Algodão na lua

[dropcap]A[/dropcap] China inaugura com êxito a sua era espacial. O lado oculto da Lua, esse recanto galáctico que alude à sua própria redundância, é no entanto uma expressão inglesa que remonta a 1959 nos anais da expansão espacial e quando a nave Lune 3, “darque side”, uma sonda soviética transmitiu as primeiras imagens de um ângulo lunar nunca visto na Terra. A China chegou agora a esse local ainda não transmitido e levou já peculiares visitantes como sementes de algodão. É efectivamente um momento de relevo pela audácia de pensar um solo plantável, e pela analogia do algodão, algidez, brancura, maciez… É um convite a coisas idênticas e inaugurais estes primeiros flocos de branco lunar.

Vivemos hoje um tempo com vias de transporte desconcertantes, pois que é mais barato ir de avião ao norte da Europa em duas horas do que apanhar um comboio para o Porto, ou mesmo apanhar um táxi em Lisboa, ou ir de barco até Cacilhas. Como o dinheiro, e sobretudo o dos jovens, é sempre pouco, eles preferem, e bem, ir para longe. As redes de transporte são tentáculos maciços que dão já a volta ao mundo em modo subterrâneo e aéreo e dos excessos acolchoados tão do agrado de uma inativa meia idade, parece também agora esmorecerem neste labirinto onde entre céu e subsolo nos encontramos a preços módicos e até confortáveis.

São temas que devem ser concertados com a inaugural viagem da China ao lado oculto da Lua, e o seu talento rápido de colocar em marcha uma fonte produtiva. Ela, que sempre nos pareceu um gigantesco útero sem perfil expansionista, é sem dúvida neste instante o nosso mais formidável luar de Janeiro. «Minha pequenina décima oitava irmã tu és a chuva no meio do céu», canção popular chinesa; dezoito é mesmo número de Lua e parece-nos já daqui uma vasilha de água cristalina prateada com flocos de algodão no nosso céu de antanho tão parecido com o que está para vir.

Voltaremos à parábola do semeador, um roteiro previsto pela voz de Isaías (terceiro de Isaías 10-11): «a palavra do Senhor é semente». Vejo então hoje que a semente morreu. As condições não estão ainda preparadas para a nova seiva e é preciso uma nova componente que prepare estes chãos para lançarmos os bens da Arca. A China não tardará a recuperar a marcha destas descobertas com sucessos tão garantidos como as árvores trepadeiras, e a facultar uma aceleração de acordo com a urgência humana, pois que os desígnios terrenos a prepararam para nobres missões. Juntas, vão outras, para iniciar a do algodão que não resistiu ao frio da noite lunar. A algidez das suas sombras oculta desassossegos, e os seres vivos precisam da sua fonte de calor e alguma travessia nos levará de ora em diante a outros sóis.

Da lã, nem falar por enquanto. A natureza dela exige comunidades agrárias bem mais estruturadas e modelo animal em rebanhos, mas deixemos que se instalem outros frios para que um ovular bicho da seda se misture algures nas dobras planetárias de locais remotos. E que poderemos fazer então num corpo vazio de ocultos labirintos? Ainda não se sabe bem, e o que não se sabe só a ciência dirá como contornar. A Lua, essa, terá sempre no imaginário os dons dos feiticeiros e dos xamãs do mundo que reservam as suas fases para o equilíbrio dos campos energéticos. O país do Sol Nascente estará menos preparado para esta alba onde não nasce a alvorada? Não está. Penso que estará a transformar as condições de uma possível fonte de progresso onde imóvel perante críticas saberá desenvolver os campos futuros a desocultar. Talvez campos de arroz e enxertos de cerejeiras, o que levaria em trafego, anos luz de produção em série para a outrora faminta humanidade escravizada sob o peso da necessidade. As fomes neste estado são outras, e a capacidade de as governar, um trunfo sem igual. Peregrinaremos sempre em torno de qualquer coisa, ora inspecionando, ora tirando dividendos da conquista, e se a Terra já treme é muito bom que se preparem as bases da partida e da escalada mais larga pois que giramos em torno a nós como um mecanismo cego.

Sentada numa tartaruga, a China chegou bem mais longe que a Lebre que se vê agora a braços para dar sentido ao movimento de um novíssimo propósito. Enrolada no labirinto dos dogmas e pouco audaz em escalar etapas, começa a soçobrar a um excesso de diálogo de surdos em várias línguas espalhadas, que em coro, produz o ruído que afugentará os fazedores. O futebol é uma missão remissiva nos tempos vindouros, o jogo acabará breve, e os campos vazios falarão de nós bem mais que a política, bem mais que a saturada economia que numa ânsia de fome lunar desertificou o que havia de vida e de doce algodão também aqui na camada terrestre.

Por isso a Terra se cobre da sua seiva e nos convida agora a ir deixando de mansinho os seus beirais.
Para 2020, a China preparou um satélite de iluminação oito vezes superior ao brilho da Lua e ela sempre estará nestes anos conectada com o satélite que a fará desdobrar-se à sua quimérica natureza de multiplicadora de factos e de condições. Se as alcateias correrem para lá o seu escarlate terá efeitos mais sombrios pois que duas Luas progredirão para um coro demasiado bravio num presente onde se escuta já o ribombar dos tambores.

29 Jan 2019

Vasco de Lima Couto

[dropcap]L[/dropcap]embro-me dos desenhos à Cocteau com poemas em pratos brancos e recordo o quanto gostava deles, das frases, dos poemas, de tudo aquilo. Depois, olhei-o, e pareceu-me inesperadamente belo e associando temas musicais soube que era ele. Cocteau parecia-me muito menos interessante e infinitamente menos poético do que este Vasco, com seu perfil daquela portugalidade de homem do seu tempo, como Adriano, de belas cabeças imperiais que passaram entre nós para lembrar que uma cicatriz na beleza define os homens. Ele, que passou quase indelével no registo literário, tinha no entanto uma espécie de instinto admirável pela natureza do acto poético, sabia distinguir a qualidade, o sentimento trágico, e tinha uma disposição progressista num maravilhoso perfil romântico.

Foi actor, um actor exigente e prolífero, representou peças de Miller, António José da Silva, Steinbeck, Ionesco, e ainda teve o seu maior êxito no «Mercador de Veneza». Divulgador da poesia contemporânea num programa de rádio chamado «Cantar de Amigo» em Angola, creio que todas elas perdidas numa urdidura em que não achou uma defesa à altura das suas múltiplas capacidades . A sua obra poética deve-o muito ao retiro em Constância onde talvez usufruísse da calma necessária para o diálogo consigo mesmo, parecendo de sólidas amizades e de confiantes dias de camaradagem, é quase sempre um homem afável, porém distante de um centro de reconhecido e justo mérito, o que o deve ter sujeitado a uma tristeza qualquer que ao invés de o azedar adensou a sua rara sensibilidade.

A sua obra poética reparte-se por quase uma dezena de títulos, como « Canto de vida e morte» 1980, o «Silêncio quebrado» 1959, «Recado Invisível» 1950, «Bom dia meu amor» 1974, «Deixando discorrer os dias» 1991, já póstumo, e outros, mais antigos, uma vez que o poeta nascera em 1924 no Porto e dele se foi desamarrando aos entraves burgueses de um país severo e parado para a sua ânsia de viver e de expandir. «Um Pássaro contra as grades» ele – que precisava de espaço para ser feliz – um poema belíssimo que só uma alma larga, com asas, pode ter escrito, um legado de liberdade e de respeito por aquilo que são as relações humanas, esses contactos espaciais que por tão rotineiros quase não dão conta da invasão que provocam. E vale a pena transcrever alguns excertos:

ter palavras certas no sol do caminho e beber, a rir, o doirado vinho. Misturar a vida, misturar o vento… E, nas madrugadas quando o povo abraço, para estar contigo: PRECISO DE ESPAÇO!

Fluía nele também um lado quase religioso sentia-se que não estava deslocado dessa fina teia da indagação teológica que firma os efeitos de uma consciência poética, e são de grande beleza muitas das suas ora indagações, ora gratidão, ora silencioso desespero face ao enigma incognoscível da palavra quando o verso adeja, em Oração, encontramos esta inquietação sempre total:

«Senhor, eu não te peço felicidade…seria condenar a minha vida/ a uma inútil graça de ilusão/ nem te peço que faças dos meus versos desejos de cantigas para os outros/ …… O que te peço é que me dês o alento/ das frases que eu não sei se tu disseste! »

Coisas estas demasiado belas para esquecermos. Quase que por um trilho na percepção entende uma alegria nova, a Revolução dos Cravos, mantém-se entusiasta e envolvido, mas nem antes nem depois a sua situação de homem melhora, e acaba sempre por viver como pode aceitando os trabalhos que lhe dão, há na nova ordem um descaso que certamente o magoa e entende isso talvez com pesar, por isso morreu cedo, e por isso talvez não tivesse tido ensejo para a manutenção da vida que requer tantas concessões. Viveu como um poeta, pois são estes os poetas, os que correm o risco também de viver poeticamente. É sempre, quando dele nos acercamos, alguém com grande coerência e uma elegância quase desaparecida, aquela parte que faz dos poetas esses seres aristocráticos e estranhos, é um rejuvenescimento, de ternura, de despreendimento. Nós, vamos esquecendo, o tempo apaga, fulmina, estrategicamente encobre…mas o que é bom é sempre subitamente belo, bem o disse Safo. E neste súbito e inaugural renascer ele aparece tão novo como se fosse um propósito por vir:

minha mãe, eu canto a noite porque o dia me castiga; minha mãe eu grito a noite, neste amor em que me afundo, porque as palavras da vida minha mãe, já não têm outro mundo, minha mãe eu grito a noite neste amor em que me afundo.

Sabemo-lo boémio, amante das noites e dos cantos, sabê-lo por aí, o Fado, mas poucos sabem que passou por aqui, este homem tão especial que deu por concluído o seu testemunho antes mesmo de ter um florescente recomeço. Nestas vidas encontra-se o melhor. Não estão presas a si mesmas e tudo neles parece sempre novo, contemporâneo, quase eterno, agora mesmo o sinto tão próximo como um anjo de asas frescas sussurrando um canto protector:

Vive… que eu no pensamento viverei contigo/ Sonha, que no meu sentimento te darei alento/ Sofre… Que no meu sofrimento, terás toda a minha alma, a dizer-te um Poema/ – Mas não penses nunca neste meu dilema!

Hoje, estamos plenos de palavras, Vasco, e nenhumas são tão bonitas como aquelas que disseste para que eu as diga de ti neste momento. Não precisamos de muito. Mas temos saudades daquilo que no dizer se imortaliza. Sente-se uma imergência sadia de liberdade e uma zona sempre de espaço alargado no movimento de uma natureza que suporta mal o dirigismo das sociedades, e isso, é a sua marca mais conseguida de homem livre:

Outubro de 68

Que Povo é este, que Povo,
que é Poeta e se alimenta
de tanta maré vazia.
no mar que ele próprio inventa?

Que Povo é este, que Povo,
que tenta um sonho esmagado?
…É o Povo de onde venho
todo por dentro amarrado!

São de Amor todos os poemas.

22 Jan 2019

Ímpar

«Numero deus impare gaudet»

 

[dropcap]F[/dropcap]rase romana que diz que os deuses amam os números ímpares, crendo então na forte probabilidade do Ano inaugural vir a ser amado por eles e talvez por todos nós. Nós, que gostamos de coisas e pessoas ímpares, pois sem dúvida que essa particularidade nos encanta e perturba muito mais que ser par, mesmo que de paridades se viva e de tráfico comercial, também, dado que: “ao par é sempre mais barato”.

Mas o que é certo é que não há nada que resulte bem sem essa imponderabilidade dos ímpares, mesmo nas nossas comuns associações que não raro esbarram para sociedades aos pares, a par, e que param. O movimento. Esbarra com toda a orientação que inove a vida de modo a saber e poder ser vivida, impõe-nos funções que pouco se contornam, daí, o par explodir, ser de natureza destrutiva e de iguais desfechos.

O Ano abre então neste nosso calendário, fechando a década, com o luminoso dezanove, mas, como penúltimo, ímpar, único, como súmula do ciclo quase findo, nestes períodos contemplamos a veracidade desta matéria mesmo que uma década após tendemos a esquecer. «Yung e o Tarô uma viagem arquetípica» um plano de estudo que foi feito para alcançar o conhecimento dos arcanos menores do Tarot de Marselha, composto por vinte e duas cartas, falará da jornada do herói até ao número dezanove que é o que nos interessa agora analisar, o Sol! Remetendo-nos de início para os Contos da Inocência de Blake há uma luz que nos apazigua e convida ao retorno a uma zona pouco experienciada na esfera de evolução em que nos encontramos.

A noção apolínea do Ano agora em curso é um convite a todo esse diálogo de elementos não só apaziguadores como inversores a toda a ofensa severa face à natureza das coisas. Se todas as espécies de neuroses são as sombras agarrando-nos para sobreviverem a estranhas dimensões através dos nossos frágeis seres, este ano, talvez seja bom pensar nalguma providencial queda das suas influências, dado que o Sol atingindo o zénite as fulmina. Saídos das eras das molduras- de molduras penais, das molduras sociais, das molduras de ser, das molduras dos grupos, fomos saindo devagar das agrestes derivas de um processo duro e insano, e o nosso ser mais íntimo deixou de olhar de olhos abertos o grande espectro da intensa luz, feridos nos grandes cativeiros que a vida ganhara brilhos tremendos.

Pode ser de ora avante um convite ou apenas uma simples nota que convém registar, que o paradigma humano, esse, se transformou, e anos bons aconteceram, “annus horribilis” pares, ímpares, primos, mas poucos nos dão de facto a alegria de um número assim, e se falarmos de uma convenção, então poder-se-ia afirmar também que tudo o é, com a grave incerteza de não se saber se algumas nos repõem a alegria, só quando as convenções se ajustam ao hábito a natureza das coisas pode ser modificada. Solar, leva-nos para casa na ideia de habitat amplo e requintado- viver num solar- ao mesmo tempo existe neste nomear a ideia de jardim, e o jardim faz parte da estrutura simbólica do significado do arcano que nos despe dos restos mortais dos andrajos costumeiros e nos coloca livres e nus num espaço deleitoso.

Entrar num mundo cercado pode significar aqui, segurança, vimos como o desventrar dos espaços ameaçaram os nossos equilíbrios e nos fizeram sentir invadidos, como a transfusão de muitos corpos habitando os mesmos lugares transformou o chão em palcos de guerra, recolher ao instante feliz não será por isso um mal, nem ousar retirar dele todos os que o profanam na sua primeira dimensão psíquica de paraíso. De qualquer das formas há que a ele regressar. Há prerrogativas que se firmam como segredos, silenciosamente. Após toda a névoa de uma mente que não fixou um saber libertador entraremos na experiência directa com a recuperação de uma energia renovável, cuja vontade é olhar, ficar, e viver toda a alegria das coisas ao redor. Hoje mesmo havia a tal neblina fria que nos inunda de um mistério antigo, coisas de quando ainda gravitávamos na escuridão …nós, a quem nascem guelras nos momentos em que precisamos de processar a água atmosférica e que fomos criando lianas nos fundos da alma…!

Atravessemos o tempo com algumas reformas e mudanças na jornada do caminhante que somos, deixemos o dia lavado, as coisas ditas, as formas ser, e quando tudo for restaurado nos subtis equilíbrios, esperemos o Sol . Ele vai levar-nos para Casa. Fala o número, Jung, e este instante da Criança Eterna.

15 Jan 2019

O ano da vida de Ricardo Reis

[dropcap]C[/dropcap]ansados da morte que é sempre a mesma, vem em qualquer instante, é certa, e nunca consentida, queiramos numa vertical tendência inaugural recriar um ciclo de renascimentos sem par ( o par atrasa o crescimento) e refazer as coisas, projetar os cultos, fugir da rota, atravessar os mares.

Que de todas as matérias que trabalhamos haja uma super-matéria que nos trabalhe a nós, vítimas de corrompidas quedas e penosas dores em obscura forma. Que saibamos passar, pois que só passando se atravessa, que os caminhos tanto podem ser experiências como círculos fechados, os caminhos que vamos talhando são a geografia do nosso entendimento e, claro, serão entendíveis todas as marchas do processo, se com ele, formos de nós mesmos o Bode do deserto, por um lado, e o Expiatório, pelo outro.

A matéria legítima da vida é um sopro. Assim estabelecido o pacto todos os caminhos são possíveis, todas as direções destinos, todas as casas estalagens, pois nos guia a fluidez de imponderáveis razões. Uma vida nunca pode ser julgada e não seremos certamente nós a poder fazê-lo, apenas servimos de ajuda uns aos outros na marcha do tempo, e, protelamos a memória como a melhor fonte de recompensa. Nunca devemos ser rápidos a lembrar.

Pois que Ricardo Reis era um outro que em outro vivia, e cada “si” um outro sim que em si se sente, quem são, quem somos, todos nós em romagem decrescente para o nada, pois que mais Anos, mais vida descontada?! Coisa nova criada, somos outros, estamos numa rota galáctica e lá para baixo ficam as Nações.

Esta certeza faz vida! O instante protege os sonhos e quase tocamos nas suas caudas que olhos visionários trouxeram entre os escuros cinzentos das eras industriais; homens juntos por uma causa exalam ódios a que chamam política, homens livres exultam propostas e chamam-lhe poema, nestas curvaturas está agora o tempo que vem fechando postigos, cansados, inúteis.

Este Ano foi o Ano do Cão, o Ano que aí vem dar-nos-á o do Porco, que está sempre representado em forma de mealheiro o que denota que é Ano associado à riqueza, porém, nem Porcos nem Cães são um alter ego predileto, mas, reconheço a boa e leal colaboração do Cão que faz do sacrifício a sua vitória. Nós, resumimos tudo em quase nada: se não ritualizamos também não nos ocupamos de façanhas inexplicáveis, de modo, que condensamos no Natal todos os propósitos da vacuidade das Festas. E talvez não seja em vão fazer renascer o nosso tão querido latinista imaginário, que, bem vistas as coisas, não teve data de morte, sabendo-se apenas que nasceu a 19, e chegou ao Brasil em 1919. Por isso, neste Ano, ir-se-á provar que não só não morreu como continua vivo em 2019, o que dita uma atmosfera de esperança de vida para todos nós.

Mas, a criatura, suplanta está claro o criador, e só a criação da criatura de ora em diante será lembrada como uma outra natureza ( natureza outra). Por qual, dezanove simboliza o Sol, brilha agora bons augúrios para seres construídos nas cabeças de cada um, e assim, cada um terá à disposição várias delas que consubstanciarão a própria Hidra que os representará.

Proeminentes desígnios esperam dar vida aos condenados bem como animar a robótica de forma a deixar descansar este humano que já longe vai e grave anda na razão da sua natureza. Quanto a mim, propus-me ressuscitar os mortos, já que os vivos não se encontram em bom estado experimental para práticas futuras; e não é que logo encontro o nosso querido Ricardo? – Eu sentia que andava alguém aqui nos meus umbrais, mas até pensei que fosse de novo o Corvo, só quando vi o Ricardo é que disse: não morreu! – Ricardo, não deixes que te matem.

E assim foi, agora que partilho uma experiência paranormal e recupero um helenista algo estranho ao contacto direto com os deuses- nós, os Bodes do Deserto – aqueles que foram para lá durante mil anos escapando à morte, vos saudamos do cimo da nossa montanha. Quando nos encontrarmos de novo por aqui será um recomeço bem vindo pois que da morte, o da Expiação nos foi livrando, e sempre assim será enquanto houver em cada um de nós tal entendimento.

Recomendai-vos uns aos outros como epifenómenos em vias de extinção, e recuperai as oferendas de um Deus benigno que vos foi desconhecido até ao limiar do abandono. O Novo Ano transluz de coisas tais, que é preciso não ter evoluído para Ciclope e ver em todas as direções a «Grande Marcha». Prósperos os que encontrarem Ricardo Reis. O «Homem (lido)» e relido, encontrou-o e continua. Por que não fareis vós a mesma coisa?

Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E as suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.

Um belo Ano então.

7 Jan 2019

Alerta Amarelo

[dropcap]F[/dropcap]uncionamos nós por estímulos subliminares muito mais que por qualquer representação racional de modelos definidos e a segunda metade do século XX foi toda ela um código que gerou factos novos, inconcebíveis, a partir da manipulação desses efeitos.

Como bem viu a semiótica, nunca há signos inocentes, sendo que possa haver uns mais inocentados que outros na vertente mágica das suas versões. O tempo que vivemos é sem dúvida uma esteira alarmante – há muitos alarmes – reais, imaginários, possíveis, em fabricação, outros, que nem chegamos a sentir os seus efeitos, mas, e dado que nos alarmam em dimensões nunca vistas poder-se-ia aplicar a formulação de uma atmosfera alarmista que se solta em todas as direcções.-

O «Alerta Amarelo» não é contudo uma vicissitude climatérica em si mesma mas, e muito inconscientemente, o efeito da onda de propagação do Império do Meio que resolvemos nomear através da cor dos nossos receios. Não é novo este medo, mas era dito de forma natural e com laivos de visionarismo, o que não acarretava nomenclaturas de desastres ambientais nem de perigos a chegar às nossas janelas. Eram grandes reflexões acerca da política geoestratégica do mundo. As visões peripatéticas que olhavam já para uma Europa arabizada com tribos entrando pela Andaluzia adentro até Lisboa, perderam subitamente força passando àquilo que apelidamos de tempestade tropical. O que vemos por fim é esse anátema predestinado a consolidar-se sem estrondos ou atentados, o que deixa sorridentes os povos europeus tão fustigados por ameaças fruto dos seus perigosos interesses.

Sejamos suficientemente razoáveis para entender que os perigos que nos ameaçam podem vir sempre de mais distante ou de um ângulo que não imagináramos. Só que, desta vez, cobriremos a estampa civilizacional com a paz amarela, que bem longe de um alarme, é uma marcha lenta do seu próprio sucesso. Quando nos dispomos a ver sabemos que o velho útero, o Império do Sol Nascente, está por todo o lado da nossa vida quotidiana e que as fontes energéticas já são do seu domínio. Não nos esqueçamos que findo o petróleo os países árabes que não desenvolveram uma sociedade científica, o que em termos de tempo, pode agora ser um tempo contado, e que estas diferenças são agora placas tectónicas que vão sem dúvida anunciar quem manobra a Barca dos destinos do mundo.

Para uma Europa sempre tão guerreira vai-lhe fazer bem este abeirar de uma cultura mítica que mais que trazer paz pode trazer formas de abordagem filosóficas e sociais muito interessantes. Talvez tenhamos que experienciar uma contenção desconhecida e formas de colaborar menos vincadas. A nossa supremacia desmorona-se a cada ano que passa, e até nas revoluções em marcha o símbolo delas é amarelo. Coisas que andam nos sinais, no éter carregado de pólvora, nas entranhas dos nossos antigos medos e que saltaram como evidências para as actuais realidades. Longe vão os Alertas Vermelhos! Em todo o caso estaremos no início de uma verdadeira metamorfose e a crer pela nossa frágil propagação demográfica o que se passa é que não é necessário ter nenhum tipo de vidência para o que se segue.

As fontes de produção que permitiram tais factos são tão distintas de tudo o que concebemos que olhamos para a não expansionista China milenar, ainda sem ver o que foi de grandioso uma tal marcha. E se a não ingerência nos seus assuntos internos abala a moral da periferia, isso não será um problema dela, mas nosso, que ao não reflectir numa epopeia humana, acha que tudo fica resolvido através da “linha de crédito” dos seus direitos civis. Seria bom! Mas não ficou. Temos uma herança de famintos às costas com problemas quase insolúveis, criámos as fontes paralisantes deste estertor e sabemos que estamos a dar as boas-vindas a quem nos pode aguentar com a quimérica noção de sermos Estados independentes. A bem dizer, já não somos nada. Pouco mais que a língua que cada um fala e todo o resto vem de todas as partes, e se a terra está gasta e mal gerida, nós também. Enquanto andamos nisto, tentamos que os dias não passem por cima das nossas cabeças ameaçadas até ao tutano, e, descrentes das reformas vamos vendo rebentar em todos os lados o grande princípio da insolvência. As leis sociais obedecem um pouco às leis físicas, a partir de um certo grau de obliquidade, não é em rigor possível que ele se reverta, a longa marcha para o fundo é estrondosa na sucção. Estamos à espera do quando, vendo deslizar pedaços com mais ou menos estrondo.

Derrama-se agora um sabor almíscar dos antigos poemas de Han Shan que tanto influenciaram a vanguarda americana com suas casas na falésia: antigas pedras; as falésias erguem-se abruptas/os livros sobre os imortais / um volume ou dois / sob uma árvore por entre dentes, leio/. Todos nós estamos na nossa civilização à borda da falésia onde abruptamente veremos passar o tempo da nossa desdita, mas, ao invés de se pensar que África ocuparia os lugares chaves, nada disso se deu, nem teria sentido. Manobras extemporâneas de alianças mal começadas e que nunca deram certo. O sentido mercantil mudou as formas e num país ainda movido a ouro nos olhos luzidios dos exploradores não há mais nada do que ir deixando para trás saudades vãs. O alerta é Amarelo e assim irá ficar enquanto for alerta, e toda a Terra se tornar de mansinho uma terna tempestade tropical.

Possamos nós ver os nossos saudosos poemas na versão do Meio e seguir perifericamente o sonho gentil dos vencidos numa visão de transcendência que lhes deu tanto brilho singular.

18 Dez 2018

Banqueiros anarquistas

[dropcap]S[/dropcap]em dúvida há títulos que são agentes directos de actividades laborais e que definem sempre mais umas profissões que outras. A um linguista ficar-lhe-á por vezes mal usurpar ou transgredir os cânones da sua técnica, já um banqueiro tem uma margem de espaço mais abrangente que o coloca muitas vezes como o fazedor da sua própria regra. Se se considerar que possa ser um bom artesão, difícil será contornar o laborioso esquema da sua competência podendo nem ser beliscado na liberdade e bom nome por práticas desmesuradas.

Incrementos vários dão permissão a uma total falta de limpidez àqueles que anarquicamente também se expõem à sua guarda sem desconfiarem de uma maior anarquia por parte da sua capacidade transgressiva. – Referindo-nos sempre ao título de Pessoa, o mais extraordinário está ainda no texto introdutório que abomina a prosa do poeta falho de elementos dialécticos na visão reformista de quem o considera um tributo obsoleto para o pensamento social. Nada disto será surpreendente num mundo de altas instâncias pensantes que por operantes tendências da vontade procuram rasurar tanta coisa, que nem sabem coisificar partes soltas das muitas outras que, e façamos justiça, são por vezes, inomináveis.

Os seres das “ferramentas pensantes” muito severos na marsupial descarga das suas forças criativas estão de ponteiro na mão, prontos a erguer muralhas contra o insólito, que não raro, destrona as suas seguranças fílmicas e ideológicas. A tirania do auxílio (expressão usada no livro) tirou no entanto aos anárquicos banqueiros uma certa e determinante tendência para a usura individual, e eis que, nos prostramos diante dos seus despojos como engolidos por crateras:« ora, qual a qualidade natural das nossas qualidades naturais?» sermos tão naturalmente nós que nada se nos pegue enquanto medida de grupo. Ser-se eminência parda da natural fonte do ser e aperfeiçoar a tirania de grupo para a linha da frente como efeito «Bode Expiatório».

Pois que se não só de grandes sensibilidades se forja um grande poeta, também, não só, de grande massa económica se constroem banqueiros. O distintivo da ambivalência tem de estar presente para que algo de verdadeiramente inesperado se possa dar.

As bombas rebentam não raro nas mãos revoltosas dos “guerrilheiros” que ardentemente munidos usam e abusam da descarga da sua legítima indignação pelo zelo das acções concretas, depois, o tempo que demoram a morrer, tira-lhes ainda aquela liberdade tão boa que é o saber rir-se de si mesmos, e por que não, de tudo o resto. Agonizantes e exaustos o mundo parece até girar na razão inversa dos seus propósitos, e sempre pelo lado que ninguém viu, dá-se então a explosão. As várias leituras de um texto dão-nos o hipertexto, tangente também ele à capacidade de recriação, não o deixando por isso arrumado na sua primeira “extração a frio” e ainda pode enlouquecer os laboriosos defensores da coerência. Por vezes, um qualquer detalhe pode fazer derrubar a causa mais convicta de estar ganha, mas para isso, digamos, será então necessário um imbatível detalhe. E quando tal se dá, caso as calças sejam muito compridas, é cortá-las para pano para mangas, que dos braços se fazem bandeiras para acenar a todas as coisas também elas improváveis. E o mais improvável na vida é o mais caro, o mais rico, o que se levanta como zona de desconforto para “atazanar” o conforto de todos.

Vejamos detalhes mimosos, minuciosos, da grande paródia deste Banqueiro: – Realmente, disse eu, é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter ouvido, comparar o que V. é com os anarquistas que pr ´aí há… : quando o orgão não conduz com a função há uma tendência para a desorganização, pois que, e também, órgão muito falado é orgão doente, e nestas tentativas perde-se a compostura para analisar em alguns, órgãos novos, por vir. Se não é identificável não será mantido, e combatido vai ser o seu destino, até que, todos de uma assentada guardem para si as funções impróprias, opostas àquelas por que tanto batalharam. E responde então o nosso Banqueiro: então é que vi com que bestas e com que cobardões estava metido. Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para escravos.

Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a liberdade logo que fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhes fosse dada como um rei dá um título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios! Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros. Pois que o fizessem os parvos. Eu é que não ia ser burguês por tão pouco.

E quando aquelas coisas deliciosas nos agarrarem intempestivamente há então que não pensar no resultado e deleitosamente subirmos o rio pois que só essas marchas são boas. Nestas, toda a cautela é pouca, ou não fosse a qualidade de Banqueiro uma porta aberta para a tibieza de cada um. Ponham-nos como carcereiros que logo se dará o “pontapé” para dentro das prisões, que dizem estar transitada na lei para lá os meterem e nunca reverte em fechamento.

Retomemos a marcha de leitores imoderadamente anarquizantes colocando um fim às supostas intenções dos autores, pois que nem sempre eles se nos apresentam transversais ao panorama “construtivo” das tão prestimosas sociedades, que uns defendem, outros atacam, e que para eles, pode ser mais a laboriosa oferta de uma boa ficção. E uma brincadeira muito séria chamada lucidez.

11 Dez 2018

Sangue na estrada

[dropcap]E[/dropcap]ra este o nome de um programa televisivo dos longínquos anos sessenta apresentado com colisão estrondosa – o programa mais não era que um receituário para boas práticas automobilísticas que na altura já fazia correr bastante sangue e cujo desenvolvimento a preto e branco impunha uma maior dramatização. Com a gravidade do tempo se expunham então as condutas erradas e se mostrava exemplos derrapantes pretendendo assim ser útil para evitar o sangramento no asfalto.

Ora sem dúvida que o sangue que a todos atravessa em circuito fechado é o mais forte elemento que um ser vivo dispõe: os de sangue quente, está claro. Há quem admita que a terra lhe é hostil e que onde se sangra se gera uma área de esterilidade ambiente, e que seitas maniqueístas como os Cátaros das carnes se afastaram para impedir o pacto que consideravam diabólico, o que faz que ainda hoje os judeus desensanguentem as carnes numa prática ritualística para não incorporarem a estranha força nele contida.

O sangue marca assim um ciclo de funções culturais quase xamânicas e também perante ele existe a reverência e o pudor instintivos que fez a Igreja secular separar-se, renegando qualquer fluxo interno que se propaga-se e fosse visto; acariciaram o fogo como medida castigadora. O vinho litúrgico não é mais que a metáfora de um caudal de seiva e gratidão pelos bons produtos da terra, como o pão, os primeiros transformáveis logo que se dá a sedentarização.

Noé ao colocar pé em terra firme planta logo uma vinha. E se o sangue ainda apaziguava as Fúrias lá mais para trás, é certo que não foi com os homens dos rebanhos que o canibalismo tomou posse, pondo então fim ao infanticídio infantil com Isaac substituído por um cordeiro.- E as questões de sangue, e o sangue nas arenas que se inspiram nos dorsos gigantes, numa fartura sangrenta de fluído tal… o touro não quer matar, o homem não quer morrer, mas todos sangram e brincar com sangue é a irreflexão mais bravia que podemos conceber.

São espectáculos do tempo do «Sangue na Estrada» que os infortunados de natureza sensível viram entrar casa adentro numa atoarda de choques e cornetas, esses que, roeram as unhas até ao tutano e prometeram fazer feitiços para os homens morrerem na prática de coisas tais e desviaram os olhares das chapas retorcidas, que agora são expostos ao clamor indecente de serem radicais bem-pensantes; não sei se pensam bem…na certeza porém, que sentem diferente. Levanta-se uma névoa telúrica ou milenar que até pensávamos estar saldada, mas, olhamos e a estratégia instintiva é ainda a mesma. Até se dizia no tempo destas visitações nas casas de cada um que o chefe da Nação nem gostava de sangue e prometera levar para longe e para as funduras os seus opositores para não assistir a nenhum derrame, o que corrobora que um seminarista é avesso a fluídos internos que se manifestam numa qualquer vertente. Fogueiras do imaginário ainda ardiam quando todos estes sangues se soltaram.

Camilo Castelo Branco escreveu uma obra literária chamada «O sangue» onde afirma: estou escrevendo um romance chamado « O Sangue» mas não é bem um chouriço. É uma patacoada. Parece-me que vou queimar os livros para aquecer os quatro pés, os dois são vulgares, deu-nos o frio, e não obstante continuo a tiritar, o que não sucede a todos os burros que têm fogão»

Grande Camilo que metamorfoseava em paródia grotesca reais angústias! Veremos também que ao tempo de Camilo as estradas eram fustigadas por salteadores, sendo pouco provável o choque das quadrigas de cavalos, as vítimas que sangram ainda são na sua maioria as das estradas e das arenas. “Chocar” com um Touro é sem dúvida uma experiência incrível! Uma faena é um desdobramento inconsciente de brutalidade incurável tão ao gosto dos paleolíticos cultos de Mitra… que seja cultura… bom, a cultura impõe-se para bem ou para mal, quando se deixa de sangrar. Se tal acontecer são desastres. Espargindo o sangue nos terreiros também as Fúrias, outrora cultos (as) já não se manifestam tanto… e nós, os que tivemos de viver nestas “culturas” ainda somos abusados na cultíssima alma que transportamos. São caminhos de sangue, tudo isto, e olhamos os graus máximos dos bisturis futuros e toda esta seiva está estancada como se olhássemos um rio do outro lado da Galáxia. O Vermelho era tão imperativo que o chefe da Nação o passou até para Encarnado, e com isto, encarnaram formas vivas, troncos de culturas distantes que agora se manifestam de maneiras genuinamente imobilizadoras para estupefação dos demais (os demais, já estavam a mais, antes mesmo de lhes ser dado liberdade para tal).

E voltando a Camilo numa supervisão entre plasma e sentimento: «Aquele Manuel a cuja agonia V. Exª assistiu não era meu filho. Adoptei-o no coração extremoso de pai e senti então que o sangue nada é e a nada conclui» . São estas gentes das heranças genéticas, da voz do sangue, que gostam dessas coisas, uma certa fidalguia que à falta de melhores capacidades definitivamente mais culturais e humanas, se entretêm ainda a morrer nas estradas por falta de ocupação fixa, e se regozijam no dorso amigo de uma força, que não esquecemos, mas mantemos transmutada dentro de nós. Admitamos que na longa travessia eles tenham evoluído mais que aqueles que os desafiam nas arenas.

Sem dúvida que Camilo seria o primeiro a fazer hoje uma outra crónica de costumes com esse dom raro de provocar o riso e despertar as lágrimas que toda esta questão levanta, e cuja força extemporânea atrai ainda o sangue sem vital função.

27 Nov 2018

Sexo XXI

[dropcap]V[/dropcap]inte e um gramas é o que pesa eventualmente a alma, o que deixa um rastilho de dúvida que nos incita a tratar desta suposição com esperança. Ela está presente num momento muito belo e lancinante no Evangelho segundo São Mateus «depois, lançou um grande brado e entregou a alma», devolveu o sopro que o sagrou na hora de nascer, aos gritos, aos urros, chorando, aos brados. Esta ínfima substância não é fácil nem quando começa nem quando acaba. Entramos em choro, saímos em brado, e ainda somos o resultado dos suores gritantes de quem se dá.

O século vinte e um, tão jovem ainda, já tem o seu peso, nasceu com imagens de queda e de gritos, nasceu talvez com a alma aflita, e tocou pela primeira vez nas fontes naturais do circuito da transmissão: seremos provavelmente a última Humanidade sexualizante, o tempo que se desvia das naturais funções acaba por recriar os seus próprios órgãos, transmutando o fruto na marcha evolutiva face à essência primeira.

Parece estranho que digamos estas coisas numa esteira de desejos mundiais, mas não será difícil olhar a escalada híbrida, o hermafroditismo, o imenso mal-estar da função que talhou o órgão – órgão que faz a função – a ciência avança de forma apaixonante e quase atravessamos o nosso corpo como ilustres desconhecidos… Amor, ainda um eufemismo servidor da causa, não criado e sim gerado, e que consoante os méritos de cada um foi orientado e sublimado na construção árdua do mundo onde jamais se confundiu “amor profano” com grande amor, pois Deus parecia estar no homem como sémen propagador, era-lhe consubstancial na transmissão.

Atravessemos. Os séculos são estradas, têm alma, nascem e morrem e, claro, a dramatização desta matéria não se esgota, o pré-condicionamento não está apagado. Afinal ainda procuramos um arquétipo perdido… que em ninguém se encontra, mora, ou se repõem. O problema não está nas pessoas e nos seus níveis de conflitualidade ou de atracção, mas sim num certo “air du temps” que mutilou a outrora função cegamente programada. Tem gerado até pelo temor da sua força muitos neuropatas, mas esse imenso caudal será arrumado num grande “tubo de ensaio” como matéria atómica. Lixo radioactivo! Com quanto a transfiguração que nos daria uma experiência amorosa parece também ter sido rejeitada na fase alternativa do “beijo que liberta”. Beijos são sopros, talvez almas, tudo em que descremos como bem sabemos se afasta de nós. A sexualidade tomou um espaço anatómico que denunciava já a sua futura morte, demonstrando assim uma saúde moribunda.

Intelectualmente fomo-nos preparando para o século XXI e fizemo-lo com relativo êxito, mas biologicamente estamos atrasados. Somos uma plataforma de vestígios portadora de vínculos que não estão adaptados para a breve realidade de uma outra História do Tempo. Creio que esse tempo nos devore, esse mesmo tempo que gastámos a “comer-nos” uns aos outros com a prática canibal de uma sexualidade que na função se esgotou. O corpo foi brutalizado, o corpo «Glorioso» não é isto, e talvez nos peça agora o fim das provas antevendo nós agora o grau da sua luz numa outra projecção: «as fantasias do teu erotismo/ põe-nas, semi-ocultas/ em meio às tuas frases/ esforça-te, poeta, por guardá-las todas.» Kaváfis

Mais diz ainda: “Lembra corpo o quanto foste amado, e os desejos que brilharam em outros olhos claramente”, este corpo vamos com ele até festejarmos tudo tão claramente como um encontro sem par, que o par é um lado estagnado da função, e ela é outra, e tão nova, tão repentinamente nítida, que amá-la não pode ser um local narcísico, amando-a no lago frio das ilusões, tanto e tão, que caímos na armadilha mil vezes repetida de uma prova elementar que não transpusemos.

Amar outrem, muito, tudo, não é necessário, são conclusões morais que obrigam a um cansaço e muita vigília… Acontecer no tempo. O corpo continua e os vinte e um gramas implantados nos ditarão o caminho novo que se aproxima agora da meta anunciada. Nem o castigo, nem a libertação, nem a aceitação, nem o logro ou a luxúria, conseguiram restituir a grande causa escondida que brotará melhorada e porá fim a uma parte do processo evolutivo.

Os corpos subtis foram apelidados de “corpos aromáticos” e um mundo que cheire bem terá resultados telepáticos amorosos progredidos e ampliar-se-á na construção da alma vindoura, os fluídos da energia transformadora e formadora estarão próximos de um êxtase de vida que reconheceremos mais benigno para esse peso tão leve e definitivo.

Talvez mudando a escala da erotização mundial nos possamos então propor a reformar estes destinos grupais projectados num mito que agora encontramos sujeito a falência, mas longe, tão longe da castração por fluxo concentrado o qual não fez mais que precipitar a sua queda. A liberdade encontra-se sempre ligada ao propósito do bem e bom será então dar as boas vindas a este «Sexo XXI» sem o medo dos contágios.

13 Nov 2018

Feio

[dropcap]É[/dropcap] a componente estética aquela que mais define a vida como estrutura organizada da multiplicação pelo ciclo do acasalamento, qual lembrança perdida de uma harmonia. Se a vida, essa, sempre se refaz pelo invencível ciclo harmónico da regeneração, isso indica que dentro de cada coisa viva existe um pouco desta experiência incrível: um programa geométrico de um longínquo gérmen-memória de imortalidade.

Vivemos nós de estereótipos estetizantes que, quase sempre, e caso a atenção nos falhe, poderão contribuir para o martírio de uma conduta de comunicação, a partir das noções mais vastas desse mecanismo. Implantados no mapa ideológico, trajar as vestes do mito social, requer a flutuação de princípios para o ajustar a essa vertente, onde o poder é a causa mais interessante da luxúria do feio. Uma certa arquitectura segue no corpo da ideia…

Na medida em que a flutuação comportamental estética modela as ondas do espaço social, podemos nós, como nas batalhas, medir a tensão dos ritmos presentes, e há que salientar que todas as épocas trouxeram para o espaço público a sua estética do feio, como o mundo clássico no vasto diálogo moral entre tais princípios. Salientar que o fantástico disforme da cultura helénica foi um fenómeno absolutamente extraordinário. Percorrendo todas as deformidades elas acompanhar-nos-iam até ao seu extremar. Escatológica a força do destino!

O disforme pode ser uma urgência em acabar de vez com o insuportável sorriso dos incautos. «Não deveria, portanto, odiar quem me detesta? Não farei pactos com os meus inimigos. Sou um infeliz e eles partilharão comigo a minha infelicidade». Muito semelhante a uma frase de Rilke, que define a beleza como princípio do terrível. As vanguardas ocuparam-se, há mais de cem anos, a olhar para dentro das vísceras das belas imagens e a devolverem-nos o conjunto sem o qual a visão que rege a outra parte ficaria sempre inacabada, e muitos não conseguiram fazer a transição da decoração para a transgressão, ficando-se no efeito algo perverso das coisas bonitas – e é claro- bonito não quer dizer nada e, no entanto, será sempre bonito dizer-se do bonito que as coisas são.

A prodigalidade da desmesura pode em muito contribuir para desventrar pântanos onde muitos pensam ser Narcisos e esse espectro atroz da contemplação nas fétidas águas dos seus cânones será imprudentemente a maravilha, a forma de arte completa, vista por quem a observa em outras latitudes. Devolver o cenário de uma excrescência será esse o trabalho mais sério de um artista ou de todo aquele que perscruta os sinais do estranho horror que emana da vida. Podem os que escrevem aleijar todas as fontes verbais ao sair do labirinto de um ordeiro Minotauro que, doloso, segue a nossa sombra para se entreter no seu martírio de fera só. Tudo podemos experimentar na longa marcha que cria o insólito com que muitos olhos, mesmo abertos, ao contemplar, não vêem a liberdade total que será sempre a conquista definitiva do próprio mérito.

Não queremos poesia de género nenhum.
Queremos truques mágicos de saco,
Procurando tapar na existência um fatal buraco.
E apesar de esforço insano não tapamos nenhum.

Wilhelm Klemm – Expressionismo alemão

Há no entanto algo que escapou a uma filtragem atenta e se precipita agora na antecâmara provável dos horrores, esse algo que não tem código na nossa outrora e quase obscena arte do feio, um fenómeno que ultrapassou as torres de vigia de como olhávamos o esquartejamento das imagens… uma outra dimensão que a fealdade não alcança. Já muito alucinámos acerca da devastação dos medos, eles tornaram-se modelares, competitivos mas o que se avizinha não nos deve estarrecer nem surpreender, na medida em que não temos esses sentidos para os contemplar, mas onde certamente somos a via por onde uma repugnância qualquer se fará sentir. Acéfala e gregária, a nossa vida avança para o cume de um estertor que não há registo, pese embora a distância da quimera de cada um na felicidade ardilosa que teima em não chegar. O nosso repouso celular deixou entrar um festim de exterminadores implacáveis. Já não há braço, modelagem, ferocidade, génio, garbo, convicção para a metamorfose de um cerco em volta do mundo.

O “código criminal” do feio pode ser uma qualquer mágoa acelerada para anunciar desastres e também um local de exílio perante a falta de compaixão, foi Isaías que anunciou que um Messias sem beleza diante do qual se tapa o rosto, considerado como um leproso iria ajudar-nos a salvar-nos de males maiores. Há instantes mais cruéis que olharmos no olho de um Ciclope, e desventuradamente o grotesco se desfez para dar origem ao medonho.

Salientar que chegam até nós as trombetas de uma regressão – não fosse nada definitivamente andar para trás – avança de outra maneira com mais pujança que o antigo braço que vemos chegar quase tão repentinamente como os furacões.

30 Out 2018

O diabo

[dropcap]C[/dropcap]om os anos devemos à memória mais, muito mais do que a toda a informação obtida, dado que a informação não cultiva, e a memória cultivada regista outros parâmetros onde aquela com sede de novidade já não pode inovar. O alarido “diabólico” das mentes ofegantes que geram no éter as nossas informações parece montagem de maus demos no exercício das suas funcionalidades. Barricamo-nos na deriva de tanta presunção diabólica, coisas que na memória, tal como disse, não parecem funcionar assim. Recuar até Giovanni Papini, converso cristão, que de forma ilusionista lhe vestiu o manto e quase se santificou até ao mais improvável alibi, ao seu «Diabo» que em nada se parece com esta dimensão desconcertada de um mal aleatório. Que grandes páginas a ele dedicadas o mundo não padece «O Dicionário Infernal» de Collin de Plancy, que veio a ser, e muito justamente, designado por «género frenético» até a «Hora do Diabo» de um Fernando Pessoa. Há matéria para tais deletérios e, pasme-se, que podem ser louvados enquanto exercício de uma esfera fecunda, que o é.

Mas qual o efeito deste Demo, senhor das coisas impensáveis, que cavalgou as nossas vidas antes da lava larval dos novos conteúdos? Nenhum. O Diabo, a haver, já se foi, da mesma forma que Deus morreu. Só nós, no centro do labirinto da teomania, nos avantajamos para mostrar obra feita que reponha tais princípios, podendo bem dar-se o caso de ser agora uma lenda bem menos amarga que as nossas tão humanas interpretações. — Que Pessoa afirmou na sua Hora que ele era um cavalheiro e que deveria, por isso, uma senhora mostrar-se confortável na sua presença — o que não deixa de ser uma grande reabilitação face ao homúnculo que por este mundo anda, até ao seu Beijo, com a carga que selou um improvável encontro. Foi Deus que desceu à condição e teve como resolução final a Paixão, ela, não se encontra pendurada sangrando de humana barbárie – não – a isso chama-se assassinato. Um beijo assim tem mistérios tais que milénios de cânones não conseguem descortinar. Afinal, não se deve tocar em ninguém e, sobretudo, como bem viu um jovem professor, obrigar crianças a beijar avós ou quem quer que seja contra as suas vontades. Tocar é um mistério, ser tocado, também.

A venda não tapa os olhos dos vendidos, vender é fazer negócio, e que se saiba ninguém negociou beijos ou vendeu a resgate o ponto imóvel de um deles, que desse origem a esta arrasadora frase de Papini: «que resta a fazer quando nada mais é possível? Volver-se pois contra si mesmo…abocanhar-se, fazer-se em pedaços…e um dia? Um dia, abrasar. Mas nos seus membros lassos por entre os coágulos acres de sangue, há um pouco de carne intacta, onde ele com Judas beijou», o que pode bem responder à questão do Evangelho segundo Mateus – Amigo, que vieste aqui fazer? Sem mácula, a carne beijada. Mantivemos a luxúria como um elo da malignidade e, de certa forma assim é, mas o Beijo não tem escala percorrida na antecâmara das profanações, nem estas carnes que se tocam são de natureza profana a produzir simples desejos. Estamos na intimidade de uma grandeza.

Há muitos sortilégios em forma de códigos morais nas ideias alternativas e nas mentalidades modeladoras. São bocados de encantamento que lutam contra o desgoverno mundial mas, mal feitas e dirigidas a não se sabe quem, coisas de arrepiar se multiplicam sem que tenhamos capacidade de as reconduzir a uma forma de combate leal. Atravessamos a loucura como um estado de coisas naturais, gostamos da bruxa má, do inferno porque é giro, da resiliência soez, e andando nisto até parece que Satã nos fica a matar. Não. Não está aqui. Nada disto tem sentido infernal nenhum. A vacuidade produziu uma estranha importância cuja cauda não chega à de um crocodilo e bizarramente altiva-se de perfeccionismo serôdio para alinhar no esconderijo do pormenor. Regra de Demo, sem que se lhes reconheça sagacidade para juntar todas as peças de um acorde: o que ele gosta de violino!!!

Cada época recorrerá, criará a sua noção de malignidade, mas não creio que se possa recorrer já em todas as culturas aos arquétipos: as advertências são grandes e o próprio mal uma consequência e, na medida em que nos falta elementos valorizadores da natureza humana para que as tabelas oníricas se mantenham como suportes, é mais fácil um desventrar sem causa do que uma perseguição por culpa. Quem não entendeu um Beijo não pode querer saber mais do muito que ainda tem para lhe acontecer – e aconteça o que acontecer – já não há beijos que nos ressuscitem ou nos condenem. As nossas bocas fazem dieta e o nosso corpo deseja-se magro. «Encontrei-os cegos – ensinei-lhes a ver. Agora não me reconhecem nem me vêem» Blake, este Lúcifer tem mais potência que toda a industria energética que não deve ser cortada por subalternos de um deus menor, uma fonte que por cá, não raro, até prodigaliza incêndios ficando a terra um inferno sem brilho.

O físico Stephen Hawking acaba de deixar estranhos prognósticos dizendo mesmo que nos podemos extinguir em face de uma espécie melhorada… mas o pior é darmos de caras com o Demónio do Apocalipse, aquele que virá para julgar os vivos e os mortos, sendo os vivos horrorosamente nós: «Nesses tempos os homens procurarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer e a morte fugirá para longe deles» Não, não é contra a eutanásia. É a vingança do retorno do Diabo. As almas estarão num tubo de ensaio para não mais ser vendidas. E dos beijos que der, mais ninguém terá conhecimento.

23 Out 2018

Gérard de Nerval

[dropcap]Q[/dropcap]uando em Baudelaire vamos encontrar o radical efeito de um sedutor das trevas rapidamente notamos que não está sozinho. No seu repositório belo e bravio acenam muitas imagens e aspectos de composição do imaginário poético, o esqueleto transparente de Nerval, nascido doze anos antes, no esotérico e escatológico universo do Romantismo. Que eles, poetas, vêm para salvar o mundo com suas imponderáveis intervenções, e nesta corrente é ainda a imolação que preside ao destino imposto. A loucura ronda sempre por perto como uma escavadora, no entanto «La dernière folie que me restera probablement, ce sera de me croire poéte» (Nerval).

Século dezanove é quando o belo poema de Baudelaire irrompe. «Spleen et idéal» onde cremos ainda estar a ler – continuar lendo – o poema sempre inacabado «Le Christ aux Oliviers» e tão próximo é a mesma atmosfera e estrutura do poema que sabemos que todos os poetas são Unos, escrevendo, reescrevendo o mesmo legado do mistério de uma ferida. Sem ela não havia existência possível para estes seres no mundo, nem a sua já tão débil existência teria tido entre todos algum sentido. Escrevemos estas coisas que agora aqui são ditas à distância de dois séculos e parece-nos que todos estes “erros meus, má fortuna, amor ardente” foram resgatados ao fluxo de não nos consentirmos na indagação que culmina em vãos alheios pelo espírito da época, quando o temor lhes fecha as portas. Mas eles são tão poderosos que não há antídotos para tal esquecimento.

Nerval nasce, ainda tal como Baudelaire, numa organização social onde as suas sensibilidades só podem continuar com as heranças de família e onde o conceito artificial do trabalho não se lhes impõe como forma de “ganhar” a vida, um pouco corroborando a bíblica frase: «quem quiser ganhar a sua própria vida, perdê-la-á» e esse aspecto que não é nunca uma questão de somenos importância carrega um pesado anátema face ao tempo que vivemos. O “trabalho” é a arma de quem não pode ou não sabe fazer mais nada, e do nada produzido transportar o tempo ávido com uma condição de viciado. Nem sequer pode ascender aos «Paraísos Artificiais», o artefacto não sobe na direcção de «Quimeras» bem construídas, pois que os sonhos não gostam de quem deles se afasta e delegam para a robustez dos sobreviventes a lava da sua mortificação. Perfilha-se Nerval ainda jovem nos apoios românticos de Victor Hugo e frequenta o «Petit Cénacle», antes surge com as suas poesias e sátiras políticas, traduz o «Fausto» de Goethe, adaptado por Berlioz em 1829.

O poeta das buscas pelas fontes secretas não se retém apenas na sua «Alquimia» ocidental, simbólica e tem o ensejo de partir para mais longe rumo a Oriente. Médio Oriente onde resultam as notas conhecidas de uma viagem que desejou como uma quarentena no deserto (as areias são mais divinas a seus olhos que as ondas do mar). Publica mais tarde «Cenas da vida Oriental», mas o seu estado de saúde oscila entre crises psicóticas onde a intermitência dos internamentos começa a destruir toda a energia que encaminhava para uma obra cujo tamanho nos deixa confundidos. É, no entanto, nesta altura que um conjunto vasto da sua poesia fica registada na memória do tempo, o que faz Proust mais tarde debruçar-se na sua busca como um triunfo de um imaginário que resiste. Alastra-se o seu encanto até ao surrealismo, Nerval que fora um homem ocupado de transcendências, profecias e leis cármicas, escreve nesta altura Antéros, o deus da classe dos Erotes, sublinha a importância de um socialismo futuro, e sem que a corrente se parta jamais vamos dar ao nosso próprio Antero. E tão fina ela se move que a resolução encontram-na no suicídio, a longa viagem destes Atlantes que desemboca num cais, «sózinhos num cais deserto», Ode Marítima aos desertores da vida, onde todos começam, e outros desaguam nas mesmas águas levando sempre traços inquebrantáveis de uma mesma lucidez.

Com alguma tristeza deparo-me com um compêndio de História da Literatura Francesa de liceu, que o não engloba, e estas coisas podem não ser tão negligentes quanto imaginamos. Surripiamos as lendas, mas o tempo é ainda mais agreste para quem lhes veste as fardas sem acreditar na quimera daqueles que as escreveram, vivendo-as. Não queremos descer ao abismo esperado, e nunca se desfez tanto em tão curto espaço de tempo e se projectou a vontade da insignificância dos méritos de cada um. Para o mês ainda nos deixou «As noites de Outubro» e afirmou de si mesmo na imponente frase que nos ergue e mete em guarda: «je suis le ténebreux, – le veuf, – l´inconsolé». Uma panóplia de vozes nem sempre nos leva à heteronímia, mas elas coexistem dentro dos melhores condutores de partículas que ao acelerarem, serão sempre as primeiras a encontrar a de Deus.

Nenhum acelerador é feito destas malhas, nem a velocidade a que se deslocam se precipita na cauda de uma competição, isso, que a nossa Humanidade esqueceu, terá que ser recordado ou paramos todos neste transbordo dos que se agitam num mundo sem futuro, num retábulo de movimento a cada instante mais ilusório. «A mão encantada» fica para obra póstuma pois que a sua própria interrompe a vida em 1855. As suas primeiras obras completas saem em 1867 em seis volumes na editora de Michel Lévy. Até hoje há essa mão encantada que vamos buscar a tão raro talento magoado.

«Judas! lui cria-t-il, tu sais ce qu´on m´estime
Hâte-toi de me vendre, et finis ce marché:
Je suis souffrant, ami! sur la terre couché…
Viens! ô toi qui du moins, as la force du crime!»

16 Out 2018

Uma língua de mar   

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistiu algures uma teoria da arquitetura portuguesa que não é mais do que a extensão do desenho das emoções projectáveis que ao modelar a paisagem teceu a linha da saudade. A linha horizontal. Nunca de facto o gótico foi expressivo entre nós, nem os vastos guindastes para os céus enaltecidos enquanto desafios imaginários. A linha que se estende oceânica também modela as vozes e tem verbos longos, arrastados, que abre vogais, amplia noções, pega no fio e transporta-o em deleitoso arrastar de forma deitada. Uma paisagem que os sentidos apreendem, as vontades compõem e dá origem a formas de pensamento. Ao partirmos de um lençol deitado, bordado, desses monumentos compridos, densos, transformáveis, levamos ainda o grande fio que irá servir de laço «laços de amor» às vestes dos Vice-Reis da Índia.

Uma corda em pedra que sobe, que é rente, que enreda, serpenteia, não é o mesmo que um bastão de um «Excalibur» nesta designada outrora terra de Mu, ou reino das serpentes, que definitivamente não gosta da recta e onde tudo ao redor nos lembra disso. Até os signos alfabéticos nos dão conta, quando ao percorrê-los vamos encontrar um «S» exponencial para as concordâncias que atravessam a língua toda: terra dos Silvas, das Saudades, das Saúdes, das Sardinhas, das Senhoras, dos Soares, dos Sousas, dos Sidónios… dos Salazares, um manuelino enroscado à teia de uma consciência da vida como «Capela Imperfeita» que ao não ter tecto faz das alturas estelares uma visão aterradora. Octógonos em pedra, deitados nas lajes os mártires que aspiram nevoeiros.

Toda a sinuosidade se adapta ao espaço, contornando-o – uma manobra dançante – teme o obelisco, corta as partes contundentes, ameaça ser um lago e lança-se em oceanos. Lá chegados, as terras que fomos inventar são hoje uma panorâmica surpreendente do ventrículo luso, as cidades onde ora acontecemos parecem ainda hoje ter as “tripas de fora” nos postes de abastecimento energético, que a tripa é uma curvatura lindíssima e serpenteia cidades como uma piton iluminada. Nós não vemos isto, aliás, nós, agora tão Encobertos não olhamos quase nada e vamos melancolicamente a direito dentro de cápsulas sem préstimos e qualidades. A errância, essa grande teia, tem uma língua que propulsou, tomou cuidados, e foi em correntes de água molhar as bocas que encontrava.

E hoje, a memória do que outrora levávamos não tem voz, a nossa lembrança não tem chão, perdemos tudo ao tentar ser outros e cegos fomos ficando no intenso nevoeiro. Louvámos os charcos e calcinámos as frotas. De grande, restou-nos um certo círculo onde se tece a teia, onde se nasce para o fundo de cabeça a descoberto… e agora, que todas essas redes gravitacionais que dançavam numa estranha mas fascinante inspiração colectiva para sempre se foram, eis-nos que somos o que a ninguém lhes acontece ser: reflexos. Qualquer coisa no entanto e de novo se faz sentir, pode até coincidir com o último trago, mas não será em vão tentar pensá-lo.

Já poucos, aguardamos, cansados, nem por isso desistimos. Os ciclos são esféricos e quase sempre pela brecha que não esperávamos muda o mundo. Pode haver um senão: não estarmos aqui, mas outros tomarão os remos da ideia começada. E pela mesma razão que a língua galgou as praias por onde Velhos anunciavam desventuranças, iremos agora buscá-la mais além, nos locais onde beijamos outros. Tudo isto, e não sei em que sentido me lembra este poema de Manuel Bandeira:

“Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza mas por altivez
No tormento mais fundo o teu gemido.
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana.
Não tremer de esperança nem de espanto
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé no mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.”

Uma língua de mar.

9 Out 2018

Santo Antero

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ça de Queiroz apelidava assim o seu amigo logo que o via chegar: – lá vem o santo Antero!-

É talvez a mais bonita expressão encontrada para este homem tão singular, tão fraterno e atormentado, um louvor que os amigos reconheciam justo, e um distintivo para o poeta que era.

Unidos se encontravam nas causas académicas e nas correntes ideológicas esta «Geração de 70» e a grande vanguarda das suas posições iria colidir com os ultra românticos, o denominado grupo «Do bom senso e do bom gosto» uma disputa conhecida por questão coimbrã. Mais tarde, também o Governo viria a proibir estas sessões de esclarecimento por parte destes  intervenientes. Oliveira Martins fala de Antero com a mais comovente admiração, chegando ao ponto de descrever as lágrimas quentes que lhe vinham aos claros olhos em instantes de tormenta e aflição: descreve-nos um Antero impedido de mentir, de uma transparência e de um desassombro que ficamos por ele apaixonados. Ninguém se lembraria neste tempo descrever as lágrimas revoltosas de um amigo nem a sua incapacidade para a obscuridade, ninguém era capaz de semelhante amor. Que o amor entre os homens existe, sim, e  não é por isso uma transsexualidade  misógina, nem uma moda de casamentos, existe, e é  realidade  de homens excepcionais.   

Setembro traz Antero à nossa memória e com ele a peregrinação pela sua utopia, o emblema de um Socialismo Futuro, traz-nos a escada estreita, as lôbregas jornadas, o sonho oriental, traz-nos este budista cristão, um Budismo coroado de Helenismo, e uma bela interpretação do Nirvana na voz de um Ocidental se faz notar, por outro lado, raiava sempre aquele fogo redentor de um Cristianismo inaugural que viria a ser  a dama da sua alma enlevada pelo aperfeiçoamento emocional. Traz-nos a sua morte. Antero suicida-se a 11 de Setembro de 1891, e o dia nefasto não será esquecido. Num assombro de lucidez e grave  derrocada, um homem assim, de uma extrema Liberdade moral foi bem capaz de não suportar o desastre que é a imagem das almas estarrecidas perante tantos dolos, subserviências e misérias. O poeta venceu o homem, e uma vez mais, se fez matéria do seu próprio canto.  A cisma dos suicidas não foi estranha aos dias que antecederam a sua morte, aquele cismar que denota grave instante, mas, aqui, nesta fronteira, sabem-no bem estes cismadores que não há nada que os defenda. Mais nada a ripostar.

«As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» ilumina sempre de fresco a nossa memória, e fora escrita numa espécie de lampejo visionário às portas do século XX onde começaria a descida mais funda pela grave ofensa que foram as ditaduras ibéricas. O homem político, o artista, o pensador, o filósofo e o poeta, habitavam todos neste ser numa única condição. Transcendidas.  Estava envolvido com a sua época por aquele lado que as épocas nunca entendem, e, quando o fazem, é sempre tarde demais. Que as eras e as épocas serão sempre motivo de grande estranheza para homens assim, os seus legados, sempre tão únicos,   inesquecíveis, poderão no entanto servir de conforto para as suas comuns inibições. Dizia: «soframos, pois, com paciência as injustiças deste mundo, que, afinal, é mais ignorante do que mau, e, em suma, bastante infeliz por seus erros e ilusões, para que tenhamos por ele mais piedade do que ódio. Não é a ele que propriamente detestamos, mas a iniquidade que esta nele» Cartas. O seu inquestionável apostolado chamava a atenção para o problema derrapante do ódio. Não consentir jamais uma teia que conspire nas nossas veias tais venenos.

Um grande humanista está sempre implicado em causas sociais, demora-se no seu longo amor Humano, cresce até não poder mais, e sente a impotência da marcha. Boémio, não lhe faltou a farra e os encontros com seres do seu estatuto moral, transformador, arrebatou muitos, e sozinho, ele não se lembra de mais nada. Está em transe! O dia não lhe surge redentor. Vestiu-se de preto, comprou uma arma, sentou-se num banco, colocou a pistola na boca, dispara, não morre, a dor trespassa-o, desfere o segundo, e Antero está morto. – Na mão de Deus, na sua mão direita repousou afinal seu coração.-  Lembrar este momento é como unir os dedos em orações que não recordávamos e num relâmpago todas lembrar,  tentar entender como a natureza reage e conspira ao redor, será vestirmo-nos de preto e pôr na boca laranjas amargas, depois, ficarmos nus e sem frutos diante do abismo. É aproximarmo-nos de alguém que de si não teve medo. Sangrar, Sagrar, ficar num chão, limpo,  lavado.

Mas, e ainda:

Ergue-te, pois, soldado do Futuro

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze a espada de combate.

19 Set 2018

Conta-me contos, ama

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ontos, o melhor da literatura e os mais interessantes parceiros de viagem, onde sem nenhum esforço vamos encontrar os grandes escritores contando de formas várias quantas vezes o mesmo conto, que neles reescritos são sempre novos, sempre únicos. Discursos que se unem derivados das mesmas fontes, culturas que partilham espaços oníricos, tão próximos que ficamos a saber de uma provável fonte comum. Contam então muitas vezes os contos, aspectos particulares das culturas dos povos, na vertente do gosto pelos ciclos curtos e intensos, por onde férias e dias grandes hão-de passar: esse tempo de papel que rasgado em mil pedaços, deles fomos recolhendo as lendas, e hoje, escutamos no interior deste género literário ainda as “vozes” pelos autores que tão bem, e jamais, deixaram de escutar tais chamamentos .

Faltam-nos sempre alguns que a voracidade agarra e leva rápido num saco de viagem. Já não temos amas e vozes que nos contem coisas nesta solidão, e carregamos com eles levando as “vozes” e num breve instante damo-nos conta que grande parte das nossas bibliotecas estão pilhadas deles, que esperam partir connosco para longe em fuga aos quotidianos. Por instantes, ainda nos admiramos de tanta coisa sem interesse de carácter marcadamente intimista que ocupa lugar a mais, impressão volumosa, pesadas notas interpretativas, um conflito permanente com a nossa paciência que desejamos polida para nos massacrarmos na ânsia de não ficar para trás nos temáticos interesses da época. Medimos o tempo pelo resto que nos falta e resolvemos só levar connosco tudo que nos faz radicalmente bem.

Que tempo descritivo é o nosso, sim, onde a factualidade é de tal ordem implementada que se remete a herança de uma memória colectiva para certos apeadeiros a que chamam ficção, que passa rapidamente a fixação, quando todos numa embrulhada gigantesca resolvem soltar a sua história. Por isso todos sabem de tudo e o que não sabem inventam num desespero sem paralelo para que se escute as suas vozes… até fazem cursos para aquilo sair ligeiro e onde fiquem depois mandatados para tecerem resmas de papel nas quais se debruçam testando assim a nossa paciência. Acrescentar matéria aos sonhos requer muito mais, e admoestar um serviço ao seu mais fino conteúdo, exige o grau máximo da qualidade que se dá, quando em proveito de todos nos desembaraçamos de nós.

Juntos «Contos Misteriosos e Fantásticos» de Edgar Allan Poe, «Contos Maravilhosos» de Herman Hesse, «Sobre os Contos de Fadas» de Calvino, «Pequenas obras Morais» de Leopardi, «Contos de Amor Loucura e Morte» de Horacio Quiroga, «Amor no Feno e outros Contos» de D.H. Lawrence, «Lendas» de Gustavo Bécquer, «Contos Populares Russos», «Contos» de Eça de Queiroz, voltamos para o ano sem grandes saudades de mais nada. «O Mabinogion» sem par, onze contos da cultura celta, uma arte de bardos e de encantos, as lendas, dadas por dois manuscritos, o Livro Branco de Rhydderch e o Livro Vermelho de Hergest, escritos em língua galesa no século XIV mas podendo remontar ao século XI na versão mais antiga no país do Rei Artur, transformando a leitura de alguns contos por vezes muito curtos em demorado prazer.

O clã celta é uma estrutura compacta que afasta o cavaleiro paladino do silêncio e da solidão, naquele local todos se juntam sem ásperos abandonos a um propósito privado. Podíamos viver aqui o resto da viagem. Nos contos encontramos por fim os arquétipos, bem como os mitos inaugurais, e de tão juntos, renascemos outra vez para os grandes e bons encontros. No «Homem que Morreu» ( como se cada homem no país de Lawrence fosse eterno) a “contagem” é a dos Véus de Isis…Quiroga um dos fundadores do conto moderno, dá-nos a contar a Morte de Isolda… a morte está presente como sinal de arremesso aos desaires dos seres… Bécquer, esse, só não quer que se toque nas pedras de Toledo, em Eça de Queiroz e a partir dos seus textos dispersos em jornais e reunidos em «Contos» vamos encontrar as páginas mais bonitas da sua escrita. Os «Contos Russos» onde a Gata Borralheira também entra, bem como um certo aspecto do seu folclore que faz surpreender culturas distantes, instiga-nos a ver melhor a universalidade dos povos.

«Lendas e Narrativas», que longe anda, tece esses meandros dos sonhos de antanho e das lutas e amores onde não falta a veia árdua de um cronista na opulenta capacidade de Alexandre Herculano. Quanto ao tema das literaturas populares devemo-la a Almeida Garrett, recuperados os ciclos da expressão oral. São sempre novos, sempre outros, sempre os mesmos, no fazer e refazer da linguagem de cada um, por que é essa similitude que dá o maravilhoso, pois em nós nada há dessa matéria retirados se formos desse todo. Por isso os levo como se levasse apenas um, que contam assim na multiplicidade individual das suas vozes e fazem entender que a trama não passa muitas vezes de um artifício fustigado por “originalidades” sem origem.

Conta-me contos ama, todos os contos são esse dia, e jardim e a dama que eu fui nessa solidão…

Contam-nos assim os que dizem escrevendo para nós no interior dos tempos, e de tal modo a voz nos soa a uma paz perdida, que ama sempre mais a criança que somos, a velha ama.

6 Set 2018

SAILING TO BYZANTIUM

«Este país não é para velhos»
W.B. Yeats

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omeça assim o poema de Yeats que nos leva a Bizâncio, e reforçando ainda a ideia que um “velho não é coisa de valor” afirmações que só os poetas fazem, pois que o dizer nas suas fórmulas verbais, literárias, orais, têm outros signos, vastos sinais. Nem sempre as formulações que dão expressão às suas temáticas são eufemísticas, metafóricas, antes pelo contrário, muitas tendem para um desassombro que esclarece e ilumina. Os títulos de muitas coisas que andam pelo mundo foram aos poetas beber, retiram tanta coisa, que seria bom fixar a titularidade do mundo como o retalho de dizeres poéticos, creio que grande parte da Humanidade não se apercebe dessa fonte, como talvez nem saiba que tal fonte exista. Creio que na atoarda dos «Poetas Mortos» muito escapou de Walt Whitman, os capitães, esses, são todos de Abril, e pelo mundo fora, velhos marinheiros, os poetas, uns seres estranhos cujo destino é o saneamento ou a gruta. Relapsos. Mas, e sem desprestígio para outros «o que fica os poetas o fundam» (Holderlin).

Lembrei-me deste poema a partir de uma situação bem concreta, espontânea e natural, um fim de tarde de sexta-feira bela de Estio, aquelas tardes em que se combinam coisas com amigos, como seja, ir jantar, os amigos como bem se sabe não são novos, para isso temos agora os nossos filhos, e, realidade vasta, quem nunca os teve: claro, nós precisamos esbracejar, estar entre comensais, beber, louvar a talvez ainda longa vida que nos resta, mas, eis senão quando, a ideia seria uma “coisa” ligeira”: fustigada por um dia duro, aquele “ligeiro” pareceu-me de um mau gosto inexplicável, e retorqui; «LÁ ESTÃO OS VELHOS COM A MANIA DA DIETA» chá e torradas, em jeito de interjeição, e sem me dar conta estava no caminho de Bizâncio. O que se passou de seguida é digno de nomear para sempre este poema, pois que fui atravessada de espadas grosseiras de indignação não consentida deixando a descoberto a tristeza da juventude que se arrasta. Ou de uma ideia dela (sem querer, e de forma absoluta, que cada um usa o seu radicalismo junto às esferas onde se encontra, que ser moderado perante a indigência é verdadeiramente o mais antipoético que existe. Desapareci num ápice).

– Essas gerações moribundas – diz então Yeats – estas gerações moribundas – digo eu agora, são sempre um espectáculo atroz, são-no ainda mais na interpretação de uma factualidade que se rejeita como o mais duro dos anátemas, que ele, há coisas bem piores que nos chamam, sem uma devida rectificação indignada, e essas sim, foram construídas em tempo defeituoso face à dignidade do ser. O óbvio não deve ser revelado. Daí a rede de disfarces, de dislexia social, de juízos de valor, de cinismo vário, de supremacia infecta que cada um a si se dá, absolutamente patéticas. O que se pode dizer, e o que não se deve dizer, assaltou as consciências como um ladrão, roubou toda a via poética por onde a saúde mental há-de passar, e contaminou de conceitos os frágeis sentidos das gentes. Um poeta será agora a deidade esquecida no meio desta mecânica paralítica cujo desígnio seria iludir os factos. E quando olhamos ao redor cresceu o cinismo, a descrença, a vontade de superar a máscara, infiltrados em dispositivos automáticos vê-se um mundo que resvala para a paralisia de si mesmo. Está a ser um falhanço humano este estertor do tempo comum, e por isso, outro Homem se avizinha no horizonte, outra “máquina” outra fórmula.

Pois que faz tempo que ser velho foi um distintivo, uma receita de saber e fértil consciência. Protectores e mestres, eles davam início ao mais nobre da caminhada da vida, sem sobressaltos, vergonha, ou insubmissão, mas com orgulho, nobreza e respeito. Aliás, notava-se-lhes nas vestes, nas barbas, nos semblantes, nas sábias expressões que nos davam caminhos que todos precisávamos saber. Um ancião era respeitado pelas suas comunidades, e muitos, venerados como os signos vivos do entendimento. Eram os nossos Avós. Que tinham a mesma idade dos velhos de hoje, ou seja, das gentes que agora somos. Aliás, entendo que o magro entendimento da cultura poética agudizou de vez a antipatia pelos seus fazedores, e, para tanto, para que ela morra de vez, arranjaram-se versejadores sem qualidade que lhe roubaram o epíteto que pertence a um certo fogo, que também, e rodeado disto, aos poucos se apagou.

Quando o esclarecimento é óbvio e tem o assombro das justas designações, caímos vazios num mundo sem expressão, e, não há nada mais insipiente do que a coerência equilibrista de um auto representante de uma matéria que a sua própria vida não domina ” devorai este meu coração; doente de desejo, atado a um animal agonizante, ele não sabe o que é; juntai-me ao artifício da eternidade.” Transcender esta desdita, este ultraje, esta vileza, deveria levar-nos a ter o caminho mais justo, a via mais limpa, o ajuste mais certo, mas são sempre eles a pagar o preço da sua capacidade em ligar o todo e o denunciar nas esferas exactas. E, como bem sabemos, os povos são rebanhos amestrados, as pessoas coisas que passam, mas os poetas, são aqueles que ficam. E não ficam aqui. O seu exemplo fica em todos. Aqui, nunca mais.

Da natureza liberto, jamais de natural coisa
Retomarei minha forma, meu corpo.
Mas formas outras como as do ourives grego.
Em ouro forja e esmalta em ouro.
Para que o sonolento Imperador não adormeça.

Vivemos tempos patéticos. E na moldura da necessidade e do bem-estar, se dissipou então o caminho dourado para Bizâncio.

 

30 Ago 2018

É a hora

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Hora está próxima diz o Corão. O Dia do Juízo Final, o Último Dia, a Hora, cujo instante só a Deus pertence. Inspirados nas Escrituras judaico-cristãs e não sendo por ele revelado abertamente, sabiam esses povos que tinham de conquistar assim, Jerusalém. Mas nem só o Islão nos fornece a Hora como seu momento apocalíptico, e visto que o Livro, é um livro de poemas, não será de espantar que os poetas nas eras tomem o mote ao impositivo momento. E entramos no «Nevoeiro» esse culminar da Mensagem com o mesmo veredicto «É a Hora»! Fazendo mesmo do conjunto da Mensagem um hipertexto de cariz muito ao sabor das fortes correntes das conquistas em torno de Jerusalém. Dá-nos os suras, o poeta, tiradas da tradição oral como recitativos e postos a vibrar em poema escrito.
Há uma lenda que nos diz que Maomé dormindo ao lado da Caaba, teve uma visão: o Arcanjo Gabriel empreendeu com ele uma viagem rumo ao «Santuário Longínquo» onde encontrou Adão e Abraão bem como Moisés, José e Jesus, subindo depois aos Céus por uma escada, (talvez a mesma de Jacob). O Islão crê que o tal Santuário era nem mais nem menos que o Monte do Templo. Chama-se a esta passagem Viagem Nocturna. Na Mensagem – III Os Tempos – inicia com Noite: como bem sabemos o Islão não reconhece a Trindade, Deus é Uno, e não há intermediários, aqui aproxima-se mais do irmão judaico, e diz assim a Noite:” Senhor, os dois irmãos do nosso Nome/ o Poder e o Renome- Ambos se foram pelo mar da idade/ À tua eternidade; … Queremos ir buscá-los, desta vil, nossa prisão servil: / … A Deus as mãos alçamos/ mas deus não dá licença que partamos:” Quando em Meca tentaram matar o Profeta ele foi socorrido num oásis de tamareiras fundada por tribos judaicas, e parece que muita coisa sabe o Poeta e outras tantas sabia o Profeta, e que ao entenderem-se assim, nunca o vasto entendimento assim os viu.
Jerusalém está em Pessoa como um selo, sagra-o de modos vários, congela o saber erguido dos que buscam para si a História única, mas a interpretação não está nas nossas Naus. O trilho por onde passa a grande fonte vem de mais longe, exerce o teor solitário de quem faz a obra, de muitas leituras, e onde todas são possíveis, mas sendo Pessoa quem era, e sendo o Livro o que é, ambos se ramificam em esferas várias. Mas vamos encontrar mais tarde Maomé já em Medina com os clãs judaicos onde criou a primeira mesquita feita à imagem do Templo de Jerusalém fundando assim a primeira qibla orando ainda virado para ela e não para Meca, impondo a oração do fim do dia de sexta-feira e prolongando-a para o dia de Sábado, proibindo a carne de porco, instituindo a circuncisão; com as suas características específicas, o Islão sabe de onde veio. Com furor e muito mistério vão-se as coisas, mas os poetas, atentos como linces aos Templos que se erguem e tombam, sabem unir partes tão dissonantes como a amálgama daquilo que ficou refém nos interstícios das suas palavras.
Esperançadamente Sebastianista vamos encontrar a ânsia do Messias: Sebastião, uma delonga… uma saudade… e cruzam-se as tríades de só um semblante que olham agora para ele, e Gabriel mais uma vez entra nos sonhos: Sperai! Caí no areal e na hora adversa/ que Deus concede aos seus/ para o intervalo em que esteja a alma imersa/ em sonhos que são Deus. Adverte-nos ainda para o Império Europa: Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão/ para onde vai toda a idade/ quem vem viver a verdade que morreu D. Sebastião? O supremo fanatismo muçulmano assentou sempre nessa máxima «É a Hora». Mas, e infinitamente mais poética, é o que nesta encerra outra: “estou preparado”.
Pessoa é uma água subterrânea no deserto, e nós temos de ter a sabedoria deles e abrir os furos que nos matem a sede e nos lavem dos olhos a poeira. Temos de seguir num longo caminho guiados por estrelas, mas atentos aos fluxos onde se constroem os oásis de tamareiras, a múltipla leitura é também o atalho do caminho dos Magos. E toda esta gente, Profeta, Poeta, Versão, Poema, Condição, Corão, são superfícies lustrosas por onde se insinuam coisas e se perde o reflexo nos fundos poços… Passada a fundura, entra-se em outros Jardins.
Portugal não é a terra prometida de ninguém ” Nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra”. Quatro elementos essenciais, mas ( que ânsia distante perto chora?) um levante de sombras trazidas por tribos que ficaram por aqui e nunca se esqueceram que o sangue é como o chão do deserto, uma corrente sem fim. E se por um lado ele é Encoberto, é só porque tomou a forma de muitos outros, para ser, de um reino que sem a memória destes Templos feito de Horas, ainda seria um rochoso Jurássico, não sabendo mesmo assim como agradecer às sombras. Sabemos que Descobertos os matariam durante muita longa Cristandade, e que ela, era bem mais deles do que vossa, dado que estas histórias são de raiz comum.
Outra vez «É a Hora» e longe estamos dos Fatimidas, essa dinastia islâmica refinada: e nesta Hora lembrada, anunciada: “quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a Hora?” II Avisos-Mensagem-
-Não tarda meu bom poeta – e mais uma vez, a razão que se tem é invisível e de uma vida temos apenas algumas Horas de clarividência. No mais, tudo isto é Nevoeiro.

 

22 Ago 2018

Cerejas

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]efiro-me à «Antologia de Autores Portugueses Contemporâneos», uma bela obra com prefácio de Eduardo Lourenço e posfácio de António Ramos Rosa da «Editora Tágide» Junho de 2004, abrindo assim o fruto do tempo onde cada poema é acompanhado com um desenho. Percorre-se assim o medieval “ciclo da flor” dos frutos, fazendo lembrar sempre Eugénio de Andrade: poetas-comensais exercitando o banquete mais bonito, cantando o fruto, tecendo o suco, vestidos de púrpura, polpa dura, verso tenso, inebriante, intenso. É um passar de folhas delicioso! Esta Antologia é dirigida por Gonçalo Salvado e Maria João Fernandes com capa de José de Guimarães, o mérito, esse, encontra-se defendido da praga das multidões.
Vazamos cestas delas em cada alvorada de poema, e, é tanta a metáfora, o conceito, a curva, a cor… depois, o conjunto fica inexplicavelmente e sem dúvida sempre mais bonito. A temática faz crescer o fruto, ampliamos a sua fórmula e de tanto o descrever vem-nos um perfume quase cheiramos a página. É todo um universo que deixa melhor o outro vasto mundo, mesmo que não seja por ele visto, pois que há muitas coisas deixam melhoradas outras sem contudo se anunciarem. Foi o Fundão que apoiou esta edição, tão funda é esta Beira; certeza de saber que um chão que dá tais maravilhas é sem dúvida um solo abençoado. Quando entregámos a terra aos algozes ela deixou de produzir maravilhas, e, nunca me esquecerei que no litoral havia umas cerejeiras tristes que davam cerejas solitárias, a mesma faixa de chão que foi assassina do seu “verde pino” e não pode agora ser solo de boas coisas.
É bom voltar à Beira no mês de Junho, a essa terra da Amália que dizia orgulhosa – nasci no tempo das Cerejas.- Lembrar um velho gato que as adorava, retirando com as patas dezenas delas numa esfuziante manobra de cor e movimento, vê-las nos rostos das raparigas, rodar a sua circular forma na boca até produzir o líquido rosa das delícias. É bom saber deste momento. As Cerejas são autênticas declarações de amor. Portugal é o país com as melhores cerejas do mundo, e não há nos seus campos a maldição dos incêndios, todo o reduto de um paraíso tem os seus dragões à porta… aquela gente tem outros carreiros pois que fizeram um estranho pacto com o solo, e a pedra é dura, e a vida não menos dura, e nestes locais encontram-se as maravilhas.
Creio ter sido uma Antologia temática bastante simples de elaborar, pois sem que reparemos, todos já tínhamos escrito sobre elas, e foi só ir àquela «Árvore da Vida» que é a dos versos, buscá-las para outro canteiro. Que ele há muito de metafórico no tema, e mais se lembra parábola do fruto da figueira, seja como for, o que aqui se deu foi demasiado bonito para esquecer. «Le temps des cerises» Comuna de Paris e seu advento socialista, transformámos a rosa em cereja e em todas as Primaveras ela se renova na memória de uma história comum “quand nous chanterons le temps des cerises et gai roussignot et merle moqueur seront tous en fête/mais il est bien court le temps des cerises/ c´est de ce temp lá que je garde au couer une plaie ouverture”. Destas saudades mantemos o desejo de um mundo renovado, pois que se saiba também não há revoluções fora do tempo primevo, e mesmo que os solos se tinjam de negro e calcinem as fontes e tudo fique sem nascentes, haverá cerejas e guardiões às portas dos seus campos como se fossem os últimos jardins. Cada uma é uma oferenda para pássaros e homens, para orelhas e grinaldas, para leitos enamorados, para esponsais em festa. Há quem faça curas de cerejas pois que se diz que limpa o sangue e o torna mais forte, temos no sangue a seiva da cereja. Tal como as manchas de sangue, a da cereja, são difíceis de sair, ninguém comete crimes sem a denúncia do seu rasto e ninguém as saboreia sem que o saibamos. Ficam timbradas em nós.
A metamorfose da flor é um encantamento tão grande que todos os versos são apenas flor pois se cada poema se comesse, uma deriva de súbita transformação nos mudaria o plano. Há quem tivesse na poesia portuguesa sugerido isso, e biblicamente há também a sugestão imposta pelo anjo «come o livro!» mas ficamos aquém do poema da vida. Talvez nos crescesse a Árvore nas veias e fôssemos grandes e arbóreos como nas histórias antigas onde havia comedores de pedras. Tinha escrito este simples poema quase juvenil e não hesitei em colocá-lo aqui que me parece algures desses míticos tempos :” quando andavas nos umbrais do tempo/ sabias a sal e a luar/ agora nem as cerejeiras consegues fazer florir com o sol do teu olhar.” Depois, alguém em outra página escreveu-me cereja ” Totalmente herética absolutamente hermética és a corrente eléctrica que subverte a métrica” e assim uma imensa alegria transforma os dias e a nossa natureza, unidos numa Cereja. Única. Absolutamente luzidia.
Os Samurais de Henriques Manuel Bento Fialho: os samurais subiam às cerejeiras/ penduravam-se nos ramos até darem flor/ esmagavam as cerejas como quem quebra nozes/ no dorso da mão/ e besuntavam o corpo com o suco da polpa/ para ficarem mais perto do sangue.
E quem te pôs na orelha essas cerejas, pastor? (José Gomes Ferreira)
Agora é quase Verão, e para todos, as nossas Cerejas

7 Ago 2018

A casa dos vinte e quatro

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] undial, o futebol conquistou o mundo, é esta uma extensão que podemos reflectir como unidade pseudo-combinatória do número como programa, numa orquestração de onze para onze, seguida de dois, o que dá mais ou menos um alfabeto, e dado a importância a que ele chegou, nós, os mais arredados, somos tentados a permanecer vigilantes, sabendo que ocupou aos poucos o lugar dos antigos exércitos e jogos de gladiadores, com denominadores comuns, como a destreza, a estratégia, a precisão e a atenção, e assim foi ganhando nos nossos tempos as formas Olímpicas. Os heróis, esses, mudam de registo “tomando sempre novas qualidades” a que esta deu a tónica de uma ampla pacificação.
E eis-nos no Mundo Palco na Casa dos Vinte e Quatro, essas tribos, tal como as designou Umberto Eco, onde o nosso sistema tribal ganhou nova tónica, novo fôlego, novas formas. E aqui vamos rumo ao sentido numérico do vasto passado histórico nacional, que bem se anteciparia por algébrica ao que viria depois. A Casa dos Vinte e Quatro é assim um microcosmos de uma realidade por vir, criada em 1383 por D. João I, à época ainda Mestre de Avis, com o objectivo dos mesteirais participarem no governo do país. É no seu apoio ao Mestre na Crise de 1383- 1385 que se encontra a génese do seu nascimento. Foi durante séculos uma organização sindical com poder deliberativo, onde as medidas eram aprovadas por maioria e quis o irónico destino que fosse extinta pelo regime liberal em 1834. Mas o seu enunciado numérico como bem provam os factos não se perdeu. O Mundo é agora uma grande Casa e as associações continuam em formato Vinte e Quatro.
Grandes acontecimentos improváveis estão unidos a esta prática colectiva, a ver pelos meninos da gruta, os jovens futebolistas e seu mestre, em número de doze mais um, que puseram expectante a Casa Mundo pela difícil operação de resgate, aqueles discípulos já não resistiam no deserto, mas sim fechados num buraco dentro da terra com um mestre pouco mais velho do que eles cujo amor dos homens fora de grande importância para a salvação de todos, vamo-nos dando conta que o futebol é um coro mundial, que joga sim, com probabilidades geométricas e nele reside algo mais do que a prática desportiva. O rolar, a bola, o marcador, o golo, o êxtase em uníssono…O que é um golo? Uma bola que passa por um sistema defensivo com todos a correr para o mesmo lado, uma quase espermatozóica manifestação… o mais veloz, o mais habilitado, o acaso que gerou a fuga, em suma, o mais conseguido que passou.
Jorge Luís Borges disse que o mundo gosta de futebol dado que é estúpido. Pode ser, o mundo é um local mimético, andamos fora e dentro a representar as mesmas coisas como se esta Casa fosse um campo fechado numa circulação sanguínea de outro sistema fechado, adaptando sistemas melhorados mas sem muita antevisão de qualquer outro plano. Nós esgotamos até ao delírio as fontes das origens- e se a origem nos faz originais — estamos a atravessar um mundo em que tal designação é cada vez mais inexistente, e no entanto, face a um tempo Galáctico que espreita, devíamos sair da roda, inventar com carácter de urgência campos novos, não vá acontecer que estejamos todos absortos nesta curvatura fechada quando alguma coisa de novo se der.
Estamos informados e muito desalinhados com o que vem de ontem, e não saberemos dos significados semióticos que devemos antever para não só sobrevivermos enquanto espécie, mas sobretudo, como sabê-lo fazer de outra maneira. A Casa dos Vinte e Quatro é um grande sindicato à escala global e os mesteirais votam “livremente” a fortuna que a todos pesa num grande corpo sem saída, a Economia, estrangulando assim os Olimpos, que em rédea solta deixará a cratera por onde o tempo luxuriante se esvai. A projecção do santo padroeiro passou para o clube, fundaram-se outros juízes, temos novos deuses, e como diria alguém na busca patética de transcendência: “Ronaldo já não é humano”. Não sei em que parte o nosso Estado tão laico criou para si os seus próprios deuses que figuram no Panteão dos humanos mas que são olhados exactamente como partes imortais, e onde deixámos Deus na sua mais abstracta abrangência esquecido entre um mundo que jamais o conceptualizou no seu devido entendimento.
Entre a manifesta noção de ser, enquanto estar ( uma rudeza gaulesa) quem se infiltrará para nos conduzir ao teletransporte, e quem não lá estiver, quem será? Ou, melhor, se não estando se conclui que não é, então nada somos, mesmo olhando a Casa em ecrãs gigantes que podem ser a manifestação de um “arrastão” por encantamento colectivo, a tal Roma com a mesma cabeça que um Imperador desejou decapitar num gesto só. Não nos esqueçamos que foi uma nova ordem que acabou com a Casa dos Vinte e Quatro, aquela que teria por missão unir o mundo, e dele fazer um grande empreendimento colectivo. Talvez o Presidente Português tivesse rectificado Trump para dizer-lhe que não pertence à velha estirpe ibérica, pois que na Europa somos diferentes, e que as balizas ainda não se galgam. Mas tudo isto são subtilezas num mundo que não as encara como grandes princípios.
Vinte e quatro horas tem o dia comum, e a Terra é um grande relógio que pode em boa Hora transformar os ponteiros se outros ajustes tiver doravante que fazer. E porque vai solta, pode a um tempo transbordar de todos nós, que sendo expelidos, nos consumará em suas entranhas. Há muitos campos, até magnéticos, transversais aos campos de futebol. Paradoxalmente, é na guerra que os homens se unem para cantar, e na paz, unem-se para ver. Ou não fosse o canto a velha forma inventada para apaziguar as feras.

31 Jul 2018

O colosso de Rodes

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]á para o Mar Egeu ergueu-se algures um monumento tão descomunal que parecia a metáfora mais conseguida da megalomania humana – isso mesmo – um colosso de 33 metros de comprimento. De pé a pé ia a convergência de três civilizações, pois que aos descendentes de Hércules pertencia o domínio entre o mar e a terra (no entanto, a imagem mítica será mais do fantástico medieval) seja como for, sabe-se que existiu e que um terramoto a fez desaparecer no ano de 226a.c: “para ti, ó Sol, o povo dórico de Rodes ergueu esta estátua de bronze que alcança o Olimpo… ele acende a linda tocha da liberdade e independência”. O deus de bronze de Rodes! Longe estamos do Bezerro de Ouro, que de tão lendário, não foi menos corruptível, os metais fundiam-se para erguer estátuas que tivessem a dimensão sagrada de uma consagração metalúrgica, pois que sem essa poderosa alquimia as leis da sustentação seriam inexistentes, e, sem a altura de uma construção ficaríamos à escala horizontal dos dias, sem a visão da grandeza galvanizadora.

Partimos para Rodes como para uma profecia, para o seu «OVO» – um poema extraordinário, para o seu deus, um deus extraordinário, para o seu mar, um mar extraordinário – afinal, é aí que os deuses moram. Porque escolheram eles o azul cobalto ao verde musgo atlântico, o sol do meio-dia à luz do ocaso, a seca garrigue à luxuriante flora? Porque os deuses são caprichosos, são colossais, gostam de cegar ao sol olhando do cimo, gostam de testar os nossos limites perante o fascínio que temos pela grandeza. Provocam a devoção e o martírio, e de tanto os olharmos, nossos olhos são de pedra. Quando petrificados avançamos à sua sombra resolvem ir embora com um grau de convulsão tamanha, que arrasam torres e homens, e argamassam sangue com pó mineral e deles contam nos seus mundos como foi. Não é em vão que queremos que tenham face humana, erguer de fachos, imensidão… depois da linha do horizonte no nosso espectro astral não há mais nada.

Estas cidades representadas por estátuas monumentais têm segredos que não convém lembrar, até porque são segredos, imitam o propósito colectivo, mas quase todas sucumbirão num mar qualquer e passarão para a memória lendária quando os tempos se desfizerem. O facto de a maior parte estar erguida ao pé do mar, de um rio, indica a vaidade dos guardiões que olham as cidades, o seu lago narcísico, que o céu fica um pouco mais distante. Esteve de pé cerca de 50 anos e simbolizava a vitória dos gregos contra os macedónios, contra outro grande, Alexandre, e parece tudo ainda maior quando a escala é mais pequena, sem dúvida, mas o sonho mantém-se intacto, apenas mudando, claro está, a própria escala. Ainda hoje o sonho primário de um qualquer político é fazer uma coisa que o perpetue pela grandeza do betão, é uma função que implica testosterona e a capacidade de expansão a ela implícita…o mais alto, o maior, o mais poderoso! Uma ambição «Ájax».

No entanto, creio chegado o tempo em que a conquista do andrógino, esse ser mais evoluído do que este arquétipo espermicida ( cai, levanta, vai, entontece…) abrirá talvez caminho a uma mais vasta harmonia ambiental, há que pensar na atmosfera das coisas a curto prazo, ou ficaremos submersos pelos muitos que somos, sem espaço para quedas do tamanho dos Colossos. Nós todos empilhados daremos um regalo em altura para o mais megalómano, expansionista, desmesurado deus da extravagância: nós somos o labor, os escravos levantando cultos, e de tão in(cultos) andamos contentes como os inteligentes. É considerada a sétima maravilha do mundo, depois da sexta, e a sua inutilidade nem era assim tão grande, o farol na mão indicava às embarcações nocturnas o rumo certo. Pesa 70 toneladas e sendo a sétima em maravilha, quem diz que os Anões não eram os seus mestres obreiros? Muita coisa esconde o reino encantado, mas neste instante só sinto os afogados que tombam aos milhares naquele mar e os magros “gigantes” a Ocidente tão letais quanto as águas do Mediterrânio, e não há estátua que se erga do tamanho da dor humana, da dor, em suma.

Não tarda haverá uma só estátua no mundo, e tão grande – super Colosso – de um só rosto, que não sendo ainda ninguém, se anuncia como uma onda de chumbo. Nós fomos descuidados, não plantámos os nossos jardins, não olhámos as nossas flores, não tratámos os nossos dias, não fomos o Ovo de Rodes, preferimos o Colosso. E ele que até era cego e não nos conhecia, fez-se real, é o nosso sol. É uma estrela fria e silenciosa como o gelo. Carés, o seu arquitecto, suicidou-se por falta de reconhecimento público, Deus suicidou-se por falta de reconhecimento nosso, nós, não reconhecemos os criadores, e, como tal, inventámos criativos que fazem das obras transfigurações, figurações… Os obreiros são “maçons” sacristãos são “sacristões” os Templos são côncavos, e a corrida ao ouro das Ordens é um mito contemporâneo.

Se não resolvermos em poucas décadas o gigante pustulento do Capitalismo agreste, não se erguerão mais estátuas, nem outras construções; será consumida a Terra e derrubado tudo à superfície – o caminho da Ilha – talvez como a de Rodes, a Utopia, perder-se-á para sempre. — Fatigado e gigante coração da Terra, espera mais um pouco….! — Nem tudo é agora de sal, nem todos desfazemos os nossos sonhos apenas com um olhar…não, nem todos! Por vezes são precisas forças tais que o aterro dos dias fica um sepulcro muito frio enquanto agora mesmo o Sol nasce, nasce grande, saúda o tempo. E por vezes a resistência dos materiais vence enfim. Não há mais segredos, nem mais estátuas. Uma Cidade nova pode nascer.

Temos ainda no tecido cerebral uma membrana que vê essa cidade de Cristal, aquela cuja energia se elevou e onde a matéria tem outras associações. Todos a contemplamos, e se todos a projectarmos com urgência não tarda nos encontramos lá. Vai ser um gosto voltar a vê-los.

16 Jul 2018

Cantos de Maldoror

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntramos agora no ciclo anunciado do «Filho do Homem». Vêm aí os concebidos à nossa imagem e semelhança e não apenas meros utensílios ao serviço do deus que nos autoproclamámos ser. Irão como corpos autónomos firmar a sua própria complexidade que ultrapassará em muito o nosso poder de controle, designadamente a de se autonomizarem na busca de um sucesso do qual pouco ou nada sabemos na generalidade.

Pela designação, impõe-se-nos uma outra: «Filhos de Deus», nós, os últimos a serem abarcados na órbita desta imponderabilidade, mas que conseguiram o seu sucesso independente. Somos neste instante o que restou, até de uma secreta ilusão, e não podemos deixar de pensar o que nos separa já dos nossos irmãos, muito pouco tempo atrás, como por exemplo no século XIX. Perante eles, nós podemos até já ser os autodenominados robots por antecipação, na pior das hipóteses seremos designados «Filhos de Ninguém».

Vem esta questão a propósito dos «Cantos de Maldoror», de Isadore Ducasse, mais conhecido por Conde de Lautréamont, nascido quase na segunda metade do século XIX, com vida curta e obra imensa. Ora, entre a profunda vacuidade das nossas “obras” no tempo de ninguém e a desta urgência bem arquitectada dos ainda «Filhos de Deus», existe certamente uma grande separação. Reparar, também, que foram vários os de matriz romântica a fazer o percurso sem nenhum fogo fátuo que os pudesse queimar com a harpa afiada do reflexo das suas posteridades, havendo que fazer muito, mais que elaborar. Mas fazer como e com que tecido humano? Com uma consciência que se demarca da nossa inofensiva opinião, e aqui vamos encontrar uma vontade e uma urgência que até pode ser escandalosa, uma força e uma imprudência, um génio galvanizante e assombroso que nos avassala derrubando o nosso tímido inventário. Narrar, é demasiado curto para o propósito aqui exposto, pois que nem todos somos narradores e a narrativa tende para um fim que só os raros narradores já elevados à categoria de grandes romancistas sabe como contornar para que não fique a vaga e triste sensação de um certo marasmo que é a leitura fácil. Tenhamos em linha de conta que de todas as obras esta é certamente a mais difícil, mesmo para aqueles que se emplastram de circunstância e que se adentrem por aqui balbuciando discursos, não teremos capacidade emocional no nosso instante do tempo para filtrar um tal registo.

Entrar por aqui requer nervos de aço, e o autor apela mesmo para o perigo mortal de tal leitura, mas um livro não nos deve interpelar assim e sem medo, protegidos pela longevidade dos incautos, nós vamos buscar a alma que de formas várias nos foi fugindo, e eis-nos no centro de uma fornalha gloriosa. Como disse Jorge de Sena, a obra de Lautréamont é um marco miliário na construção de uma linguagem nova e tão insólita, de força tão estranha, que nos faz desviar o olhar. Apelidado de pré-simbolista, conde (pela autodenominação da distância diante o vagamente anormal ou a prosódica normalidade), ele vai devolver o significado de Homem, baixando-o para lá do natural nessa capacidade que tem para ser monstro, e nem por isso é menos belo ou menos digno de comoção, pois que tudo isto se passa no tempo da memória de uma ferida de amor. Não nos pretende mais altos, mas sabe da tendência para o endeusamento da espécie e com plena ironia blasfemante faz talvez o único épico do século XIX. Haja o que houver, estamos diante de algo que não mais ressuscitará. O limite da nossa Humanidade está todo ele plasmado na escrita, ou seja, naquilo que por ela fomos concebendo de extremamente humano. Daí que qualquer propósito bem intencionado ou até minuciosamente bem escrito, não possa atingir o domínio mortal de um homem VIVO. Sonambulizamos com tantos anos… vamos ganhando a crosta dos batráquios, as paredes do cérebro mantém-se intactas e um certo “bem- estar” cria também monotonia e foi conquistando um certo espaço vital. Temos o sexo “Sexus” que também já não dá resposta absoluta ao trilho da espécie, pois que no dia em que tudo fosse tão normativamente igual, aí teríamos o sinal do fim. E aqui chegámos! Estes livros são a única saída para um abismo a caminho da metamorfose, ou, quiçá, de uma apoteótica desaparição. E não, não temos medo. Os nossos medos são agora também de outra natureza e não têm em nós expressão, pois que continuamos a pensar nos nossos dias como garante de uma conquista que se eterniza.

A nossa realidade já nada tem de princípio natural. Ser real é coisa outra e os conceitos capturam-nos muito mais do que nós os sabemos desfazer, sendo sem dúvida, e inesperadamente já quem somos mas com saudades destas outras coisas. Quem for encontrado nestes livros passará a primeira prova, quem não for, não voltará. O livro está impregnado de Romantismo, pois que ave aziaga voaria sobre o abismo destas almas? Mas glorioso este voo que nos incita a saber em tempo tão curto coisas de uma intensidade tal, que uma vida, assim, até parece eterna. E os momentos que nos deixam esferas de uma provável imortalidade?! Ele quer que o céu se torne audaz para passarmos estas páginas, e que os nossos passos andem para trás…No seu tempo andar para trás seria mais próximo… hoje, para trás é tão longe…!

Este livro tem seis Cantos e no fim uma redenção tamanha que ficamos completos: «Poesias» dedicado a muita gente; condiscípulos, amigos futuros, passados e presentes, e até a um professor de retórica. O Fantástico está já distante daquilo que agora conseguimos alcançar «o passado fez brilhantes promessas ao futuro: é há-de cumpri-las. Para polir as minhas frases, utilizarei forçosamente o método natural, retrocedendo até aos selvagens, para que eles me ensinem» Assim está no Canto Sexto. Nenhum vindouro saberá como interpretar o que foi a nossa Humanidade. Do «Filho do Homem» nascerão ainda outros, nós, seremos a parábola, os tais «Filhos de Deus» que nunca vimos, fazendo Cantos para tentar ouvir a sua voz. E só nós soubemos que tinha várias.

9 Jul 2018

Epístolas

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o tempo em que escrevíamos cartas o próprio tempo não tinha a mesma velocidade nem urgência do dizer, dado que muitas funções do aparelho social se mantinham estanques e o espaço onírico de cada emissor se propagava pelo grafismo, que era a renda de um instante ali plasmado e que funcionava também como contemplação para o seu receptor.

Era maravilhosa a correspondência! Desde Abelardo e Heloísa, a Mariana Alcoforado, a Rilke e Salomé, o exercício epistolar formou em si um estilo único e literário. Hoje sabemos que a palavra escrita nestes espaços era produtora de capacidade amorosa através do respeito que este tema inspirava. Nem sempre já sabemos o quão bom é receber, tal como desconhecemos a magnitude do efeito de uma palavra que desliza… o outro é tudo. É nele, e por ele, que corre a seiva da nossa inspiração, não sendo dado ao escrevente outro ponto de equilíbrio que mais que amplexo, deve estar atento ao fluxo dessa fonte próxima do êxito: o bem-dizer.

Mas também a correspondência entre amigos é um factor a considerar pela proximidade cultural e ideológica e, com muito gosto, acabo de reler a de Maria Lamas a Eugénio Ferreira sempre com uma saudade qualquer: as pessoas estimavam-se e declaravam-no de forma civilizada, quase ritual, eram cúmplices, eram fraternas, claras no diálogo e extraordinariamente bem educadas. Ficamos repletos de admiração. Repensamos a relação entre as pessoas e não descobrimos nada de semelhante a esta retórica e onde ficou, afinal de contas, a tão designada comunicação que todos os dias queremos mais tecnicamente comunicante. Os pares estão paralíticos, os amigos dizem coisas… nós, balbuciamos, outros ouvem-se e querem ser escutados, e já outros fazem de conta que não se passa nada. Teclamos a desoras e não estamos presos, ou estamos, e nem disso nos damos conta… fazemos silêncios estranhos, quando falamos somos avaros nas benfazejas descrições. É tudo um desnorte que tendemos a solucionar este imbróglio pondo fim ao comunicado.

Por outro lado, os temas abundam nas vidas estranhamente estranguladas por uma instabilidade social de arrasar – eles são isto e mais aquilo e o que vier. Todos sabem de tudo e todos nos querem fazer prova da sua sapiência inesperada pois que a esperada está algures, e sempre, adormecida nos seus silêncios face aos nossos: em suma, cada um procura tentar ver se consegue produzir mais saberes num curto espaço de tempo, pois que vão já como foguetes tresmalhados conseguir mais coisas para dizer o que ninguém sabe e assim dominar um espectro, que também, diga-se, ninguém está vivamente interessado em escutar, contemplar. E, caso a nossa persistência seja inabalável na busca da boa relação entre outros falantes, cruzamo-nos também com a sua obstinação em nada repararem, de modo que temos de converter os discursos em ataques inconsequentes, que aí alguém nos vai tomar por “bons”. — Bom, que isto da relação falante vai da fonética à gestual e não raro apanhamos grandes e descontrolados safanões.

Depois ainda temos a risível correspondência Pessoana de se dirigir ao amor seu como uma brincadeira querida, o que me parece profundamente poético também, pois que está prenhe de ternura, coisas que nem todos sabem como transmitir, e as Cartas de Manuel Laranjeiro a Unamuno, trágicas, belas… Tudo o que faziam na fonte dava resultados assombrosos. E ali se debruçavam na sua valentia de espíritos livres tentando contornar a desdita de serem poucos, e não raro, até perseguidos por aqueles que nada sabiam de leitura e liam tudo ao contrário. Ou, pior, liam uma palavra e acrescentavam na sua inverosimilhança aquela que julgavam nas suas cabeças poder estar lá. A chamada finta dos tolos.

A epistolografia foi prática reinante entre gentes admiráveis, também muito usada como prólogo, e temos as célebres «Epístolas», as cartas que os Apóstolos escreveram para nós e se reescreveram de tal ordem que podemos continuar profetizando. É nesta versão sempre alterada, melhorada, desconstruída/construída, que o corpo de uma ideia se pode fazer então a carne do que busca. “Sou um pássaro em fuga, vejo Deus e não sei quem é, e penso que é um número que empurra”. Mas quem em diálogo nos escreve tanto, não necessita de interlocutor como no caso da «Carta ao Pai». Kafka arrasa o patriarcado de uma só vez, de modo que elas podem ser a bomba atómica de um modelo deslaçado, incomunicado até então… destinam-se a deitar fora uma vinculação para um inferno qualquer que só a realidade da construção verbalizada pode fazer acontecer. Só mandando a missiva para fora de si esse postulado cessará. Não sei se assim aconteceu, mas era esta a intenção. E a carta a Lord Douglas, «De Profundis», que fez um homem desnudar-se diante do Universo de forma bela e trágica, uma conversão como não há! Estas coisas com ponto fixo são de facto deslumbrantes. Só os que falam para o todo, aquele tudo que é nada, se amarfanham em descrições de tal ordem malfazejas que preferimos o desditoso incómodo da mudez. Que Moisés era gago, e nem por isso deixou de ouvir bem aquelas coisas todas.

Por isso acho que vou escrever uma carta, talvez a vós que aqui e agora se encontram, um por um, até cada um ser um ponto fixo desta memória, e caso não nos lembremos de mais nada ainda há as Epístolas de São Paulo aos Coríntios. «Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine». Mas Maria Lamas deixou uma tão bela frase que em nada desmerece aquela e que está curiosamente na sua correspondência: “Muitos temporais têm passado por mim. Alguns tremendos. E deixaram ruínas. Mas tenho conseguido – posso dizê-lo sem receio de exagerar – renascer da minha própria angústia mais desejosa ainda de dar, dar tudo quanto em mim caiba, para a renovação do mundo.”

Vou ver a caixa do correio, pode ser que tenham escrito também uma carta para mim. Eu acredito que haja ainda emissores desta altitude, e que ainda haverá em latitude quem os recepcione. Nem tudo se resume ao caixote do lixo do desaire das notícias: não há notícias, há apenas coisas que acontecem.

12 Jun 2018

O ar do tempo

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onhecemo-lo por Feiticeiro no célebre filme americano de 1939; no entanto, a sua autoria é de L. Frank Baum e data de 1900 em romance, mas o certo é que ninguém mais ficou de fora no seu encantamento.

O primeiro Oz foi surpreendente ( até pela técnica de filmagem da altura), havia a cor estranha dessas novas “poções” que iriam a partir dessa época transformar para sempre o nosso próprio imaginário. Diz a lenda que Oz é a terra das fadas situada num continente fictício, uma visão da «Utopia» de Moore: havia o cariz igualitário de harmonia ambiental como se caminhássemos ainda para uma Terra Prometida. Diz estar dividida em quatro e no centro existir a «Cidade de Esmeralda» uma espécie de Jerusalém Celeste.

Curiosamente, toda esta geográfica descrição se encontra no meio de um deserto, um fértil reino rodeado de areias, até uma estranha rainha o transformar num chão mágico por causa de uma herança que o culto misógino a Oz usurpou: a herança da cidade era de uma princesa, Oz ma.

Não fora toda a correspondente esfera onírica dos sonhos humanos, tão próximos, tão arquetipicamente iguais e nem sobrepúnhamos a esta descrição uma outra, que de forma cultural está em nós: a Cidade de Esmeralda, ou seja, a Jerusalém Celeste, Oz – Amos Oz – que por aqui vive às portas do deserto, que nela nasceu, que num “kibbutz” se fez neófito e extingue Klausner (nome da família de judeus ucranianos). O sonho socialista existe no primeiro romance de 1900 e marca uma parte emblemática da obra, só que a «Cidade de Esmeralda» há muito que existia e Oz apenas conquistou o reino de Pastoria, o que nos remete para o rei David no seu exercício de pastor, alinha a Aliança pelo varão e nunca mais se livrou do seu próprio encantamento.

Amos Oz tem o peso de um mito que hoje ainda vive no deserto e mítico porque participou na «Guerra dos Seis Dias», coisas improváveis de terem sido bem sucedidas… vendo talvez um dedo mágico… mas a magia é inimiga do divino. Quem foi, quem é, e a que magia ascende? Onde começa cada princípio? Quem está dentro da Cidade diz que existe uma grande diferença que só os leigos não distinguem e quem não sabe é como quem não vê. Oz funda ainda o Movimento Pacifista para a solução dos dois Estados (talvez quatro) a divisão é quaternária, tudo acaba em períodos de quarentenas, tudo se define por quarenta coisas. Anos, meses, dias, situações. E de facto eram quatro os reinos iniciais.

Hoje é sem dúvida o mais virtuoso e controverso escritor judeu, um cidadão activo e com a beleza varonil de um feiticeiro, inspira instabilidade e é acusado de traição ao Estado, ele não desgosta do epíteto: diz que um traidor tem um lado feliz, não gosta do seu pai nem da sua mãe. Havia um outro “mágico” na «Cidade de Esmeralda» que o inspirou, muito certamente, mas aqui já a conversão misógina estava no seu auge não havendo antídoto que resgatasse o género deposto “mulher, o que existe de semelhante entre nós dois?”. São tarefas extraordinárias e toda a retroactividade nos encaminha para uma qualquer coisa no centro do mundo do nosso sistema solar interno que não cessa de construir um Templo onde cada um em alma e pensamento possa morar. A cidade é de Esmeralda, cintila, é um umbigo, um oásis, um dorso de sonhos, de lutas, para decantar o anátema do velho feiticeiro.

Mas a parábola da casa voadora é quase uma pintura de Chagall… um roteiro de grandes promessas de aterragem, Judy Garland era a princesa Oz ma transfigurada. Aqueles caminhos, o Homem de Lata, O Leão cobarde, o Palhaço, e por fim a recepção no centro da consciência: esta parte acho-a detestável, assim, como dizer às crianças que não há Pai Natal, ou mesmo ter dito a Moisés que tinha alucinações. A Sarça Ardente existe, e só assim é possível um reino futuro que não seja combusto. Creio que as pedras não ardam e muito menos os diamantes, pois que a fornalha que é apanágio dos infernos se escoa na dimensão mineral da Cidade, e um Deus, por fim, esteja à nossa espera, para continuarmos a viagem.

Oz levar-te-ei no longo caminho das coisas transfiguradas. Não acabamos bem os diálogos pois que eles não são para findar, depois de se chegar à conclusão acerca da Cidade, e tendo a magia findado, a máscara não existe, nós, não sabemos colocar o ferro, a lata, o cobre, numa «Cidade de Esmeralda». Nem andaremos puxados a energia fóssil, e mais uma vez creio no carro de ouro do Profeta Elias e no arrebatamento das fontes para a libertação total. E em cada instante olho para Chagall. Ele também é de Oz.

Talvez por analogia me venha aquele verso de Pessoa.

 

mas já sonhada se desvirtua, só de pensá-la cansou pensar:

sob os palmares à luz da lua

sente-se o frio de haver luar.

Ah, nesta terra também, também, o mal não cessa não dura o bem.

……………………………

MAS

é ali, ali, que a vida é jovem e o amor sorri.

4 Jun 2018

Do Silêncio

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez-se silêncio nestes tempos, um silêncio sem vitória, todo repleto de ruído surdo, de zombeteiras acústicas de formatos diversificados com caudais sonoros interditos ao canto. Um novo silêncio nasceu sem que saibamos defini-lo, é uma caixa de vácuo vazio onde não esperamos encontrar serenidade, e voltando para a sinfonia das teclas que escreventes informam coisas de viva voz, não há muito mais que zumbidos balbuciantes de fora para dentro em cada um de nós.

Assim como as sílabas se juntam, há sempre mais vogais, interjeições, diálogos, contactos, roncos, mordaça. «O grande ouvido» gera muita dor, por isso os músicos se ausentam com formas tão velozes, o arfar da melodia vem-lhes de dentro e clamam por ser escutados no muito vigor da maravilha, e se não forem músicos sempre podem produzir sons, que enganam a arte de saber escutar o que de dentro não vem ao nosso encontro. O inverso de um verso não é por isso mesmo o anti-verso, versa outra característica dissonante da rima, mas remando em várias fontes de conjugação consentida.

Estamos surdos em muitos pavios do nosso formato, da língua ao trato! Somos uma fórmula falante equipada de sinalética, semió(p)ticos, semi-audíveis, simiescos. Todos os sentidos se juntam para formar um aglomerado cujo encanto é destruído na junção dos elementos que o geram: o resultado é atoarda quando eles não se unem para a causa transparente.

Comovo-me com as inúmeras fissuras do grotesco. São alpendres da nossa mais funda inocência, são os nossos mais atávicos sentires todos juntos sem desejarem ser unidos na outra saga, a dos fluídos mais bonitos. Nós gostamos deles, mas temos medo de assim permanecer para sempre.

O silêncio é uma sentinela de lonjura, não tem receptor; nós procuramos a fonte, mas não nos vem buscar, nós caminhamos para esse país como se ouvíssemos ainda o acorde de algo inominável. Não tem voz, não tem vez, chega quando vem, e não se crê que alguma vez lá estivéramos. O silêncio procura-se quando a frágil estrutura das funções nos deixa a sós no labirinto.

Maio não silencia, a vida mora nos alpendres do nascimento em sons vários, a vida grita, chilreia, implica; é um manto de audíveis sinais desencontrados, e nós, baixamos o cansaço perante a maravilha, estamos aquietados de tapetes de flores, e em nada disto o silêncio vê alegria . É graça tanta que nos surge em coma, em dança, em orgia, nós buscamos a onda grave que na bolha de água apenas tenha o «O» esse som das estrelas e como não somos Ave, a nossa vida dentro do sonho, congela.

O frio tem um som, o gelo um cheiro, a vida chama por nós e vamos na maré cheia. O vento tem também música, uiva, consome, articula, redemoinha, e circunda os corpos pesados de silêncio. Escutamos por fora a ameaça ao repouso e respondemos por dentro com arquejante abandono.

Estamos primevos e fartos: descarnados! Contemplamos o plátano, as raízes densas e sentimos beijos nas passagens – nós, aqueles que só queriam silêncio – estamos sitiados. Com tanto som, ruído e movimento, há um tempo de abundante desejo que sendo mais que repouso não deve conter a marcha deste solfejo.

Mineral, a pedra é quem nos pode suportar na graça de não estarmos na Terra. Um mar de pedras arquejantes e limpo, sem os cílios por onde as lágrimas passam, a autêntica antecâmara de um vazio lunar, coberto de sem som, um postigo iluminado de ausência, uma tumular descarga sem flacidez, só, hirta como o vácuo do Universo à nossa beira. Coberto de magistral silêncio.

Não estamos sós, estamos isolados, mas sós não estamos no isolamento predestinado. Estamos assim como quem não gere mais que a condição, e dela não saímos aos gritos nem nos é dado uivar de desespero nas estepes; parece tudo povoado, e em algum lugar nos escutarão os mais avisados de uma qualquer predação.

Saímos como os gatos com a bosta coberta, enterrada – não haverá perseguidor que fareje a zona viva – pois que um gato não deixa de si mais que o enigma de estar vivo e, tão perto do silêncio, que entendemos que é um deus percorrendo o estrondo dos caminhos. Haverá nas suas pupilas lancinantes tanto sossego como diante dos feitiços… já não estamos na órbita, e somos paralisados perante qualquer grito!

Quando tudo urge, tudo tem um mote, quem o perde morre perdido, quem não escuta não o sabe, nem tem da rotina nenhum sentido, faz coisas que de tão feitas se desfazem e continua intacto na sua jaula de cantares. É um símio sem alma, uma longa cauda, atrás, o coxis, se atrofiou para a tapar.

Não silenciamos o silêncio, que de perfeito não espera exercer mais que uma visitação a que não damos respostas na supra abundância da tão nossa soberba atenção: a quê? a quem? Desvendamos paragens mas elas são de ninguém. Tocamos. Tocamos alguém. Fazemos dele música e tocamos mal, tocamos carregando e não escutamos o que dele vem.

– Sem nada para tocar – que tocar envolve ser tocado, dar a música que somos em composição, as trevas do ruído são avaras, dissonância total! Silêncio, tudo o que se espera um dia alcançar.

Silêncio e nada mais.

 

 

17 Mai 2018

Nietzsche

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui para Lille. Lá, ao que parece, existe a melhor Faculdade de Filosofia do país, no rasto da estudante que só lhe interessava, afinal, saber dele: está muito bem, por mim nem uma vida chega para tão grande empreendimento. Foi pelos vinte anos que também li a sua poesia numa maravilhosa e única, creio, tradução de Paulo Quintela e até hoje ainda não tenho uma dimensão exacta do choque provocado.

Era assim como se não tivesse tamanho… oxigénio, aquilo era de uma beleza que só com iniciação poderia ser completada. A Teologia pareceu-me a mais directa passagem para ele, independentemente da esfera gnóstica parcialmente oculta nas suas paragens.

Como naquelas máximas: não pronunciar… em vão… sim, eu também não pronunciava o nome dele, no entanto, permanecia em mim uma inquietação de fogo, aquela chama que me prostrava logo que chegava mais perto. Que a beleza é terrível, já Rilke o pronunciara, mas nem sabemos a dimensão de tanto horror dentro do próprio fascínio. Mais tarde, Schiller ajudar-me-ia a repor aquela opressiva sensação, numa obra chamada «Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico», e por ele consegui de novo adentrar-me. Mas, se é certo que um só homem não justifica aparentemente cinco anos de estudos, mais certo é que as paixões juvenis podem acabar depressa. O que pode ser mais próximo disto? Um curso de Vinhos, Enologia. Eu entendo todas as formas de desistência. Até entendo que haja maldições que passam de geração para geração.

Demorei-me a imaginar como seria este ser, em que contexto nasceu, o que seria importante para que tal pessoa fosse possível, quando nasceu, se tinha astro – astro tinha, era de Outubro, 15, Balança, portanto mais intrigada fiquei. Pastores protestantes, aquelas mulheres, mãe, irmã, mas nada disto resolve a indagação. Há naquele homem uma força que sentimos e uma delicadeza que nos surpreende e seduz, há até uma monstruosa galvanização de interditos, uma exasperada riqueza cósmica que não é fácil de expressar seja por quem for. Assim, dele, sempre guardei temor. O que leva um filósofo da sua estirpe a escrever aquela poesia – que posso melhor avaliar do que a sua carreira de filósofo – pois que geralmente são até posições que não raro se antagonizam. E é o Nietzsche poeta que me interessa aqui ressalvar. E mais, é destas matérias e cursos tão em desuso que nos interessa esclarecer pois que sem eles pomos em causa a nossa própria acção civilizadora.

Lembro-me sempre de Lou Salomé e do primeiro encontro entre ambos numa Catedral onde disse isto: de que estrelas tão belas caímos!? Lou achou aquilo muito pomposo e sorriu; depois, ele no grupo foi um complexo elemento tendo-se apaixonado por ela, o que o fez afastar-se de forma um pouco revanchista. A sua voz era estranha e mesmo os seus alunos mencionavam tal incómodo mas sem dúvida que a sua presença neste grupo foi das coisas boas que o mantiveram, não havendo no entanto uma opinião consensual ou debatida a seu respeito entre todos. Ele continuava em tudo demasiado formal: este homem, que enlouquecerá, estava trajado de uma protecção que parecia não o identificar. Começou como filólogo, foi crítico cultural, e até compositor, mas é a sua dicotomia que o toma, Apolíneo versus Dionisíaco e a debandada da morte de Deus, o seu niilismo que muitos insistem em dizer que não é, e toda a escrita que raia o paranormal. Estudar Nietzche, reconheço que seja até um exercício que requeira grande estofo moral e uma vida de quietude, pois que tudo ali está em chaga, no limite, na transcendência e no descrédito profundo da sua própria exaltação trágica. E se a música o faz ainda compositor prussiano, a inimizade com Wagner torna a melodia mais patética. Desiludido e ferido, ele arrefece à medida que passam os anos. Controverso, brilhante, e por fim frágil, a sua saga é sem dúvida a de um grego, a do antigo professor de crítica textual. Mas aqui releva-se o poeta imenso que foi, a natureza alquímica de uma danação, a beleza indómita e a incontornável grandeza da sua alma. Ele afirma que o seu estilo é uma dança, já em Zaratustra o reafirmara: Vede como me sinto leve, vede voo, vede sobrevoo, vede! Há em mim um Deus que dança!

Ele é consciente da enorme distância que o separa de tudo, de todos, e escreve desassombradamente, intensamente, sem êxito visível pois que pensa que a distância a que se encontra o invisibiliza. Ele não pára de trabalhar arduamente, da forma que sabe, e colapsa, talvez de esgotamento nervoso, enlouquece, eletrocutado pela energia que transporta. Sabe-se vindouro, muito para lá do tempo da sua marcha. Mal interpretado mais tarde por aqueles que não sabem distinguir, por esses maus artistas que desejam um palco maior, e associado a afrontas das quais o seu sentido visionário teria desconhecido o grosseiro equívoco: tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismos, os antissemitas que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afectação moral, buscam incitar o gado de chifres que há no povo.

Vontade do Poder e a roda gigante do Eterno Retorno guiam alguma da sua marcha como relâmpagos, e o que faz a família não nos deve interessar, se um homem se encontra em registos tais. Ainda hoje nos perguntamos quem pode acolher gente assim em caso de verdadeiro colapso, para onde irem, quem os tratará. Que entendem os outros deles? O que lhes aconteceu ao certo? Vemos como é profunda não só a eternidade mas também o abismo. Por isso fiquei de certa forma aliviada quando Lille terminou nos planos peregrinos de uma jovem mulher que deve sem dúvida dedicar-se a outras coisas. Não há cursos sobre Nietzsche, seria como ir estudar os Livros Sagrados em frases exegéticas, uma vida só não dá para isto. Sem este episódio, também eu, que não falo do que não sei, e pondo-me sempre na posição de que sei pouco, ousaria pronunciar em vão tal nome.

Ressalve-se «Poemas em Prosa» como a mais impressionante força poética que me foi dada sentir, sentir… não sei se isto é sentir, estamos para lá das sensações, é certamente aqui acrescentado ao registo do entendimento uma área desconhecida que perdura como se antevíssemos mais Homem para lá das barreiras da sua própria definição. Lille fica para trás, ele, que tanto amava França e Itália e teria certamente esse fundo meridional que tantos de nós não soubemos ver. Era esse meio-dia a sua hora, o tempo sem sombra, o seu desassombro. A noite para mim?… Mantém-te forte, meu valente coração! Não perguntes: por quê?-

É o poema infindo de um Pastor cheio de altura, quando desce traz os decálogos, mas o cume é a sua Casa, a sua mais notória natureza.

15 Mai 2018