A casa dos vinte e quatro

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] undial, o futebol conquistou o mundo, é esta uma extensão que podemos reflectir como unidade pseudo-combinatória do número como programa, numa orquestração de onze para onze, seguida de dois, o que dá mais ou menos um alfabeto, e dado a importância a que ele chegou, nós, os mais arredados, somos tentados a permanecer vigilantes, sabendo que ocupou aos poucos o lugar dos antigos exércitos e jogos de gladiadores, com denominadores comuns, como a destreza, a estratégia, a precisão e a atenção, e assim foi ganhando nos nossos tempos as formas Olímpicas. Os heróis, esses, mudam de registo “tomando sempre novas qualidades” a que esta deu a tónica de uma ampla pacificação.
E eis-nos no Mundo Palco na Casa dos Vinte e Quatro, essas tribos, tal como as designou Umberto Eco, onde o nosso sistema tribal ganhou nova tónica, novo fôlego, novas formas. E aqui vamos rumo ao sentido numérico do vasto passado histórico nacional, que bem se anteciparia por algébrica ao que viria depois. A Casa dos Vinte e Quatro é assim um microcosmos de uma realidade por vir, criada em 1383 por D. João I, à época ainda Mestre de Avis, com o objectivo dos mesteirais participarem no governo do país. É no seu apoio ao Mestre na Crise de 1383- 1385 que se encontra a génese do seu nascimento. Foi durante séculos uma organização sindical com poder deliberativo, onde as medidas eram aprovadas por maioria e quis o irónico destino que fosse extinta pelo regime liberal em 1834. Mas o seu enunciado numérico como bem provam os factos não se perdeu. O Mundo é agora uma grande Casa e as associações continuam em formato Vinte e Quatro.
Grandes acontecimentos improváveis estão unidos a esta prática colectiva, a ver pelos meninos da gruta, os jovens futebolistas e seu mestre, em número de doze mais um, que puseram expectante a Casa Mundo pela difícil operação de resgate, aqueles discípulos já não resistiam no deserto, mas sim fechados num buraco dentro da terra com um mestre pouco mais velho do que eles cujo amor dos homens fora de grande importância para a salvação de todos, vamo-nos dando conta que o futebol é um coro mundial, que joga sim, com probabilidades geométricas e nele reside algo mais do que a prática desportiva. O rolar, a bola, o marcador, o golo, o êxtase em uníssono…O que é um golo? Uma bola que passa por um sistema defensivo com todos a correr para o mesmo lado, uma quase espermatozóica manifestação… o mais veloz, o mais habilitado, o acaso que gerou a fuga, em suma, o mais conseguido que passou.
Jorge Luís Borges disse que o mundo gosta de futebol dado que é estúpido. Pode ser, o mundo é um local mimético, andamos fora e dentro a representar as mesmas coisas como se esta Casa fosse um campo fechado numa circulação sanguínea de outro sistema fechado, adaptando sistemas melhorados mas sem muita antevisão de qualquer outro plano. Nós esgotamos até ao delírio as fontes das origens- e se a origem nos faz originais — estamos a atravessar um mundo em que tal designação é cada vez mais inexistente, e no entanto, face a um tempo Galáctico que espreita, devíamos sair da roda, inventar com carácter de urgência campos novos, não vá acontecer que estejamos todos absortos nesta curvatura fechada quando alguma coisa de novo se der.
Estamos informados e muito desalinhados com o que vem de ontem, e não saberemos dos significados semióticos que devemos antever para não só sobrevivermos enquanto espécie, mas sobretudo, como sabê-lo fazer de outra maneira. A Casa dos Vinte e Quatro é um grande sindicato à escala global e os mesteirais votam “livremente” a fortuna que a todos pesa num grande corpo sem saída, a Economia, estrangulando assim os Olimpos, que em rédea solta deixará a cratera por onde o tempo luxuriante se esvai. A projecção do santo padroeiro passou para o clube, fundaram-se outros juízes, temos novos deuses, e como diria alguém na busca patética de transcendência: “Ronaldo já não é humano”. Não sei em que parte o nosso Estado tão laico criou para si os seus próprios deuses que figuram no Panteão dos humanos mas que são olhados exactamente como partes imortais, e onde deixámos Deus na sua mais abstracta abrangência esquecido entre um mundo que jamais o conceptualizou no seu devido entendimento.
Entre a manifesta noção de ser, enquanto estar ( uma rudeza gaulesa) quem se infiltrará para nos conduzir ao teletransporte, e quem não lá estiver, quem será? Ou, melhor, se não estando se conclui que não é, então nada somos, mesmo olhando a Casa em ecrãs gigantes que podem ser a manifestação de um “arrastão” por encantamento colectivo, a tal Roma com a mesma cabeça que um Imperador desejou decapitar num gesto só. Não nos esqueçamos que foi uma nova ordem que acabou com a Casa dos Vinte e Quatro, aquela que teria por missão unir o mundo, e dele fazer um grande empreendimento colectivo. Talvez o Presidente Português tivesse rectificado Trump para dizer-lhe que não pertence à velha estirpe ibérica, pois que na Europa somos diferentes, e que as balizas ainda não se galgam. Mas tudo isto são subtilezas num mundo que não as encara como grandes princípios.
Vinte e quatro horas tem o dia comum, e a Terra é um grande relógio que pode em boa Hora transformar os ponteiros se outros ajustes tiver doravante que fazer. E porque vai solta, pode a um tempo transbordar de todos nós, que sendo expelidos, nos consumará em suas entranhas. Há muitos campos, até magnéticos, transversais aos campos de futebol. Paradoxalmente, é na guerra que os homens se unem para cantar, e na paz, unem-se para ver. Ou não fosse o canto a velha forma inventada para apaziguar as feras.

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