Santo Antero

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ça de Queiroz apelidava assim o seu amigo logo que o via chegar: – lá vem o santo Antero!-

É talvez a mais bonita expressão encontrada para este homem tão singular, tão fraterno e atormentado, um louvor que os amigos reconheciam justo, e um distintivo para o poeta que era.

Unidos se encontravam nas causas académicas e nas correntes ideológicas esta «Geração de 70» e a grande vanguarda das suas posições iria colidir com os ultra românticos, o denominado grupo «Do bom senso e do bom gosto» uma disputa conhecida por questão coimbrã. Mais tarde, também o Governo viria a proibir estas sessões de esclarecimento por parte destes  intervenientes. Oliveira Martins fala de Antero com a mais comovente admiração, chegando ao ponto de descrever as lágrimas quentes que lhe vinham aos claros olhos em instantes de tormenta e aflição: descreve-nos um Antero impedido de mentir, de uma transparência e de um desassombro que ficamos por ele apaixonados. Ninguém se lembraria neste tempo descrever as lágrimas revoltosas de um amigo nem a sua incapacidade para a obscuridade, ninguém era capaz de semelhante amor. Que o amor entre os homens existe, sim, e  não é por isso uma transsexualidade  misógina, nem uma moda de casamentos, existe, e é  realidade  de homens excepcionais.   

Setembro traz Antero à nossa memória e com ele a peregrinação pela sua utopia, o emblema de um Socialismo Futuro, traz-nos a escada estreita, as lôbregas jornadas, o sonho oriental, traz-nos este budista cristão, um Budismo coroado de Helenismo, e uma bela interpretação do Nirvana na voz de um Ocidental se faz notar, por outro lado, raiava sempre aquele fogo redentor de um Cristianismo inaugural que viria a ser  a dama da sua alma enlevada pelo aperfeiçoamento emocional. Traz-nos a sua morte. Antero suicida-se a 11 de Setembro de 1891, e o dia nefasto não será esquecido. Num assombro de lucidez e grave  derrocada, um homem assim, de uma extrema Liberdade moral foi bem capaz de não suportar o desastre que é a imagem das almas estarrecidas perante tantos dolos, subserviências e misérias. O poeta venceu o homem, e uma vez mais, se fez matéria do seu próprio canto.  A cisma dos suicidas não foi estranha aos dias que antecederam a sua morte, aquele cismar que denota grave instante, mas, aqui, nesta fronteira, sabem-no bem estes cismadores que não há nada que os defenda. Mais nada a ripostar.

«As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» ilumina sempre de fresco a nossa memória, e fora escrita numa espécie de lampejo visionário às portas do século XX onde começaria a descida mais funda pela grave ofensa que foram as ditaduras ibéricas. O homem político, o artista, o pensador, o filósofo e o poeta, habitavam todos neste ser numa única condição. Transcendidas.  Estava envolvido com a sua época por aquele lado que as épocas nunca entendem, e, quando o fazem, é sempre tarde demais. Que as eras e as épocas serão sempre motivo de grande estranheza para homens assim, os seus legados, sempre tão únicos,   inesquecíveis, poderão no entanto servir de conforto para as suas comuns inibições. Dizia: «soframos, pois, com paciência as injustiças deste mundo, que, afinal, é mais ignorante do que mau, e, em suma, bastante infeliz por seus erros e ilusões, para que tenhamos por ele mais piedade do que ódio. Não é a ele que propriamente detestamos, mas a iniquidade que esta nele» Cartas. O seu inquestionável apostolado chamava a atenção para o problema derrapante do ódio. Não consentir jamais uma teia que conspire nas nossas veias tais venenos.

Um grande humanista está sempre implicado em causas sociais, demora-se no seu longo amor Humano, cresce até não poder mais, e sente a impotência da marcha. Boémio, não lhe faltou a farra e os encontros com seres do seu estatuto moral, transformador, arrebatou muitos, e sozinho, ele não se lembra de mais nada. Está em transe! O dia não lhe surge redentor. Vestiu-se de preto, comprou uma arma, sentou-se num banco, colocou a pistola na boca, dispara, não morre, a dor trespassa-o, desfere o segundo, e Antero está morto. – Na mão de Deus, na sua mão direita repousou afinal seu coração.-  Lembrar este momento é como unir os dedos em orações que não recordávamos e num relâmpago todas lembrar,  tentar entender como a natureza reage e conspira ao redor, será vestirmo-nos de preto e pôr na boca laranjas amargas, depois, ficarmos nus e sem frutos diante do abismo. É aproximarmo-nos de alguém que de si não teve medo. Sangrar, Sagrar, ficar num chão, limpo,  lavado.

Mas, e ainda:

Ergue-te, pois, soldado do Futuro

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze a espada de combate.

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