Uma vida a arder

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o mais recente número da revista “Flanzine” (número 17, Junho de 2018) com o tema Cinzas, a convite de alguns leitores da mesma escrevi um texto intitulado “Uma Vida a Arder”, que é uma breve incursão ao tema do suicídio. No contexto de divulgação da revista, no próximo sábado, 4 de Agosto, irei estar em Palmela para ler este mesmo texto, juntamente com outros convidados. E é este texto que partilho hoje aqui.
Quem concretiza o suicídio, ou o tenta seriamente fazê-lo ainda que falhe – quer seja por uma resistência do corpo, que o próprio desconhecia, quer seja porque o processo foi interrompido por outrem antes do tempo necessário para a execução da tarefa a que se tinha proposto –, fá-lo porque padece de uma dor insuportável (ou que lhe parece insuportável), quer seja física (como o cancro, por exemplo), quer seja moral (uma vergonha insuportável), quer seja metafísica (não encontrar qualquer sentido para a sua vida ou a para a vida humana em geral). E se não há mais casos de suicídio é precisamente pela dor que o acto comporta, pois quem pensa em suicidar-se tem como horizonte o fim de alguma dor, e a dor que envolve o acto de suicídio (suspeita-se) acaba por ser dissuasora. Pois ninguém duvida que cortar as veias ou enforcar-se ou atirar-se para baixo de um comboio sejam actos que envolvam alguma dor, desde o menor corte com a faca até ao ficar-se pendurado pelo pescoço até que este se parta ou nos afoguemos em falta de ar. Por outro lado, há também o peso de dar trabalho aos outros ou atrapalhar-lhes a vida. Interromper a viagem de um comboio vai atrapalhar a vida daqueles que vão no comboio, assim como será uma enorme trabalheira para quem tiver de colectar os restos do corpo. Cortar as veias, ainda que se possa fazê-lo na banheira, também comporta uma enorme sujidade que é preciso limpar. Assim como um tiro na cabeça, ainda que este seja um dos modos de suicídio que nos parece mais indolor. Resta-nos o tão popular excesso de barbitúricos, que infelizmente, para quem pretende seriamente suicidar-se, é também o modo menos eficaz. Se bem que, se der resultado, seja o que dá menos trabalho aos outros e que menos suja o mundo à volta. E se conseguíssemos nos suicidar apenas por fechar os olhos, quando estamos deitados numa cama, num sofá ou no chão – imaginemos um modo especial de fechar os olhos dizendo para si mesmo “quero morrer” e que isso acontecesse – o índice de suicídios quintuplicava ou até decuplicava. Pois era como se alguém morresse a dormir, sem dor, sem dar trabalhos acrescidos aos outros e ainda sem estigma social e religioso. Morria-se apenas porque adormecíamos. Como se ainda estivéssemos vivos, apenas no território indescritível dos sonhos. Passava-se assim de um acto condenável pela religião a uma morte santa. Este é o desejo de muitos que pensam em suicidar-se: morrer sem dor e sem dar trabalhos. Ai, se bastasse fechar os olhos e desejar a morte!…
E, no fundo, talvez a vontade de morrer, que pode ter causas físicas, morais ou metafísicas, advenha também de uma profunda crença de que não passamos de pó. Não apenas como diz a bíblia, que do pó viemos e ao pó retornaremos, mas que somos agora mesmo pó. Pó entre dois pós limite. Talvez o que leva aquele que padece de uma dor insuportável a querer morrer seja acreditar que não passa de pó, que nós todos não passamos de pó. A dor insuportável, e neste caso é quase sempre a dor física e não as outras suas formas, apenas espoletou aquilo em que ele acreditava ainda que não o soubesse.
A procura de morte por sua própria decisão pode também ser uma doença e a psiquiatria identifica muitos casos. Mas não será também porque esse doente não consegue ver-se a si mesmo senão como pó? Talvez ele se sinta como se ele mesmo fosse pó de si mesmo. Pó de si mesmo que vai respirando e consumindo-se lentamente nessa dor de respirar não só pó, mas o pó que ele mesmos é. Assim, para essa pessoa, viver é como que um eterno respirar pó, que é matar-se dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, a cada inspiração, e sofrer horrores por essa dor. E isto que dissemos para os doentes psiquiátricos talvez seja o que acontece com todos aqueles que vêm no suicídio o seu caminho: ser ele mesmo o pó que lhe queima lenta e dolorosamente os pulmões; ser ele mesmo uma vida a arder.

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