Propícia se devastadoras. Outrora apelidava-se assim por uma questão litúrgica, sendo um missal da regência quotidiana composto no século VIII, ao tempo de Carlos Magno, por um dos seus abades que desenvolveu tanto os ritos consagrados, quanto a pintura, por suas ricas iluminuras. Um livro destes era mais que um grafismo alfabético, destinava-se a ser contemplado, mas também é certo que só uma escassa minoria teria acesso a tão precioso objecto dado que todos eram compostos manualmente.O conjunto dos leitores também seria restrito, daí que, as imagens trabalhadas se apresentassem para grupos mais alargados tendo em conta sempre a maior sensibilidade plástica dos povos. Escrever era tarefa prodigiosamente morosa, e a palavra escrita um hermetismo tamanho de signos visuais, que ainda hoje proferimos a expressão «uma imagem vale mais que mil palavras». Só que não!Podemos ter muitas imagens sem jamais imaginar o poder do sopro do verbo.

Os grandes poetas retomam os temas, por isso nada se perde e, neste circunscrito e audacioso tema, pouco ou nada se transforma, que Rilke assume para si esta grande marcha criativa que vai encontrar intacta pela forma como nos devolve, uma das suas mais honrosas obras, «O Livro de Horas», em busca da alma russa, tão em voga no século dezanove enquanto entidade espiritual. A devoção das gentes aos seus ícones e a forma como dialogavam com eles deve ter sido um sintoma forte de um veio longínquo que nele tomou posse, e vemo-lo encantado debruçando-se quase no sentido contrário como que a legendar imagens, que o paradoxo é toda uma temática russa, idem, em sua grande dimensão: pois foi aí que a propriedade privada se cancela e ganha corpo uma nova sociedade, que as mais pequenas são feitas de muros e basta levantá-los para que todos tenham direito a ela. Mas o paradoxo maior é que ele mesmo sendo tão frágil, derrubou nas estranhas estradas de Eros candidatos de maior monta quando a bela Salomé por ele também se apaixona, tão russa quanto os seus apaixonantes ícones onde encontrou leituras até então inimagináveis.

Primeiro Livro, Segundo Livro, Terceiro Livro, e temos o seu Livro de Horas. Primeiro: «O Livro da Vida Monástica». Segundo: «O Livro da Peregrinação». Terceiro: «O Livro da Pobreza e da Morte». Quando isto acontece num só Rilke, a única coisa que me vem ainda à lembrança é Outubro Les Très Riches Heures du duc de Berry», mas também aqui me sinto longe. Outubro é demasiado burguês, tendencial, ornamental e evasivo para nos transmitir tão completo memorando e, ao adentrarmo-nos, vemos enfim diálogos raros em forma de poema, que é a única forma de transmitir o que subsiste de toda a aparência, e encontramo-nos de novo em presença de um livro de orações. Que nós também não devemos politizar o mundo desta maneira áspera que nos inunda se desejarmos uma rectificação mais abrangente, que todo este artifício com que somos contemplados nos desvia de todas estas outras coisas essenciais.

 

A França arde, mas o mundo também aquece, exactamente pelas mesmas razões em que tudo entra em rápida ebulição, que o ensinar esqueceu uma silhueta que não se sombreia entre as gentes, mas que teria dado forma a realidades mais humanas, assim a Humanidade tivesse desejado. Que toda a aflição nasce de situações ofensivas, e que há muito passámos colectivamente a barreira de ajustados diálogos que não nos servem absolutamente para nada. Neste livro tocamos as lamentações dos desvalidos, mas Rilke é apenas um poeta, mas talvez que tudo o mais não passe afinal de um desesperante efeito pernicioso.

 

Minha vida tem a mesma veste e cabeleira

que todos os velhos czares a agonia….

 

Rilke, O Livro da Vida Monástica, Primeiro Livro de Horas

12 Jul 2023

Plume

Há sempre aqueles que parecem de vento e são artífices laboriosos da transparência. Este extremo refinamento é talvez a mais conseguida capacidade humana para uma transfiguração, que este saber em dimensões aperfeiçoadas, pode passar incólume aos pesados seres das sombras por causa de toda uma sujeição que elas imprimem.
Claro! Estamos num mundo pouco depurado, e não se sabe bem porquê, agora que as tecnologias permitiram avanços prodigiosos nessa matéria, também vieram com ela os pesos mais agrestes da nossa truculenta condição: a inteligência pode vir a ser artificial, que o ser natural é concreto demais para ser já às portas de um futuro breve, contemplado. Essa leveza que faz o cérebro fazer as melhores ligações, possuem-nos alguns poetas como ninguém, e também será por isso que lhes testemunhamos semblantes esguios e finos como se fossem catedrais. Revisamos as suas anatomias! Por incrível que pareça, há ali elementos de éter puro.
Henri Michaux. Se há beleza, que o vento a traga, sinalize a forma, e seja ” lointain intérieur” que a lonjura a que nos mantém destila pródiga maravilha. Essa lonjura será ainda um propósito severamente poético ( que para proximidade temos os narradores, e a descritiva composição, que não sendo artificial inteligência, deve ser considerada por vezes aberrante função naturalista). E a voluptuosidade também deverá esconder-se de vergonha ensimesmada perante a mais impressionante construção de beleza “gasosa” deste outro instante a que passamos a chamar, poema

Le Malheur, mon grand labourer,
Le Malheur, assois-toi,
Repose-toi,
Reposons-nous un peut toi et moi,
Tu me trouves, tu m´éprouves, tu me le
prouves.
Je suis ta ruine.

Mon grand théâtre, mon havre, mon âtre,
Ma cave d´or,
…………
Dans ta lumière, dans ton ampleur, dans mon horreur,
Je m´abandonne.

Não há muito a dizer acerca deste magnífico poema oxigénio que se respira mas que não se vê. Nós deciframos os signos linguísticos, damos reformulações aos enxames de associações comparativas…mas chega o vento, e perante o domínio do leve, calamos. Creio que interrompemos estes seres para que se escutasse o defeito generalista, e isso abriu feridas gigantescas, grotescas, no domínio da linguagem, que deve sempre servir para muito mais do que debitar ideias e estados sensoriais. Em última instância, poder-se-ia concluir que não tarda, seremos traduzidos até para esferas telepáticas, outras linguagens, portanto. Devemos somente, e doravante, dizer como Michaux aqui, o que descobrimos, que isso será futuramente o maior dom saído da palavra ” on veut trop être quelqu´un. Il n´est pas un moi… MOi n´est qu´une position d´équilibre”
Se formos para a sua obra gráfica, vamos ainda olhar para o desenho do vento, e não dissociamos as linguagens que formam um acordo onde tudo se lê, contempla, e ganha dimensão estranha e espacial. Olhamos a sustentabilidade de uma impressão que nunca se fixa, como a chuva e a sombra, e quando contempladas nos parecem diáfano nos seus impressionantes efeitos ideográficos. O autor de « Um bárbaro na Ásia» deseja o que a este lhe fascina, saber como pode penetrar na sua espiritualidade. Que ele de facto não quer descrever coisa nenhuma em termos factuais, romanceiros: é um poeta, e quer a rota daquilo que a sua natureza impele para o símbolo. Nunca deixou de percorrer os « Paraísos Artificiais» mas ao invés de um Baudelaire, vai bastante mais longe. Se a alucinação for tudo isto, então quem se deve sentir alucinado são aqueles que não sabem afinal de contas aquilo de que um cérebro é capaz. Escrever e desenhar o vento.

28 Jun 2023