A perfeita harmonia

[dropcap]C[/dropcap]ansados desta adrenalina viral que tanto desfalece como se põe a gritar bem alto aos nossos ouvidos, quase nos esquecemos que Maio é uma zona de entendimento farto e fértil, levantámos a cabeça e lá estava ele, o tempo das açucenas, dos frutos e das flores, das coitas de amor, das bailias e do chão a cheirar a vida como um útero perfumado. Tudo aqui apetece! – Apetece a dança, apetece a vida, apetece ter-te, apetece ver-te, e apetece olhar a longa virtude da modificação que fez tudo tão bonito.- As cerejeiras em flor – as flores da cerejeira – antes do fruto cair como botão em nossas bocas tão ávidas, tão rubras, tão felizes por saberem da redondeza dos frutos nascidos. Mesmo na Lua-Nova, Maio fica de noite clara e cheiros brancos como linho lavado, fica uma zona de voluptuoso enlace que não esquecemos , e brindamos nele uma alegria sempre tão renovada! Contemplamos os livros antigos e lá estão as marcas de amores eternos como os «Poemas Celtas» que dá título a este artigo. Repleto de seiva da antiga tradição, nós estamos muitas vezes em contacto com Deus e agradecemos cada instante, saem então de nós as lianas da prisão imposta, dos sacrifícios, dos abandonos, e tudo fica preenchido ao ponto de se saber que todo o mal se esquece perante os momentos em que o belo se impõe. O mês emblemático do bravo povo não o é menos nos mais pacíficos, e a unanimidade que gera encaminha-nos para uma zona de epifania que nunca nos deve deixar indiferentes.

Mergulhados numa embriaguez de sons, odores e cores, nós, os que envelhecemos, saboreamos ainda os Cânticos de Salomão, esse Maio, trajando uma noiva eterna chamada Jerusalém, mas é muito mais que esta mulher, ela é a jovem enamorada, a virgem que cria o espaço enaltecido para todos os ardores, e quando em êxtase nos aproximamos desta tempestade tudo em nós se cura e fica em suspensão . Uma ressurreição celular! Os celtas não são nem menos verdes, nem menos poéticos no seu louvor, e a recolha dos seus versos – celto medievais- dão conta dos mesmos ritos enaltecedores que povoam as suas graças até à saga do rei Artur « reverdecer e florir em obras amáveis»: estes povos do frio detestavam o Inverno, e dele pareciam sair com o condão de uma profecia sempre mais verde, e na voz de um poema oral que é de um refinamento que contrasta com as suas armaduras «….depois te levantas da calma das ondas, como jovem príncipe coroado de rosas» pouco alongavam a vista no oceano, Maio é bem mais um instante da terra, não precisa de distância, o paraíso está ao redor de cada um num espaço nunca expansionista, mas abundantemente vivo, em nichos, recantos, coisas que a mão pode percorrer. E é este lado da manifestação simples e boa que nele nos encanta, pois que nem sempre o que é bom, louvado e gratificante, fica na linha do horizonte das coisas a contar, elas, nascem por vezes sob os nossos pés que hoje perderam um pouco da rota dos outroras campos em flor.

A Europa é ainda o vaso das Primaveras, do mito de Maio que inunda toda a bacia do Mediterrânio, o Touro que a rapta está normalmente coroado de flores, não é um Boi agreste, mas um farto ídolo carnal que seduz mulheres e deusas, é um sopro de volúpia ambiental que as transporta nuas em seu dorso e não o raptor indómito que puxa as vítimas pelos cabelos, parecem serenas e protegidas pelas fartas carnes e pelo aroma que lhes vem das hastes deixando claro que o sossego da vítima pode ser um prazer acrescido onde entra ainda a confiança: «melodiosa mais do que harpa, áurea mais do que ouro…» Safo. Os mesmos ramos de giesta estão presentes, e a romana deusa Flora já era enaltecida mais acima entre os celtas, Maia era a flor amarela dos campos perfumados que unia um continente em litanias e festivos cortejos de amor. Ainda hoje existe na Europa uma festa com função falocrática conhecida como o Mastro de Maio, depois de erguido, a dança com fitas multicores e logo os rapazes cobriam de flores as janelas das amadas que desejavam cortejar. Maio nunca nos fala da bênção do amor maduro, é uma festa de jovens enamorados, as Maias que em território português eram jovens raparigas vestidas de branco enfeitadas com grinaldas de flores amarelas, as raparigas que faziam o Maio- Moço e o levavam pelas ruas a cantar… este amor tão novo como tudo em volta é que faz o seu deleite. É o tempo do corpo em flor, fecundo e forte que aqui festejamos, aquela época em que tudo faz sentido, é natural, penetra e cria: nada de estéril se encontra em seu redor e o cortejo da natureza abençoa os amantes. Parece eterno, mas quando o encontramos na roda do tempo, vemos que passou, dele nos vestimos então mais um pouco em louvor à vida, àquela que nos parecia tão forte, tão robusta, tão intensa e única, e com Maio fazemos então as pazes com esse corpo já cansado pelas rotinas, e enquanto ele dura pensamos como foi maravilhoso ter sido algures neste exacto tempo, tão amado.

Um jovem garboso de muitos encantos/ Senhor generoso e amigo leal é o mês de Maio
a erva do vale luzindo…. as noites são leves e os dias não pesam
e é esplendoroso o voo do falcão e o melro negro do mês de Maio.
Poema galês ( século XIV)
Para o país das cerejeiras em flor!

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