Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCorona de Paul Célan [dropcap]C[/dropcap]orona, do latim, grinalda de flores, em «Sete Rosas Mais Tarde» – o poema dos nossos dias, que as rosas virão depois para outras Primaveras. Debaixo das nossas realidades tudo está escrito, anunciado, quase explicado, mas, no ler do poema nem sempre se encontram reunidos os “órgãos de vigia”, sendo a palavra o sopro que o transforma utilizando signos – que a palavra é alienígena- e saboreia a necessidade em nós para se fazer compreender resgatando depois uma vida completamente autómana: o poeta torna-se num elo encriptadamente anunciador, ou, se quisermos, a sua própria vigília interfere nos acontecimentos de forma triunfante. A cosmogonia que recebe não o autoriza a mais nada que a ser guiado, e esse caminho requer a funda confiança na matéria invisível, pois que não se toma, é tomado, e não nasce aí poder algum, somente um estranha rigor : já Parménides escrevia em verso para deixar claro que a poesia é a linguagem própria da revelação profética. Como estas grinaldas agora se entretecem nas vidas que estão amarguradamente em busca do ar fresco das manhãs e do regresso das andorinhas que não são vistas em nenhum balcão das superfícies fechadas do mundo! Celan começa o seu poema no Outono e desliza até aos abraçados às janelas, talvez com aves que olham para nós nas ruas, e diz que é tempo. Mas tempo para quê? Ele diz que nos olhamos, que dizemos algo de escuro… mais escuro que estes dizeres ainda virá a voz dos impensáveis estertores pois que agora é ainda o efeito do recolhimento que saboreamos sem mais contemplação: mas que virá do fundo das coisas a sua resposta, disso teremos agora de o saber. Novecentos milhões de almas encerradas é uma visão de estarrecer e se metade desta população era há muito conduzida por medicação para distúrbios mentais, o colapso possível dos antídotos pode fazer ruir a já frágil estrutura. Dos bens, a nossa frágil vida, dos males, talvez pensar que vamos todos ter de tomar cada um a sua parte, e saber que mais adiante, nós, os estranhos entrelaçados, passámos câmaras de solidão do tamanho das catedrais do assombro. Mas também nos diz que é tempo que a pedra se decida a florir, e a flor das pedras pode ser bela, sim, as pedras que já são em si flores de minério de grandes efeitos, testemunhos da história da Terra, certamente nos irão dar conhecimento da estrutura mineral e fazer contemplar essa dureza como uma secreta maravilha, pois ele diz-nos também que o tempo regressa de novo à casca, como um regresso à gruta, e que num espelho qualquer ficará sempre Domingo, assim como que cristalizados na memória e no sonho que dorme. Onde ir com tanta retenção? Plasmado fica que o tempo nos fará a sua estátua mais conseguida e dela não sairemos enquanto um qualquer sopro não animar a fria imagem. Diz que a boca fala a verdade- a verdade da boca por tanto tempo esquecida – que a boca é o propagador do vírus e pouco antes mesmo tínhamos inundado a Terra de duras ofensas e indesculpáveis mentiras. Respirar pode matar… contagiar… só correndo já para o mar recuperando a guelra deixada que nos libertará das cicatrizes aéreas…! É um desassossego? Não sei… é uma estranha forma de viver, mas, ele quer que palpite por dentro um coração- este coração de músculos, sangue, veias e luto, que agora se encontra na fronteira que aos audazes envergonha… e diz-nos que é tempo, tempo que seja tempo, tempo de tempo, um tempo que se carrega com o peso das coisas que só o tempo governa. O seu olhar desce até ao sexo dos amantes; “olhamo-nos” dizendo algo daquele escuro, e o amor neste lado já não estava claro, e o sexo dos amantes pode ter um fim abrupto e deles ficar apenas a memória de um combate. Da ilusão do amor fizemos “coronas” com flores já mortas que viveram na morte como se já não houvesse fronteiras. E se o Outono come da mão a sua folha, e são amigos, tirando às nozes a casca do tempo, saibamos que talvez tivéssemos tão duros que os dentes da Terra se partiram, nós que comíamos a Terra, da Terra, que comia de nós, partimos também essa carga mineral que nos fizera grandes predadores. Não esquecemos o vermelho, os dias amantes de papoila e memória, o vinho nas conchas, ou o mar no brilho- sangue da lua. Esse rubro cheiro das auroras que a paixão coroou a beijos fartos, que a vontade nos deu as grandes seivas, e temos saudades da vida que jorrou como um corpo iluminado mesmo já ao cair da tarde das nossas fomes saciadas. E o poema então: Corona, na integra maravilha do seu instante (esfarrapamos o tempo com centelhas fugazes e nos interstícios do poema passa a vida e a morte, anunciadas. ). O outono come da minha mão a sua folha: somos amigos. Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar: o tempo regressa de novo à casca. No espelho é domingo, no sonho dorme-se. a boca fala verdade. O meu olhar desce até ao sexo dos amantes: olhamo-nos, dizemos algo de escuro, amamo-nos como papoila e memória dormimos como vinho nas conchas ou o mar no brilho-sangue da lua. Ficamos abraçados à janela, olham para nós na rua: É tempo que se saiba! É tempo que a pedra se decida a florir, que ao desassossego palpite um coração. É tempo que seja tempo. É tempo. Paul Celan 1949
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCrash [dropcap]T[/dropcap]empo transfigurado. David Cronenberg já em 1996 nos mostrara uma estranha contaminação entre orgânico, humano e mecânico no campo da criação, este filme, que parte do romance de James Ballard, escritor inglês nascido em Xangai, precipitou logo interrogações fortes de uma era no seu limite pela mão do mestre do terror fantástico quando os seus instintos estavam certamente ao rubro fazendo da imagem do desastre uma via sem remição. São estes testemunhos que mais tarde podemos conjugar em dias assim, estes, que nos estão doendo como um membro amputado, reposto por uma “prótese” que faz com que todos coxeiem, que leis abissais não permitem equilíbrios. Nascemos de facto para enfrentar o impensável! Preparados estávamos então para o previsível das coisas iguais – que, parecendo mudar, apenas se deslocam – e mesmo aí a fita do tempo cinematográfico deste feiticeiro escutava com os olhos a observância do recado, aquele dispositivo de segurança que deveria soltar-se. Já não estamos na dilatória mórbida desse prazer à Breton que nos seus conturbados automatismos psíquicos achava então que uma obra de arte até podia ser dar um tiro para trás e ver em quem aleatoriamente acertava – estranhos prazeres- têm as almas assassinas, Cronenberg, mostra-nos outra configuração do abismo. O abismo pode ser tão fundo como os mais fundos desejos irrevelados, e se deste panegírico sair um deles, é porque está em fase de expansão como um vírus aquele desejo da lei manifestada que faz que se cumpra o arco da vertigem, assim como um barco que na fase oblíqua é sugado pela água, desaparecendo. Nenhum estado agudo se mantém para além de uma certa inclinação, e na sucção, a velocidade das estrelas. Nestes caminhos somos todos estrangeiros, peregrinos, somos a corrente aberta ao ilimitado, necessitamos dos códigos para não soçobrar aos dias que não resolvem já nada, mas que são ainda os membros fantasmas que carregam a nossa memória de outros porventura muito felizes. Vamos para a janela cantar, possivelmente até com aqueles que do canto nunca se abeiraram. Os mamíferos que não bebem leite materno somos nós em grande escala na medida em que não temos mais nenhuma capacidade de sucção energética para abastecer a anatomia, mas o grande mal provocado a outros da mesma natureza deve ter feito um corredor de antecâmaras letais para o nosso prazeroso e entediante veículo da “felicidade” tão admoestado de canibalismos vários que as carcaças luziam pelo chão do mundo como se fossemos acessórios estimáveis. Se éramos muitos, também nos utilizámos bastante. Cada “membro” nosso era suporte de uma armação com toneladas de ferro que os dias laboriosos do capital multiplicaram em bichas de muitas cabeças galvanizadas pelo estertor das aglomerações; diria que há muito que já demos em doidos, mas pouco atentos aos sinais, passámo-los todos por entre gritantes evidências. Dos enroscados membros, só faltou a Cronenberg enroscar cabeças! Mas não faltará o seu transplante numa antecâmara que prevê a viagem ao tempo da Revolução Francesa para ver como se encaixam tantos cérebros em corpos diferentes, sim, que a máquina do tempo está aí, e com ela adaptações formidáveis da plasticidade humana. – Reflexões de reclusos nesta hora bastarda em que nos dão a comer a intranquila paz dos segregados- Choque em cadeia faz um estigma gigantesco que será interrompido pela imprevisibilidade motora de cada paciente…podendo ser que morra, que se reerga, que seja assintomático, mas que desliza sem dúvida para a sua hora grave mesmo que fique intacto no meio dos escombros do “ferro-velho” do mundo. Teríamos que recorrer ao mestre e pedir-lhe uma nova interpretação para comprovar a eficácia do domínio das provas, ou, tirar esta dura impressão de que não mais voltaremos a um qualquer lugar que julgáramos seguro, se estamos preparados, a carne, essa será sempre fraca. E frágil é aquela que chega à Europa! Essa a quem a mesma Europa “lavou as suas mãos” deixando-a a morrer às suas portas. Um Exterminador não é um terrorista, e essa diferença vamos ter de saber redimensionar para não morrermos inocentes dentro da própria malvadez, a pior espécie de inocência, aliás, e que os dias de reclusão possam parecer imposições do destino que pede agora a cada um que aborde as coisas por ângulos diferentes, e se não se pode fazer mais nada dentro deste estado confinado, ainda assim podemos saber perdoar-nos e agradecer uma vida que foi boa quantas vezes à custa de tantas que por serem mais frágeis são agora as mais ameaçadas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasFausto [dropcap]T[/dropcap]udo neste momento me lembra Fausto — sem a longa versão do fabuloso intérprete, é certo — mas pela ruína diária do nosso quotidiano todo ele barricado pela distância viral. Talvez seja o momento épico não esperado que produziu em nós trágica interrogação dado que as nossas vidas parecem ter sofrido uma ruptura estranha que faz agora das quarentenas o tempo necessário para a reflexão e a visitação dos mitos esquecidos. Aparecer é também revelar condições para a manifestação, seja ela de que natureza for. Criámos o campo do manifestado e por vezes ainda invocámos a sua aparição. Quando esta obra apareceu na Europa veio mergulhada numa busca esotérica que permitiu ao seu autor contemplar formas remotas da cultura europeia, ao mesmo tempo que foi construída em pleno avançar do racionalismo, e muita dessa matéria hermética transforma Goethe em matéria poética. Neste sentido, poder-se-á afirmar que não pode haver passagem sem a união das duas. Fausto, como todas as grandes obras, é também uma “lei orgânica” toda e qualquer realidade mergulha na tragédia de cada indivíduo, de cada colectivo, não da mesma maneira, mas exposta a leis severas que lhes são comuns. Uma obra assim transformadora tem em si os elementos imperecíveis para alturas de crise. Em coro evocámos os Arautos de todas as ajudas, tivemos respostas para as necessidades, elaborámos sistemas de tráfico intenso, controlávamos as nossas vidas e controlávamos as de outros, mas o tempo da crise muda o rosto dos nossos feitos fabricados e põe-nos perante a sujeição do próprio destino. E este é desmesuradamente desconhecido para nós. Por outro lado, a infantilização do bem e do mal há muito que cumpriu as suas metas numa espécie de hipertexto global e a jusante uma sombra de desígnios imponderáveis deve, e pode, levantar-se. O silêncio profundo a que a obra se remeteu é um sono mais… as caldeiras por fora fervem! Este é agora o momento da putrefação e precisamos de Mefistófeles, de Fausto, para passar a viagem sombria. Estamos barricados e cada um regressa à sua parte de vida que sustente a legenda daquilo de que verdadeiramente é capaz. Mefistófeles, no entanto, no seu registo grosseiro, acaba por não ter poder para encantar Fausto, pois este, na sua deriva, jamais se esquecera de quem era e das ruínas do gozo. Ele renuncia ainda a todas as outras coisas que o desviam de um centro onde um outro encontro se dá. Para Fausto, as circunstâncias exteriores deixaram de lhe tocar e o seu grande trabalho alquímico que arranca do pântano reintegra uma outra natureza. Uma parte – parte I – quase nos relembra a viagem de Tobias, partindo com Rafael e o cão atrás, seguindo-os. Ele vai casar-se com a prima que matou sete maridos pois que o diabo tinha ciúmes dela. Também Fausto em transe para o suicídio muda de ideias ao escutar a Páscoa que se aproximava e sai com um amigo, acompanhados na marcha por um cão farejador, esse cão no entanto era o próprio Mefistófeles com quem sela um pacto. Muitas coisas que nos entram ao caminho podem ser a versão de uma visita com que temos de saber lidar, talvez ela precise de nós para os seus atalhos e não seja para já o inimigo a abater. A longa luta trará aos caminhantes o tempo certo para as despedidas. Do cão de Tobias mais ninguém falou. Os cães das nossas selvas civilizadas estão em estado pouco próprio para escolher seguidores, e são os homens que os seguem agora nos caminhos onde nada destas coisas parecem ter sentido. Mas pode ainda ser a parábola do guardião do diabo que lhe está subjacente. Tudo vem dos animais e foi até um Peixe que curou a cegueira de Tobite, aquela mescla de ensinamentos que fez cair as cataratas, em outras cataratas, que são agora a nossa outra cegueira. A culpa do agente infeccioso é um manual de probabilidades que nos leva a querer desistir da própria cura e os anjos não fecham fronteiras. Fausto que percorreu tantos caminhos, encontra-se agora na sua fase de aceitação, as cinzas recuperadas dão lugar à renúncia e outra marcha se avizinha na rota do herói. É uma experiência nova que lhe vai servir de libertação. Ele vai falar da sua destreza e cumprimento de um dever sagrado e o auto deve ser escutado em época de extremo calafrio. Mefistófeles Ora dizei-me cá, meus cachorrinhos: nessa panela aí que estais mexendo? Os Animais Fartas sopas cozemos para mendigos. Sem nunca perder de vista um Fausto repugnado, digamos que há um caldo funesto nestas entranhas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasStefan Zweig «Suavemente paira o decorrer das horas sobre os cabelos já grisalhos Pois que só ao esgotar da taça se torna bem nítido o seu fundo dourado…..» [dropcap]P[/dropcap]equeno excerto de um dos últimos poemas de Stefan Zweig um escritor maior que o seu tempo de vida, maior que todas as fugas, e surpreendente, ao terminar os seus dias tal como entrou, pela poesia: o seu primeiro livro “Silbert Saiton” relembra-nos isso. Mas são as suas memoráveis biografias no chamado Romance Histórico onde mais se evidenciou, nunca esquecendo o novelista, o contista, o ensaísta, num ritmo de trabalho constante e fecundo. Stefan foi um homem multicultural, judeu austríaco que se fora diluindo por países onde em crescendo e proporcionalmente também se ia torturando pelo destino das suas gentes. Nasceu em Viena em 1881, ainda capital do antigo Império Austro-Húngaro e muito cedo inicia a sua acção literária num jornal sionista vienense e em 1917 escreve então aquela que será a sua obra mais pungente «Jeremias», poema dramático, peça de teatro, num mergulhar até raízes profundas quando ele mesmo se via já braços com o seu próprio destino. É o começo do seu êxito literário. Mas este autor de biografias escreve a sua própria realidade de vida numa obra densa e de rara qualidade em «O Mundo de Ontem» autobiografasse por assim dizer, mas é bem mais do que isso, ele fala-nos sobretudo de um mundo anterior a 1914 e prossegue até aos anos quarenta enunciando os perigos de um tempo entre duas guerras e refletindo na facilidade que os regimes possuem de gerar monstros. Por isso, tem a matéria justa que serve de reflexão ao tempo presente e se foi de ontem em muitas formas de abordagem bem que podia ser de agora. Enquanto ensaio autobiográfico é de uma riqueza imensa resultado da sua memorável capacidade de limpidez de raciocínio e daquele encanto intraduzível… mas é sobretudo o seu desfiar de situações e inquietações que se formulam em interrogações a este humanista, pacifista, herdeiro dos medos, que ele ganha o contorno urgente de uma releitura. Zweig fora bibliotecário durante a guerra numa repartição de informações militares em 1915, já depois de ter visitado a Índia e a América onde assistiu à abertura do canal do Panamá. Porém, a sua ida à Polónia numa missão, deve-o ter deixado chocado – soldados do Czar e judeus polacos – tanto, que a peça inaugural onde convergem todos os seus horrores, morte, destruição, fá-lo mergulhar nas ruínas de Jerusalém e no desaparecimento do reino de Samaria – paralelismo traumático – e só quando em 1933 Hitler é nomeado chanceler a sua fuga da Europa se prepara. Naturaliza-se inglês, segue de novo para os Estados Unidos e vai para o Brasil, ele que escrevera já sobre Fernando de Magalhães numa das suas célebres biografias e apaixonado pelo país acrescenta ainda «Brasil, um País do Futuro» crendo mesmo, nós que daqui o contemplamos, que nunca se sentira tão bem e jamais tivera amor tão grande por outras terras. Tanto que este viajante por destino na sua última viagem arrebata juntamente com a carta de despedida uma iluminura com a estância 106 do Canto I de “Os Lusíadas”. E mesmo este seu amor não o sossegou. Ele, que tinha saudades da sua língua, que impaciente e com o espectro da perseguição fora escondendo de todos o seu drama e aos sessenta anos tivera a noção exacta de que não teria mais forças para encetar novas etapas da vida, estava cansado da perambulação e já não tinha nenhuma pátria – tinha saudades – saudades talvez marcantes da sua espiritual ideia de Europa. Chegado aqui, os seus fantasmas de expropriado, de perseguido, de possíveis e novas tormentas persecutórias mesmo já estando a salvo, foram mais fortes. Corria o ano de 1942, a Guerra, essa durava, e ele sofria pelo destino do seu povo e pelos seus livros terem agora de ser editados na Suécia fora da sua revisão pessoal. Sessenta anos! Ou a vida nos corre bem ou não há de facto mais tempo para recomeços, todas as vitórias ficaram registadas e foi-se feliz nas coisas que porventura se fizeram com talento e amor – que muita força para elas foram despendidas – soltar aí todos os nossos medos antecipará o fim da vida que já não poderá ser reinventada… (que para muitos faz parte intrínseca da sobrevivência) guardou então a dignidade intacta e a consciência de que a liberdade é um bem que se preserva. O resto do poema de despedida: Pressentir o anoitecer a aproximar-se/ não nos perturba, até nos alivia!/ o puro prazer da contemplação do mundo/ só o conhece aquele que já nada ambiciona/ e o que não se interroga sobre o que alcançou/ nem já se lamenta do que não conquistou/ e para o qual o envelhecer é apenas/ o leve começo do adeus. Jamais nos esqueceremos de uma rainha que o tempo condenara e que foi por ele reabilitada sem julgamento moral numa antecâmara de situações em que o turbilhão inflamou a sua imagem, relembrando que existem sempre situações que nos superam, e muito para além de sermos julgados, há o julgamento que se faz à nossa própria circunstância. Ninguém a conhecia. Apenas se sabia quem era. E quando a conhecemos por ele, ficamos graves, reconhecendo também o quão injusto é julgar alguém levianamente. Se foi um dotado, não fora menos delicado. E o «Desenvolvimento Histórico do Pensamento Europeu» devia soar-nos aos ouvidos cansados como uma terapia inteligente para um tempo que aos poucos obscurece. Crónicas como o «Segredo da Criação Artística» também nos dão ainda o tempo de luz antes do ocaso. Ou nele mesmo, ainda nos dão luz.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCinco da tarde [dropcap]A[/dropcap] Hora grave! E no entanto ainda pode acontecer uma súbita felicidade vinda de recôndito sentir quando estamos em pausa para um chá ou a escutar uma ovação ao nosso ser tão carente. Pode ser que se fale na vida imediata, dos encontros, das promessas, e até pode ser que nada aconteça e estejamos normalmente trabalhando. Faenas pela tarde podem ser associadas a mortes violentas, mas a nível mais institucional foram as da alba as mais letais: todos os condenados estavam marcados para as madrugadas altas, talvez por que a noite alta é uma cortina de ferro que não deixa ver o fatídico instante, e, a noite é como a morte, negra, já a levantar a sua alvíssima cortina de luz na fronteira com o dia. Nesta interpretação rigorosa a «viagem» era um prenúncio de aurora. Mas estranhos desígnios marcam o jovem Ano, e tudo vai dar ao mesmo discurso e situação: vírus, eutanásia, infectados, infectos, uma macabra manobra que suscita a nossa indagação mais profunda acerca do significado da vida. Andamos tão acorrentados nos dias que não se nos ocorre morrer, e se em outras versões estivermos agindo, é certo que o seu espectro também deverá andar longe, e nisto, sem que o saibamos, há manobras várias que nos indicam o provável destino breve. Por ora, Eros deve vencer Thánatos que não tarda aí a Primavera. São sequenciais estas ilações vistas pela perspectiva dos vivos que assim se crêem por manobras várias, dos mortos adiados, e até dos mortos vivos, que não superam a dúvida de um querer que se deseja distante, e quando próximo, que não fale da sobra, resquício de vida consentida. É grave a matéria de facto, e mais gravosa parece soletrada ao som desta recente epidemia, ou pandemia, ou peste… seja lá o que for no domínio da expansão, nós os vivos, pensamos sempre que se vira para cada um. Os mais alienados acham que é obra postiça para derrubar impérios e verter cálices sujos de teorias conspiratórias, mas, sendo lá o que for, a consequência é o que nos deve importar. Aos quase mortos que desesperam por se fazer passar daqui para fora a solução pode estar por um fio, tão frágil quanto o sopro de entregar a alma (caso a alma esteja ainda anexada ao seu servidor e a não tenha vendido no altar dos benefícios). É sempre prudente averiguar o grau de resistência e o que ela indica ao seu portador, não vá um milagre acontecer e nos vejamos privados de uma tão apoteótica visão, não é revertível o grau de derrocada que a falência orgânica contém, é certo, mas, nas sobras da vida há coisas que nem ela sabe contar. E soando o nosso último desejo, saibamos para tal que é ilusão, tal como a vida, não raro, também é sonho. Nesta desconfortável matéria de que a morte tão inefavelmente se reveste não há condições para abordagens fáceis nem os critérios que aqui são trazidos aumentam ou diminuem a sua força de ser. De certa maneira a nossa vida é uma escolha de morte – e quantos não pactuando, ainda endureceram posições sabendo do resultado delas? – Aqueles combatentes de causas…! E se mais não fosse, a volúpia dos desportos radicais que têm dentro o risco a todo o momento contornando esferas que pensamos quase impossíveis de lidar: são os riscos sadios dos condenados, uma estreita intimidade com a sua permanência, olhando o fim como um último grande desafio. Há ainda os que vão sem rede, preferindo jogarem-se com olímpica demonstração de lealdade. Vivemos muito? Não. Vivemos mais. Muito é uma medida artificial para designar a vida, quando ela se solta não sabemos mesurá-la nem estamos interessados nisso, e contudo, os revezes dos viventes fazem muitas vezes com que se procure morrer pondo um fim a isto tudo nessa tão dura aprendizagem na carne. Os suicidas são quase sempre insuspeitos e nunca formalizam tal questão, dentro de si travam a batalha, e são gigantes. Talvez que a morte seja mesmo uma questão de pudor, como o sexo e os mistérios, e só em harmonia com o vínculo galáctico nos possamos aproximar dela com respeito. Ao longo da civilização os poetas falaram destas coisas com os utensílios que faltavam, acrescentaram na nossa humanidade uma maravilha alada que só eles podem e sabem fazê-lo, aprendemos a escutá-los como se despertassem em nós os vínculos universais oprimidos ainda pelo grau da sobrevivência, deram-nos algo que não podemos esquecer nesta marcha suicida para um naufrágio consumado. Nem sempre foram os mais audazes defensores de si mesmos, nem tão pouco os mais bem ajustados à vida, a morte aparecia-lhes quase sempre cedo demais… as suas competências, porém, não vacilariam no dom imenso de uma vocação de quase perfeitos intérpretes. Nunca a vida lhes terá provavelmente parecido um gozo, e à sua maneira estranha conseguiram uma dignidade que não vem nos mapas. Gostaríamos de passar para o outro lado desta realidade tão severa e ameaçadora, mas, quando tudo se conjuga, o dever é estar atento. Até porque, já escolhemos a via, e deixamos para o imprevisto as suas faculdades, e também as nossas, ao lidar com ele. A finitude tem também um caminho longo, e esse caminhar é a nossa vida quotidiana, o tempo que passa, as cargas que vamos deixando, os prazeres que já não são prioritários, e essa melodia talvez nos toque melancolicamente ou com urgências entendíveis. Pensamos que soçobramos mais rápido, e é verdade, pensamos que a voragem das coisas é mais forte que o nosso entendimento, e se houver destino, que é muito diferente de biografia, reconheço que não se soçobra sem uma consciente dignidade. A liberdade está mais ampliada nas vidas que não tiveram intenções de julgar, pois que julgar é matéria estreita e conduz a erros ilusórios: o caso humano é muito vasto e devemos entendê-lo até na sua máxima baixeza para não ficarmos presos a soluções personalizadas. Nada se sabe desta matéria que se julgue ser entendível por transferes de ideias onde estão projectados os filtros dos nossos valores. Não é um tema, é uma escalada obsidional que transporta um coro. É tudo fantástico neste tempo, com aspectos de terror fantástico, pois que nem preparados estamos para o futuro, aquela marcha, que se entende melhor na voz de José Gomes Ferreira «viver sempre também cansa» que é diferente de viver para sempre, mas talvez por criogenia ou uma picada no dedo possamos ficar parados esperando um outro renascer. E também a frase de Pessoa «se te queres matar, por que não te queres matar?» que é diferente de: por que não te matas. Há esta subtil transferência de efeito que nos elucida mais que todos os discursos e promete alternativas tão vastas que ficamos esmagados no meio destas crenças várias.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO fenómeno do hospedeiro [dropcap]A[/dropcap]travessemos então este deserto pois que é Natal no mundo e sem ele não há a festa. Aquela faixa estreita e alta, por onde todas as colunas de um estranho fogo se levantam, é um corpo, um organismo, um efeito anatómico, e o seu estreito desenho nos mapas parece-nos ainda uma serpente emplumada, e se grandes extensões na Terra são mais ou menos estáticas, neste corredor tudo o que muda nos fez mudar também. O metabolismo deu certamente origem a um “órgão” não assimilável pelo conjunto do todo, uma árvore trepadeira perto do jardim do paraíso onde querubins guardiões ainda vigiam o mistério vegetal do seu reino. Daqui, todos se foram em diásporas e reinos disseminados para o corpo mundo que os circunscreveu ao seu domicílio de estranhos hospedeiros, mas o órgão retorna, e mesmo quando não está no local de origem sente as dores fantasmas do amputado, e é este órgão que se vê submetido a uma luta infinda perante o corpo que se instala por fim no local nascido. Foi a dissidência da sua condição original que criou o coração, e nós ainda caminhamos à procura do centro, ponto indizível do tal órgão indesejado neste corpo em circuito fechado que expele sémen e detritos, mas que pode vir um dia a ser o lugar da habitação: somos escravos e estrageiros no corpo habitado e não sabemos onde está nele o local mais santo. Tocar nesse corpo é o convite ao hospedeiro na funda gruta da sua estalejaria, mas se o corpo apenas nascer, não saberá desta função. Se da casa de David vier um longo entendimento, essa casa é a Arca e transportar o seu enigma convidar-nos-á a dançar enquanto pelo deserto a marcha vai. Quem regressou da viagem veio por uma estrela. Foi na época de um corpo muito sombrio que não deixou de sentir a sua vocação, e se nas margens de um Mar Morto a imortalidade o tomou, é por que o mar é um elemento que morrerá quando todo o deserto cobrir o detrito que foi a humanidade, e nem por isso fomos menos sagrados a um tempo que esse menino que nasceu. Que nascer era tudo que os profetas almejavam para libertar o seu mundo da morte constante, da fuga sem fim, da diáspora, dos ódios de todos. Nascer em qualquer lado sempre a andar, e regressar um dia apenas pelos sonhos- por um imperecível sonho- que só um corpo tão glorioso não apagara. Quando toda a memória dele se for estaremos perdidos dentro de nós, o corpo quer viver, mas a sua alma, não, e tudo lhe serve de combate a um confronto épico onde a matéria se endeusa para cobrir a fria corrente… Sem que o saibamos podemos estar mortos dentro do corpo a pedir ao desejo que nos traga um sentido para não morrermos de terror. Os que vaguearam pelas vagas de inimigos retornaram ao lar, os dissidentes desse lar deram-nos uma luz, mas, se o corpo estiver coberto de musgo pela passagem dos presépios, apenas andaremos em busca do nosso refúgio imaginário. O deserto onde nasce um deus não precisa de mais nada que ser um ponto de infinito entre as Nações. Nem nós, corpo imenso, somos capazes de cobrir a sua grandiosa desolação, nem entender os rios onde se chorou para a ele retornar. Ao nosso corpo juntemos as palavras do Levítico, 19, 33-34: «Não oprimireis o estrangeiro que permanecer na vossa terra» o que não conhecermos de nós que seja bem-vindo e se junte para a transformação; os nossos órgãos de fogo não podem destruir toda a grande casa! Com compassos de espera até ao estertor final nós vamos prosseguindo tão sós como num qualquer deserto e falta-nos ainda saber da rota deste desconhecido habitado. Veste-se de usura e é indecifrável nos seus desígnios? Despe a usura e cobre-se de um manto bom e protector? É porque veio da sua própria necessidade ocupar o tempo no espaço que deve ser melhorado e criar luz nas próprias entranhas. Diz-nos ainda que seis órgãos servem o ser humano e três escapam ao seu controlo, e nesta aventura saberemos o que temos de integrar. Nada se passa muito além e, no entanto, é sempre para longe que reflectimos e desconhecidos de nós mesmos, festejamos. Estamos na hospedaria mas está tudo preenchido, não temos lugar…. e quando damos por nós fomos parar a um local improvável, nos confins do mundo, desértico, com as dores de parto de um mistério por decifrar. Guardemos os segredos e caminhemos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA quinta essência [dropcap]D[/dropcap]eixa para trás o filho frágil por que na natureza é preciso caminhar, e essa indiferença contida de mãe em andamento ensombra por instantes todas as ideias das maternais delícias, e só escutamos as leis mais simples, crueldade a que tudo preside sem tréguas e mistério – leis são carrascos de imposições maiores. Resistir. Sentimos que levam a dor como um peso caminhante, e não lhes é possível olhar para trás, nem sucumbir a ela. São algumas regras naturais a cuja vontade a dor não se dobra mas que vai pisando toda a esteira do mundo percorrido. São sinais de alarme para quem se foi desconfigurando da carga dura de tudo isto, que é certamente belo, mas padece de perfeição. E foi por um impulso todo ele antinatural que a Humanidade munida de contradição pôde existir; foi quando revertemos a lei natural e fomos formando as nossas próprias leis. As primeiras leis humanas fazem-se em defesa dos mais frágeis e desprotegidos – uma verdadeira lei de bases- com esse elemento alongado que não preside à Criação e talvez sem grande esperança, algum amargo cepticismo e uma luta contínua que arrasa a capacidade daquele que se ama sentir humano, pois que é este desvio que celebra o espaço para toda a civilidade. E já nestas alturas carregadas de humanidade parece estar-se sempre a principiar, aperfeiçoando, compondo, lembrando, pois que é severa a evolução para que se apaguem as réstias do sobrevivente da manada… ela anda descalça no fundo da nossa memória e não sabemos como apagar tão duro vestígio, nem concebemos alguém que esteja ligado à vida por frágeis fios… mas temos leis conquistadas capazes de quebrar aquelas outras que não teriam permitido tal evolução. Depois da infância somos os únicos que brincamos, arrastámos o lúdico com efeitos contrariantes ao natural, e se o fizemos, foi em busca dessa noção de empatia que melhora a qualidade do clã, olhando-nos com um elemento novo chamado emoção. Com este inssurecto instinto descobrimos a transcendência, alinhámos pelo amor incondicional, e talhámos as oferendas ao bem que nos ajudou num tal propósito, e neste momento demo-nos conta de um elemento que se estava fazendo: a ideia de Deus, que começa por ser um assombro e passa a progressivo fazer, quando ele em nós, também ia tomando parte na sua própria criação. Quem se recusava a participar seria então a presa débil, o abandonado, ou o condenado à morte, mas também nessa amargura há o silêncio que elucida da lei severa com a ferida aberta deste recanto do Universo tão denso onde lhe foi muito menos difícil a representação do Inferno. Não nos chegam de fora vozes outras, a pluridimensionalidade é que se abre, há muitas realidades no espectro não visível pois que estamos tridimensionais, ainda… mas quando se fazem sentir, sabemos que tudo se recobre de múltiplos significados, significando a luta antinatural a sua escalada mais ampla. Aferrolhados estivemos na nossa humanidade, mas as bases estavam lançadas para percorrer todos os lances que desvanecessem as sombras. E aqui o Amor fala, na ânsia de iluminar toda a parte de escuridão, porque mesmo transversal ao sentido da vida, é ele que vai elucidar da ruptura com a brava natureza, esse demónio vivo com a beleza das feras. O Eldorado, a parte visível da busca, precisou da regra de Ouro que nos desvincula-se das cicatrizes das chacinas, atravessámos este asfalto ainda com o anátema da morte – lei total- toda a morte é natural na medida em que sempre se morre, e quanto aos anátemas do filho enjeitado ainda descobrimos a força de uma estrela que o recolhe-se na viagem, que as aves morrem no ar, e quando são vistas em terra não nos parecem naturais. Guindastes como sentinelas e Jacob próximo das pedras onde vê a escada luta com o Anjo, fere o calcanhar, e perfaz a fixação à terra, coxeando, e não tarda que esta marcha irregular suba a pendurar o Amor onde ficará suspenso com os pés longe do chão. As escadas caíram, tudo desce, só o Amor ficou assim, sem atributos naturais que lhe permitisse voltar a tocar a terra fresca. Temo-lo ali, como a evidência mais que conseguida de que não deve baixar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO flautista de Hamelin [dropcap]E[/dropcap] começa então o Ano Do Rato! Estamos em Hamelin, cidade alemã no lendário século treze onde antes como agora o excesso de intimidade levantava pragas, pragas essas associadas aos ratos esses inimigos da espécie humana com sistema de eliminação eficaz, mas estes lindos e inquietantes roedores tão sensíveis como fios de cabelo são passíveis de enfeitiçamentos, o que os predispõe para uma improvável dimensão estética que não sabemos contemplar dado que somos elementos desmesurados de ruído mórbido trajando repelências várias. Ele não só define a sua sensibilidade neste aspecto, bem como é encadeado de fulminante esplendor perante a soberba serpente, e assim, este ser que tanto nos assusta e nos fustiga nos convida também a interpretar qualidades surpreendentes: seria injusto afirmar que não são belos e que não encontramos ali uma extrema plasticidade no vivo olhar que tantas vezes se deixa enganar pela avidez que as coisas lhe produzem, não sendo por isso, apenas e só, o varredor de canos, ruas e esgotos, com sua barriga rente ao solo varrendo qualquer probabilidade de êxito junto a nós – não – ele encerra duas dimensões tão distintas que não podemos de facto ignorá-las. Quase todos trazemos da infância estes animais, calhou-me assim encontrar aquela que viria a ser uma experiência comovedora; aquando a plantação de flores o jardineiro encontra um ninho e rápido se ausenta para buscar armas assassinas, mas a velocidade das crianças é maior que esse ímpeto incontido, e, com mão pequena arranco um bebé sem pêlo coberto ainda com os cinzentos de sua mãe, numa briga tento proteger a ninhada, sem sucesso, mas esse, que um coração pequenino batia na palma da mão, foi um êxito e um encontro maravilhoso. Logo lhe arranjei alojamento debaixo da cama – olhos fechados, frágil como uma pluma, mas resistente – pelas noites altas levava-o a beber leite numa pedra de mármore, e como bebia! Remoçou e fez-se grande em poucas semanas, o que provocou o conhecimento da sua existência e a automática remoção seguida de análises e outros cuidados, mas, a dor de perder este insólito amigo viajou no tempo e dele não mais me esqueceria. Eles falam! Emitem sons agudos e conhecem as nossas vozes, são atentos e divertidos e conseguimos passar horas em deslumbrante maravilha perante um focinho que se move como um pequeno radar. Mas aqui, eis-nos então na presença de um Flautista, «A Flauta Mágica», o caçador de ratos, que é também uma espécie de andarilho, de mágico, que negociou a extinção e não foi pago, e sabemos como os sedutores são vingativos! Ele volta à cidade e desta vez exerce o mesmo poder com crianças, levando-as, dizem, para grutas, que naquelas florestas da Baixa Saxónia não devem ser fáceis de encontrar, e assim, ratos e as crianças nunca mais foram vistos na cidade. Ainda estávamos longe da Peste Negra mas o arauto das vestes coloridas já actuava preventivamente. Um Papagino? Ou como insinuam as vozes, um predador sexual, um pedófilo, um canibal? Nem sempre nos encantam pelas melhores das razões, e esta associação entre ratos e crianças é indisfarçavelmente dirigida aos perigos bravios da sedução perante os mais frágeis. Já os nazis depreciativamente chamavam ratos aos judeus que depois se vingaram fazendo um Estado no Ano do Rato. E que dizer dos nossos “ratinhos” que sazonalmente andavam para cima e para baixo? E nunca esquecer que a grande imagem do século vinte é a de um rato: «Mickey», tão imortal como Jesus Cristo. Lembrarmo-nos então do penúltimo Ano do Rato que foi exactamente, 2008, tentando recordar o que nos destabilizou, ter presente as mentiras dos cofres repletos de dinheiro bem como de outros armazenamentos mitigados de “fortunas” e não despejar a mercadoria com a água do banho, apertar os cordões à bolsa, e ao invés de escutar flautas, fazer desde logo neste Ano a nascer uma orquestra de ribombar de tambores: é que não esqueçamos, os ratos não serão tão mais perigosos do que inoportunos, e caso ele esteja sempre em movimento numa chamada «roda viva» ainda, e mesmo assim, todos ao redor podem ser vítimas de umas vibrantes dentadas o que não fará mal, servindo, quem sabe, até de antídoto a toda esta pouca inteligência mundial. Não sejamos, contudo, pessimistas, mas averiguemos a apetência para a avidez que pode muito bem ficar embruxada quando encontrar o delírio para fins matrimoniais. A união deste assombramento seria vista como uma tentativa de manipulação de dados fazendo recrudescer imagens de Flautistas — Hamelin seria agora o mundo. Quem negoceia com pragas que lhes pague atempadamente. Que o Ano traga a graça, a fortuna e a sorte. Que o Rato, esse, é também um Flautista! Mas não leva ninguém para a borda do rio e muito menos para cavernas na Saxónia. Tresvaria-se em presidente luso e exerce a sua conduta com desbragado e altaneiro encanto. Assim são eles no seu melhor. Quanto aos cofres, atirem-nos borda fora! (Mozart, era de lá perto, tão Rato como os que são, e não morreu afogado). Bom Ano, então.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA noite saturnina [dropcap]R[/dropcap]ecolher no Inverno ao ritmo das sombras e suster a respiração até passar o denso nevoeiro significa uma doce hibernação, um tempo de sonhos e de intimidade. Nos tempos distantes os frios eram maiores, a rude natureza era um festim de augúrios e lendas, a vida uma excepção tão frágil que não se apanhava dela senão o seu secreto esplendor. E foi assim que se viveu no mundo e se deu sentido às histórias onde a imaginação dos homens se forjou. Há porém na longa marcha, o mito de Saturno que na sua época áurea era Cronos, e que representou a «Idade de Ouro» mas este fora a enterrar e ficou representado como a parte escura da matéria, uma fonte para o conhecimento da estrutura pesada, aquilo a que se ousou chamar «inteligência petrificante». No aquecimento súbito e no lagar destas tempestades vamos esquecendo o fermento da terra onde jaz a putrefação, a noite de chumbo, a dissolução… e ainda hoje a morte pelo chumbo se apelida de saturnismo, e o esquartejamento de Osíris com todas as suas partes encontradas, renovadas, daria um deus mortuário, mas nem por isso esta forma é menos vivificante para a «bílis negra» do melancólico elemento saturnino que propícia profundo conhecimento e transmutação tamanhas! A terra do Inverno é ainda um túmulo onde todas as odes foram interpretadas, imaginadas e por fim cantadas, e do soberano instante há uma frase que nos indica mais sobre a terra que muitas descrições «visita o interior da terra e através da rectificação descobrirás a pedra oculta» estamos diante do sedimento da construção. Sem pedra não haveria o esqueleto, a linha fixa da separação, e com ela, ainda, metaforicamente, o surgimento das religiões. É de facto um tempo de pedra! Por vezes imóvel, pode ser golpeante nos seus ventos, nas suas agudas angulosidades, mas é sempre estranhamente silencioso como a morte e suas projeções ilusórias : é um manancial de imaginação e uma fonte de interpretação, plenas, e há que recorrer ao essencial onde dormitam as revelações. Tomamo-nos de noites grandes, e nem sempre a noite é um local de repouso, por vezes avançam os espectros, as finas camadas de subconsciente infinito, custam-nos os dias e suas sombras, temos receio desse sol que não aquece, protegemos o nosso frágil ser em rotinas de solidão e nem a festa lá fora nos desperta de tal pesar. Tem as célebres noites «finas e esguias como catedrais» é certo, talvez ainda um longínquo latido dos lobos das nossas recuadas cercanias, e uma imperturbável luz que nos toma e aquieta, e parar, é ser nele a certeza de alargar um velho instinto de duração. Forjado no aço difícil de transpor, esta é também a ermida do ancião que se enfrenta esperando o seu fim no cimo da montanha. Mas foi Durer quem melhor enalteceu este estado nas suas sumptuosas gravuras e testou «Melancolia» com uma compunção estarrecedora e a perseverança de quem transmutará esse estado de obscura servidão, porque olhando-o longamente, entende-se a reserva de resistência que foi necessária para alcançar a parte de uma luz que lhe está para acontecer. Atravessamos um imenso período Saturnino, um ciclo de cinzas, e a Ordem é agora um grande corpo desfeito, mas um novo tempo irromperá do fluido desta matéria – Capital putrefacto – preparamos neste estado de coisas as bases que darão a nova Pedra, a Filosofal, que por ora, a filosofia confinou-se ao seu grau de quase inexistência e os poetas saboreiam ainda as virtudes de estar sós. Esgotámos o trituramento, estamos na húmida decomposição sem disso nos apercebermos como realidade que a tudo preside. Estamos no tempo do Corvo que voa sem asas nas trevas da noite. Estilizado e destilado, aparecerá outro humano, talvez um novo Céu e uma nova Terra, que não veremos, mas sentimos saudades. Mas não podemos dar saltos no vazio! Este é o tempo que nos foi dado viver com todos os graves desafios, e de nada servirá fugir à metódica condição quase inconsciente do nosso destino comum. Talvez entender que tudo se desfaz por uma lei mais forte que os nossos desejos, sabendo contudo, que continua. Cabe-nos então não açoitar ainda mais os tristes dias de civilizações à deriva, cansadas da queda comum, e os nossos dias não serem desprezados em tarefas vãs. Por mais que se faça brilhar o fantasma do mundo, ele é agora a sombra, a sua composição aflita, tingido de um negrume quase insuportável porque atravessa a sua Noite Saturnina.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasApollinaire [dropcap]- D[/dropcap]istantes ainda estávamos dos dias que revolucionaram a escrita quando «Caligramas» em 1918 sai com o seu futurismo modernista – que Almeida Negreiros um pouco antes nos daria, é certo, belíssimas demonstrações do poema visual da fonte do mesmo verso livre que haverá de encantar mais tarde o movimento concretista dos anos sessenta. Inspiração esta que parte de uma averiguação dos signos gráficos e se debruça nos caracteres cuneiformes, chineses e também na arte copista dos manuscritos da Idade Média que virão a ser não menos decisivos para uma revolução na forma de conceber o acto da leitura. Assistimos também ao instante da «liberdade livre» quando nos é dado um poema como «Alcools» que suprime a pontuação e nos obriga assim a uma perspetiva diferente. Apollinaire compreende de forma quase visionária que uma nova forma de comunicação está em curso no início do século vinte e que a escrita teria de lhe seguir os passos. As múltiplas alternativas dão espaço inventivo para alargar o código da leitura e com ele criar suportes que ajudem a rele-la enquanto matéria viva que subjaz a toda a transformação. «Le poète assassiné», os contos que relatam em parte sua própria história, reflecte muitas vezes a charneira do tempo que lhe foi dado viver, e nessa ambiguidade coberta de uma certa lubricidade, toda a recolha de formas de leitura que em muitas variantes e em línguas outras se fazem até da esquerda para a direita compondo nomes que só a transgressão pode entender. Ele continua a misturar muitos géneros que vão desde a poesia, à fábula, ao fantástico, recitativo e teatral, e numa intermitência morre e nasce em cada capítulo não se preocupando com a unidade que tanto atrasa em muitos casos a errância preciosa do pensamento quando nada o impede de se expressar assim. O método da escrita pode ser aqui entendido pelas “linhas tortas” que o próprio Deus insiste em escrever, que tais curvas têm o poder de ter por dentro uma coerência tal, que abalará certamente a metódica noção daqueles que andam longe de entender o verdadeiro significado de escrita criativa. Percursor do modernismo, ele tem ainda o dom da narrativa e fá-lo através da sátira mordaz como em «O Heresiarca e Cª» seguindo o trilho talvez de um Camilo Castelo Branco que provavelmente nunca conhecera, mas que parece buscado de «Alves & Companhia», surpreendentemente na mesma ironia e acutilância que lhes foi tão cara. Sem dúvida que é uma grande riqueza de sinais todo o conteúdo aqui expresso, como se vasos comunicantes andassem próximos daqueles que desdobraram a palavra em todas as direcções de uma realidade a haver. A insolência está por toda a obra numa viva alusão ao extrapolar daquilo que sempre será apanágio de seres sensíveis, a sua profunda indignação face ao mundo que os rodeia, e este trilho é o elemento que transforma um insuportável mal-estar numa manifestação que transcende e cura o próprio doente do transtorno desse mesmo mundo. Não há dúvida que a “felicidade” esse estigma mundial do agora, retirou de cena os seus mais eloquentes observadores, mas, a forma como este, e muitos outros agarraram a observância tem lá dentro um arquétipo infalível que subjaz a todas as épocas. Apollinaire era um polaco – filho de mãe polaca – pois que do pai nada se sabe, e a sua vibrante fonte um caldo de uma nação religiosa que acompanhá-lo-á até ao fim: e no livro acima mencionado dá-se o confronto com a sua origem que passa por ser do domínio da fé, e que passa depois para um plano mais teológico com formas rebuscadas de significado bíblico transportas para uma consciência que dá às suas personagens uma extrema humanidade pois que são feitas de partes tão detestáveis quanto boas, admiráveis mesmo, pondo a Humanidade no centro do seu próprio drama. Claro que o faz com humor, espírito incisivo e, numa palavra só, “graça tanta”, com aquela intensidade que não conhece tempos mortos e nos faz assim compreender melhor este impulsionador da literatura moderna. Ele foi sem dúvida uma personalidade multifacetada que criou raízes com os seus pares na vanguarda de um tempo onde o Cubismo teve alta social e a palavra Surrealismo lhe é ainda devida. Mas as peripécias de vida destes homens não são aventuras suaves, e chega a ser acusado de cumplicidade no roubo de Mona Lisa juntamente com Picasso. É preso, ficará perturbado e, aos olhos dos mais conservadores, possuidor de todos os perigos por ser estrangeiro, rebelde e atentar contra uma certa base civilizacional. Nada de novo, portanto. Dá as boas vindas às mudanças e saúda-as com puro génio criativo tendo para isso um terreno mais vasto de expressão, consegue suplantar-se em quase todas as ocasiões, que o tempo exigente arrasta uns, e faz faróis ainda outros, e é por isso que ele, na sua também tão parecida situação presente nos continua a inspirar. Ele consegue inovar a herança e trazê-la para o seu instante carregada de futuro numa anunciação comunicante sem igual. Não deixa de ser também um aviso à nossa navegação o título do seu primeiro livro, aliás, absolutamente espantoso: «O Encantador em Putrefação». Cento e dez anos são passados e este deveria ser o encanto que nos define. Apollinaire é um mago. Ele deixou a escrita em dia, no dia em que soubermos ver que escrever tudo de todas as maneiras com as técnicas escreventes, será a nossa própria humanidade que se escreve e assim avança para o seu mais vasto entendimento.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasProntuário [dropcap]P[/dropcap]rontifiquemo-nos na língua pronta a usar pelos acordes programáticos da ortografia e vejamos como se pode comunicar sem “concordância” alguma, nem no passado, nem no presente, e muito menos no futuro que nos acolhe. O que fazem com a língua é uma questão bastante exaltante, e o que se escuta destas reformas dá-nos que pensar: talvez nem tenhamos já idade para aprender a mesma coisa outra vez da forma que desejam que se saiba. Ditongos e tritongos todos em lista de espera para ser pronunciados enquanto aguardam pela vistoria da norma, hiatos mal plantados, vogais mudas de espanto, e consoantes consoante a norma a sair. Sequências consequências, dobradas… Bem possível que o exercício da poesia nesta língua fuja para remotos locais com as Maiúsculas atrás… Aspas para citações comprometedoras… verbos defectivos e falantes defecáveis, uma imensa confusão se instalou nas mentes das gentes que também não prezam por características cartesianas na sua moldura penal e penosa, de pensamento. Que fazer? Continuar. Se por tudo e por nada tivermos de andar agarrados uns aos outros é certo e sabido que não fazemos nada. A arbitrariedade das normas de cada um para bem de todos é uma demonstração trepidante que pode paralisar as grandes soluções. Temos direito ao silêncio como nos Tribunais, e temos mais direitos ainda: que é o de não reparar. Repare-se nos níveis de trepidação, ou, sejamos claros: as normas existem para ser mudadas, mas mudar a norma equivale a um grande equívoco e as fracturas ao nível metafórico da substância de uma língua equivalem a longos períodos de padecimento. Ao tempo numeral juntámos um vocabulário cada vez mais amputado – para nos entendermos melhor, dizem – gentes que nem nunca falaram connosco e nós falamos uns com os outros em termos cada vez mais acusatórios, ficando assim uma inibidora impressão, de que, e para, que serve a língua. Fica-se triste! Os Pronomes Pessoais são imprecisos e não passam a átonos de forma natural. Há, no entanto, muitas Interjeições, está tudo mais ou menos espantado acerca de tudo e de nada, o que leva a pensar que não estão preparados para as novidades. Um ponto final arrasta-se sempre parecendo uma reticência, que bem encolhida, de novo se aproxima como se nada tivesse acontecido: uma capacidade de perdão sem sentido para uma incapacidade de dialogar que não há memória. Mas ele há sempre Verbos com um duplo particípio passado e formas ortográficas que desmantelam o aparelho fonador a níveis insustentáveis, aliás, este aparelho é um bem que possuímos, daí o atentado à sua geografia física durante séculos – cortando a cabeça solucionava-se assim um problema que a própria transcendência não conseguia resolver- e foi pensando no trauma de uma realidade outrora vivida que a Humanidade começou a gaguejar, arrastando vogais como se nas mãos de seus carrascos ainda estivesse. Há Acordos para estas coisas? Não. Mas elas são consensuais perante os falantes. Os Pronomes Átonos que devido a um socalco de voz passaram a “átomos”? E os factos que passaram a fatos, e os fatos que passaram a andrajos? E o “ir de encontro” em vez de ir ao encontro? De forma subliminar todos chocam de forma agreste, em vez de propor a coisa mais gentil que é rumar para outro. E o pronto e os pronto (s) e o pois e o depois, e o pá e o portanto? Uma grande disformidade por épocas tolhe a língua em grande dimensão que a voz como seu suporte logo nos faz sono e uma turbulência nos aflige. Talvez aulas de dicção, oratória, um Prontuário de palavras em canto… voz nos respectivos palatos e algum secreto amor por uma fonte gasosa que é a língua. O “Sujeito Composto” não chega para dignificar o verbo e os prestidigitadores devem aprender a ultrapassar a barreira da inconsequência. O discurso indirecto não trata da lateralidade, e o discurso directo não é nenhuma verdade sustentável, com pontos vitais e contenção poética se deve então vigiar as margens de uma língua. Para tanto se requer qualidade e graça e uma aturada sensibilidade, nunca esquecendo os seus trabalhadores: a língua nunca foi o dizer coisas. É outra coisa, que requer uma atenção que agora não tem.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCanto de Salvação [dropcap]V[/dropcap]oltar solto ao novo Natal do Sol que não vem pernoitar por cima dos altares de uma velada, das suas ceias, que nessa noite muito longa feita de milhares de anos se busca salvação nas lendas de antanho e suas teias. Uma noite muito fria não suporta mais as mil maravilhas em ciclo continuado que é o ciclo sublimado do pecado. Que o Sol nado – encanto da estirpe – nos recobre no recanto deste Universo e não deseja ser cantado no seu carrocel de sombras – Revolução Maior – o Livro de Horas dos sinais dourados. Não tenho Natal, jamais me nasceu algum Messias, todos os que nasceram não me salvaram e tenho aprendido a arte da vida sem alardo onde nunca um Messias é projectado. Seres há que não têm salvação, e nem a luz os cobre nem lhes interessa o perdão. Que as penas, levamo-las no peito transfigurado, que para elas se acendem as estrelas quando todos já estão deitados. Somos servidos na dança (quebram sempre frágeis membros) mas na gruta da festa há sempre a lembrança de que a vida cresce para ser Criança que é tudo o que temos. Que se há de bastar para além das sombras e rasgar o peso das marés altas de suas ondas, que nascerá de novo até ser de si uma outra vez o salvador de um povo. Que vai à lenha buscar o lenhador para fazer de cada dia seu único salvador… seremos assim salvos não porque o queiramos, mas pelos acasos de muitos anos. Já não repartimos nem vamos juntos no vasto mundo, que a Terra gira, dança para nós, e subindo os braços é que estamos presos ao melhor dos dons. Cruxificam sois para os entender, matam a luz porque a noite é longa, e mesmo assim há uma centelha nos rostos mais bonitos que veem o Sol nos seus sentidos. E ficam eternos de braços no ar, sem ter que o saber ou tornar a baixar, e vem o Verão e arde tudo, são as lamparinas dos reflexos do mundo, cruzam os mares carregados de suor – chovem-nos em cima – tiram-nos a paz, mas que são ainda a salvação para o que não fomos capaz. Falarás somente do tempo que te reveste, e sairás vestido em todas as Eras sem essa nudez sagrada que cegou as feras. Veste a alma e coloca-lhe flores, que elas, morrem depressa, e os bichos são lentos a compor as dores, fios que vão abalar os frios e fazer da pele um tecido mais por aquelas margens onde passa um rio. E o Sol virá ainda assim com hora marcada, sem peso, sem dobra, trazendo as sandálias de um astro que chora. Gosto de o ver! É um longo começo, ele é natural em seu adereço: vivendo nas sombras estamos muito sós, nem salvos, nem ungidos; ele faz a progressão, labuta na fornalha, e face ao que governa não tem qualquer sentido. Transforma-se, é Estrela, vive cintilando… De Natais indistintos estão mortos os ouvidos e nada nos diz que escutamos o brilho, são Magos reais os reis que o veneram, vêm dos desertos da claridade, e nascituros somos nesse instante face à eternidade. Magoaram o Sol em seu transformar, é apenas um Sol, longe de outros a tentar, que nós temos frio mesmo nas descidas e nos lares que se preparam para o festejar. A sonda dos tempos permanece igual, eles volteiam – as estrelas, os astros – vamos atrás deles vendo-os passar. Deus vem assim como o viajante, sentimos-lhe o mistério no sangue, e nasce p´ra morrer e para esquecer, e voltar talvez num outro amanhecer. Findo, transformado, morre a causa de tudo ter iniciado, pois dele nada se salvou, apenas uma incerteza do lado em que esteve na Criação, que não criou. É porque temos de passar este Norte, esta voz continuada, que a salvação é a vertente mais sagrada. Mas salvarmo-nos de quê? Estamos encurralados, não há quem nos ajude no que construímos, não há salvação para quem nasce: hás tu, que não foste em vão! Mesmo que o Sol imploda e a Terra arda, a nossa febre continua por outros sois, sempre, e ainda, à espera da tua chegada. Que já se foi a salvação, mas há essa noção, esse legado maior, essa terra prometida, esse leite, essa subida, que a saudade não cobre e de vida padece: há os zimbros e os ossos espalhados, há o pó que retorna a um outro universo mais amado onde não sabemos como fomos buscar estas palavras. Ninguém aqui veio, não há aqui chegada, fomos rodando na estação dos Natais, e somos um ponto entre o seu levante e a sua entrada, se viesse alguém, se viesses um dia, nem a Primavera te cobriria de flores, que os mortos não as veem, nem precisam delas. Ninguém se salvou, a ideia é sê-la.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO rei de Thule [dropcap]V[/dropcap]iver é uma prestação de homenagens, homenageamos os ciclos com festas e até os nossos próprios dias com rituais definidos, andamos talhados no tempo para a prestação da dignificação de aspectos cuja origem desconhecemos, o que não retira nenhum brilho e mérito, antes, o acrescenta, pois que é no mistério deles que reside a sua expressão maior. O selo de uma transposição que defina no tempo a separação de um ambiente para outro, contorna tudo, e molda as nossas naturezas com mais ou menos bem sucedidos frutos. Vem o rei de Thule descrito num belíssimo poema do Fausto de Goethe, lá o vamos encontrar como uma bruma arturiana: mas Thule, onde fica? Em que local o vamos situar ? O nome é belo e leva-nos até a um rei doce e amante de um provável amor tão remoto na nossa lembrança como a própria Ilha, e diz-nos a lenda dos ancestrais iranianos, os zoroastres, como já falavam dela como “pólo norte” estendendo-se até ao mito grego dos hiperbóreos, sendo o grego Piteas a remete-la para a mais setentrional das Ilhas Britânicas próxima do Círculo Árctico, estando nós assim no roteiro da Estrada do Norte que as oscilações da temperatura com o devido arrefecimento foram empurrando para sul ( não vamos excluir o mito da Atlântida e os graus de negação e aceitação nesta matéria). Em 1927 sai uma edição ( Le roi du Monde ) de René Guénon, remetendo a sua existência como o centro da Civilização e relevando para tanto textos védicos: a verosimilhança que relevam disso nos dá conta; Paradesha ou “Coração do Mundo” que passará a Pardes para os caldeus, formando assim, Paraíso. Estamos em Fausto no centro da herança íntima deste mito onde toda a mitologia germânica subliminarmente a integra, o que explica mais tarde uma obscura organização chamada «Sociedade de Thule» ligada ao movimento nazi, mas que Hilter manda extinguir, também, misteriosamente. Efectivamente há uma noção de “raça nórdica-atlante” de uma terra desaparecida no meio do Ártico e toda a lenda navega na mais improvável busca que possamos propor-nos, sabendo no entanto como foram grosseiras as interpretações destas matérias por mentes frágeis sem condições interpretativas. Para entendermos este rei e talvez as coordenadas da sua existência, a alegoria da montanha sagrada deve estar implícita, toda a proximidade se dá por montes e sobe à montanha, o monte Ararat, a montanha Qaf… Alborj, Montsalvat… que muito embora possa mudar de localização devido aos ciclos geológicas continua a ser um eixo fixo em torno do qual tudo gira, estando preservada da humanidade, é o “país supremo” lá para o Pólo Norte. A imensa informação que se encontra numa obra como a de Fausto é o que faz dela (e de outras semelhantes) o seu prodígio civilizacional, os locais esquecidos, ou, os locais que não devem ser dados a conhecer… a conexão de um cérebro como o de Goethe que deve ter transportado milénios de boas ligações internas e destilado tais heranças… a recuperação de um virtuoso rei de amor feito e por amor abatido, é por si mesmo matéria fausta e grave dado que são estes guindastes que nos sustêm longe do asfalto da turbulência irrespirável deste atual mundo. Thule passeia-se muito certamente transversal a todas as épocas, e já a «Utopia» fala dela, e não será agora de estranhar que o primeiro ensaio para uma sociedade assim tenha sido lá para as zonas de Thule, deixando em aberto a memória de tais remotas realidades. Pessoa faz ainda o belo poema das Ilhas Encantadas, podem ser todas elas, sim, mas ele acrescenta “aquela terra de suavidade que na orla esquerda do sul se olvida… é a que ansiamos…” “Il était un roi de Thulé immaculé….” a história trata de um rei que sentido a sua vida aproximar-se do fim, lança a sua possessão mais querida, a sua Taça de Ouro, presente da sua amada, e se:- o rei de Thule ainda existisse não jogaria a sua taça mas sim o seu vinho, pois que ele é mais precioso que o ouro- nos diz Paul Valéry em ” Le vin perdue” e se é verdade que todo o poeta é um rei não é excessivo afirmar que cada poeta é um rei de Thule, o essencial que nunca se transforma: a vitória do tempo continua a ser pronunciar a palavra liberdade sempre em voz baixa. Thule permanecerá um poema ou um labirinto de gelo, mas quando o mundo aquece podemos ainda pegar nas suas chamas para passar a fronteira e transformar um local num maravilhoso país de elementos equidistantes e tão ordenados que certamente será esse o paraíso. A sua taça pode ainda ser a do Graal, esse vestígio de um Banquete ou de uma Ceia para o centro da renovação de uma concavidade há muito programada. Houve em Thule um rei, fiel Até que a morte o levou; A sua amada, ao morrer, Taça de oiro lhe deixou……. … com seus cavaleiros foi-se El- rei à mesa assentar, No salão de seus avós Do castelo à beira-mar… “In- de Fausto”
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEmergentes ….nós não escondemos o perigo que a alma da humanidade corre, o abismo do qual essa alma está próxima. Mas também não conseguimos esconder que acreditamos na sua imortalidade. Herman Hesse [dropcap]V[/dropcap]ivemos um momento que não prevíramos ainda há poucas décadas, um instante mundial que nos fustiga pela agitação espontânea numa transformação que mais não faz que aumentar o estro da nossa imaginação quase incapaz de projectar os efeitos da circunstância. Parece um “tsunami” face a estruturas mantidas programaticamente de pé e que a força do impacto as deixa sem fundições para reerguerem-se, tomam novas imagens, é certo, e tendem a sacudir as águas literalmente dos seus capotes onde improvisam a sua permanência na escala flutuante dos acontecimentos. Mais do que nunca o caminho faz-se caminhando, e não há nenhum, fazendo-se por isso a andar. A improvisação dos movimentos, os bloqueios sistémicos do quotidiano, fazem dos amanhãs que cantam uma coisa vã, pois que temos mais do que nunca que escutar cada dia e nele aguardarmos as mudanças. Desde os artistas emergentes, que definem a sua marcha com técnicas onde a sua inventividade, cria não só outras estéticas, bem como níveis de observação ainda não contemplados, até aos que se revoltam ( que tudo pode ser em simultâneo) e caminham no dia como numa plataforma mais entre aquilo que dele emerge e possa ser passível de revolucionar as novas estruturas em pleno movimento, à aceleração e à complexidade das formas que fazem com que os pesados aparelhos de Estado não saibam muito bem como lidar neste súbito instante do destino, há outras urgências e emergências que se dão: o clima, a Terra, os arquétipos que se partem e formam um género só, o híbrido ( pondo um fim quase relâmpago ao dois por três) a inteligência artificial, os buracos negros, o capitalismo, os aceleradores de partículas… vão deixando exangues as características da sua identificação. As urnas democráticas afastaram os jovens para as calendas gregas, e, em vez disso, nasceu com eles uma insuportabilidade que vai sendo presenciada em todos os cantos do mundo. Muitos de nós dentro dos sistemas anunciamos obscuras visões de antanho – autoritários, dirigistas – mas não se sabe nada, tal como também nada vimos o que era passível vir hoje a acontecer. Todos os projectos centralizados não são possíveis sem um grande número de voluntários, e quando se participa estamos ainda para lá de nós mesmos. Os jovens projectam-se sempre com o seu próprio corpo rumo ao futuro, dão a vida como fazem os amantes, nunca sabendo o que virá depois, mas se não o fizessem teríamos razões ainda mais fortes para temer. Agarrámos na geração vindoura com sofreguidão num mundo de acentuado envelhecimento, desejámos resolver a perspectivada vida que tínhamos para eles, mas esquecemos que sem dela se separarem o futuro não existe e a transformação silenciar-se- ia. Diz-nos ainda que sistemas com propriedades emergentes podem não seguir os princípios da entropia, pois eles se formam e crescem independentemente da falta de um comando ou controle central, e é a isso que parecemos assistir rasgado o véu da primeira essência dinâmica das definições sociais. Este grande corpo não cessa funções nos bons realizados esforços, ele percorre o ciclo do seu conhecimento, e se o fim do mundo é apenas uma noção, já o fim de um certo mundo é um facto real. Fomos compelidos a tentar perceber, e, não haverá reposições traiçoeiras para uma escalada que parte de dentro do mau estar do próprio organismo, contemplar esta substância pode agora ser um desafio que as nossas certezas começarão por tentar corrigir com o tempo perdido de um antigo voluntarismo. Mas emergem destes dias, também, o estatuto de saber conduzir sem ser conduzido, a desordem que impera na largueza dos gestos, deixar de olhar o mundo como uma escada até à calote mais gelada da inacessibilidade, e se para tanto tiverem que adensar a marcha, foi por que nós ficámos mais parados. Viver neste estado de coisas, parece cada vez mais consensual – não fará sentido – e sem sentido tudo se perde numa propaganda estilística de regime que embalará certamente os mais velhos e mais ricos das Nações. Será que há continentes submersos também a emergir nesta assentada? Ou estrelas e meteoritos que reguem de impacto a Terra num estertor violeta? Abertos que estamos agora para a Galáxia também as águas oceânicas ficarão mais sós, e nem sempre a nossa ausência por aqui se avizinha agora um mau sinal. Emergentes de todo o mundo, Uni-vos! Sem vós, que não serão certamente os bárbaros de Kaváfis, serão pela sua voz agora ainda, a única solução.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDicionário infernal [dropcap]E[/dropcap]m dois mil e dois saía na Cavalo de Ferro, logo às primeiras edições da então jovem editora, uma obra de grande ousadia e interesse maior em forma de lenda dos medos, explicando muito da psique social de uma Europa que os arrasta e conserva em outras frentes, e, cujo interesse, parte desse magma identitário de superstição e superação de um Continente onde o fantástico e o horror coabitaram quase sempre como forma cultural. Tem a tradução de Ana Harherly, bem como introdução e notas, sendo, para que se realize tal proeza, um fôlego, só equiparado à sua qualidade literária. Não é fácil pegar-se numa coisa assim num mundo que baniu os restos mortais de um velho inconsciente colectivo e que se vê a braços para estabelecer a sua fantasia perversa com a tirania das imagens e dos conteúdos que fabricam espectros; deseja-se uma certa contextualização do abominável, por vezes, até, com apelos estéticos quase sempre caídos no logro brutal da sua manobra. O seu autor é um tal Collin de Plancy, francês, nascido em 1793 em plena Revolução, onde o ribombar dos tambores activaram a sua mente talvez delirante, ou tão só de uma robustez de conhecimento simbólico que sabe dos disfarces que são necessários para tudo afinal ter o mesmo fim. Sade nesta altura também se “passeava” entre duas eras, e nem uma nem outra o conseguiu tragar, sobretudo Collin seria aquilo a que apelidamos hoje de mágico, mas à época, exaltado pelo canto da guilhotina, pode ter desenvolvido uma tendência paranoide que não é mais que um estado de terror que desagua em interessantes formulações que não devemos abandonar com displicência: aqui tudo o que é humano interessa e não anda pendurado na razão daqueles códigos de honra dos pensamentos dos regimes. Herdeiro de todos os terrores o seu género literário chamar-se-ia de “género frenético” o que é sinónimo hoje de Literatura do Fantástico. Influenciado pelo “romance negro” inglês, mas com mudanças de construção que cobrem um espectro pagão, era simpatizante do Demo, mas mais tarde converter-se-ia num católico fervoroso, essa não menos belíssima religião que ergueu os pilares devocionais de todos os suplícios que desejamos esquecer. Tal qual como o próprio Diabo, Collins inventou para si bastantes nomes, o chamado heteronimizador compulsivo, que a nevrose sempre alimenta com identidades paralelas, ele escrevia com a avidez de uma necessidade monetária que nunca o abandonou mesmo na sua conversão, onde por todas as esquinas via o diabo de quem tentava fugir, e já na primeira metade do século dezanove a sua escrita social tinha a sua marca deixando aflorar este comprometimento satânico. Foi prolífico até ao fim. Nesta altura andava no ar a leitura estética de choque de assinatura inglesa, mas que se misturou aos atributos locais e fez por si só uma corrente nova, reforçada. Começa esta obra que estamos analisando com ditirambos de muitos escritores e pensadores de renome e méritos conhecidos que não encontram nenhuma razão para a inocência consentida e desferem juízos capciosos por toda a lógica da vida: entre eles estão, Goethe, Baudelaire, Blake, Poe, Dante, Goya, Sade, Milton… ficando esclarecidos, nós, das suas “fabricações” onde cresce um Belzebu em todos reinventado. Ou não? Se eles assim o descreveram é por que naturalmente se sentiram habilitados a fazê-lo até à perfídia máxima que é a sua auto- negação a partir da conhecida frase de Goethe, depois escreve Fausto e tudo se provou que era apenas uma frase conspirativa; – entretanto as vozes calam-se – e começam alfabeticamente as explicações (é um Dicionário) que bem pode ser um compêndio de saberes pois tudo o que se lê tem sempre uma sombra que nunca é a de um atrevido Peter-Pan… é outra coisa que pode despertar incautos e reconhecimentos vários lá para a esfera dos «Encantamentos» : a maior parte dos encantos fazem-se assim, através de palavras, e Plínio diz-nos ainda que por meio deles se extinguem os incêndios, se estanca o sangue, isto tudo em verso grego e latino. São sortilégios! Quanto aos judeus, metem-nos na categoria dos ciganos e colocam-nos a envenenar as águas dos poços tendo havido então um massacre na Germânia (primeiro nazismo) indo em fuga refugiarem-se nas florestas medonhas daqueles locais onde arranjaram subterrâneos só saindo passados cinquenta anos onde se ocupariam após este interregno das artes divinatórias. Vimos por isso que a História dos povos não pode jamais ser feita sem recurso a estas referências e que os ódios são também eles um reflexo social transportados de século para século. Entre nós temos a recolha etnográfica de Trindade Coelho onde toda uma tradição popular está plasmada deixando livre trânsito para saber que a tal “literatura frenética” se encontrava também entre nós « Senhor Sete»: são os agouros, rezas, superstições, ladainhas, os recursos “hídricos” desta água memorável que vem afinal de uma Hidra comum. A polissemia da palavra «praga» disso nos dá conta, que as naturezas que habita designam várias coisas, recorrem a muitos nomes, Gil Vicente nessa «Barca do Inferno» adjetiva-as com delícia linguística… A primeira edição deste Dicionário data então de 1818, outras se lhe seguiram, 1825 e 1826, 1863, sem dúvida para a época um verdadeiro “best seller” fornecendo ao seu autor já em fase de abjuração alguma secreta riqueza. Afinal o Diabo não brinca em serviço!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA barca do mundo [dropcap]C[/dropcap]lima e urgência para o debate no Mundo que neste instante reflecte o seu destino comum, um momento galvanizador da consciência da vida e das suas transformações a curto prazo geram uma emergente expressão de combate a muitas vozes. Estamos a criar uma consciência cósmica repentina, e já nem espaço há para o bucólico regresso às fontes de que nos fomos libertando pela conquista de um bem estar não menos comum. Os países pobres alertam-nos ainda mais a consciência pois eles são as primeiras vítimas deste desequilíbrio e os que mais padecem neste momento, é já da ordem das antigas epidemias, por ora, é o que vemos acontecer ano para ano, pois o tempo se estreita nas suas variantes e a matéria tem de reequilibrar a sua massa que esgotada parece estar, é um processo, e se reorganiza para estruturar um outro em plena continuidade de movimentos e imprevisíveis fenómenos que pode liquidar desde já populações inteiras. O momento em que vivemos estes diálogos estão bem longe das práticas militantes dos anos sessenta em que a fuga para a natureza representava o desabotoar das roupas para o torneio do nu em grandes descampados depois das vestes severas que os antecederam. A natureza como retábulo idílico era uma coisa aceite na vanguarda dos insurrectos que logo que a juventude passou vieram fazer as suas vidas no grande espectro liberal e por lá se mantiveram até ao grande Banquete de todas as formas de extorsão energética que a Terra dava de forma ilimitada, juntaram a isto as guerras e os interesses comerciais e fundaram novas elites; estávamos ainda a caminhar para o auge, o dia perfeito, a abundância de fluxo, hoje, porém, a dinamização juvenil não ergue essa bandeira, e há muito ( se é que alguma vez chegou a sê-lo) não traz no seu código nenhuma forma de epicurismo, antes pelo contrário, vem activa, receosa, grave: jamais vimos uma juventude tão protocolar, tão atenta, tão firme e consciente, parecendo que vêem mais longe que o momento agora com uma transparência que não conhecíamos. Estamos fustigados não só por ventos ciclónicos como o estamos também por discursos novos, condenatórios, arrepiantes, a que não valerá a pena ripostar com a esperança da vida curta que nos resta e a sobranceria dos códigos, e nessa frecha aberta como uma avalanche de abismos titubeamos de forma concertada, tendemos a consentir mas sem no fundo entendermos bem, pois que a nossa versão nos destinos do mundo foi exactamente a inversa – consentimento e regalias – e com tanta ambulância foi essa outrora juventude que se prolongou no engodo de que o mundo lhe pertencia, quem está agora a ser confrontada com uma velhice que não merece e a pesar as suas próprias práticas inconscientemente tão funestas. É um alarme e os sinos soam a rebate! Nem sempre o que estamos à espera vem exactamente do lado esperado, e uma das mais vitoriosas formas que a vida nos dá é a sua capacidade de surpreender-nos, julgamos a partir do tangível ter a resposta para a efeito, mas as causas não se dão para satisfazer a nossas aparentes infalibilidades, para dizer, que neste jogo dos imponderáveis o que se rompe são estruturas cujos desígnios também desconhecemos, não valendo a pena por isso falar de um amontoado de números de milhões e biliões, pois que um dos disfarces da ignorância é revestir-se de muito. O que está de facto no grande «Olho do Vulcão» é a nossa perspectiva face a um modus vivendi cuja condição indisfarçavelmente não dá respostas para a saída do Labirinto. E não vale a pena contestar as Vacas, os Touros, que o centro é Minotaurico e está ainda representado pela inacessibilidade. Seremos nós quem ruminamos agora com dentes feitos só para sorrir e uma estrutura física desadequada para atravessar o estertor desta futura dimensão desconhecida? Quem sabe, nunca as coisas foram tão inúteis e tão pesadas para manter viva uma certa noção de Humano. A vida não acaba, nem tão pouco acaba aqui, na luta com fenómenos extremos, que nós sempre fomos extremados e continuamos sendo essa massa poderosa em expansão onde o paternalismo das hostes arranja sempre maneira de sustentar a sua ordem, mas agora, neste labirinto um tanto inefável, digamos, passando pelos que desistem do sexo com que nasceram para o transformar no outro, talvez nem valha a pena tanto dano uma vez que se pode ser andrógino no corpo nascido, isto apenas para dizer que poderemos adaptarmo-nos a severas mudanças a partir de órgãos novos e adaptações não sonhadas. Mas, e aqui está a dúvida: seremos ainda nós nessas formas de adaptação, ou seremos outros, na base deste longo ensaio? Estas questões só podem ser consentidas quando o medo da morte se dissipar, dado que também já não estamos longe de deslindar esse quase eterno sufoco acerca da brevidade da vida. Por isso, e para que não nos pese a vida mais, será preciso atender ao novo dela, ou estaremos irreconhecivelmente envelhecidos para responder para o que as nossas vidas servem. Ela servirá para viver, sem dúvida, mas todas as vidas estão subordinadas ao mesmo estatuto, e a nossa não será a mais consentânea sequer com as suas leis; que nos crescesse de repente uma certa compaixão por ela enquanto todo só abona a nosso favor pois que abarcamos nesta Arca todos aqueles que vão connosco. É tarde demais para glossários, de facto, estremecem os dias, e as nossas vidas terão de ser conduzidas pelas vozes dos Vindouros, esses, que nem sabemos bem quem são, tão atrapalhados nos tornámos com as competências e as fomes eternas. São as «Novas Epístolas aos Vindouros» e nós estaremos com eles, ou eles seguirão sozinhos e tão conscientes, que perderemos o melhor da nossa missão. Pensai que à doce Mística opusemos a acre e fria dialéctica E varremos a nobre Metafísica com a vassoura da Economia Que na ânsia pueril de termos tudo, reduzimos as dúvidas pretéritas – Angustiosas mas fecundas, a certeza do nada. … e empalhámos todas as formas vivas desde o coito à poesia… … desta época atroz da infância das técnicas… Orai por nós, orai por nós «Epístolas aos Vindouros» Carlos Queiroz
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasConjurados [dropcap]E[/dropcap]stamos socialmente alinhados na conspiração de grupo e nas articulações de grandes tramas que nos impedem quase a saudável natureza dos actos individuais ou das capacidades próprias: depois da grande artimanha da competição versus produtividade aninhámo-nos em seitas, umas mais, outras menos conspirativas e cooperativas com carácter de urgência, e é tanta a prazenteira delonga deste estar que não há ninguém por menos bípede que seja que não ande num transfere de competências associativas com fins determinados em reuniões sistemáticas e estratégias constantes. Creio mesmo que a noção laboral, a perspectiva do fazer ou saber fazer, realizando o melhor, mergulhou num longo sono todo ele encriptado de manobras várias com tentáculos de complexidades alarmantes. Cada vez ocorre menos a uma alma em repouso orientar-se para uma vitória de si mesma face à inércia do banditismo da informação vinda dos lados mais bizarros do esclarecimento, creio que andam entretidas a ver pela total incapacidade de indignação nas zonas de impacto onde se deseja que coloquem as vozes, quanto muito, interessando-se pelas coisas na razão directa de uma autodefesa que rapidamente passará a transtorno quando se desconfia de negligência face aos muitos e aturados méritos que carregam. Tudo isto pode gerar um pasto apetecível para orientações mais alargadas de tirania – que ela anda no ar – tentando fazer manobras quase indecorosas por cima da cabeça das Nações. Estes “Conjurados” não são da aura calorosa daqueles que estamos a pensar: a dos resistentes pela soberania do Reino em 1640, são outros- como não podia deixar de ser – que conspiram horas e anos a fio sobre práticas dolosas de como vender países a troco de nada arremessando para o seu grupo o maior número de proventos possível. Conspiram, ajustam, combinam, numa aleivosa actividade de banditismo de Estado nas suas associações de grupos e associados. São batalhas intermináveis que parecendo acção, são contra actividade, dura, o que nos deixa a pensar que em caso de um drama iminente não tenham a menor orientação e bom senso para servir de garantes seja do que for. Uma híper-liberalização ensaiou os seus tentáculos de supra sobrevivência no asfalto de um mundo onde as leis alteradas chegaram aos grandes desprotegidos em regime de imitação. Em última instância somos todos conspiradores das leis artificiais de um projecto de vida que se esfarrapa agora todo e anda pelas ruas da amargura. É certo, porém, que só vemos aquilo que queremos ver, e sobretudo aquilo que nos dão a ver, nos interstícios destes dislates fortemente “democratizantes” deve já existir “bunkers” em terra firme e funda para o caso de problemas esperados, ou mesmo, senão em marcha, fugas planeadas para Marte em grande escalada pagante ficando os pobres da Terra à mercê das intempéries. Também, longe vai o tempo do sigilo das seitas, o que deixa bem claro a desordem aparentemente amigável destas coisas e por coisa pouca que possa servir a imagem se vendem as mais poderosas informações. Conjurados sentam-se à mesa servidos pela sua tónica mais perfeita: a traição! Mas o que é a traição? Para tal é preciso que haja uma norma, ela não se encontra porém em lado nenhum, e tal como a interpretação bíblica de Caim e Abel nos diz que nada estava escrito que o informasse ( Caim) que não devia agir assim, também podemos regressar a tempos como esses, isto, se queremos levar a capacidade de luta até aos abismos onde ela se encontra. Mais simples afirmar «Que nem só de pão vive o Homem» o que resulta em moral cuja conceptualização nos indica no actual contexto, estranheza. Jorge Luís Borges tem um livro final com este título «Os Conjurados». É uma obra surpreendente e rara, nela se viaja no último instante da jornada de alguém que atravessou o tempo de forma exemplar. São poemas em prosa com várias matérias que raiam a visão sublime de um homem já cego e todo ele dependente de um amor que o fez avançar ainda assim; precisamos bem lá no fundo de um braço muito longo a que chamamos – chamou – o seu amor, para continuar de forma tão impressionante; quem não o tem morre cedo, arrefece num local qualquer da jornada mesmo fazendo a sua obra que renunciou ao socorro de um amor: não sei por que o intitulou assim, mas é certo que conjurou muitas vertentes de alinhamento histórico e pô-las a funcionar como mensagem extraordinária. Há seres que emitem sinais de agrupamento de vínculos tais que as suas próprias acções os ultrapassam, sabem que nada seria possível sem essa reunião e que caso a nossa essência não tivesse sido benignamente grupal não teríamos aquilo a que apelidamos de Civilização. Eram Conjurados! A outros níveis que já não nos é possível entender. Uma assembleia de Conjurados terá que ter sempre o impulsionador da conspiração, sem ela diluem-se os métodos da acção concertada que quase sempre avança para o terreno de forma própria e consciente. Precisam levar mais do que ambições pessoais, precisam estar unidos por um bem maior que liberte e una. Ora, nas componentes mais alargadas destes estados reconheceremos a fragmentação deste impulso onde as causas e os efeitos se tornaram na luta de cada um face a todos, e sem sagacidade activa e espírito de sacrifício deixou-se de acreditar que possamos estar abrangidos por alguma coisa que nos defenda. Esconjuremos um tal estado de vida que pode nem merecer ser vivida quando falta a troca benéfica da partilha. E Borges afirma o mais extremo laço deste contributo ainda solto pelo sentido transcendente da própria dádiva: «Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu… só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos… não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos”.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOutubro Ô temps! Suspends ton vol, et vous heures propices! Suspendez votre cours Lamartine [dropcap]N[/dropcap]unca é igual o tempo nas suas nuances nem o retorno dos seus ciclos, todavia, temos sempre mais tempo para cada Estação que vai sendo descontada na marcha, pois que se os anos em nós são Primaveras, ninguém festeja os Outonos celebrados. Os hemisférios “Outubram-se” de forma contrária, mas este nosso que suspende por momentos o voo é aquele de que gostamos pelo instante da suspensão, ficando no centro de uma natureza igual, cálida, precisa, como um doce interregno, e sob a seu fleuma não raro se levantam as grandes marés e tempestades colossais a fazer lembrar da repentina fúria dos calmos. Outubro lembra-nos assim do factor da imprevisibilidade em pleno estado de paz e acalenta a nossa liberdade associativa . Aquelas sombras tão pausadas, aquele equilíbrio entre os dias e as noites dão os vinhos que enchem os copos de rubra fraternidade que bem pode ser esse «Lago» do poeta romântico antes de se fechar o postigo e entrar na gruta. Já não há Revoluções, mas aconteceram quase todas entre Abril e Outubro, pois que o Inverno inibe a marcha da rebelião – que de interiores mantido – não gera no seio das colectividades cargas transformáveis, o ciclo delas fechava-se aqui, com Outubro a garantir a legalidade e a cultura dos movimentos como as suas mais altas exigências. A boa conduta do Outono vai engalanar os cabecilhas daquelas com estímulos muito civilizados, os regicidas já cumpriram a sua missão, e as consequências advertem-nos que a História não deve em caso algum andar para trás. Os nossos outrora Outubros foram mais cingidos ao ciclo biológico, nele se iniciavam as aulas quase esquecidas nos longos Verões, se reencontravam os amigos, e a vida voltava às suas rotinas com o formalismo de quem cumpria o primeiro dever básico de uma sociedade, aprender, seria assim o mês mais civilizado enquanto processo criador, pois que as nossas também outrora aprendizagens foram de muitas maneiras também outras que não somente as dos bancos de escola. Vínhamos de Verões selvagens e imensos onde aprendíamos os arrojos, as dores das quedas, as insolências e as aventuras que nos dariam amargas crises de desobediência, formas de aprender a lidar com o todo na cauda de cada Estação que dominávamos. Hoje, é certo, que de quando em vez o próprio amor não dura mais que uma Estação, em muitas delas nem nunca o vimos envelhecer, e destas Outonais folhas, nem já uma lembrança, e neste calor de Outubro apenas um peso de sombras paradas. Passamos assim no esquecimento do que em nós foi o ciclo novo, o tempo que nos dava de beber cedo finda a sua festa, e para que não esqueçamos devemos guardar as suas pétalas secas, deitá-las em nosso leito para quando vier o amanhecer sabermos que estamos nele, e que a sua maior dádiva será a imagem de uma outra qualquer coisa que se foi. Parados, amor e morte, podem assim começar a dar as mãos, que delas nos caem as flores pulverizadas das chamas do ainda tempo próximo do escaldante viver. No calendário romano era o mês oito, e a sua subdivisão vai dar-lhe as características de César, Vergílio canta-o – as festas a Baco principiam – e os judeus têm nele a sua festa mais sagrada, nela se pede perdão, aquele tempo que leva a ser pessoa e a restituir-lhe a natureza do seu reflexo humano. Embora o vinho esteja correndo há uma lucidez que não deve ser perturbada enquanto em suspensão esse tempo se mantiver. Dão-se os Nobéis, o resultado meritório de vidas de trabalho, que se começa a trabalhar em épocas mais combativas e se guardam os louros para a celebração das vindimas. Separam-se os trigos, separam-se os joios num roteiro de parábola, e a natureza selectiva impõe-se como uma medida justa e nunca fraccionária. Um dia outro virá, em que por méritos possamos sair da Roda, ficando nele e não mais esperar que nos tragam de novo a Primavera. “Par délicatesse j´ai perdue ma vie”. Outubro de Rimbaud que o viu nascer e nos lembra como é raro perder assim. Os que ganham andam demasiado ocupados para se darem conta das capacidades dos vencidos, que mais que vencidos, são excluídos, até do fardo obsoleto das vitórias. Viver suspenso por cima da arbitrariedade dos que não têm tempo para delicadamente receber os dons de Outubro, que não é já um jovem Apolo nem um campeão das grandes maratonas, passar por ele como por um lago tão transparente que não o transformemos em espelho para a inércia de um desmedido amor próprio.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasArtaud [dropcap]F[/dropcap]alemos primeiro da loucura, esse imenso espectro que se abate nesta personalidade. Não sabemos se nasceu louco, mas que foi uma criança já de si marcada, foi-o: uma gaguez insidiosa, meningite, sonambulismo, e uma visceral antipatia pela cidade natal, Marselha. Era um ser profundamente esquisito, daqueles que só a raridade faz, as pessoas estranham, e tudo delas analisam ou julgam entender, mas que logo os subtrai a um mal muito maior que é o das suas próprias existências comuns. Artaud trazia a marca do génio, essa aflição tão ingrata para o próprio, como para aqueles que a temem com o ferrão da mórbida cobiça: para isso, vestiu-se aquele corpo enfermo de singulares disposições anatómicas que o tornaram fascinantemente repulsivo para alguns, hipnótico para outros, excepcional, sempre. Esta vida vai fazer o favor a si mesma de elevar bem alto a ruptura a tudo, com tudo, com todos. Uma vida em rota de colisão com as coisas se abre inteira para uma difícil e apaixonante marcha: é Artaud, o eterno Feiticeiro! Artaud está a fazer 123 anos de vida no dia 4 de Setembro, uma efeméride que não deve ser esquecida neste mundo de doentes mentais que baniu para sempre o louco, de tal forma que deles nada mais saiu que pestilência nervosa… “arvoradas” em Amazónias de chamas insidiosas (aquilo não é um fogo, é uma fornalha a céu aberto que cobre de negritude os narizes de todos nós já de si bastante chamuscados) pertenceu ao Surrealismo, mas foi expulso por não querer a pés juntos politizar-se : “Que tenho eu a ver com todas as Revoluções do mundo, se sei permanecer eternamente doloroso e miserável, no seio do meu próprio ossário?”, e com toda esta recusa encontra-se no manicómio. Os amigos, esses, seguem os seus emblemas, e sabemos bem o quão ocupados se encontram nas suas ditirâmbicas manobras para se prostrarem de ora avante diante do seu insuportável sofrimento, dele, como o de qualquer outro, os mesmos que já lhe tinham sabotado algumas peças de teatro. É a editora Gallimard que tutela a sua obra, e foi ela mesma a recusar-lhe poemas recomendando-lhe uma conduta mais literária (seja lá o que isto quer dizer) e é desta ruptura onde não aceita qualquer tipo de dirigismo e galopa na radical manifestação de si mesmo em termos abissais, que nascerá em 1929 «A Arte e a Morte». Todas as formas de entendimento estão agora vedadas a este alguém que de raiva em raiva faz tremer de luz um esqueleto amaldiçoado. É uma obra memorável que dita o que um cérebro faz nas suas ligações extremas e violentas sem que tenha de pedir licença ou perdão para afirmar a trágica e obsoleta condição da vida. Ele desejou escrever a sua história com sangue, isso sabemo-lo, sobretudo enquanto dramaturgo, desejou que a exigência poética de que era portador não fosse interpretada por reducionismos de pareceres psiquiátricos, desejou duplicar-se quase metafisicamente muito para além da palavra que todos esperam. Ele criou a sua própria condição electrizante e ao subir ao palco, era o triunfador, todo o espectáculo. A sua miséria era uma ave de grandes penas e ele a flama de um bem único capaz de fulminar incautos. «O Teatro e o seu Duplo» é a escola de teatro de todo o século vinte. Artaud era incansável mesmo na insanidade e na desdita de uma vida que desejou que fosse gritada, e mais, escutada, e mesmo assim é ele quem rejeita a supremacia da palavra do chamado teatro digestivo. A arte é para ele como a morte, uma forma de reencontrar os pedaços estilhaçados de um corpo cuja combustão acelerava a sua própria tragédia, um pânico florescente que não cabia em nenhuma linguagem usada, vista, escutada ou composta, e é quando fala que ficamos agarrados a um feitiço qualquer que não podemos mais interromper. O que diz? Muita coisa, é um solavanco errático de esgares e sons onde se denota algumas palavras que pensamos conhecer e mesmo que não entendamos o propósito sabemos que o nosso cérebro abriu corredores muito fundos onde foi buscar um antigo xamã. Se o olharmos em simultâneo ficamos paralisados. Nós precisamos destas pessoas como de um bem maior, do seu sacrifício, da sua inteligência, da sua estranheza, da sua incontornável loucura de que estamos impedidos, do seu trabalho contínuo, audaz, perspicaz como única salvação para conseguir estar vivo, vida que se interrompe cedo, nesta caso, aos 52 anos, agarrado a um sapato. – Dirão: a arte performativa de Artaud! Mas não creio que qualquer intenção parecida lhe ocorresse nesse instante, morremos agarrados àquilo que temos à mão. …naquele ponto subtil onde o olhar da consciência projecta sem se perder um extremo fogo, lá onde o nervo se desprende enfim do pensamento a repousar sabe Deus em que estratificações astrais, jaz a MORTE como derradeiro sobressalto de um saber cheio de transes mas SUSPENSO Sem dúvida ainda uma obra de Arte. A Morte continua e a Arte é a sua versão mais completa. A Humanidade em suspenso aguarda os seus Avatares, ela terá que os escutar. Talvez entenda mais sobre si mesma e dispa a audácia de uma monótona vida que a todos igualou até à frouxidão. Valerá a pena dar-lhe os Parabéns. Já foi Setembro.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDas coisas começadas [dropcap]A[/dropcap] matéria de que somos feitos é um defeito. A matéria é um animal que mal sustenta os seus cascos. Poder do Demo quando bem empregue, bom, ao lado das coisas que são sombras. Quando a torturamos mais do que pode suportar somos possuídos por trevas sem fim. O Demo em nós é por vezes o único amigo quando bem compreendido. Tenhamos também por ele compaixão, é que neste chão um secreto amor lhe foi também preciso. O nada disto entender é ser esquecido. Pois que Demo e esta matéria já não são os mesmos, somos então um novo crescendo. A anima que aguenta e levanta a forma pesada, também muda, e volta sem nada. Há simulacros ditando os nortes vários mas a vitória é virá-los. Não são demónios, são anjos, caídos na robustez, nós vemo-los por vezes passar sem lhes descobrirmos a tez. Podem ser belos também – Lúcifer em vaga e lava- e podem ser feros sem ver onde projectam a alma. Nós já fomos os vulcanos das terras de todos os amos, e tentamos, tentamos, esconjurar esses danos. Toda a matéria flutua no vazo híbrido das coisas, e coisa sem forma é sentida como o marulhar dos tormentos. Se com eles se fizerem os assentos, e com os marulhares os incêndios, perderemos de vez o entendimento de quem nos fere no tempo. Deus emigrou e está no alto do planisfério, por vezes sentimos que dorme do lado de lá do Universo, e que em poema nos dá o luto para cobrirmos as lendas. Mata um samurai, e sai. Depois vem peregrino, e Demo e Deus vão sozinhos na construção dos acasos. Redobram de forças quando as nossas já falecem, e se lhe sentirmos as sebes transportamos nós as vestes, que ventos, degelos, e fogo, terão um dia o encontro dos encantos que nos despem. Lúcifer, o que fere e cura, que luz e fera em si mesmo se procura; vem! Hoje de negro cobalto, negros de luz e olfacto, vem a este teu Fado. Somos o vaguear de uma coluna de fogo, somos milhões e não parece haver de novo o novo que será o seu maior evento. Cobrindo então de cinzento a Terra inteira vestido de vento, vem do lado de todo o firmamento. Que se perde na noite longa da Fogueira. Depois disto tudo que vislumbrámos nas acácias do Verão, os solos viram-se então… Já são tectos glaciares e vozes vêm dos mares- náufragos da terra perdida- pois vós ireis avançar: Quem nos segue está escondido! Manchas e sulfatos de cobre despem as ilhas do meio, e sem medo marinheiro, rema para lá. Os dias vão ficar na nuvem e só haverá sol para além da bruma… Dias sem sol e sons de fora fazem no painel da Hora um recanto de silêncio. A bolha de cristal de fios de tule e vagas imperiosas vagueia entre todas as terras povoadas. Com receios de auroras e já sem Demo nem Deus, encobertos p´la. fuligem, as nossas vidas que passam são a suspeita de que ficámos sós na parte sagrada que não nos dirá mais nada. Vamos percorrer esta estrada, para quem nos encontrar seremos um quase nada, materializados nas Sombras que se arquearam em dobras… O nosso tempo vai-se embora! O tempo já não está. Feridos de tempo e sem Deus, a vida prosseguirá, não encontrando seu Demo que nos fizera companhia nos tempos da longa vigília. Derrete Inferno de esmalte, contorce-te em tua sina de fera gleba sem guia, e senta-te a contar as estrelas. Não haverá grutas, nem saudades de fazê-las. Há lilases, flores que irás refloresce-las para os olhos nascerem nas órbitas do velho iceberg que no olho da cratera será o ciclope que te vela. Teremos saudades de ti, um dia que a saudade venha, mas de ti não quero que tenhas a vida que aqui nasceu. Voamos, somos mais anjos, soltos somos melhorados, e todos seremos enfim, o maior acto sonhado de quem ainda segue e ri na vaga definição deste ocaso. São satélites de vida todos guardados nesses dias, podem cair, desdobrar-se, tudo a sonda sondará, e quem já foi encontrado pode sair por esse lado de lá. Quem não for encontrado é porque não estava marcado, marcas que o Demo nos dá. Corre outra essência, rios mais fundos, pois que vai e reencontra, são estes os desígnios dos mundos. Está prostrada a matéria e as fomes foram vencidas, e há alimento que sobra desses manjares da antiga vida. Comem-se os elementos brandamente numa outra Era- Estação… quando o tempo voltar e a voz recomeçar, talvez a mesma do Verbo Inaugural, que carne e verbo foram semente de todas as formas do mal. Quando estivermos distantes mesmo assim teremos lembranças, das núpcias que fizeram as belas alianças e alcançaram o dom da forma perfeita, que um Homem, mesmo derrotado, é saudade que nunca será desfeita. Está vento, calor, derretimento, fogo, e muito lento o vapor. Está um sabre junto a esta encruzilhada que guia os passos proscritos e todas as naturezas mortas das mesas dos aflitos. O necrófilo emanado do seu estado vegetativo engoliu as coisas, está exangue. É tempo de partir de forma conseguida, que a fome não se sente, e o quebrar das coisas enfeita os graus da consciência. A eternidade não pode mais com o ciclo que sucumbe e tenta virar a noção do espaço que ocupa, nós já não somos iguais, e onde não há igualdade são duros os sinais. Acabo aqui. Vim para ficar e desobedeci. Também aqui, não quero estar. Duro trabalho foi este do retorno ao lar. E um Ámen se escutou na Galáxia muito para além dos sois e seus planetas habitados. Tudo se transfigurou. E na senda, fomos mudados.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO amor leva-nos para casa «Se um homem pobre vem pedir-te ajuda de manhã, ajuda-o. Se ele voltar à noite, ajuda-o de novo» ( comentário sobre o Génesis ) [dropcap]A[/dropcap]credito que as nossas acções possam voltar um dia em pura sensação banidas que sejam as imagens, numa outra forma e num outro “olhar” pois se nada fica ocluso, nada ficará também por experienciar no tecido das coisas e das suas intenções – e se o tal dia amanhecer cruel, ainda assim, nos recordaremos que a proposta foi de novo regressar a Casa. Toda esta distância feita abismo de que se ocupam as gentes por manter de forma sitiada, é feita com muitos batendo à porta, e com outros tantos que o acaso faz brilhar pelo enigma das direcções felizes. Por vezes estamos exaustos, nada parece sobrar de nós que se possa doar ou mesmo partilhar, um sacrifício continuado quantas vezes nos impede de dormir, pois que noites há em que nos sentimos culpados e pequenos diante de nós mesmos. São os chamados pesadelos, essa decrescente massa sem visões salvíficas, são medos, são dolos… Um labirinto esmaltado é a Cidade, a pedra é dura, e dura a cidade na pedra em nossa fixação e nela há sempre mendigos – passam como sombras entre nós que andamos circulando e temos pena de não lhe darmos mais – sentimos que nem sempre são pessoas tristes, mas abandonadas e errantes que querem coisas… … talvez pequenas atenções como falar para não perderem a memória dos seus próprios sons, e comer, porque a fome só é perigosa para além daquele estado em que já não se sente. Vamos compreendendo que nunca são os mesmos, que a vida os abate em ciclo estreito e outros lhes seguem sonâmbulos nos mesmos locais onde deambularam, só nós somos os mesmos, os que vivem melhor e mais anos. Nós os que passam com intenção pelos locais, e sem fome, vemos o que se passa: «Não desdenhes de nenhum homem e não desprezes nenhuma coisa, porque não há homem que não tenha a sua hora e não há coisa que não tenha o seu lugar». Nesta vida temos ímpetos para fabricar comportamentos sem brio de selectiva obscuridade, e fazemo-lo com a certeza de uma superior condição que muito prejudica o bem de todos, essa matéria testada e destacada não deixa de ser por si uma forma de miséria e cresce sempre que a desprotecção social avança, nestes tempos, erguido o nosso olhar, vemos a crescente cauda daquilo de que a nossa Humanidade se envergonha e que por razões aleatórias e alienadas não são observadas com respeito e sustentabilidade, ainda nos vem a reserva do bicho que somos: se a vida não dá para todos, que se fique então com a maior e melhor parte, uma natureza fétida que oprime e castiga, pois que a sabemos distante dessa indelével marcha do regresso – o inviolável centro – onde iremos por alas, e pode ser que à espera das almas não lustrais esteja a máscara dos actos destas coisas tão terrenas, onde a Casa fechará as suas portas aos que habitaram a Terra sem a memória de uma lembrança sagrada. Se o amor partilhado foi esquecido, se aqueles que nos deixam prosseguem, se todo o abandono pode ser uma emboscada, é então necessário saber que dessas coisas já não precisamos e sem necessidade delas somos naturalmente mais livres, mas também mais vulneráveis, devendo então aparecer somente para a justiça breve daquilo que deverá ser acertado. Seria muito bom para alguns, outros não existirem, e esse medo das suas existências, traz-lhes a ruína da alma que agitada se move para o seu precipício. Criam os espectros que os atacarão mais tarde, depois não sossegam, têm vozes agrestes, dormem em sobressalto, carregam negrumes, inventam os danos, uma auto- sabotagem pois que todo o sobrevivente a si mesmo é uma forma batida sem correspondência com algum grito de salvação. Deles já não se abeiram os anjos para as ceias, esses momentos onde as horas são o legado da festa, que é o tempo dos amantes, e os cálices não se elevam amantíssimos na rota do entendimento. A morte vem-nos buscar um dia de forma tão normal como foi a vida gratuita ao ter-nos alcançado, e aí, o terminus ditar-nos-á a estrada do retorno, ou não. Ficar enjaulado de novo na batráquia origem do verme equilibrista é a maior derrota que se pode infligir a si mesmo. Temos de saber que a vida conspira para nos ajudar, em cada dia isso acontece, em cada instante vemos a sua grande causa, em nenhum momento ela nos deixou a sós. Como não ver isto, pode ser ainda a treva atravessando o horizonte da alma dos Homens. E quando nos abalroa e destitui, faz ainda um trabalho de reconhecimento que devemos aproveitar como lição. Afinal, queremos apenas, e de novo, o Amor ( esse bem sadio que a doença de ser entristeceu) e a Casa de antanho onde deixámos intacta a forma eleita de cada um dos nossos destinos. Para os que pedem, façam-no em segurança, pois serão saciados. Para os mendigos, o nosso Amor primeiro para que assim sejam salvos das garras da indiferença e da humilhação. As coisas mais bonitas, essas, ficarão sempre por contar, mas nem por isso deixarão de ser registadas como um legado de manifestações transversais de uma profunda compaixão por tudo o que vive. No emaranhado das intenções as coisas sonegam-se e nem sempre já existe entendimento para a gravidade dos factos mencionados, mas é preciso chegar como se chega a Casa, descalçar os sapatos, abraçar alguém, dormir, e saber que partindo disto tudo, iremos continuar. Que sejam então belos os caminhos. A caridade é maior do que os sacrifícios oferecidos no altar, mas a bondade é ainda maior do que a caridade. Rabi Nahman de Bratislava
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasIlusão [dropcap]M[/dropcap]aya é como as fundas Primaveras que nos agarra aos sentidos que reféns querem toda a manifestação das fomes trazidas, não por acaso Maio se nos dá em festa e das Maias são feitas as belas grinaldas das flores da Estação. Trazemos sentidos para as cores, imagens, cheiros e miragens, e nelas firmamos verdades que nos parecem eternas, como o germinar e o florir antes que se esgote o tempo de tão fecundo estar. Há quem se entranhe no mundo e mais não veja que o ciclo das coisas que o anima, são por si só os grandes animados, os soberbos animistas, as forças elementares em círculo nas fontes do desejo e na miragem da necessidade perpétua. Mas valerá ressalvar os diálogos perdidos que o prólogo de «Eclesiastes» 1, capítulo 2, traz a esta janela: “ilusão das ilusões: tudo é ilusão” que em latim é conhecida por :” vanitas, vanitatum et omnia vanitas”: mudada para vaidade, mas sinónima. Todo o capítulo nos fala então do espectro ilusório e, se a abordagem não é simples devido ao carácter compósito da obra, ela abre o princípio da interrogação que torna um texto litúrgico muito rico e até diferente daquilo que estamos habituados, as reflexões mantém-se no trilho de uma autoanálise que se aproxima do ciclo poético da intervenção, em algumas passagens vamos encontrar a Roda como ciclo do eterno retorno, noutras, a dúvida acerca das realizações humanas e tudo o que isso significa, até essa natureza criada da imagem que em nós projecta a miragem das coisas e do mundo. Fala-nos ainda do tempo das coisas sem nenhum juízo de valor incluído, e em toda essa maravilha vemos que uma vida que se quer conseguida terá necessariamente de as abranger, é um mantra ritual do conhecimento humano talhado apenas para ser. – Alude ao que ilude a resposta vã – nós que somos iludidos sempre que nos queremos mais velozes nem por isso estamos preparados para acarretar a desmesura dos erros nem conseguimos tirar as ideias feitas dos grandes observadores que somos que dizem coisas sem reconhecer quem as faz, ou quem as disse, ou porque foram ditas, e assim, na rigidez mental de uma forma de agir construímos imagens, conceitos e ideias que só a quimera mais terrível sabe fabricar. Dessas assombrações fazemos realidades, verdades, construímos conceitos, forjamos a moral, mas, o ser de que se fala, a coisa falada é até que aflore a bocas assim um completo desconhecido, somos vítimas da linguagem como submissos imprudentes, e dela não merecemos mais que a crítica constante e muitas vezes pertinaz. Se de ilusão o nosso tecido mental é feito, ela protege-nos todavia de realidades terríveis e assombrosos vislumbres de impossíveis. Morreríamos de dor ao não conseguir recorrer a uma galopante abstracção que nos desviasse das fronteiras cerradas da condição, mas não será bom derrubar as formas graves que subjazem a toda ela, não para a negar, mas para nos fazer mais conscientes da felicidade breve e do bem que é sentirmos que a conquistamos: como o livro dos amantes que diz que o ser amado primeiro se possuí e só depois se conquista. O erro de percepção é lúdico para com os nossos sentidos, a Nuvem por Juno é isso mesmo e, no entanto, cognitivamente, estamos talhados para o ilusório que fabrica assim todo o espaço do pensamento, e houve alguém que pensando, era aí que existia. O mundo tangível não dá nada aos que criam – recriando – mas as coisas criadas outros as completarão, e quem faz, quem dita e redita nele tudo quanto nele é capaz? Aqui, ficamos estoicos, mas isso abranda o uso costumeiro da análise e a ilusão é posta a irromper noutras vertentes. « Põe então tua mão sobre o meu cabelo, tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo». A ideia de Deus surge no livro como um ente desconhecido, infalível, e que premeditou a causa de toda a dúvida, será sempre mencionado como a força que nos impele a descobrir, não dita, é ditado, e essa natureza cria então um campo imenso de dura solidão na medida em que se ela nos faltar nem a nossa sombra existe no meio do invólucro que somos. Mais que ilusória se torna por isso a sua ausência em nós. Para caminhos diferentes a mesma finitude, a mesma conclusão: quem distingue o que está certo neste mundo? E se a ilusão está presa aos sentidos, sem eles, que outra ilusão nos colheria? Os poetas respondem bem ao improvável, talvez na sombra de outras naturezas e assombrados de lucidez, se mantenham estáticos nalgum lugar que esqueceram os seres: “….nada em mim é risonho, quero-te para sonho, não para te amar. Os meus desejos são cansaços nem quero ter nos braços meu sonho do teu ser.” Aquilo que é já existiu, e também o que há-de ser já antes foi. Deus só vai à procura daquilo que não se encontrou.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSaint-John Perse [dropcap]F[/dropcap]oi precisamente em Pau que tive conhecimento da sua poesia vai para muitos anos. John Perse frequentou o liceu da cidade, porque veio com os seus pais ainda pequeno de Guadalupe, onde nascera em 1887. Hoje há um liceu que tem o seu nome, e diz quem sabe, um distinto lugar de ensino. Chegou com doze anos e aí se manteve até ir para Bordéus para a Universidade de Direito, regressando a Pau para o serviço militar mas, como todos os habitantes das ex-colónias, o seu sentimento de expatriado fê-lo aventureiro, audaz na esgrima e no velejar, por que sem dúvida a vida nessas terras distantes teria para uma criança um brilho e liberdade que marcam sempre uma mente em formação. E vamos ao que dele interessa para além de muitos outros méritos que lhe foram reconhecidos, como a de uma brilhante carreira diplomática, à sua poesia, onde chega a receber um Prémio Nobel em 1960. Muito cedo toma contacto com o meio literário, conhece Francis Jammes, Paul Claudel e André Gide, e é exactamente Gide que lhe faculta a publicação dos primeiros poemas. O seu primeiro livro saiu em 1911 com o título de «Éloges». É conhecida a dificuldade de acesso ao seu vocabulário, estamos nos avanços da Modernidade e ele imprime aspectos arcaicos à linguagem poética, o que faz que André Breton o apelide de um “surrealista à distância”. Este primeiro livro tem ainda aspectos simbolistas, em «Anabase», no entanto, ele está pronto para um reconhecimento que em tom declamatório fará a bela rapsódia do seu estilo fundamental. É uma obra de coerência e grande riqueza estilística em que uma análise semântica mais apurada fundamentará como uma unidade brilhante, dado que as imagens são muito fortes e nem sempre fáceis de manejar com recurso a linguagem descritiva. Nesta linguagem rara, os elementos tomam assento como se convidados pela exaltação das suas presenças em nós estando muito perto de um tributo às fontes inaugurais. Referi «Anabase» dado que foi a primeira edição em língua portuguesa em 1961 pela Guimarães Editora, e bem poucas mais se lhe seguiram, é certo, pois que há poesia que não é de transporte fácil e contorno mediático, o que não nos importa absolutamente nada uma vez que a qualidade dela relevará certamente muito mais que toda a forma de popularidade que será sempre de desconfiar em termos gerais. De mencionar que entre 1916 e 1921 enquanto diplomata no Ministério dos Negócios Estrangeiros se encontra na China onde muito provavelmente escrevera « Anabase» que seria mais tarde publicado pela Gallimard. Nesta sua actividade política, foi castigado pelo Governo de Vichy que lhe retira a nacionalidade tendo que se exilar nos Estados Unidos. Publica então« Exílio», «Chuvas» e «Poema a uma estrangeira». Em 1954 o mesmo «Anabase» foi musicado por Alan Hovhannes um compositor americano. Aqui vamos encontrar o poema em prosa quando a prosa consegue falar assim todos os poemas e continuar prosando como o mais difícil e memorável acto de escrita poética. É impressionantemente solitária, e a solidão tem uma voz desértica de finas areias, é como se a novidade trouxe-se outras lembranças mais velhas assim de incomparável “l´éternité qui baîlle sur les sables”. O poder de recriar através da língua será composto por uma nova linguagem cujo mérito pertence inteiro a uma rara capacidade, e é na poesia que ela pode atingir a reserva e a distância na forma inventada que a incita a outra coisa que nunca fora experienciada. A estranheza deve-lhe ser subjacente, pois que na marcha atingirá um nível de beleza que de tão inusitado nos ajuda a experienciá-la como manifestação maior. Mas, e depois de muito esforço, quem pode ou deve julgar o domínio de uma língua que arrasta na sua composição a natureza do seu próprio mistério? Todos aqueles para quem a linguagem é um dom subtil e preciso que não tolera o escavar da sua própria métrica. O tratamento da linguagem forma-se com o rigor de um pensamento bem estruturado, que não pensando se escreve com a confiança das várias partes que se juntam ao processo. Perse, não quis misturar a carreira e a poesia, pondo-lhe mesmo fim durante uma época da sua carreira diplomática, o que é entendível, pois nestas coisas não devemos acumular nem facilitar. Esta sua lucidez só pode ser coroada com algo de muito bom que é este bem de sabê-la pensada assim. Saint-John Perse e também Saint-Leger Leger, eram afinal pseudónimos de Alex Leger, o tal menino nascido a 31 de Maio de 1887, e não fosse esta actividade a de um neófito, e os nomes naturais manter-se-iam como um incidente de percurso da estrada da vida, e muito bem, pois que aqui se é outro na continuidade de cada um. O poeta é filho de si mesmo e tem o nome que entender quando outro tipo de natureza nele se manifesta. Não se tratará de pura originalidade, mas de uma assinatura que deu as páginas mais relevantes da poesia francesa do século vinte.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasPoiesis [dropcap]C[/dropcap]he cos´è la poesia? Vem de um outro lugar, recria tudo, e liberta-se das cintilações e daquilo que para fora sujeita a esfera que o toma – ” ele ocorre então, no essencial, sem actividade, sem trabalho, no mais sóbrio pathos, estranho a qualquer produção, sobretudo a criação”. Do poema falamos, e o nosso braço vai buscar ainda a antiga asa dos pássaros lembrando que os braços vieram delas e que delas ainda há que dar testemunho. Não vem contar nada, a narrativa escasseia num grande poema, mas abundam estranhezas várias, as suas demonstrações e toda a composição verbal parte ao serviço de um dom absolutamente esquecido do antes da palavra, daí, o ser tão avassalador por vezes a leitura de um poema, onde regra geral, também não devemos em posição de choque perguntar nada, a não ser deixar-nos penetrar de modo desconhecido por esse corpo vivo que nasceu imerso em enigma. O que o separa do acto discursivo é ainda o saber escutar a antiga onomatopeia a que o cérebro acede como um animal que bebe numa fonte granítica as águas da infiltração, e, em magma inteligível, o poema fala. As ligações estão feitas, só falta deixar correr, e aos que não têm sede poder-se-ão saciar com licores, o poema não o carregamos nem deseja que o surpreendam, a manifestação acontece dado que se recria partindo de um ponto remoto ao movimento que o faz soltar-se da nossa mão, o fazedor nunca será o gerador do significado, mas aquele que o exercita, distanciando-se da natureza próxima para recriar aléns. Acrescentar, continuar o que não foi testado, é esta a base da sua origem semântica e do seu grande impulso vital, e neste processo, remontar a uma pré-articulação seria uma forma de amputar aquilo que só ele diz sem que tenhamos de o pensar. Assinamos um poema e foi ele que nos sinalizou, ele merece não ser do artesão, e não ser andor para a festa das “criatividades” falamos de uma estrutura mais ambivalente se assim se pode chamar, e bem mais complexa que o simples desejo de termos feito o poema que projectámos. Ainda fazemos muito pouco face a este fenómeno que nos faz, e por nós passa sem que carregue a nossa desconhecida causa. Por outro lado, não o podemos transgredir na medida que a norma não a sentimos presente, de tão longe as correspondências atravessam socalcos para alinharem na memória, que pode produzir por si só uma nova ordem recriando-se do caos das intenções, dedicar poemas é por isso um artefacto que não assenta na vertente mais elaborada deste registo, pois que atravessa na dedicatória um esforço para ir em direção a algo ou a alguma coisa ou a alguém, que nos obriga a um desvio e a procurar outro suporte, porventura belo e muito bem escrito, mas, que certamente retirou pelo dirigismo intencional a sua função primeira. Deixemo-lo, ele fará o seu percurso, muitas das vezes nem o queremos ver, por vezes a sua pegada em nós pode levar-nos à prostração – os alinhamentos sangram – ( Poieses também é um termo biológico para designar as células do sangue) e toda esta atmosfera não se vive como se estivéssemos numa luta de razão-acção- emoção, pode não se passar nada disto, pode apenas seguir-se o trilho, e se tocar num ponto brilhante sabemos da torrente fresca em nosso redor, que nos alivia e aligeira como se a acção tivesse produzido uma vida nova e diante de um primeiro idílio despontássemos. Os sistemas têm contudo a capacidade de se recriarem, ou criar algo bem diferente de si, e ao juntarmos tais “metabolismos” enquanto artesãos entramos sem dúvida num grau de consciência bastante mais aperfeiçoado. Sistemas existem que não possuem limites ou tempos autodefinidos, talvez se multipliquem indiscriminadamente repetindo a mesma fórmula, o que ocorre dizer da doença oncológico que ao não recriar se esgota no seu próprio efeito de repetição, e talvez, numa época tão incrivelmente e mentalmente não “meta-poética” a epidemia mundial seja mesmo o cancro . Um sistema calcinado de circulação fechada que se reproduz sem capacidade moderadora, e, portanto, imprópria para gerar vida nova, vítima de um processo de auto- semelhança onde a única coisa a nascer foi a teoria do caos. Poiesis significa “fazer” um termo grego, daí o poeta ser o fazedor por excelência. O fazedor é o amador, aquele que se irá transformar pouco a pouco na coisa amada, com o decorrer do tempo o amor bebe-se em cálices onde um cérebro cabe inteiro fazendo conexões transformáveis, e talvez se sinta que amplie e que lá bem por dentro esteja a molécula de Deus de onde todos os poemas nascem. Mas, ele não faz ligações à fronte projectada, mas sim aos que começam imperceptivalmente a tomar-lhe o pulso, e que sabem agora que o poema não nasce assim, e que se há esse encanto, por vezes até escarninho face a essa identidade tão rara, é porque sabem as gentes que sabem bem mais do que podem, ou para si mesmo admitem. O dom do poema não cita nada, não tem nenhum título, não faz mais histrionices, ele, sobrevém sem que tu o esperes, cortando o fôlego, cortando com a poesia discursiva e sobretudo literária. Nas próprias cinzas desta genealogia. Não a fénix, não a águia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, talvez angélico, temporariamente.