Apollinaire

[dropcap]- D[/dropcap]istantes ainda estávamos dos dias que revolucionaram a escrita quando «Caligramas» em 1918 sai com o seu futurismo modernista – que Almeida Negreiros um pouco antes nos daria, é certo, belíssimas demonstrações do poema visual da fonte do mesmo verso livre que haverá de encantar mais tarde o movimento concretista dos anos sessenta. Inspiração esta que parte de uma averiguação dos signos gráficos e se debruça nos caracteres cuneiformes, chineses e também na arte copista dos manuscritos da Idade Média que virão a ser não menos decisivos para uma revolução na forma de conceber o acto da leitura. Assistimos também ao instante da «liberdade livre» quando nos é dado um poema como «Alcools» que suprime a pontuação e nos obriga assim a uma perspetiva diferente. Apollinaire compreende de forma quase visionária que uma nova forma de comunicação está em curso no início do século vinte e que a escrita teria de lhe seguir os passos. As múltiplas alternativas dão espaço inventivo para alargar o código da leitura e com ele criar suportes que ajudem a rele-la enquanto matéria viva que subjaz a toda a transformação.

«Le poète assassiné», os contos que relatam em parte sua própria história, reflecte muitas vezes a charneira do tempo que lhe foi dado viver, e nessa ambiguidade coberta de uma certa lubricidade, toda a recolha de formas de leitura que em muitas variantes e em línguas outras se fazem até da esquerda para a direita compondo nomes que só a transgressão pode entender. Ele continua a misturar muitos géneros que vão desde a poesia, à fábula, ao fantástico, recitativo e teatral, e numa intermitência morre e nasce em cada capítulo não se preocupando com a unidade que tanto atrasa em muitos casos a errância preciosa do pensamento quando nada o impede de se expressar assim. O método da escrita pode ser aqui entendido pelas “linhas tortas” que o próprio Deus insiste em escrever, que tais curvas têm o poder de ter por dentro uma coerência tal, que abalará certamente a metódica noção daqueles que andam longe de entender o verdadeiro significado de escrita criativa.

Percursor do modernismo, ele tem ainda o dom da narrativa e fá-lo através da sátira mordaz como em «O Heresiarca e Cª» seguindo o trilho talvez de um Camilo Castelo Branco que provavelmente nunca conhecera, mas que parece buscado de «Alves & Companhia», surpreendentemente na mesma ironia e acutilância que lhes foi tão cara. Sem dúvida que é uma grande riqueza de sinais todo o conteúdo aqui expresso, como se vasos comunicantes andassem próximos daqueles que desdobraram a palavra em todas as direcções de uma realidade a haver. A insolência está por toda a obra numa viva alusão ao extrapolar daquilo que sempre será apanágio de seres sensíveis, a sua profunda indignação face ao mundo que os rodeia, e este trilho é o elemento que transforma um insuportável mal-estar numa manifestação que transcende e cura o próprio doente do transtorno desse mesmo mundo. Não há dúvida que a “felicidade” esse estigma mundial do agora, retirou de cena os seus mais eloquentes observadores, mas, a forma como este, e muitos outros agarraram a observância tem lá dentro um arquétipo infalível que subjaz a todas as épocas.

Apollinaire era um polaco – filho de mãe polaca – pois que do pai nada se sabe, e a sua vibrante fonte um caldo de uma nação religiosa que acompanhá-lo-á até ao fim: e no livro acima mencionado dá-se o confronto com a sua origem que passa por ser do domínio da fé, e que passa depois para um plano mais teológico com formas rebuscadas de significado bíblico transportas para uma consciência que dá às suas personagens uma extrema humanidade pois que são feitas de partes tão detestáveis quanto boas, admiráveis mesmo, pondo a Humanidade no centro do seu próprio drama. Claro que o faz com humor, espírito incisivo e, numa palavra só, “graça tanta”, com aquela intensidade que não conhece tempos mortos e nos faz assim compreender melhor este impulsionador da literatura moderna. Ele foi sem dúvida uma personalidade multifacetada que criou raízes com os seus pares na vanguarda de um tempo onde o Cubismo teve alta social e a palavra Surrealismo lhe é ainda devida. Mas as peripécias de vida destes homens não são aventuras suaves, e chega a ser acusado de cumplicidade no roubo de Mona Lisa juntamente com Picasso. É preso, ficará perturbado e, aos olhos dos mais conservadores, possuidor de todos os perigos por ser estrangeiro, rebelde e atentar contra uma certa base civilizacional. Nada de novo, portanto.

Dá as boas vindas às mudanças e saúda-as com puro génio criativo tendo para isso um terreno mais vasto de expressão, consegue suplantar-se em quase todas as ocasiões, que o tempo exigente arrasta uns, e faz faróis ainda outros, e é por isso que ele, na sua também tão parecida situação presente nos continua a inspirar. Ele consegue inovar a herança e trazê-la para o seu instante carregada de futuro numa anunciação comunicante sem igual.

Não deixa de ser também um aviso à nossa navegação o título do seu primeiro livro, aliás, absolutamente espantoso: «O Encantador em Putrefação». Cento e dez anos são passados e este deveria ser o encanto que nos define. Apollinaire é um mago. Ele deixou a escrita em dia, no dia em que soubermos ver que escrever tudo de todas as maneiras com as técnicas escreventes, será a nossa própria humanidade que se escreve e assim avança para o seu mais vasto entendimento.

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