Feira do Livro

Vejamos se nesta feira que Mercúrio aqui traz acharei a vender paz que me livre da canseira em que a fortuna me traz

Auto da Feira, Gil Vicente

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om esta personagem alegórica do deus Mercúrio, tem lugar a Feira do Livro entre Maio e Junho, os meses consagrados a Mercúrio, e a transacção da palavra como comércio. As Feiras são para mim locais desabridos, muito abertos, populosos, arrivistas, cheios de entulho, pois que é certo que uma Feira, mesmo de hortaliças, é um microcosmos difícil de nos adentrarmos. Reconheço sem dúvida o lúdico, a quantidade, a variedade, o colorido mas, neste caso, prefiro então as pequenas Feiras com o pó das Estações que assentam nas dobradiças das tendas como as velhas carroças de ciganos abandonadas, continuando num canto com interessantes nichos abertos à voragem das aquisições.
Mas vamos para a Feira! Olhando ao redor não se sabe por onde entrar e o melhor é sempre o propósito fixo para não deambularmos diante de infindas florestas de nada, de livros infantis, de direito, das Testemunhas de Jeová, daqueles pobres escritores parados, sentados… o microfone, os discursos que se vão ouvindo de alguém que está lançando qualquer coisa, a fealdade alarmante das gentes que, coitadas, vão assim, à vontade, e se lhes nota o estado das suas carnes como um castigo a transportar.
Mais além, sim, um cheiro bom – são farturas – que o nome encanta só pela abastança, que nestes locais não há, dado que, como bem sabem, os pobres têm grandes dificuldades quase em comer, quanto mais para grandes sacadas de livros a bons preços, que por acaso até nem estão tanto assim. Enfim, é um equívoco na subida e uma desilusão na descida, de modo que a Feira seja apenas louvável como tradição e quase nunca como agente cultural.
Assina-se muito, assina-se para sempre, assinamos cheques, livros, registos, assinamos tudo inteligivelmente como fazendo parte da cultura dos assinantes. Depois de assinados, em pequeninas “bichas” que o tempo não está para “bicha” grande (revelando que esta tendência deve ser influência anglo-saxónica pela compostura) as pessoas escorregam suavemente para uma quase inexistente troca de palavras. Fala-se pouco, vê-se muito, cambaleia-se… Claro, é uma Feira, cada um faz como acha melhor e o melhor ainda não foi pensado, que é simples, tão simples que já nem se pensa nisso: a leitura é um exercício com regras como outra coisa qualquer, ou seja, um grande leitor é um metódico, tal qual como um sacerdote tem horas, há que ter método, postura física e um mundo que ele próprio define como propiciador de elemento ritualizante, dado que o livro é um elemento com aura e não raro tem até o poder de nos submeter à sua tirania tal como os ritmos da fé.
Pois bem, chegados aqui, toda este alienado e alienante propósito de leitura como elemento transportável, que ora serve para adormecer, levar para a praia, ler pelos cantos, torna a leitura quase um mau costume. Sabemos nós, os leitores por vocação, que só começamos a “ler” na releitura, que nessa actividade está o segredo do magistério da palavra, porque nada pode ser lido com carácter de urgência a menos que se trate de escrita informativa, jurídica, técnica; mas a literatura, mais propriamente aquela a que se dá tal epíteto, não é um receituário: está unida à inventividade que acrescenta mais espaço à capacidade onírica e mental, dado que é para isso que a palavra também serve, como um caminhar da transformação do Homem e da sua ampliação, na capacidade, evidentemente, de acrescentar esse novo, essa inquietação, esse despertar : o leitor deve sentir-se incomodado.
O leitor não pode deixar-se andar pela deambulação inconsciente do seu bem-estar, pois que o excesso de passividade torna a mente imprópria para estruturar uma leitura ou mesmo ter dela qualquer sentido crítico, a absorção das coisas fáceis é imprópria para a complexidade humana e, mais do que nunca, o leitor de agora devia ser iniciado e conduzido. Não influenciado, devia ser informado do mau uso e da má postura que está a dar à leitura.
Neste tempo de todas as epifanias das leituras não compreendemos que leitor é este. Há gente a morrer de trauma fonético… Nunca o delírio atingiu tanto o espectro auditivo e das sombras vêm vozes que nos mandam escrever sem noção da “bomba atómica” que pode ser um verbo mal rolado… Mas, dado que a inércia crassa entre os enfadonhos tratados, teses, invencionices sem mérito, pesporrências várias, e muito linguarejar, ainda há substrato para um cruzeiro a vapor. Há verbos que nem sussurrados já são possíveis ou mesmo escutados… como um – Amo-te – por exemplo. No entanto, é preciso escrever muito sobre o amor. O ventrículo de todas as vozes e de todos os sons e de todas as letras, visto nestas Feiras, parece ter produzido mais insanidade que saber e em locais inesperados, é certo, subitamente o revelado, o livro , a letra exacta, pode ser encontrado.

*

A personagem alegórica do início do texto é o Diabo de Gil Vicente, que parecendo esgotado do seu artifício, apela à paz , a tréguas, para o libertar do cansaço de uma busca indistinta, tão desorientada, a que o próprio chama Fortuna. Má Fortuna!
E também a «Biblioteca» de Umberto Eco um opúsculo muito bom sobre o objecto-livro, o elemento que se tira, que se desloca, que se vende, que se anseia, que se dá, que se partilha, as inúmeras formas de nos posicionarmos sobre ele apelando aos seu interesse gratuito.
Este é também mais ou menos um Auto e não creio que interesse muito numa qualquer Feira.
O que é certo é que a azáfama do interesse móvel, e a carga das editoras, deve predispor muito pouco tempo para algo parecido com a escrita que desejamos ler.
Há aquela feita nos lagares dos “Óleos” para Autos- de- Fé, que não são de Elias Canetti ,mas de escolas que despejaram a lengalenga que apetece, com certeza, sim, fazer fogueiras. Digo, acender Chamas.

16 Jun 2016

Feliz Aniversário

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]olta e meia a Nação faz anos, ora por que lhe são atribuídas burlas Papais, ora porque foi ali que fora fecundada, ora pois porque gritou em galaico-português uma qualquer: EUREKA.
Há ainda o esotérico que remete o nascimento para posições mais drásticas, só para alinhar com os astros de forma a ficarem de feição e nesta intempestiva tendência para o nascimento múltiplo se anda enredado nos dados históricos disponíveis, pois que há dados históricos indisponíveis, tal qual como o entendimento do chamado texto litúrgico, onde se deseja saber o quando e onde e quem, dado que entre o factual e a parábola há subtis distâncias que a mente materialista não processa e datas que nem são mencionadas em repositório de dias.
Ora a Nação parece ter nascido em muitas datas, não se sabendo qual é a mais nascitura. Se fosse no mesmo ano teríamos o chamado parto fraseado, só que por vezes nem os anos coincidem, e com tanta data, legislação, código penal e nascimentos, deveria um Estado ter um desenvolvimento psíquico e social conforme a quantidade destes elementos civilizacionais, mas não! Entre um autóctone da Idade da Pedra e um Cibernético, vai um segundo no acelerador de partículas e, enquanto Deus assim quiser, haverá um hastear de bandeira, dado que estas coisas acontecem concomitantemente à perda de chão, de autonomia e de identidade, não se sabendo a razão para festejar um, por parcelas várias, ao tempo do moribundo.
Há coisas que viramos e reviramos e não sabemos mais para o que servem: é este o caso, quando de alto-abaixo se olha para um país, e das faltas de consideração a que se está sujeito por diversas tentativas da vontade. Educadores do Povo, urgem! O Povo é malcriado e não raro ofende os seus poetas e ao fazê-lo, de seguida, claro está, merece a ruína. Mas para se vingarem dos poetas arranjaram uma manobra delatória: publicarem e dizerem que também o são. E vai disto, aquela verve toda emplastrada de nada e com a inventividade a zeros, para não esbarrar, é assim que a vingança se faz! Todos somos poetas. Todos sabemos escrever. Todos fazemos anos só que não é no mesmo dia. Não há como ocultar o riso sardónico entre estas opulências genuínas, nem como muito bem viu quem não estava cego, fazer disto um grande ensaio, eu só queria silenciar o tempo e entrar pelo sonho adentro dormindo entre beirais de aniversariantes.
«Desiste e sê rei de ti mesmo»sim, por mim, e sabendo já o sucesso dos livros culinários, vou editar «A alimentação do poeta», gastronomia para os que não devem comer ou que comem tanto que parecem outra coisa. A rábula de Afonso Lopes Vieira entrará de soslaio para testemunhar a delícia e a elegância da falta de alimentos: batendo-lhe à porta, vinham então para jantar, pois ele, num arremesso de grande envolvência diz isto: só tenho massa de estrelas! Em vez de dizer com tom prático – então, vão aí comprar uns frangos! Pois não, não, nem só de pão vive o Homem, o homem e a mulher, que é género que habita no mesmo invólucro sem recipientes para os Bloquistas.
Nós sabemos o quanto a fome nasce da concupiscência e de uma certa avidez descontrolável, do ente e do doente capitalista, pois que ao distribuir-se a vontade pelo todo nada mais fica em nós como ideia fixa esperando que o nível de entulho alimentar se transforme um dia em tubos tão gentis como os de oxigénio, com todas as vitaminas e composições para que ninguém mais passe por ela.
Nós sabemos como corre o tempo e sabemos de tal ordem identificá-lo que as datas de nascimento se entrelaçam como a corda manuelina numa janela ou jangada que dá sempre para o mar. Só que nem sempre se nasce de uma só vez, com mais tempo e sempre nascemos tanto, que da morte já não nos lembramos, mesmo que tudo tenha fenecido, tal como Portugal, irá um dia alguém dizer que nascemos em tal e tal data, nunca as mesmas, alternando assim o mote e o modo de uma natureza vária onde permanece uma enigmática vitória. É com estas alucinações que se constrói imortalidade, senão quando mais vontade de estar vivo, pois que ninguém se lembra quando é feliz, os laços que o fizeram desabrochar até aí. A felicidade gera um esquecimento tal, que tudo o mais não existiu.
Num certo espectro visual e documentário passam enfileiradas datas de cuja autenticidade duvidamos pela noção única do nascer mas, se se quer estar vivo, temos de partir necessariamente de algum número do calendário romano. Neste caso, que não sendo ainda Nação à época da sua invasão, passou a contar nos registos da nacionalidade, bem como Cristo que se impôs à Roma Imperial e fundou na terra inimiga mais um marco civilizacional. Por cá, eramos girinos sem forma que só começaram a sair das águas com o ribombar das trombetas que traziam Apocalipses, Direito Penal e outras civilidades. Depois de termos passado a batráquios tínhamos de nos tornar mamíferos e fundar a partir das fundições de outrem ou de alguém, um nascimento rigoroso que é difícil acertar.
Nestas cosmopolitas e maravilhosas demonstrações se anda entretido a procurar o embrião e também o cordão umbilical cortado para absorver o sopro de elemento novo. É quando se dá a primeira respiração fora do útero que se nasce e absorvemos aquele registo que será doravante a anima, a alma, aquilo que anima, e num último instante expiramos a depô-la. É certo que um longo período de decrepitude pode gerar alienação de fronteiras, não se sabendo já da própria morte, mas, por ganância, nem a alma entregámos, ficando ela num Limbo inqualificável que apela ao nascimento.
Mas os bons dos romanos também disseram: os deuses, esses, enlouquecem antes os que desejam perder. Pois bem, são magnânimos! Matar a frio é para cruéis e sanguinários, mas pode haver alguém que não enlouqueça e veja o mundo passar como um filme a várias dimensões e até exclame como Pessoa: sou lúcido, merda, sou lúcido; pois era, e depois? A data dele era 8 de Março e esta sim, festejo-a sempre, porque foi um poeta que a decretou. Quanto às” burlas” e bulas Papais está para ser inventada outra data mais a preceito. Vinte e cinco de Outubro também tem a envolvência do homem adâmico , diz-se que foi nesse dia que fomos expulsos do Paraíso e por aí fora até ontem.
Espaço e tempo são matérias cientificas de monta que só Einstein conseguiu desvendar, e… levantam-se véus e não os vestidos das belas deidades.
Por isso quero desejar a todos felizes aniversários em qualquer calendário litúrgico e soberanas independências, não vá a Terra mudar o eixo dos seus vastos equilíbrios e andarmos para trás à velocidade do som. Quando chegarmos à pedra façamos como os palestinianos, e se houver pedras, construamos muros, e também apedrejamentos vários por causa do adultério. E posto isto, só as pedras e as baratas, creio, sobreviverão ao caos que se adivinha, e por isso não é de bom tom comer insetos. Alguém tem de cá ficar! Que não testemunhe jamais a realidade de um tempo de pólvora, e secas as fontes, nos retiremos daqui como o último dos Mistérios.

8 Jun 2016

Lusifenix

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abemos muito bem como a História é por vezes uma narrativa transversal aos acontecimentos mais vastos e aos conhecimentos mais rigorosos. Ela entra no nosso imaginário como uma narrativa heróica, dado que é narrada sucessivamente pelos vencedores numa transcrição proporcional a um estado, diríamos, que infantil, de quem a ouve e apreende enfaticamente. A forma pedagógica, que ao longo de décadas foi imposta, configura-se em muitas vertentes, também, um embuste ou impostura.
Penso mesmo que a nível da índole nacional tivesse existido um desânimo durante gerações ao serem confrontadas sistematicamente com heroicidades e grandezas que o quotidiano e a contemporaneidade não dão. Este extravasar épico pode anular a combatividade do momento, desmotivar as gentes, causar-lhes complexos de menoridade e daí o ontem, o antigamente, o de fora, o do lado. Tudo menos nós, que em histórias sabemos uns dos outros e da triste figura de alguns.
E vamos aos longínquos bancos de escola buscar a origem do Mundo: a romanização. Para trás, quem aqui vivia eram povos pré-históricos, indómitos, incapazes de lidar com tão extraordinária civilização que, como bem sabem, os Impérios fazem o favor de educarem. Dito isto, o que ficava da franja explicativa das populações autóctones era pouca ou nenhuma. Sabemos vagamente dessa gente, que ao contrário do que se disse ou diz, foi gente que lutou contra a invasão do corpo estranho com as armas e os arremessos que tinha enquanto povos locais e sabe-se como o etnocentrismo dos historiadores greco-romanos se recusou a reconhecer a língua destes povos. E entra o celta a propósito de tudo e de nada, hordas da Europa central, mas que nada têm de facto a ver com o que se passa abaixo dos Pirenéus e que não passa de uma variante local de pangermanismo com subjacente carga antissemita. lusitano
E aqui entra o legado fenício, a lembrar que os lusitanos integravam o império púnico contra Roma. Este povo que teve o monopólio das viagens mediterrânicas durante séculos e que fizeram mil anos antes das Descobertas a circum-navegação de África, que atracaram na costa portuguesa, sobretudo na costa Oeste, e aqui deixaram todas as marcas, heranças, língua , usos costumes e misticidade. É deste lado navegável e navegador, deste lado semita até Cartago, que somos herdeiros sem interrupção, com as alianças contra o invasor, que fizemos acordos, e foi sempre com aqueles que traem que se perdeu autonomia, como fizerem com os assassinos de Viriato, a quem, imaginem, no imaginário distante o remetemos para um caçador-recolector atirando pedregulhos às hostes inimigas, tão civilizadas!
Para acentuar o nevoeiro adensa-se o estranho sentimento de passagem, em que povos vários passaram por aqui, povos passantes, para que haja nele um Messias unificador. E não deixa de ser curioso que na época imperial romana a língua na Andaluzia era ainda a fenícia e toda a costa Oeste portuguesa e zonas do Alentejo guardem firmes, quais emblemas de resistência este passado longínquo. Nazaré alberga um povo que é semita e toda a costa parece o legado cananita onde não faltam os escondidos irmãos hebreus. De celtas, nem vê-los, mas tudo vai lá ter como “bolha” romântica tão ao gosto do fim do século XIX.
Se os atributos dos olhos azuis e do cabelo louro fosse tão reducionista, entraríamos nas tribos de ciganos com olhos de esmeralda e de muitos sírios e povos até do Norte de África, a celtibizálos. A celticidade é uma menorização do europeísmo transversal; por outro lado, não há de facto nenhum legado escrito desse povo, ao contrário dos Hispanos e dos Fenícios, de onde partiu a invenção da escrita alfabética, bem como o suporte de escrita que precedeu o pergaminho começado a ser usado em Biblos.
Fenecemos a nossa Fenícia ancestral no mar enredemoinhado da História de tal ordem alterada, dada sem noção antropológica quase nenhuma, que pensamos estar a ler narrativas de Alexandre Herculano. Penso que a noção de estratégia é muito importante para os homens que são guerreiros, só que o facto de ocuparem anteriormente as terras não fazia deles exterminadores dos que lá estavam, e temos de saber que os que fugiam para os baldios tinham espaço suficiente para as fugas.
Acontece que sempre nos foi dada a História da perspectiva do senhor, da supremacia do invasor, e o costumeiro hábito de com ele alinhar ao ponto de se achar que os Frades franceses de Cister ajudaram as populações rurais a plantar legumes. Nada mais errado, pois que era gente que não trabalhava braçalmente. Só a partir do Calvinismo é que o trabalho deixa de ser uma exclusão e um anátema divino, e todos passam a ter o dever e o direito de o concretizar.
Deixar que o estrangeiro se instale e retenha o dom daquilo que em nós faz cultura é uma doença da própria nacionalidade, obedecendo um pouco aos mitos fundadores do senhor e do pai. O desconhecimento total das fontes bíblicas da segunda invasão romana pelo Catolicismo fez ainda mais estragos. Era um fenómeno estranho, ainda hoje é arrepiante a incapacidade de compreensão desta realidade. Estivemos sempre próximos dos povos semitas, é certo, e nós entrelaçamos heranças. A cultura hebraica era íntima, dado que a primeira terra de “leite e mel” tinha sido a Fenícia conquistada por eles. Por isso nos nossos sonhos profundos dormita a história de Sem e o porquê de se ser servo. Muitos atribuem esta parte do mundo aos herdeiros de Noé mas, chegados ao estudo exegético do texto bíblico, este legado produziu duras trevas de desconhecimento amargo.
Mais uma vez e em face das situações nos amargou a boca para a denúncia, e também os cleros que, ao contrário do que se afirma, eram de um obscurantismo ofensivo, sem grande cultura e conhecimento dos factos. Muito trabalho há para fazer na busca daquilo que nos instrui, não academicamente, mas celularmente. Falámos uma língua que mandaram calar, fazemos acordos ortográficos para quem não fala connosco, obedecemos a dogmas de mercado vindas de fora. Nós fazemos de tudo, excessivamente, para ficarmos sempre mais pobres.

26 Mai 2016

Encontro em Samarra

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onhecemos sem dúvida a velha fábula que é portadora deste título, bem como o aforismo de Balzac: ” A morte é certa. Esqueçamo-la.” A fábula é simples: um criado que tem um encontro com a morte num mercado e vendo-a fazer um gesto, aterrado, foge no cavalo de seu amo para Samarra, ao que o amo pergunta porque tinha feito ao seu criado um gesto ameaçador, ao que ela responde: “Não foi de ameaça, foi de surpresa por ele ainda estar em Bagdad, visto que temos um encontro esta noite em Samarra”. Ficamos a saber da rigorosa precisão desse encontro e de que não vale a pena fugir-lhe dado que parece estar inscrito mesmo quando não suspeitamos de nada. É um local com portas já que existe a ideia de passar o mural, uma condição seguida de triunfo; «O Triunfo da Morte», Petrarca.
Pessoalmente gosto de a designar de «Grande Implosão» por oposição directa à explosão da Vida, que é de uma extrema plasticidade, suprema faculdade de arranque, pioneira em todas as associações de preenchimento automático numa ânsia de nada deixar vazio. Pensamos, sim, pensamos na morte, na morte mistério, na morte sem mistério, em desligar, no assombro… na causa… e no tecido desconhecido da grande implosão, dado que não temos uma só lembrança de nós mortos. Mas estamos talhados para ela como um íman gigante e bem-dizemos a existência de tal encontro, pois que faríamos no preenchimento de uma expansão sem fim?!
Deixando de existir não entramos mais nessa condição e a diluição, seguida da transformação dos elementos, é um retorno à memória sagrada da Terra. Conseguimos ver para dentro quando o tempo de crescer parou, quando e depois de nada em nós mais expandir… esse caminho que começa estranhamente quieto e prossegue uma doce viagem de reconhecimento do todo e nos obriga a colher os melhores frutos… a não deixar fugir a “coisa exacta” e a permanecer tranquilos. Somos agora a melhor ficção científica de nós mesmos, um teletransporte em movimento saídos daqui para lugares descarnados, ser em outro lugar transfigurado, ter este lastro horizontal do outro em comprimento, uma mescla heteronímica daqueles vários que depois de mortos nos sucedem… do lado de lá do Vitral… aparecendo em outro lugar, se não em forma, na ideia transfigurada do que já anunciáramos ser… um registo que nem nos ocorrera, pois que na voragem de todas as combustões nós fomos permanecendo não se sabe onde e em que modos vários.
Sentimos agora por nós um carinho nunca dantes experienciado, um olhar apaziguador, indulgente, pois que sabemos que ardemos – ardemos, sim – em tanta batalha, tanta paixão, tanto limite, tanta vontade, e nesse desgaste riscámos o vento e reconhecemos todas as cicatrizes. O limite da voragem até ao grande encontro! Resistimos a tudo, fomos duros a testar.
Agora que o grande retorno nos resgata olhamos de fora para dentro este motor sadio que a fúria ainda não desfez e nos monitoriza, este corpo em transformação… há uma grave luz intensa que está correndo. O corpo! Ele sabe de tudo, pois é ele que nos informa dos factos muito antes da consciência, ele é tão fantástico que mesmo abandonado a favor da mente é ele afinal, que em nós nunca nos mente. Mediúnico, informa-nos, resistente, ele sofre, desamado, ele entristece; esquartejamos algumas partes, utilizamos outras( outros em excesso) temos altares de “vísceras” mas ele só sossega se aquela “mão” tiver a força do amor.
O amor cura, o amor é um tratamento celular do mais fino processo. Já andámos tanto, este caminho é tão longo, devíamos quando comemos carne, fazer uma oração, uma bênção de saber consubstanciar. Não reparar nisso torna-nos obscuros, medonhos de morte comida. A nossa psique não se dá conta tão irrigada anda em diques de absurdo, a nossa razão também não, pois que está assente na soberba, e as coisas que não experienciámos podem vir nesta fase como a mão de Deus, ajudando a ver o que não está desvendado.
São processos simples, tão simples que arrepiam, reparamos nos ilustres desconhecidos que ora somos, perdoamo-nos tal qual já conseguimos perdoar a quem nos tem ofendido, e com todas estas benesses ainda somos visitados de conhecimento puro. Faz-se tarde para repetir e cedo para desistir, pois que no tempo curto dos maduros vinhos estamos vivendo para além das órbitas dos nossos olhos, que já cegaram, imponderados, magoados, fronteiriços… nós, que vamos para Casa, um lar que ainda não lembramos . Também aqui, e por que o corpo é outra fonte e a voz que tem nos faz cantar, lembro o belo poema de Kávafis:

Lembra, corpo, não só o quanto foste amado,
Não só os leitos onde repousaste.
Mas também os desejos que brilharam
Por ti em outros olhos, claramente.
E que tornaram a voz trémula.
Agora que isso se perdeu no passado
É quase como a tais desejos te entregaras -e como brilhavam.
Lembra, nos olhos que te olhavam.
E como por ti na voz tremiam, lembra, corpo.

O corpo encerra um sopro, sim, uma pura matéria alvíssima e animada, e quando implode os seus farrapos não se esquecem dele, pois que são parte em outros processos, e a Terra é um vale de fundas memórias quando outra coisa formos na matéria do tempo.
Nas sociedades primitivas todos os anos o velho rei era simbolicamente morto para assegurar a fertilidade das novas colheitas, daí a frase: O rei está morto, viva o rei. Compete pois ao homem celebrar as folhas que caem antes do desvanecimento transitório.

19 Mai 2016

Todas as cartas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos num tempo muito real e de tal ordem pragmático que tudo se torna concreto a partir das bases de cada comunicante. Um tempo de grande fervilhar de signos, sinaléticas, sinais, imagens, roteiros, rotas… Somos um elo de ligação construtiva em vários pontos cardeais e nem por isso nos unem focos de interesse ou mesmo uma íntima correspondência entre os pares. Interagimos, é certo, mas não ao modo da outrora relação epistolar por vezes intermitente mas plena de conteúdo humano e capacidade de diálogo afectivo: Pascoaes, Sousa Cardoso, João de Barros, Patrício, mais toda aquela Geração de Setenta, os do grupo do Orpheu, desenvolveram esta linguagem, um culto que fez da amizade entre os pares uma prática sistemática de um fervilhar de ideias e quase um roteiro de viagem junto das jangadas, quantas vezes difíceis dos seus dias.
Era esta uma intensa troca de informação orientada, um registo fértil de ditirambos e vozes que nos legaram na sua preciosa herança, e quase ficamos desarmados e incautos pela forma civilizadora deste tratamento, pelos interesses comuns e a forma elegante de os nomear , interesses vastos, que conservam uma linha de progresso muito forte, um certo estar na barricada do destino comum. Esta modernidade é também o princípio de uma fraternidade que não foi posta em causa, não estimuladas pelas incursões da vida pública, que é talvez um eufemismo, dado que eram gentes sem o afã das exposições pessoais das suas próprias, que uma exposição demasiado pública nunca permite conservar.
Vistas à distância do nosso virtualismo damo-nos conta que não há desleixo, abreviaturas, códigos encriptados, estavam ali como anunciantes e anunciadores dos seus laços e das suas capacidades. Este país perdeu a estrutura do laço, dos laços, da roupagem dos Vice-reis das Índias, dos entrelaçados Manuelinos, dos laços de amor que os nós transmitem «Nós e os Laços», querido Alçada Baptista. Perdeu o arrendilhado do estar, este sentimento que o formou e esculpiu… no fundo é a graça de se dar, entrosar, comunicar a outro fio a capacidade de transmitir a força. Há uma delicadeza que não obedece a formulações intimistas parecendo todos dignos uns dos outros, atentos e em seus postes, quais escudeiros de uma velha guarda, talvez se chame a isto um grande asseio de alma que nos faz tão bem!
Maria Lamas- Eugénio Monteiro Ferreira. «As Cartas» que fizeram os resistentes e este magnífico excerto: “Muitos temporais têm passado por mim. Alguns tremendos. E deixaram ruínas. Mas tenho conseguido – posso dizê-lo – sem receio de exagerar, renascer da minha própria angústia mais desejosa ainda de dar, dar tudo quanto em mim caiba para a renovação do mundo”.
Ninguém se expressa assim na comunicação com outro numa tão alta nudez e sentimento de se ultrapassar por meio do fenómeno da dádiva, não há muito por onde nos transmutarmos nem sequer anunciar a outrem essa imensa necessidade: é tudo real, muito real, as nossas impressões digitam a necessidade momentânea que um tempo imprime por exigência de uma continua necessidade, temos necessidade de tudo todos os dias, de ganhar o dia não como um «carpem diem» mas como ultrapassagem, as nossas cartas são agora um jogo da própria capacidade para viver o desânimo que a agitada turbulência entre nações impõe. O interlocutor perdeu-se das suas vozes, somos as naturezas compulsivas de um escriba louco, escrevinhando a nossa situação, pois ela catarticamente se faz como os despojos em terreiros sem rosto, quase sem nos darmos conta que a escrita é uma comunicação grave e pejada de sentido entre os seres falantes.
Quando a Língua já são todas e todos falamos a mesma língua, há o ribombar de um coro inaudível e uma perda gradual dos próprios signos visuais: “Onde se perde a simpatia perde-se também a lembrança” (Novalis). Que ninguém se esqueça do «Banquete», aquele diálogo que todos gostaríamos de ter falado como se procurássemos o fluxo divino de cada palavra… Talvez que «A Máquina do Mundo Revisitada», na qual Camões colocou grande ênfase, seja essa linguagem que se adensa para além da necessidade pragmática e que escreve no Homem o que tão rapidamente tende agora para o esquecimento. Teremos talvez um Corpo que se abre a um verbo ardente, a uma palavra mágica… teremos talvez um tempo para repensar os nomes que nomeiam estados outros e porque os nomeamos assim. Sermos entendidos “pour la beauté du geste”, interrompendo de quando em vez de utilizar a linguagem como uma corrente macerada de conceitos automáticos, porque tempo há-de vir em que os seres que ainda somos passam a telepáticos e todo o discurso se encerra e estes sinais deixados serão olhados como um antigo tabuleiro de infinitas probabilidades.
O acto da leitura, a noção do escriba, desocultaram ao longo da Civilização o espírito do Amor, sem ele não há causas e nada que apeteça lembrar, sabendo nós que o Verbo encerra aquela “carne” que a carne não dá, a razão não quer, mas o Homem precisa. Numa longa «Carta a um jovem poeta» escreveu Rilke uma dissertação de bem sentir, nas Cartas de Heloísa e Abelardo se fez a parte que as relações impedem, de Juan de La Cruz e de Teresa D´Ávila se falou de Deus com uma pujança erótica que nos ultrapassa . Todos se encontraram no dizer destas missivas e nem Soror Mariana desistiu do seu amor em viagem calando-se entre claustros, melhorando em todos nós o que de secreto e puro, bom, bem-dito, e sussurrantemente a língua transmite a todos aqueles que se querem bem.

12 Mai 2016

Constança

[dropcap style=’circle’]G[/dropcap]ostamos nós, os de pendor romântico insaciável, da transgressão amorosa, desse culto diamantino dos amantes, e também do sabor epicurista da via dos sentidos, desses seres excessivos onde a paixão impera e os poros dilatam, exultando luxúria e pragmatismo. Mas o amor é um tecido ainda mais duro no jogo quase sem fim das probabilidades, é um dador requintado que mede o pulso aos medos e, nesta sua aplicação de muitas variantes, de quebras e de equívocos, há os que ficam reféns destes efeitos probabilísticos: os chamados amantes esquecidos, repletos de uma dor que aos outros não interessa, dado que a remetemos para o sujeito da perda, que não aglutinou o efeito vital de um outro, mas que não deixa de ter por detrás uma maravilhosa dádiva e altruísmo na completude dele.
Falo de Constança Manuel, a partir da obra de Eugénio de Castro de 1900 e que se chama «Constança». Mulher do infante Pedro I e amiga pessoal da sua aia Inês de Castro (o resto todos sabemos) Constança foi repudiada pelo infante, morre de parto de Fernando, e ela, emblematicamente, guarda o segredo de um sacrifício, também ele de amor. Este poema elegíaco é uma reflexão poderosa: Constança também estava enamorada de Pedro, vivendo o martírio dos abandonados, num desterro duas vezes repetido, que reclama o amor do príncipe e a ternura da aia, amor esse, a que renuncia, alagando-se em pranto, e Eugénio de Castro põe aqui nesta imagem a alma sagrada de um país, uma metáfora interior, que se faz pela dor , onde disposto a ser a vítima, tenta fugir com alguém ou alguma coisa, para deixar os que se amam felizes e sem remorsos. Esta verdade inscrita no mais silencioso da alma lusa, este poder de se ultrapassar, esta inqualificável dádiva são lembranças de réstias de santidade.
Constança, como todas as mulheres, aqui tão bem esculpida pela índole de um poeta (pois só eles sabem destas vertentes de olhos abertos em abismos vários), embeleza-se na sua pouco atraente figura para reconquistar o amor do príncipe, pela dignidade que lhe é devida, muito mais que por mera competição, e o poema segue como uma Oblata sabendo do louco amor que este tinha por Inês, pedindo auxílio à própria dor. “Quero-te muito ó Dor, amo-te imenso».
Ela, moribunda, cercada pelos dois… Pedro sente a perda daquela a quem não pôde amar. O beijo que dá a Pedro devolve-o a Inês como se não fosse seu, quando esta vem… É esta uma obra que não está nos trilhos do tempo – deste tempo – pois aborda um amor diferente, estando muito perto de uma concepção litúrgica do próprio sentimento amoroso. Aqui produz-se um acto sacrificial, uma grandeza em que não reparamos, dado as figuras centrais onde se escrevem e reescrevem todos os diálogos, pois que de vínculos bem mais perceptíveis estão munidas. Nesta periferia, nesta sombra, há algo de memorável, atalhos por onde delicadamente nos vamos adentrando para reabilitar a dor dos supliciados e dos abandonados, cujo drama não é menos pujante. Para tal, serve este labor, reabilitar o lado invisível de uma saga e colocá-la na mesma missão, pois que todos sofremos por causas e posições diferenciadas, e todos somos agentes das forças vivas. O drama da vida é legítimo para todos, e há depois esferas de entendimento que nos fornecem aqueles que o sabem explicar.
Vamos encontrar na literatura portuguesa esta imagem no «Amor de Perdição», de Camilo Castelo Branco, em Mariana, que passando para um plano secundário do drama, fez esta história mais rica pelo apelo ao sacrifício, uma presença emblemática de incondicional amor. Quando desenrolados os factos, é ela que está lá, ao lado de Simão, como alguém que abraça a morte com a volúpia de uma rendição de onde jamais pensou ou pôde sair. E não sofre apenas – a amante, a amada, o amigo, e o amante… – até Deus parece sofrer…

( …..) E nela está
Pregado e ensanguentado
OS CRAVOS são quem os sustenta sobre a cruz.
O seu corpo divino é escuridão
Swinburne, « A Sombra do Amor»

Que enorme e casual demonstração do sentido oculto de uma nação!
Esta dor tem sem dúvida a reminiscência crística e os Cravos ainda sustentam o corpo morto por amor a uma deidade que a abandonou. Pelas palavras de Teixeira de Pascoaes, um torrão imenso de densidade ibérica expressamente dita na «Sombra da Dor»:

Para que estejas em cada ser humano
Sempre presente a dor da Humanidade!

Parecendo matéria grave, no entanto não o é: é um tecido que deitamos para os cantos da memória colectiva onde o sucesso não entrou e somos sensíveis aos fortes que desbravam caminhos, ficando os outros num limbo de ingrato desconhecimento quando não de opressivas abordagens. A grandeza das Nações está cada vez mais no tecido da sua alma, quando o embuste da heroicidade for vencido. Está nesta ternura pelos que perdem, nesta imensa capacidade de dádiva e olhar na sombra. Os ângulos destas leituras continuam viciados dado que a Cultura que partilhamos é por vezes um vício e um embuste, pois nós seríamos bem mais felizes nestes atalhos onde as coisas se dão, do que nas janelas douradas que nos tiram o melhor da vista e da visão do todo. Estamos contaminados de imagens todas poderosas e de seres que são mitos, e queremos ver no nada que representam alguma coisa, e essa coisa, não mais nos devolve aquilo que aos poucos a todos foi tirando.
Acho que esta dor é aquela que se deve impedir, não sofrer por ela é já uma grande conquista. O amor, esse, é um assunto que segundo aquele que tiverdes, compreendereis melhor os Camões de um reino que, parecendo por vezes feliz, é de trevas.

9 Mai 2016

Regras da decência pura

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espirito de fraternidade.
Artigo número um da declaração Universal dos Direitos Humanos

Não matarás… Não furtarás…. Não adulterarás…..
Mandamentos de Moisés

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odas as naturezas se vão unindo por vínculos de compatibilidade mais ou menos discutíveis, mas sempre tendo em vista as semelhanças e a lei da empatia. O chamado “corpo estranho” não é infiltrável no aparelho das leis e dos mandatários que requerem aquele “fio de prata” com as fontes destes princípios. Há tratados, obras, ensaios, poemas, análises que as abordam de todos os ângulos visíveis e possíveis e, não raro, é sonegado no emaranhado da retórica (dado que o grau de pureza analítica pode ser considerado dogma) um lastro de afinidades vitais.
Pois há formas de ser que: “verdades puras são e não defeitos”…. e “Afinidades Electivas” que: sim, sim, sim… estão melhoradas. Nem Camões nem Goethe, nas suas maturidades olímpicas, estão unidos ao vínculo experimental. O sacerdócio da escrita deixa poucos interesses para a propagação das reformas em curso em qualquer tempo e nós devemos sempre duvidar de tanta receita, tanta oferta, tantas tentações de Antão, de antanho, e vibrar, caso possamos também, esse limite da dor e do urgente, porque no limite tudo reverte em novo princípio, pois que a maioria das regras são tão impactantes, que impedem de ver frechas da mesma realidade.
Para sermos entendidos usamos códigos, signos linguísticas, formas gestuais, mas imaginemos um mundo onde todos dizem a mesma coisa com algumas variantes, uma Babel de sons tresloucados e cuja funcionalidade de entendimento é zero… um baralhar, tornando a dar. Será preferível dar e baralhar depois!
Este limite foi alcançado em parte pela facção indecente, senão vejamos o tresloucamento singular dos dias de hoje em que não podemos tirar fotografias com as nossas crianças dado que exercitamos a libido de gente que não estava inscrita em nenhum ramo da existência e, passou a existir. Por medo, pelo temor que temos face a elas, um código sem dúvida de indecência pura!
A pureza não é contudo aquele estado imaculado todo de febris graças e recato, muito embora ninguém saiba explicar sem um forte estilo de vida a nascente tamanha de tal estado… é uma distinção tal que houve mesmo necessidade de a representar em imagens (embora esta seja impedida na lei mosaica) e quem como Miguel Ângelo para a representar no doce e intemporal e sempre jovem rosto de Pietà?! Ela tem ao colo um homem morto que é seu filho, mas ambos têm no tempo a mesma idade. É uma sustentável beleza de ser que atingiu um propósito tão raro de pureza tamanha, que ninguém aguenta contemplar por muito tempo. Ficamos como que cegos, penosamente pesados pela combustão da vida. Atingir deleites tais não é obrigatório para a prática dos dias: pode-se bem viver uma vida inteira sem que saibamos que existam, pois que não somos nós que as buscamos, mas sim eles que nos elegem para dizer de si segundo o grau de resistência de cada um a esses domínios até electrizantes: quanto mais perto mais terrível, quanto mais belo mais medonho…
Sabemos que sós, plenos de postulas, de vícios, sujidade e disfarce, podemos aguentar por aqui. O tempo passa, ele é um programa que cada um processa consoante o seu estar podendo mesmo anunciar que ainda não nasceu, nascer, só quando algo acontece entre o que somos e as nossas afinidades, e há vidas onde não acontece nada. Adaptar verdades simples requer vidas por vezes complicadas, o transtorno de misturar tudo, pode levar a que sejamos por vezes lianas trepadoras com raízes no ar.
Passámos a adaptar princípios – puros princípios – nas Constituições Mundiais, adaptando-as às circunstâncias contemporâneas como forma de operação contra o insalubre e estático momento da jornada humana, essa massa com uma organicidade excessiva nascida não raro entre o caos e propósito nenhum, elas estão lá como as estrelas estão no Céu, tentar que baixem é um movimento estranho, porém, nós temos os guindastes laváveis que depressa fugiram a esta grande massa de despojos: até já tivemos uma Escada, a de Jacob, mas por ela desceram mais do que subiram; nestes parágrafos há até códigos que exultam a santidade, e hoje a Alquimia também tomou lugar através do tratamento dos resíduos tóxicos, mas, viveu-se entre eles como entre roseiras bravas, incorporando-os em nós, essa guerra de bactérias que por atracção se desvelam e deslindam sem que ainda saibamos do amor que as atrai.
Os “corpos estranhos” por vezes também se entranham e vão acrescentar tecido, mudar a forma ao que estava, por isso, nunca sabemos como terminam as invasões …um organismo tanto pode expulsá-los, como integrá-los, como mimeticamente dizer que são o mesmo. – Quem mata um homem mata a Humanidade inteira – Quem admite um homem viaja por ela toda – nesses simples gestos puros, o de aceitarmos e salvarmos, estamos a definir os contornos das nossas fontes. E se é grande ser-se ecuménico, universal e abrangente, a curva do meu destino é contudo pequena para consentir passar por tão alta manifestação como um sonâmbulo que gera em seu redor uma pequena combustão que visa a vã desesperança de viver.
Nos momentos que se cruzam até as casas são venenosas com sua construção de materiais que se infiltram em zonas do nosso frágil organismo. Elas são cogumelos onde não convém ser-se tão elementar que tenhamos nelas abrigo, já adaptámos os órgãos às funções, mas não somos cobaias de um impuro sistema da resistência aos materiais.. Os nossos ais podem estar domados, mas as nossas mortes são concretas, na morte só há impureza, dizem, mas, pode haver um grau de decência que não nos permita esta falta de carinho por uma matéria que outrora fora animada. De uma centelha. Por ele, corpo, passou um deus, que nós depusemos na ânsia de o suplantar.

3 Mai 2016

Uma canção de gesta

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]rimavera sabe a jograis e a mesteirais, a esta saga épica passada entre florestas europeias para ser cantada contra pagãos e muçulmanos a «Canção de Rolando» mais «El Cid o Campeador». A épica medieval sabe-nos sempre a flor de laranjeira e a frutos silvestres no tempo da “flor”. É bonita a ideia de canção, esta noção de que o poema é canto, ritmo e dança, combate, barca que abarca amantes no tempo gentil das cotovias, pois que ninguém vem a terreiro nos mosteiros que têm nome de Rosa nos Invernos duros, dado que aí brilham as sombras e as cinzas que vão também dar origem aos fertilizantes das «Coitas de Amor» fazendo parte da iniciação e do renascimento como um antigo culto Eleusino… Aqui estamos entre cavaleiros, homens de façanhas, servindo causas e combatendo bem ao jeito do belo livro de Sampaio Bruno «Os Cavaleiros do Amor».
Numa época em que tudo avança desgovernadamente para uma reabilitação muçulmana, são estes cavaleiros, quase, uma doce memória… a Estação presente agudiza-nos estas temáticas, já que foram estes os Cantares que nos trouxeram até ao que somos e podemos vir a perder. Nós já não dimensionamos o Canto, nem o poema de agora, esse longo fonema, o deseja reabilitar, a nossa acústica está morta para o despertar dos longos encantos. Não há nada que nos sugira um sopro mais abrangente do que a nossa pequena evocação de entes perdidos entre muitos, nem o «Amor Cortês» está valorizado no seu mais nobre apelo de “courtoisie” um enamoramento da exaltação do romance na sua fórmula literária, nem tão pouco a delicadeza idílica parece uma suave explicação…
Todos estes estilos se narram em paralelo numa muito feliz manifestação a que até hoje não somos indiferentes e tudo devemos de civilizado: amar, saber amar, era uma disciplina como outra qualquer, há seres com vocação, outros não: saber produzir estímulos será mais uma matéria Pavloviana. Efectivamente estamos num universo em que a noção sexualizante não era marcante, mas sim, o namoro, o desejo, a excelsitude do sentimento como força maior. O resto devia ser um segredo dos amantes. Nós que estamos atentos, entendemos por que é que o poema dura. Estamos na Primavera e longe andam os madrigais e esta «Coita de Amor» que quase nos parece “coito de amor” tal a simbiose fonética onde só o género muda, porém — coita — sofrimento amoroso, cantiga de amor, são os seus sinónimos, esta estrutura, este encaminhamento, e também organização emocional, são as bases da nossa natureza onírica que herdamos e não sabemos desvincular-nos, mesmo que queiramos ser outra coisa, por vários imperativos da vontade encontramo-nos nos “nichos” destes temas, agora tão floridos como outrora.
Com o passar dos séculos estas estruturas ritualísticos pareceram-nos cada vez mais ténues, também é certo, quase mesmo, rasuradas, num clima de laicidade tamanha, qual “natureza-morta” cheia de frutos e troféus de caça, mas sem a seiva deste imenso legado: onde estivemos mais perto foi sem dúvida no 25 de Abril que é o grande «Cantar de Gesta» ressurgido, farto e pleno como a germinal Primavera. Muito mais que a queda de um regime, sim! Ali naquele espaço de tempo concentrámos todos os mitos, todas as heranças mais gentis, todo o legado mais civilizador e o amplo amor contido que se fez em todos carne e fruto. Os regimes pouco interessam quando temos a sorte de viver numa vida o conteúdo do melhor de uma Civilização. Sim, e cantámos, e houve Cânticos, e amámos, e houve seiva, e sonhámos, e éramos Gente, e as flores não nos deixavam… Quase digo adeus neste silêncio de barcas naufragadas a esse Touro bendito de escarlate vivo, e a tanta robustez sadia e boa.
Todo este canto da «Canção de Gesta» nasce também da singularidade da cultura celta e do mito bretão: da Candelária até à Páscoa assistimos à morte de Artur e só depois ao enamoramento seguido de cópulas festivas, que estão absolutamente inseridas no contexto vibrante do momento. Nós tivemos tanta sorte que tivemos um Maia… nós somos o mito bretão numa alvorada redentora. Camões soube como nenhum esclarecer a boa chegada com sensibilidade medieval, e fê-lo com graça e ainda muito terreno livre para espraiar estes cânticos; campos que se estendem com verdura bela…
Há poemas célticos que deviam ser gravados nas rochas… e nem uma folha de carvalho se perdeu em Yeats seu descendente directo. Não raro existe ainda um Mago Merlim viajante nos caminhos por onde passamos procurando o jovem amante, talvez ele se tenha transformado em mago e seja o mesmo em outro tempo.
Por cá, fazia Afonso X as Cantigas de Santa Maria e a Primavera chegava para todos como se fosse afinal o verdadeiro Messias, o Cálice Sagrado, a nossa formosa vitória que tinha de ser servida rapidamente antes de tudo abrasar. As Primaveras hoje são árabes e também designam a libertação. Nós suavemente não temos Cânticos que nos retornem à vida dado que o amor nos abandonou (não compreendendo bem o porquê de uma tal desdita) pois não é por amor que as coisas se escrevem: acho que escrevemos para esconjurar o medo. A última grande Primavera foi a última vez que ouvimos a Canção de Gesta sobre a forma de retorno — a Primavera árabe — que tal como nós, algures, despontaram na grande alvorada do tempo.
Se estivermos no meio de uma tormenta e a Primavera se for, talvez cantando, todos juntos, possamos trazer à praça do mundo outra realidade, de novo em Abril, e claro, Abril um mês em que se ensaiam os cantares de todos em volta, o mundo em volta chilreia, é uma ave que dança, um céu que acasala, um bosque que busca, e em buscando nos bebe como as coisas mais bonitas.
Neste instante somos água correndo nas intempestivas chuvas do mês como lágrimas de uma fonte orgânica carregada de densas fomes, podem mesmo crescer-nos flores entre os cabelos, raízes no peito e ainda escutar um sussurrante Lancelot convidar-nos para a montaria entre um soberbo céu e um pasto verdejante. Como se um a um, os sentidos se organizassem, e todos juntos cantassem de novo um Hino de Vida tão distante… que a própria Primavera se nos consubstancia como um registo da eternidade.
E se amor é assim, um duplo instinto melhorado, a Cultura que ele erigiu, fez-nos tão raros, que seria desassossego e praga esquecermo-nos das suas memórias neste momento. Mas lembro-me agora deste verso de Tagore «No Coração da Primavera».
Noite de Abril.
A lâmpada arde neste meu quarto
Que a brisa do Sul
Enche suavemente
O meu vestido é azul como o pescoço de um pavão,
E o manto verde como a erva nova.
Sentada no chão, perto da janela, olho a rua deserta….
Passa a noite escura e não me esqueço de cantar:
– Sou eu, caminhante sem esperança.
sou eu.

26 Abr 2016

A sinopse dos dias

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ais atentados, mais Trump, mais e menos dinheiro, mais nada, mais isto, e nada do que possa ser aquilo, mais polícias, mais ladrões, uma chuva amena, e um vento forte, mais nada parece acontecer. Que este acontecer não é nada, dado que cada um no seu posto de comando nada faz acontecer para além de se inteirar que existiram aquelas coisas, com as quais se convive sem mais, e nos vamos adaptamos sem menos.
Olhada assim, esta nossa condição cumpre sem dúvida a ausência confessional de um padre e dispensa um psicólogo. Nada que possa motivar mais que uma interjeição e, simultaneamente, o alívio de não termos estado em certos lugares. Efectivamente é um alívio! E é tanto mais aliviador se pensarmos que a Primavera está aqui e para terror já basta, ou bastou, o frio Inverno. Aqui, dado que o mundo é grande, e há muitas Primaveras: até árabes, que fizeram florescer aquelas lindas plantas que de tanto crescerem inundaram a nossa.
A bem-dizer, ninguém sabe como tratar de certos problemas. Pensa-se que pela atenção, outros pela sugestão, ainda outros, imaginem, pela repressão, mas ninguém sabe o formato de um abcesso quando lhe dá a dor inflamatória do crescimento. A vida dos europeus é esmagadoramente marcial. Não que andem a matar de forma pensada, mas por que são activos guerreiros conquistadores e, de manhã à noite, pensam em como nunca perderem a forma vitoriosa das suas vidas. Daí que cada um que trate de si, se levante, e quanto muito todos juntos, contra e a favor não se sabe de quê.
É de tal ordem um assunto problemático, que os atacantes são europeus. também, não lhes sendo reconhecido grandes méritos para tão elevada condição, mesmo assim eles podem andar entre os outros, o que define a nossa magnanimidade . Pois, mas há um instante em que de tão magnânimos ficamos longe da compreensão dos factos e, se por um lado a Europa sente no seu interior o resultado da destra forma de actuar ao longo de décadas, não é menos verdade que nunca estará preparada para aceitar o óbvio: vai lutar, tem de lutar com agentes de fora uma guerra que ela não sabe realizar.
Nós estamos habituados a guerrear uns com os outros, é aí que as guerras sobem de preito, e fazem hinos, agora desta maneira, nem que estivéssemos armados até aos dentes teríamos qualquer reacção coordenada. O que estamos a assistir é apenas a um ataque artesanal, dado que o que se lhe segue será muito mais sofisticado e aí espero que haja cientistas que tenham capacidade de resolução imediata – o que há-de vir, já não é artesanal – nem a corrida é, de polícia para homem, creio mesmo, que existe um perigo iminente e que começa o processo sofisticado de algo que nunca assistimos.
Ninguém, claro está, se sente preparado, até pela imprevisibilidade dos acontecimentos. Não sei quem dá ou tem as ordens das Centrais Nucleares, nem como se gere essa informação – os processos químicos. Sabe-se que o que se sabe, não é seguro, mas que muita coisa existe de forma prestes a eclodir.
Numa atmosfera desta natureza em que todos os equilíbrios estão de facto comprometidos, nós não cruzamos os braços e ficamos chorando nos rios da Babilónia, nós estamos ainda vivos e, seguramente, interessados em evitar o pior, que não merecemos, não fizemos, não somos responsáveis. Não sei o que despoleta este exercício de atirar contra gente indefesa, mas não me parece uma preparação de expansionismo conquistador. Estas formas estão a ser demasiado aleatórias e não se pode extrair daqui uma estrutura de preparação com resultados, a não ser o medo, e depois o conformismo de com ele lidarmos. Os estímulos vão subindo à medida que nos vamos adaptando, o grau de exigência do embate vai mudando de graduação, até por que nesta vida, tal como a concebemos, tudo é um espectáculo, um testar do limite até ultrapassarmos o grau de surpresa.
Creio que tenhamos um limite para conseguir ainda estar vivos perante as leis naturais e é por essas que me interesso neste momento, em que o ambiental pode estar sujeito a rupturas muito graves. Vamos adaptar-nos por compulsão, mas pode não haver um local estável… uma forma que nos deixe prosseguir. Foi assim que passámos um tempo de fronteira com toda a angústia, renovação, e sempre alguma secreta e profunda indignação. Dizem: e os outros? Há naturalmente a lei da empatia, aquela que faz com que nos reconheçamos no outro, por estilo de vida, locais comuns e sólidas conquistas. Mas nesta altura também exorcizam as vozes salvíficas, a de que a nossa vida ou a do vizinho mais acima, vale tanto como qualquer outra. É verdade! Mas nestas, muito próximas, estamos lá todos de forma que ainda não queremos pensar.
Há sempre especialistas que vivem do dizer, mas não do bem-dizer. Dizem o que se passou por cima das notícias factuais o que faz com que muitos se especializem na ruína aparente com ideias vãs para causas cegas e, assim, de parecer em pareceres, se ditam as sortes que já foram melhores e nos desditam os Fados. Portugal, na sua soberba generosa de patologias sociais, chega-se sempre ao invasor ou aquele que anda na “berlinda” e é vê-los direitos à Mesquita, para dizerem agora laicamente que a paz que dali vem é um bem a preservar. Ora as três Religiões, com mais focagem para o Catolicismo e Islão, são organizações, também elas, guerreiras, e mesmo o Judaísmo na sua forma actual se armou até aos dentes. mas, por uma razão bizarra, há que saber engolir todos os dislates e participar na bandeira a meia haste não vá o morto ressurgir. Este mimetismo urgente, esta quase “enrascada” situação, firma-se por má memória e décadas longas, em que o mal era sempre o menos, se nos soubéssemos aliados.
Com uma enumerada vida de banditismo dentro das instituições estatais, mais o risco de terrorismo a toda a hora – embora aqui não – por que isto e mais aquilo, somos brandos, mas não muito, a ver pelas mortes diárias dentro de casa, a sensação com que se fica é que não há fuga possível. Dentro de casa há mesmo guerras medonhas! Estamos num terreno íntimo de plena Guerra Civil dada a compasso pela degradação do estilo de vida e da dificuldade que afinal é estar junto, ou ter uma família, que essa, estranhamente é assassina. Cada vez se pode fazer menos, e ver mais, ver isto tudo como se estivéssemos num filme fantástico e nada nos sobrasse para a compostura dos dias. Ledos e quedos nos vamos mantendo, exercitando o já trazido de outras fontes e tentando rebater os dias com conclusões paradas.
Toda esta orgânica não é a do Verbo, que esse verba, reverbera, isto é a insalubridade pós-vulcânica do grunhido desenfreado face ao pavor.«Os que vão morrer te saúdam». O cerimonial dos fortes cuja morte se dissipa em tamanha ousadia, usam agora os silenciosos bombistas não tementes: perante isto, o que resta dos efeitos colaterais tão do agrado da estratégia moral? Muito pouco. Se ao menos pudéssemos compreender como há gente que faz certas coisas a um bem tutelar como a vida, talvez estivéssemos menos confusos: dizem então: -pois, não têm nada a perder! – ! Não têm?! Então e a vida que têm dentro, não se perde? E assim de argumento patético em enumeradas vocações confrangedoras, nos vamos adentrando cada dia mais em tudo, mesmo tudo, que pensáramos impossível. Talvez já haja “bunkers” preparados para fugas e muito destes milhões, que se soltaram e subitamente desapareceram, estejam agora correndo em subsolos vocacionados para a salvação dos piores. Andando nesta estrada de todos, não vimos nada, dado que todos cegaram como nos ensaios, encolhemos mansamente os ombros pensando que vai cair o casaco que veste um cadáver adiado mas que já não procria e um cansaço qualquer nos doma e atordoa.
Esta sinopse é incompleta porque vamos escrever coisas tais que corremos brevemente o risco de ser presos. Mais presos! Amordaçados. Mas não faz mal, agora é Primavera e ainda não é árabe, é a nossa Primavera, e até acabar temos de saber que há coisas e factos que são preciosos, fractais, fraccionados, mas, nós que assistimos a tanto, temos o direito de renascer por amor à estrela que nos guia.
Imolámos o Cordeiro, a Primavera é nossa, e mansamente levaremos os rebanhos para o pasto verde enquanto nos deixar a transumância destas fontes.

Destaque
Talvez já haja “bunkers” preparados para fugas e muito destes milhões, que se soltaram e subitamente desapareceram, estejam agora correndo em subsolos vocacionados para a salvação dos piores. Andando nesta estrada de todos, não vimos nada, dado que todos cegaram como nos ensaios, encolhemos mansamente os ombros pensando que vai cair o casaco que veste um cadáver adiado mas que já não procria e um cansaço qualquer nos doma e atordoa

14 Abr 2016

“O Fim” de António Patrício

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]eriam dez horas da manhã numa casa onde os gatos se movimentavam e nem sempre deslizam indeléveis por entre copos de cristal. Manhã do último dia dos Idos de Março, ventoso e lúgubre. Os gatos gostam de livros, vá-se lá saber porquê, gostam de estar nas bibliotecas em cima deles, dentro deles, é possível que gostem do contacto com o papel, mas, se formos para os ecrãs, eles são igualmente atentos e interessados. É bom ter gatos, não tanto pela delícia, mas por causa de uma frecha cósmica que não saberíamos abrir sem eles, quase sempre os seus dons nos iluminam em segundos, e assim lhes agradecemos o encanto das suas presenças.
A mesa estava lá no meio da casa, como sempre está, mas naquela manhã resolvi mudá-la, e, no centro, no coração do” banquete” devia estar há muito o livro «O Fim», de António Patrício. É certo que deixara de ver esse livro numa procura sem conclusões. Fez lembrar-me aquela frase alquímica: “e de repente, lá estava a Roda.” O Fim? Que Fim? Que quererá dizer o acaso? Nessa manhã, mais atentados, os que se esperam, os inesperados… O fim, não é certamente, é mais do que se sabe e do que não desejávamos conhecer.
Reli a peça de teatro, magistral. Encontrei-lhe novos ângulos, plataformas entendíveis e melodias internas, senti um frémito de comoção pela limpidez de descrição que antecede a tragédia, e dos sinais, vontades, decisões, que são quase equações matemáticas e nós as peças de um jogo cósmico de carácter derradeiro. Sempre premonitória e elegante, ela escalou a sua parte de tempo e veio até mim naquela manhã sombria.
A Rainha é a figura central da peça, é ela que presencia a invasão do seu país e as batalhas mortais nas ruas como uma dança de um coro grego. Uma talvez emblemática e simbólica Merkel ou uma Europa transportada por um Touro… num meio apocalíptico e demencial. Ela só tinha querido uma festa, porém. O seu ministro diz aquilo que os nossos olhos não deixam de contemplar no centro da pupila, esse negro vivo da palavra; diz assim: “Foi o nosso maior vício a esperança. Há oito dias que já não existimos, desde que os representantes dos nossos credores, reunidos em conferência internacional, o decidiram. (…) vão dar-nos mesmo um parlamento… Só não existimos… De resto, um parlamento póstumo…. comícios póstumos…”. É surpreendente como nos abeiramos vertiginosamente daqui, como se as grandes obras tivessem uma janela muito aberta para a distância do seu momento e nos aparecessem por debaixo das mesas quando anunciam a chegada. Como se nós fossemos visitados de novo no instante imponderável e dele tivéssemos à espera como de uma revelação. Creio que os seres como Patrício, deixaram no éter partículas de imortalidade, este trabalho acrescenta alma, e essa é uma conquista do que se faz, dado que animados somos todos, mas podemos esquecer-nos dela ao longo do percurso.
Por isso, esta obra que é seguida do «Diálogo na Alhambra»; é uma quase Anunciação do humilde poeta que sou, ao mestre que me dita. E no Al-Andaluz nos encontramos num diálogo: “A Alhambra agora está sob o Califado da Morte . Depois estes prodigiosos ciprestes… As laranjeiras estão em flor, p´ra que o silêncio se perfume. E enfim, ao centro a fonte morta, com as suas taças de alabastro esverdinhado, e os versos de amor que Abdallah mandou gravar. Choveu de noite. Há um pouco de água nas taças… E ainda, dizes tu: há rouxinóis. …»
É assim em tudo, natureza ou arte. O «segredo aberto» do mundo é para quem tem ouvidos de adivinho. A arte é o segredo que exprime esse segredo.
É absolutamente maravilhoso o mistério do mundo, ir buscar emoções longe pode nada resolver, é nas coisas perto que há milagres, e não só eles nos ilustram a cena como nos alertam para as coisas a acontecerem. Os ataques continuaram dia fora como uma ressonância, ou seja, os ataques tinham findado, ficou o lastro e o eco de um encadear de imagens repetidas e de uma Europa metida num túnel como os mais fantásticos filmes de ficção científica. Uma saga sem mistério e carregada de insuperável. Nós talvez não estejamos preparados para nada, e, o que vem aí, pode ser gigante. Também senti reactores… coisas… que começavam e punham fim a este sistema de ataque. Mas como o vislumbrei, é também o meu segredo.
Estamos sem dúvida que confrontados com o desconhecido e nem sempre sabemos posicionar a barca dos nossos dias de forma a garantir uma noção de perspectiva. Também é certo que há um deus sedente de sangue, o sangue apazigua este deus que ainda não é de Amor. É belo, ele preside aos ciclos transformativos, mas nós nunca nos questionámos enquanto repasto. As nossas conquistas estão firmadas em bases que passaram há muito o estado do deus teutónico.
Por estes dias Alhambra e Fim, e toda a música do Guadalquivir me sabem a laranjas e me vão cheirando a uma flor tão boa que me inebrio, por que por esta porta de Patrício, passaram as iluminações em trança dos tempos findos e idos. Idos, ainda de Março, que me trazem esta inesperada visita e que neste instante envio para aquela que fora a sua terra durante muitos anos.
Quem se encontra tem sempre um trabalho para fazer, pode fazê-lo com a certeza que um laço é um bem precioso e que« O Fim» este Fim, é a peça mais tocante para esta situação. Montherlant, escreveu a propósito de uma figura central que é exactamente uma Rainha, «La Reine Morte». Patrício, do «Pedro o Cru», nem sequer foi mencionado pelo autor francês, que não pode ter feito aquela peça sem ter consultado a sua.
Há muita coisa escondida que aparecerá na hora exacta . No tempo da sua revelação.

– Cantarola – Rainha. –
Dona Morte dorme
Dorme sossegada
Tem a foice ao lado.
Brilha de afiada…..
Dona morte dorme, dorme de mansinho
Cresce, ó erva verde Mais devagarinho.
Ó luar desliza com teus pés de neve,
Dona morte dorme.
Tem o sono leve….

12 Abr 2016

Do verbo amar

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á muitos instantes que podem inspirar para sempre as nossas vidas. Instantes como pactos gravados e por nós sentidos como se fossem presentes, dádivas. Quais altas instâncias que nos devolvem o bem que fizéramos e num relâmpago nos beneficia. Os milagres são acasos muito particulares, sem aviso prévio, nem aparente sentido, mas que na génese têm a sua razão de ser. Ao fazerem-se tais constatações somos nós também que definimos as benesses da mensagem gravada em rito. Nem sempre somos merecedores! A vida ardilosa e plena de trabalho asfixia o bom desenvolvimento de uma visão periférica dando como adquiridas as conclusões benignas. Mas nem tanto! Tudo o que está exposto ao grau da gravidade exulta em nós como queda contínua. Daí o caos permanente, a consequência errática, o labor em círculo, a não aquisição de outros “órgãos” que apenas e ainda nos estão prometidos como potências geradoras de coisas outras.
Serão então tributos? Janelas mais além? Lampejos, cintilações, assombros? Serão talvez lembranças e recados, antevisões, merecimentos? Talvez isso tudo e um pouco mais. Possivelmente uma aritmética composta de subtis harmonias que se revela plataforma de um entendimento maior e nem sempre mesurável com o dom dos sentidos e da razão. Por que há efectivamente muita coisa que não sabemos de nós mesmos, e muitos de nós, gostaríamos para sempre desconhecer. Sabemo-nos falíveis, frágeis, ingratos, soberbos, tristes, incompreendidos, machucados, mas nunca sabemos até onde vai o dom de ser. A opacidade criou no Homem grutas de invisíveis recortes, cavernas de obscuridade, lesões da anima, e a alma não é um levante, trazemo-la até merecermos um sopro de incondicional amor que dentro das batalhas funciona como talismã. Se a Terra é cada vez mais igual, já o Homem é cada vez mais diferente. Muitos vivem no substracto da primeira essência como se de taumaturgos e lapas metabólicas de grandes quaternários se tratasse. Têm ardentes fomes, e desejos tamanhos, que não existe universo que os mantenha saciados. Outros, porém, renunciam, como se tivessem escalado o fardo de uma primeira etapa e fossem por umas escadas, tão altas como as de Jacob, que num sopro sonâmbulo, viu agitarem-se os que iam e os que vinham, numa dança imparável de Eternos Retornos. Outros, ainda, desenvolveram qualidades mediúnicas, outros geométricas, outros fixas, outros móveis. A Terra é regular, ao lado deste filho que não sustém a sua órbita. Uns são areia e magna, outros pedra e diamante, outros doença hereditária, outros, invencíveis.
Mas há de facto os encontros. Encontros raiados de magia, de sagrado, que magicar nunca será o mesmo que consagrar (aqui, as palavras querem dizer coisas e não a mera técnica do exercício da escrita) que de tão preciosos, são remetidos e processados para um local, outro local. Há partes que se procuram como derivas de continentes que se encaixam, formas que se buscam, que têm saudades, nunca se sabendo como defini-las. Um puro momento alquímico pode encarnar naquilo que os olhos serão efectivamente os últimos a ver. Sabemos como os amantes se cansam da vida, a vida nunca é amante, a vida é mordaça, é ferida. Um impulso de rotinas, de grandes ciclos cansados, de partes massacrantes, de zonas viciadas, com tantas fantasias de felicidade quantas as desilusões. A nossa mente construiu o espectro da Felicidade, esse cenário invisível por onde ninguém passa e todos se esforçam por parecer habitá-lo, danificando-nos.
Talvez seja por isso que no puro amor existe a única realidade possível, aquele acontecimento em que forjamos a nossa consciência humana transfigurada. Não é preciso sonhá-lo. Ele, a haver, manifestar-se-á. Também não parece emplumado nem ataviado de coisas, é fresco como as sombras- como a frescura das sombras- melhor dizendo, porque nos é desconhecido e temos de o viver com as túnicas do repouso. Quanto mais elaborada é a mente humana mais amorosa se torna a sua prática, é um tecido alvíssimo composto de um requinte tal, que nenhuma filigrana se lhe iguala. Nos interstícios tem a lucidez da mente e algo de tão perdoável que faz dos amorosos, aqueles grandes seres parados.
Quando estamos perto sentimos-lhe o aroma, a dimensão sagrada, o dom maior, a bonança interna como um lago de luz… sentimos algo que milagrosamente nos harmoniza e orienta deixando para trás o entulho das defesas e o massacre dos sentidos. Estamos num campo abençoado! Manter tal situação como rotina exige entrega, exercício constante e ordem. Encontrar alguém nesta viagem ainda é mais bonito… é como a certeza de que fomos contemplados. Dizia Safo: «Vedado é o choro na casa de um poeta, nunca um tal pesar se apartará de nós». Entrar com botas cardadas nestes antros pode provocar catástrofes naturais, desabamentos de terra, chuvas incontroláveis e mudar alguma coisa no equilíbrio das forças naturais. Os muito amados nem sempre são os mais prováveis, mas, talvez os mais protegidos, os mais férteis em produzir reacções, e se de fora vierem agrestes, o fora que são se transformará na insolvência dos seus dias. Aliás, a Fé e o Amor, são a mesma gema de um Ovo duplo.
Não se deve dar às sensações e aos sentimentos o epíteto de Amor, seria reduzi-lo a uma escala natural. Ora o Amor não é natural dado o seu carácter absolutamente excepcional. Está fora ainda da regra, não sendo contudo um desregramento. É uma simplicidade que enlouquece.
Portugal é um país onde não se sonha, onde o amor é uma caricatura de um gemido fadista, de um passional informe, e onde até a palavra em si se fez tabu. Não sei o que buscam os poetas nem esta literatura descarnada, talvez dizer qualquer coisa que nem eles, nem ninguém entende. É uma vingança apelidar de poetas estes seres, cogumelos, a vingança contra o Poeta. A descrença democrática perante o seu labor, a usura mais ingénua, a indecência mais indecorosa, atacou as suas bases: «Para que serve afinal um poeta em termos de indigência?» já Holderlin perguntava. Eu acho que para nada, mesmo para nada. Mas, há um hiato aberto no tempo: os poetas servem para aperfeiçoar o Amor, não para o descobrirem, porque o Amor não se desoculta, mas pode ser visitado: “o amor que sinto por ti, é uma chama que ilumina a penumbra do que sou; a mão do Amor corrige a natureza”, Elizabeht Browning, in Sonetos Portugueses. São sonetos na bela forma Camoniana que dedicou àquele que viria a ser seu marido o também poeta Robert Browning. E diria mais: “pois que toda a lira, desde que é tocada por mão de mestre, é boa. E ser amada de um grande coração é ter valor.”
Todo o valor do Amor é ser amor, mais nada. E nada o legitima mais que a própria inocência, a sua natureza alada, o seu enlace de matizes, a sua voz que chama e um ouvido atento à sua doce mensagem. Tudo desaparecerá e arrefecerá um dia, menos o amor que num tubo de ensaio irá intacto para o lugar de onde emanou, e aí, todos os nomes dos Amantes serão por fim revelados.
Os amantes são as peças de um corpo incompleto, aqueles que liga a deidade aos canais da existência, nem sempre são as certas todas as formas de amor buscadas, mas são para nós as derivas de uma lembrança. Enquanto ele não chegar, a nossa vida também não nasceu.
Por muitas vidas erraticamente o iremos buscar, até desvivermos nele toda a eternidade merecida. Porque, afinal, ele é merecimento. Conquista da luz sobre a obscura forma aceite, talvez mesmo o que contemplámos no fundo da nossa eternidade.
Para compensar a fome temos a finança, para alargar as vistas os grandes horizontes, para saborear, os repastos, mas para amar não há ninguém. Ninguém que tivéssemos encontrado com esse dom, porque os dons se vão quando deixamos de os contemplar, ou até de acreditar neles.
Creio no “cadáver adiado que procria” no equilibrado sentido das funções e essa certeza não me dá nada. As certezas são as coisas mais terríveis que inventamos. São espectros.
Ninguém procura a morte, dado que nos está ainda reservada como certeza, ninguém ama a certeza. Certos de tantos efeitos, desfazemos longamente os véus destes teares que nos parecem defesas para tanta insatisfação. Porém, e como diria Catarina de Médicis em pleno massacre da Noite de São Bartolomeu, “haverá um dia em que o Homem será amigo de outro Homem.”
Sem dúvida! No tempo do Amor.

11 Abr 2016

O Clube dos Poetas Mortos

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]este sem dúvida um belo filme, mas a particularidade é que ele gira em torno do poeta Walt Whitman, desde a sala de aula com a sua fotografia de fundo, imagem tutelar, bem como o que domina depois o espírito do filme, o poema magnífico de «Oh, Captain, my Captain» para nós, toda aquela insubordinação e camaradagem perante uma austera estrutura nos traz particularmente à memória outros Capitães. Aqueles de uma manhã que bem poderia ser um poema de Whitman. Tal como no filme, os capitães abandonam o palco onde nasceram punhados de coisas incríveis e, convidados a sair, existirão contudo alguns soldados que se levantarão prestando-lhes a homenagem merecida, os outros, nem tanto, entrando em silêncio no ritmo das coisas interrompidas, e o poema agora, começa a fazer real sentido, como de uma antevisão o poeta nos falasse.

O meu Capitão não responde, os seus lábios estão pálidos e imóveis.
O navio ancorou são e salvo a viagem terminou e está concluída.
Mas eu com passo desolado caminho no convés onde jaz meu Capitão.
Tombado, frio e morto.

Este poema é quase um alegoria a todo um tecido social, é uma visão precisa, belíssima, e traz em si a morte do poeta, do capitão. Whitman fora jornalista e ensaísta também, em seu tempo, e considerado o pai do verso livre, a sua obra está centrada em «Leaves of Grass» havendo dela várias edições com acrescentos numa mesma colectânea. Fernando Pessoa teceu-lhe várias homenagens dizendo que a sua poesia influenciou toda a posterior, e sem dúvida a sua própria, referindo-se à sua verve como um profundo hino à vida. Portanto, Witman é também um pioneiro, um poeta que se destaca por uma liberdade que ajuda a libertar os seus pares. Nunca esteve parado numa vida alegadamente susceptível ou contemplativa, foi um guerreiro, trabalhando para o exército como voluntário em hospitais militares, mas toda a compilação de « Leaves of Grass» agora com novos poemas acerca da Guerra Civil e da sua experiência, valeram-lhe um despedimento por indecência da parte do Departamento do interior. A partir de aqui, segue a sua pobreza que alguns admiradores e amigos tentam colmatar.

A vida deste “Capitão” é a de um poeta, acrescentando páginas a um livro, pois que um poema nunca está concluído , tendo sempre sínteses fantásticas de um mesmo nomear. Estamos numa trincheira, num vapor violeta que não sucumbe ao ultraje numa maré viva de bem conduzir a Barca, numa realização suprema. Sem estes acrescentos, sem esta caminhada de um percurso constante, não há comando possível, dado que as viagens, não raro distraem o viajante acerca do propósito inicial, e muitos vêm morrer à praia contemplando o horizonte por que nada tinham a dizer. Mesmo Ulisses na sua permanência pela Ilha Encantada, não se esquecera de Penélope, pois que há homens como sonhos e heróis como poetas.

Salgueiro Maia, foi arquetipicamente este Capitão, e por isso, devemos alguma reflexão aos mitos de natureza poética, dado que eles representam os Homens e sagram vencedora aquilo a que apelidamos de Humanidade. Talvez as manhãs nubladas tragam o «Desejado» que depois de materializado é esquecido, como as próprias nuvens e os sonhos. Os Clubes, mantemo-los, para que nos oiçam para fora do tempo como uma invocação, um treino, uma vontade. Com mais tempo, ter-lhe-íamos dado uma forma mais precisa, mas, há tempos que não se interligam, nem andam pela mão nas coisas correntes.

Nos socalcos que transpomos e nas vidas que habitamos, faltam-nos os Cânticos e o «Cântico de mim mesmo» um Juan de La Cruz, um Salomão…. Falta-nos de novo entrar neste segredo imenso onde só os Clubes se distinguem à revelia das escutas em surdina de uma forma gasta. E, por que os Capitães são jovens e o grupo um núcleo de um coração para todos, o próprio Witman nos diz:

Oh, instante da juventude! Elasticidade infatigável!
Oh, equilibrada virilidade, florida e plena.

para depois:

Velhice soberana que desponta! Bem-vinda sejas, inefável graça dos dias que morrem!

A nossa seiva já não tem a mesma sede, a nossa guerra não tem já inimigos, o nosso tempo contempla a sorte de termos vivido o momento de um rito que um Clube de homens parecidos a Aquiles nos fizeram viver num poema em carne viva. Perante factos assim, não se deve julgar, há coisas que acontecem como dádivas, instantes de amor. Julgar, é não compreender. Depois, não somos juízes, e esta é de facto para muitos uma causa alheia.

Comum, têm-se as ideias, as formas de vida, os ritmos quotidianos, alguns pequenos Clubes e uma língua que se esforça, de incomum, temos aqueles que são incomuns, que nos lembram algo que quando estamos tentados a esquecer, renasce, para nos relembrar:

Um chamamento no meio da multidão
É a minha própria voz, avassaladora e final.

Temos medo, sim, de ter afugentado estas sedes, estas fomes, estas forças, que elas por descaso e tristeza se tenham afastado de nós, temos vazios tão duros como balas, e uma paz que se sustem só em conforto, temos medo, muito medo, pois que sabemos que ultrapassámos um limite onde podemos vir a não ser contemplados. Por isso, se os invocarmos, estamos a nomear os caminhos por onde eles retornarão. Ficar sem a sua presença é pior que tudo e o nosso esforço nunca será recompensado se não tivermos acesso a uma pequena fimbria dos seus “Clubes.”
Eles também vêm para o Banquete.

Um Banquete vivo de uma temporada que nos galvanizará para sempre.

A ti, peito que apertas outro peito!
A ti, emaranhada sebe de cabeça, barba e músculo!
Gotejante seiva de ácer! Fibra de trigo viril, a vós!
A vós, ventos que me roçais com vossos genitais!
A vós, amplos campos musculares, ramos de azinheira vadiando amorosamente nos meandros dos meus caminhos.

5 Abr 2016

Idos de Março

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]inha razão César ao temer o ano 44, naquela tarde de 15 de Março sucumbia assassinado por Brutus. Também os Cátaros uns séculos após desceriam de Montségur, os últimos resistentes desta heresia tão especial que dera origem aos chamados «Homens Bons» e que no seu Maniqueísmo ajudara a uma civilização melhorada na região do Languedoc. Cá em baixo esperava-os a fogueira. Era a manhã de 16 de Março, de 1244. Pouco tempo depois, Jacques de Molay, o vigésimo terceiro Grão-Mestre da Ordem Templária, nascido exactamente no mesmo dia da extinção cátara, acabaria numa tarde de 18 de Março do ano de 1314, também ele na fogueira, depois dos anátemas que desferiu no Papa Clemente e no rei Filipe o Belo. Anátemas com carácter de maldição já que no espaço de um ano ambos morreriam e o malefício acompanhara os reis de França. Simão Botelho parte para o desterro nessa manhã de 17 de Março… A viagem para a morte em pleno mar e o amor estranho de Mariana…
De facto, os Romanos sempre temeram os cinco últimos dias que antecediam a Primavera. Muitos se fechavam em casa para escapar a tão nefasto instante. Os últimos dias do Inverno têm presenças assombrosas como se uma janela desse para o sublime, a dor, e o terror, emblematicamente na cúspide de Peixes, a casa zodiacal da memória universal, parece sim, que se abrem as portas para o improvável habitado. Podemos viver este tempo como uma anunciação de nós em vidas múltiplas, um resgate de todas as vidas que trazemos vindas, uma memória intercalada de estímulos antigos ligados ao sacrifício e a uma liberdade inesperada. Todo o tecido deste tempo nos atira para uma saudade de antanho, mas também para algo que estava oculto em nós. A morte aparece-nos como a mais estranha das missões e não raro sentimos que ela é uma passagem grandiosa, e dizer adeus uma manifestação poética como jamais tínhamos imaginado. Os que ficam nem sempre têm a sensação da forma mudada, da grande alquimia, pois que nos vamos formando nas horas seguintes e nas formas activas dos dias, mas, a neblina de uma vaga sensação de um tempo diferente, nos habita. 31316P19T1
Não só Simão Botelho parte para o desterro como o próprio Camilo nasceu nesse dia, não sei até que ponto ele nos quer dizer de si na imagem de Simão. Sabemos da sua índole complexa, anticonvencional e algo belicosa, da sua imensa necessidade de afecto e de paixão, de uma vida passada nos limites do admitido e com toda a carga de desvio e penas. A sua natureza típica de um romântico não foi indiferente a este personagem trágico que se debatia com uma dualidade amorosa e uma imensa lealdade para com o seu grande amor, este tempo de absorção entre a partida e o nascer, entre a personagem e a sua própria, ocupa hoje o dia toda em reflexões, diria até, que extemporâneas.
Mas neste dimensionar está a vida daqueles que viveram no limite, dos que porventura chegaram a um mundo onde a ideia fora mais de partida para um desterro do qual só as águas afogariam na sua imensidão de destino. Vemos como a febril herança de um escritor se nos alucina e perturba, como aquela vertigem foi grandiosa, também, como todos os resultados foram válidos e trabalhosos, como se chegou à cegueira e se contorceu a vida numa alma que não tinha mais razão de viver. Os seus olhos viram a tragédia que a própria vida não foi capaz de suster. Ninguém morre porque quer, morre-se por falência e desistência, morre-se por condição. E a de um homem a quem lhe é amputada a vida, esta poder-se-á revelar-se uma jaula de infortúnios. Essa decisão não é um pedido, ninguém pede a outro tal trabalho se ainda lhe for dado discernimento para o efectuar. Ninguém convoca outro para assassino, sobretudo um poeta, um escritor, um homem livre. Não vejo Antero, Camilo, Espanca, Sá-Carneiro, pedirem para os matarem. Eles, não pedem, eles exercem a força do destino. Esta diferença faz a distinção da tão discutida Eutanásia. Estes são os dias que nos informam da natureza trágica do Homem, e quando tocamos nessa fímbria não nos é dado discutir formas nem comandar outros para resoluções tamanhas, estamos face ao desconhecido, a um processo de transformação que desagua numa surpreendente vitória.
Horderlin, o poeta dos poetas, nasceu a vinte de Março. O seu espectro, a sua natureza, eram a de um ser assaltado pela beleza, pela transparência das coisas sublimes, porém a sua vida foi metade passada nas sombras da loucura que não notara e que imprimiu com voz de arauto. Todas as coisas prodigiosas morrem e nascem neste ciclo dos Idos de Março e nós limpamos uma a uma as nossas quentes lágrimas porque o Sublime é triste e a Beleza também. Como se fosse uma ferida o tempo se desnuda e nos mostra o que não vimos em outros momentos, e a Graça é o « Dom das Lágrimas» as oblatas da antiga liturgia cristã o refúgio de uma salvação. «Vacilas por ternura Deus omnipotente da pedra fonte da água viva rompeste a um povo sedento retira da nossa dureza a compunção das lágrimas longo pranto por nossos pecados concede pois vendo-nos assim te compadeces e obtemos remissão» .
É uma digna forma de estarmos preparados, este suor das nossas entranhas, por que os Idos de Março são de facto os que nos arrancam da flama da nossa carne o mais comovente de nós, esta passagem pelo lago prateado e pelas dores que param, porque passada a dor, todo o Universo é um canto grave de uma doce e funda tristeza. Estamos abertos para o imensurável mistério de Deus, e ao focar a existência de Jesus no signo dos Peixes, damos-lhe as qualidades deste momento cósmico, como se nestes dias fosse ele o nascituro.
Lembro-me da cascata de poetas que em Março de 1993 morreram no espaço de uma semana nestes Idos, e nem por isso a memória se me torna tormentosa, eles partiram na sua fase de expressão superior, e todo o homem animado, que tem de facto uma alma, convoca os outros para a partida e juntos vão numa saga que a nós ainda não nos é dado compreender. Creio na santidade do propósito bem como no invulgar poder da invocação. Ninguém morre só, quando foi habitado por certos elementos : o Universo conspira na sua deidade e força o encontro entre pares. Assim nós, que deste lado do vitral fugimos aos sonhos e nos adensamos num real imposto, possamos um dia chegar a eles de forma transparente. Estes são os Idos de Março, os mais assombrosos e transcendentais, e ninguém que tem um destino escapa indelével que seja ao seu tão inigualável encontro.
E terminam neste lago:

Dignai-vos dar em abundância
Luz da inteligência verdadeira a estes submissos servos
Lágrimas aos olhos
Contrição ao coração
Até que purificados do actual luto e da tristeza espiritual
Da morte eterna nos afastemos como de uma ruína.

31 Mar 2016

Quarta-feira de cinzas

Porque eu sei que o tempo É sempre o tempo
E o lugar É sempre e apenas o lugar
E o que É real É real apenas por uma vez
E apenas para um lugar
Regozijo-me que as coisas sejam como são e
Renuncio ao rosto abençoado
T S Eliot, in Quarta-feira de Cinzas

[dropcap]H[/dropcap]oje é um dia especial na liturgia católica mas não será exactamente isso que inspira este instante, ou seja, é isso, dez, como o decálogo dos mandamentos , mas sim o poema de T. S. Elliot, exactamente chamado «Quarta-feira de Cinzas», um poema tutelar que abarca a Cultura Ocidental, feito por um poeta que bem pode estar ao lado dos profetas, pois que é demasiado fascinante para ser abordado sem uma profunda experiência do mundo. Este poema, que faz parte das células do imaginário, tem, claro está, num dia assim mais sentido. Vive-se nele o dia todo e quase a primeira essência se dissipa sem contudo nos dissociarmos face ao que o poeta dele instituiu. Entra-se num momento que nos reporta ao número quarenta, a Quaresma, a quarentena, uma passagem de dias, de anos, como forma de abordar ciclos vitais, tanto pode ser um poema elegíaco como um metadiscurso entre leituras comparadas.

“Porque eu não espero voltar
Porque eu não espero
Porque eu não espero conhecer de novo a glória frágil da hora concreta.”

O Livro de Ezequiel – 37- dá-nos a tónica do poema em ossos, os ossos daqueles que retornam à vida e fazem parte do corpo de um povo naquela planície de ossos onde um sopro lhes dá a vida nova em corpo e forma. O profeta Elias, subjugado por tristezas várias, pede para morrer debaixo de um zimbro e a cena é marejada de sofrimento e dor, como uma implorante profecia na linguagem do poeta:

“Debaixo de um zimbro os ossos cantavam dispersos e brilhantes, regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros, debaixo de uma árvore à friagem do dia, com a bênção da areia esquecidos de si próprios e uns dos outros, unidos, na quietude do deserto. Esta é a terra que tu partilharás em lotes. Recebemos a nossa herança”

É toda a estranheza do verbo que com o sopro se faz carne e mora nos Homens que aqui se bem diz e elucida. Já não podendo mais, Elias fora arrebatado por um carro de fogo e não mais voltou àquele local. Ainda hoje é esperado com entusiasmo e fé por aqueles que crêem que o desaparecimento faz parte do plano dos que não aguentando são, por forças divinas, arrebatados da sua desdita: pois que “eu não espero voltar, porque eu não espero”. Mas nós esperamo-lo! – Elias… Elias… Ele fala com Elias. – Na fronteira, Elias fala ainda aos que estão na linhagem desta imensa história de não retorno.

O poema levanta contudo muitas perturbações, e até formas nunca reveladas pelo poeta, pois que Eliot era parco a fornecer explicações da sua obra, na medida em que nada de conclusivo se pode tirar de um texto que passa em muito o factor surpresa, de uma voragem feita por leopardos na friagem do dia que se alimentavam até à saciedade de pernas, de coração e de fígados, daí os ossos, daí aquela necrópole improvável. Se fôramos cera, arderíamos apenas, mas este comerem-nos até à saciedade levanta o problema de termos sido ultrapassados nas leis não naturais. «Este é o meu corpo, comei e bebei». Nós estaremos nesse alimento de que se alimenta o poema e da minha vida ficará o tributo a um bem que todos podem partilhar, por isso o roteiro de jejuns que o próprio dia fornece, para lembrar os que têm fome e da nossa mortalidade em cinzas.

Aparece uma Senhora no poema – senhora dos silêncios calma e perturbada dilacerada e ilesa preocupada em repousa a Rosa única que era agora o Jardim – jardim esse, onde todo o amor finda terminado o tormento do amor insaciado e ainda o tormento maior do amor saciado fim do infindável, jornada para parte alguma conclusão de tudo o que é inconcludente

… Graças à Mãe pelo jardim onde todo o amor finda. Quem finda nesta voragem e o quê? Oh, meu Povo, que fiz eu de Ti? O que é isto de tão arrepiante mente ilusório, de tão assombrosamente maternal? Esta abundância de estranheza não dá para definir nem um Reino nem um Povo nem um Poeta nem um Profeta, mas as datas continuam charneiras a este tecido.

Comecemos numa indigestão de coisas articuladas pois que ao princípio da divindade subjaz a grande fúria. Aqui, neste poema, a grande deidade não está em paz, nem morre de fastio, pois que usa a vida como alimento e nutre-se de si mesma. Não será afinal este efeito maior o que faz de Eliot o enigma desta quarta-feira?

Já em «Terra sem vida» ele fala com as pedras e o mesmo povo devorado e que se articula com carnes nos ossos, faz as pedras brotarem água pela vara de Moisés. Talvez isto explique que não há poeta sem esta imensa área de mergulho na sua história civilizacional e tudo o que se faz à revelia deste caminho acabe inexoravelmente morto e invertebrado. Aquelas pedras são gotas de água. Tudo neste poeta está sempre por dizer, pois ele disse aquilo que ninguém sabe da sua própria Cultura. Eles vêm dizer-nos que se não for por estes passos que nos dilaceram por vezes os sentidos os poetas não têm razão de se apelidar assim e que quando eles desaparecem o mundo estará tão perdido que as rotas se transformarão em vãos desígnios de vociferação indistinta.

Nascido no ano de Fernando Pessoa, ambos trilharam caminhos que nos colocam agora neste dia em face do seu mistério. Tudo aconteceu para que sejam eles a revisitar na sua ânsia de não perder o fio de prumo à espectacular forma da natureza humana.

Há quem não queira mais, sim, e implore sair, e quem queira tudo e nada implore. Há os pacíficos que transbordam de tédio e os enaltecidos que usurpam os lugares que habilmente a indigência preparou, conquanto, se houver ainda um roteiro que nos transcenda, as coisas e até os ossos terão no tempo o seu lugar.

Não mais voltar ao local de um crime, mas os criminosos voltam sempre. É por isso que os seus crimes não compensam, dado que a segurança dos predadores é também a sua derrota. Quem não quer voltar sabe que fez o melhor e se for arrebatado é porque não se extinguiu no asfalto onde todo o sonho morre e a lembrança de que um deus não é a palavra que o designa, mas algo mais que convém estar atento, não vá o manto do nada apanhar-nos neste lugar sem força para implorar uma saída.

São os quarenta anos, e os quarenta dias e as quarentenas dos que andam a somar dias aos seus inesgotáveis esforços, mas a força aplica-se só, e somente, onde houver uma pedra, um osso, uma estrutura. E sem os nossos colossos e palmares de sonho e colunas, nada deste dia restaria se não a cinza de uma lembrança que julgáramos morta pela vitória de uma razão que afinal, está muito aquém de fazer um poema como este.

26 Fev 2016

A dez quilómetros da Via Láctea

Enquanto andamos entre escolhos e danças, terras e mares, culturas e ideias, paraísos e bonanças, a Terra tem sessenta e dois homens que acumulam mais riqueza que metade da Humanidade. É de facto exemplificativo do que é, e para que serve uma tal Sociedade Humana: ode aos Vencedores, ode aos Ogres, aos que arrebatam tudo aquilo que algures nos ensinaram ser devido a todos. É mais que provável que toda a moral esteja errada e toda a base que permitiu vir até aqui não tenha vencido a primeira condição. Pensando bem, é melhor poucos e bons, melhor rico que pobre, melhor ter que parecer e reduzir o número de eleitos porque os gáudios são de chumbo e os frutos pesados.
Face àquilo que conhecemos de tal espécie não se encontram motivos de deslumbre, nem uma razão explícita que nos faça amar-nos mais uns aos outros do que a qualquer outra coisa, até podemos acertar tal disfunção pelo Livro do Apocalipse: – se alguém aumentar alguma coisa, Deus lhe aumentará os flagelos, bem como se alguém retirar palavras deste livro profético, Deus lhe retirará a parte que tem na árvore da Vida – não vou mais tirar daqui o que quer que seja, na certeza porém que o aumento dos flagelos, mais a minha parte retirada mesmo agora da Árvore da Vida, contribuam para fazer o Universo mais harmónico. Olhado assim, o mundo remete-nos para os Contos de Fadas e os seus Ogres e até, psicanaliticamente, imagine-se a forma que esta tem nestes estudos, afirma isto: – sinto muito, mas os pobres são maus – aquando do menino da Floresta cujos pais o abandonam e ele espalhando migalhas de pão perde o rasto porque os pássaros o comem, o que faz dos desgraçados pessoas duplamente punidas.
É certo que dos felizes não reza a história, muito menos dos muitos pobres, então o que é preciso para se ser o sexagésimo terceiro? Um bom argumento para analisarmos e tentar, como com os Jogos da Santa Casa… Fixemo-nos nestas sessenta e duas deidades que armazenam o Festim de que é feito o Mundo com seus batalhões de matéria viva prestes a tudo devorar: Que comerão eles? Que presas? Como amam? (depois de Cardeal, já não se acredita em Deus) Terão contactos com extraterrestres?
Há mecanismos cuja complexidade nos remete para o Velho Urizen, aquele deus tão bem descrito por William Blake, afastado do mundo indiviso e que acabará por ver consumado o perpétuo isolamento do seu estado, dessa unidade original que fora a plenitude divina, pois que a matéria é já algo distante das origens o que faz da riqueza, vista por este prisma, um grau de distúrbio máximo que tende a colapsar nos seus próprios limites de sustentabilidade. Ouvimos isto tudo que nos dizem como informação, e nesta transmissão, se pode aferir da imensa irracionalidade vivente. Nem a Rússia Czarista, pré-bolchevique, criou tais fossos, nem mesmo as antigas sociedades feudais, o assalariado de hoje está em proporção no mesmo grau de pobreza.
«Para sermos felizes vivamos escondidos», sem dúvida, é um adágio. Para comanda há que ter perspectiva, olhar tudo como que à distância de um Campeonato de Jogos Florais, uma excessiva intimidade impede o lúdico, arma secreta para a angariação do sucesso e toda a ideia precisa de espaço para fazer de um grupo um resultado pretendido. Creio que já não ando longe de ver nascer o homem cibernético feito à imagem e semelhança do Homem porque nós, os que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, parecemos não ter resultado.
É por estas evidências que não se pode levar a sério, nem ter esperança na Economia enquanto emblema social de recurso a tudo. Se ela fosse uma actividade inteligente, ou quanto muito, organizativa, estávamos em outras estatísticas com resultados bem diferentes. É neste monstro, no entanto, que a Humanidade deposita toda a sua fé ou aquilo que dela restou, a sua inquietação, e faz dos seus dias realidades menores.
Neste século, já quase nos aproximamos da leitura visionária do real, por isso falei de Urizen, do uno para o múltiplo, do indiviso ao fragmentário, do sincrético ao analítico, da eternidade ao tempo, pois este rosto voraz, inicialmente infanticida, coloca um tampão de pedra e diz: – Agora sou eu o deus para toda a eternidade! – Este demiurgo vazio e raivoso selou pela impertinência a Terra, para nela formar o tempo e ser o Deus inexpugnável. É um mito cosmogónico. Ele vai isolar o que o Uno tinha unido numa mundividência romântica, ele isola e reina. Assim estamos hoje, agora, aqui, neste inabalável princípio sem que possamos ter a brecha de saída do circuito É um Laboratório de fazedores de espectros, que reproduz uma causa assustadora.
“… e ele viu a Fêmea e condoeu-se; estreitou-a; ela chorava, esquiva;
entregue a um prazer cruel, perverso, ela escapava ao abraço que teimava persegui-la.
tremeu a Eternidade, ao contemplar o Homem a procriar a sua imagem.
Na sua própria carne dividida. ”
A Civilização, ela, a Fêmea, está como que paralisada no fim do tempo cósmico, é o que quer dizer este número. Por vezes, os números das Bestas não são aqueles esperados, ao fazerem-nos olhar para um ponto esquecemos contar as várias perspectivas. O que poderá vir desta escalada ainda não sabemos, até porque se lhe acrescentarmos o dobro, teremos então cento e vinte e quatro homens mais ricos do que toda a população mundial. Sabemos que a lei da voragem subjaz a todo o elemento vivo, e, que a fragilidade do ter, só mesmo comparado ao efémero do viver, que mau grado a expectativa de tantos, somos menos melhorados do que supúnhamos, mas, que um grande momento, talvez mudança, tão necessária quanto urgente na equação da Terra se terá de demonstrar. Sabemos bem dentro de nós que passámos uma meta e não sabemos designá-la dado que é fluida… mas ela vive em nós como um barco naufragado. Queria poder pensar que tudo isto é roda e fim e começo… não sei, creio que nada vai ficar como prevíramos e que se tivermos ainda tempo há que avançar muito mais do que era esperado de seres tão rudimentares.
Esta nem notícia é, em última instância é uma constatação um aviso, um alarme, que soa como uma evidência, um clamor de guerra. Admitir tal realidade é uma prova irrevogável de que tudo falhou.
Só que estamos a dez quilómetros da Via Láctea e, a menos que não saibamos voar, só aqui ficamos se não houver da nossa parte vontade para que nos transplantem para um outro lado, onde se volte a repor uma certa harmonia, e cuja gravidade nos vote ao esquecimento desta época, deste ainda permanecer.

11 Fev 2016

Urbi et Orbi

Os povos cansaram-se das eleições um pouco por todo o lado na Europa numa massiva desconsideração pela forma de se fazerem representar. Isto quer dizer que os actuais sistemas estão disfuncionais face à sua razão de existir e que o facto de estarem a colapsar não vai assegurar, como é óbvio, a sua legitimidade: não sabemos para onde se dirige a marcha mas à medida que a farsa se contempla a si mesma, intuímos o fim dela, e esta sensação não é boa. Há uma manutenção de moribundo que culmina com a saúde do morto no dia das eleições.
O que falhou? Isso são abordagens mais amplas, como as sociológicas, históricas, filosóficas , mesmo, para as pessoas, neste estado ainda do seu desenvolvimento, elas apenas processam a auto-sustentação das suas vidas intranquilas que as impede de indagar o seu instante como um argumento urgente para a sua continuidade. Também não creio que estejamos em processo reformativo, tudo o que foi mudando, talvez seja tanto, que o que ficou não possa ser reformulado… Os fluxos migratórios parecem diques… inundações, toda esta geopolítica é muito fluída e não temos uma ideia clara do que venha a ser o futuro imediato. Os problemas ambientais só agora se sentem, os reflexos, as mutações… Estamos num Inverno quente e cinzento… o calor é tão estranho quanto a nossa impreparação orgânica.
Lidamos quotidianamente com uma dimensão pouco habitável, difícil, onde temos de adaptar os nossos organismos à imprevisibilidade reinante como jamais nos fora exigido no vasto programa das idiossincrasias cósmicas e naturais. Estamos naturalmente acossados dentro de um prisma que sentimos irrespirável, pondo a funcionar o sentido de uma “guelra” antiga pois não tarda a emagrecerem as costas e a subirem os mares numa conquista que tanto pode ser continuada como abrupta. O ciclo luarento que ditou a ganância, a usura, a fome contínua, essa febre do útero infernal, está como paralisado ou então a fome mudou. Nem tudo é já para “comer”; rodamos esta ampulheta e nada, quase, já se pode comer. Ou a fome é mesmo outra coisa que já não quer dizer nada acerca dos fundamentos do ciclo alimentício do passado ou tudo isto poderá, como disse, acabar de vez de forma abrupta ou descontinuada, como agora está tão em voga quando querem acabar com um produto, deixando-o existir até à sua falência.
Estas designações verbais, aliás, também não são inocentes, já que como todos sabemos não há signos assim e a linguagem é a sinalética menos inocente que temos. Olhar agora para o mundo com as prerrogativas artesanais do ciclo da grande voragem é, quanto a isso sim, um estado de inocência, é uma mansidão que já não se coordena com a radicalidade atmosférica. Estamos dessincronizados do “habitat” em cada vez maior escala, obviamente que isto dará toda a espécie de psicoses e até de más formações congénitas. Atravessamos um deserto imenso onde cada um tem de levar a sua lanterna, porque a visão do grupo não é condutora de nenhum caminho.
Encaminhados para o leve, falemos um pouco de «Massa e Poder», o livro de Elias Canetti, que dá bem a dimensão de um mundo a ir, sem uma plataforma de devir muito clara e cujo poder se chama outra coisa. Acerca desta obra se diz: – Canetti ensina-nos que a massa não se reduz a ser um simples aspecto característico das sociedades modernas, mas que foi e continua a ser muitas outras coisas; que pode matar e ao mesmo tempo atrair; e, sobretudo, que não existe sem o seu contrapeso: o poder. À proliferação da primeira corresponde a solidão e paranóia do segundo. Há um longo epílogo no livro que se chama muito exemplificativamente «A dissolução do sobrevivente».
Fronteiras que tecem territórios móveis são sempre inquietantes. Mas não duvido que tenhamos todos que pegar em duas ou três verdades tidas por conhecidas e avançar, dado que nada se resolve voltando para trás. Como vimos, há um sistema gasto, ou cansado de ser, uma caricatura da participação, dado que metade das populações dos países se demite da sua liberdade de a usar o que não tardará a criar desconforto e ilegitimidade aos próprios eleitos. É certo que cada vez mais os seres se agrupam tentando ser eles a criar as soluções dos seus destinos, que gerir bem o mais perto é a vantagem de se conhecer o terreno e que os tratados e códigos se acham atolados de inoperância fase à magnitude da necessidade humana. Que mesmo que queiramos ver intentos passadistas nas intenções, eles também já são feitos de outra maneira e com outros pressupostos, que começa a haver um hiato entre aquilo que os mais velhos estipularam e a surpresa de não conseguirem com as mesmas práticas os mesmos resultados. A noção da equidade talvez esteja a ser sobreposta pela da igualdade, que a contempla, num justo processo acelerativo, o que faz de cada um de nós, indivíduos despertos para sair da manada ou da alcateia, sem com isso ter de ser ostracizado pelo ritual da partilha que é ainda a forma primitiva de distribuição em série.
São as leis laborais que vão ordenar o nosso espaço ambiental e fazer que tenhamos uma noção individual não programática, mas com reparações em cada novo ano. Não sei que ruptura se dará perante o estado de coisas em voga, já tão generalista quanto impróprio para se fazer ouvir. Há momentos muito reveladores que parecem não serem apenas tristes acasos, mas sim , algo de muito mais profundo que vai ser preciso abordar.
Escuso-me a qualquer pergunta dado que esta é sempre uma intromissão, mas gostaria de indagar este estado de coisas a partir desta altura que me parece tão charneira. Como se fossemos todos encetar uma longa viagem por caminhos muito pouco programáticos e que nos dissessem que é neste estado de coisas que não nos podemos esquecemos de salvar o Homem mais como acto poético do que como resolução objectiva. Há dias duros na Terra e ela muda tão rapidamente… e toda a estrutura fixa da nossa dor não passa de um acaso não visitado pela nossa inteligência que só agora irrompe em buscas de outras Catedrais.
Ao nosso redor a mudança vária, mas uma estrutura que tende a parar para a sua própria compressão num imobilismo muito denso, tal se nos apresentam agora as sociedades que num labor insuficiente procuram desesperadamente auscultar o que se passa nos interstícios daquilo que afinal obedece também ao fascínio Humano: o não saber prever o ângulo de acção mais directa.

4 Fev 2016

A memória do corpo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s sociedades são matérias em transformação constante mas com grandes reservatórios de memória condensada e enquanto à superfície avançam indemnes as ideias, o pensamento e as trocas, as suas estruturas mais pesadas encontram-se inamovíveis. São aterradoramente paradas e silenciosas, imperceptíveis para os apaixonados e aqueles que manejam os futuros, pois que não navegam jamais no oceano gentil dos entusiasmos e sabem suportar até à monotonia o ciclo biológico da vida.
Pensamento é acrescentar à realidade definida outros elementos que não estavam lá, dado que o Homem não é exactamente como a natureza: faz-se Humano, inventando-se. Andar pelo caminho do leve é já o princípio natural das sociedades, desmaterializar, tentar combater a escravidão das bolsas atávicas nessa base que não canse por tão imperecível e estática… Estamos no momento transformado e isso sente-se diante dos que marcham adiante.
Vem este primeiro prólogo a propósito das eleições presidenciais, deste entrançado de tempos que não culmina numa visão de ecrã único e tridimensional, mas num regresso de fundo que tresanda a mofo. Tal como nas operações físicas, o corpo melhora com… vamos chamar-lhes, novos ares… dado que transformações são revoluções, onde podem ser implantados órgãos novos e membros, transformando para sempre a primeira condição.
Se experimentamos uma rinoplastia, passado uns anos o septo está de novo torto na mesma direcção, o efeito dura poucos anos, só o tempo dele restruturar a sua memória, ora, olhando para isto, para o que se vai passar, quarenta anos volvidos sobre aquela “operação cirúrgica”, o organismo social capitulou: eis que vêm todos agora ainda mais veementes ocupar a cena social. Acresce mesmo que não faltam Marcelos, Senhoras de Belém e até Padres. Poder-se-ia dizer — eis um acaso — só que não o é, e numa linha muito estóica permito-me agora considerar: ordenada é a Natureza permeada de racionalidade e nós o princípio passivo que sofremos a acção de uma razão maior, o que faz com que a haver um fio condutor inquebrantável ele se deva a tal desígnio dessa memória que permeia todas as coisas. A memória que criámos de um “pathos” vai certamente marcar toda a estrutura do tema.
Por uma qualquer falha do pensamento colectivo, a Nação não tem uma sã consciência da morte, essa noção de rigor e de limite que lhe daria um sentido da prioridade — não, não deseja essa abordagem — bem como desistir dos ciclos que passaram. Somos amigos dos que se foram e não raro mantemos com eles relações de continuidade tais que é difícil saber-se onde ficam nos nossos tempos. É assim no amor, no trabalho, nos pequenos e grandes artefactos, seguros que estamos que toda esta tralha acumulada, não só é riqueza, como requerida por alguém nalgum tempo, e em qualquer lugar.
O corpo, na sua memória, não tem espaço para inovar, e uma coisa é consumir o que nos deu o progresso e outra é mudar as rotas do seu sangue. A Nação encontra-se bizarramente no mesmo lugar de há quarenta anos. Até acho que mesmo sem “Revolução” se tinha produzido pela inevitável marcha dos tempos internacionais os mesmos resultados, ou melhor, talvez até tivéssemos exactamente no mesmo lugar volvidos quarenta anos, dado que uma senhora das missões, um afilhado de um ditador e um ex-seminarista , é tudo o que sobrou para a representar.
Efectivamente não há mais, não há mais por onde escolher mas, neste mesmo lugar que de quarentena em quarentena se nos apresenta vazio, o século vinte, no início, deu sinais de ser vivo e passível de entendimento revolucionário de vanguarda, em dez anos mataram um rei e um presidente, houve «Orpheu» de Almada, Pessoa, Sá-Carneiro, existiu envolvimento que poderia ter impulsionado o futuro, mas uma avareza insaciável apossa-se de cada um e lá vem o Santo Ofício mascarado em Pide e o Povo fazer o que sempre soube de melhor: guardar a sua herança parada.
As leis físicas são alarmantes, sobretudo num local de gente frágil e medrosa pela sua condição estrutural e também pela sua fragilíssima condição social que prefere não ousar naquilo a que tem direito. Nunca esquecem o passado, mas negligenciam o presente e esquecem o futuro.
Este corpo, com estados de progresso e de avanços conseguido, o corpo que cresce, onde por vezes as pernas se tornam gigantes e saem da moldura, como disse Eugénio de Andrade, este corpo lembra-se de nós sempre pequenos e nós apenas quiséramos sair da moldura, e ficar, um pouco lá, só no coração, mas não enfiados dentro dela, e então, ele trazendo todos os ecos de antanho, meios mortos, meios arquétipos, vem dizer algo de medonho: pensaram andar, mas basicamente ainda estão parados; e queremos tirar este sangue denso que nos cobre de atraso e lei, como se arrancássemos um órgão congelado.
Devia haver um mantra que nos permitisse dizer: — Nação, nenhum de nós forçará a tua morte todos te ensinaremos a morrer, nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus.
Fomos guiados para aqui no momento em que não sonhávamos que iria entrar nas nossas vidas este sistema tão programado como os ciclos banais. E nem há que olhar mais para o que está. Tal como o Barco de Peter Pan : eu acho que já o vi este navio há muito tempo, mas nesse tempo eu era feliz.
Fatigantes e atormentadas provas nos trazem invariavelmente aos mesmos lugares, e não vale a pena acrescentar que não quero ninguém que se candidate desta maneira, por que esta maneira, mesmo a do tempo em que era feliz, também por isso, ou sobretudo por isso, não quero voltar a lembrar.

21 Jan 2016

Noite ditosa

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]uan de La Cruz escreve talvez a mais bela poesia da língua espanhola, ao começar Janeiro, e perto da Lua-Nova, é essa «Noite Escura» de que nos fala um poema cuja beleza ultrapassa a previsibilidade da sua maravilhosa linguística ou, por isso mesmo, a insufla de monumental qualidade poética. Este é também o verso exegético do noivo, da noiva, bem ao gosto dos cantares de Salomão, uma interpretação amorosa de uma ideia que o outro mantém mas que o supera em utopia e finalidade. E… “Em uma noite escura com ânsias, em amores inflamada, oh ditosa ventura!, Saí sem ser notada, estando minha casa sossegada… nessa noite ditosa, secretamente, que ninguém me via, de nada curiosa, sem outra luz nem guia senão a que no coração ardia… Oh noite, que guiaste, noite amável como a alvorada! Oh, noite que juntaste Amado com amada, amada em seu Amado transformada!”
Estamos perante um texto confidencial e amoroso de tocante intimidade, o brilho que sai da escuridão, a casa vazia e tudo aquilo que no coração ardia. O erotismo é uma vontade firme para que o sexo não caía no degrau da casa e se despenhe nessa vertente, onde o Amado o retire da cena de um desejo maior. É uma demanda, uma fonte espiritual que envolve a cenário do poema até este se tornar um clarão de beleza sem par. blog4
Juan de la Cruz é influenciado pelos cancioneiros, adaptando muitos dos temas tradicionais pela sua vocação religiosa, como o fez com o conhecido «Cântico Espiritual», mas a sua imensa beleza supera e intriga até hoje o universo literário. Estamos em frente de um poeta, não sabemos por vezes nem o que dizer, nem como o dizer, talvez, e sempre dizer, que nasceu em tal século, este em 1542, Camões nasceu em 1524, talvez fosse um bom século para os seus nascimentos. Afinal, ele insere-se no «Século de Ouro» espanhol. Influenciado também pelo Renascimento Italiano há um ritmo absolutamente envolvente que deve ter provocado a melodia – a lira.
Este é um tema que me parece quase hermético pela dimensão até do conceito, mas, renascidos que estamos das coisas mais densas contribuímos agora para iluminar áreas que o vazio fazia de escura forma sem ser de noite escura. Esquecidos andamos destas noites belas e esguias como Catedrais, assim designou Aquilo Ribeiro a estas noites de Janeiro, em que os gatos lá longe já viam o despertar da alvorada… Esta é a noite das noites, a do início a do imenso cosmos a rodar na zona de acção de uma melhoria de factos que precisamos desenvolver.
Nós somos agora quem pode cantar estes poemas de forma vária, dado que não existe um Catolicismo de Estado que nos empunhe um emblema litúrgico. Podemos ir buscá-los ao passado histórico e fazê-los cantar na nossa causa comum. Não sei o que se pode fazer com outras formas, dado que cada um de nós traz a matriz do seu trabalho e da sua lição no todo. Eu creio que há que reabilitar as naturezas e ir sempre à origem para se ser de facto original.
Para que haja um « Cântico Espiritual» há que haver o principio da anima, da alma, da vontade que guia, para sermos guiados temos de permanecer em silêncio e ouvir as «vozes». Mas, se não houver espaço e tempo, os nossos assombros permanecerão visuais e o mundo um local de imagens loucas. Há que construir o receptáculo, a Arca, a forma de templo onde ao longo da jornada o coração refresque dos abrasantes momentos da vida… Há que ir ao poema mais vasto, ao canto e a esta alma, porque quase sempre ficamos como este lindo instante do poema: «Aonde te sumiste Amado, e me deixaste soluçando?»
Para onde se foram deuses e vozes, deus e canto? Não seremos certamente as plantas de um vasto Jardim mas convém não expulsar de nós certas correntes, sob pena de ficarmos tão duros que pensamos estar imortais. Infelizmente não, não estamos imortais, toda a vida é para que a cantemos ainda e deixar a severidade aos que ficam no tempo como uma monotonia. Era tanta a certeza deste bem, que o verso era um servidor das cargas humanas que ficavam rígidas dentro de nós e por isso, antes desta altura , um pouco antes, ainda havia «Oblatas» aqueles versos da liturgia cristã para que nos fosse dado o dom das lágrimas. São de uma profunda humanidade! Enfim, chorar, se já não faz parte de nós como medida de defesa emocional, faz parte dos políticos mundiais, que tal como Obama ou Putin nos surpreendem de cara molhada e expressão que até agora nestes homens não conhecíamos. Eu acho tão bom!
Tentemos desocultar o porquê da célebre frase de Churchill «Sangue, suor e lágrimas». É sim e afinal um grito pantanoso de Neptuno em que tudo se liquefaz, mas foi um ciclo de águas de “banhos marias” de verdetes e aguadeiros, não tardam os mares outra vez… mas as nossas naturezas secaram de tal forma que talvez até já saibamos navegar por cima dos maremotos, ou resistir debaixo de água. Sempre ficarei com o « Cântico Espiritual»: “buscando meus amores, irei por montes e ribeiras; não colherei as flores, nem temerei as feras, e passarei os fortes e as fronteiras”. Há um Esposo para esta Alma que está na raiz das coisas que buscamos, um ser que nos guia em formas de procelas… esta deidade tão boa!
Constelar e vazia vai ser a noite de Juan de la Cruz, aqui não mora já ninguém – em meu peito florido….que ficou adormecido e eu o afagava e com leque de cedros brisa dava”. Aqui o amor não veio nem o vi em uma noite escura nem a noite era ditosa …….mas ela ainda me guiava mais pura que a luz do meio dia ……em parte onde ninguém me aparecia. –
E assim na noite fria e tão ditosa se pode começar o primeiro degrau da difícil e urgente marcha deste Poema.

11 Jan 2016

A sarça ardente

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]al como a Fénix renasce da sua própria cinza, a sarça – quando parasitada por uma outra planta de frutos e inflorescências avermelhadas – dá-nos a impressão de chamas. Esta planta é mais vulgarmente conhecida como acácia e os seus belos ramos, tão valorizados em ritos e liturgias. A Fénix é uma ave e esta é uma planta: as coisas extraordinárias acontecem entre estes dois planos, de forma sempre renovável, presente e até insondavelmente desafiando muitas leis ditas imutáveis e pondo a funcionar o mecanismo alternativo da realidade paralela, partindo das mesmas organizações internas mas mudando-lhes a forma.
Para os primeiros hebreus, Deus era mesmo designado por “Ehyeh” “Ehyeh-Asher-Ehyeh” – o que habita na sarça – sendo todos os objectos da liturgia feitos a partir dela. A Fénix entrava em combustão e desfazia-se, as suas lágrimas curavam a dor e a doença ao misturarem-se com o que sobrou do incêndio dela; tinha o poder de voltar à vida, a sarça não se consumia, não ardia, não entrava em combustão, era um fogo que não tinha o ciclo transformador. Aparentemente entre uma Sarça e uma Fénix parece haver antagonismo completo: onde mora o estático da planta que arde e não consome?
As árvores sempre guardaram segredos. São os reinos vegetais, tão passíveis de produzir frutos proibidos como comestíveis, a estranha maneira de morrerem de pé com aquilo que por cima delas se passa e aparece, como se o reino vegetal fosse aquele onde os insondáveis caminhos do conhecimento de Deus mais falam sem que possamos extrair de tanta linguagem grande coisa.
É nos ciclos de florestação que os incidentes mais bonitos e estranhos se consumam e quase sempre os seus efeitos, ora perversos, ora benéficos, nos instruem da finalidade sagrada da sua função. As aves quase sempre podem também morrer no ar, que o mesmo é dizer que de pé, mas, no vasto princípio paradisíaco, elas não estavam lá nem se manifestavam, era talvez um paraíso onde o céu não era este e o apelo da liberdade não se punha.
Afinal, o Homem Adâmico era «Para lá do Bem e do Mal». Nietzsche testou esse efeito e conseguiu provar que nem toda a consciência necessita de juízo de valor. Os anjos vieram mais tarde como querubins que guardam a parte oriental ainda do Paraíso e não se lhes conhecendo outras actividades de mor importância nestas entradas, eles velam, voam, como a Fénix combusta, mas nada lhes é dado ainda de efeito inalterável “estão ao serviço de…”. São “intermediários”.
Muitas vezes – e hoje que estamos no fim do Ano –as coisas tornam-se de uma eterna monotonia giratória, pois que ele se devolve aos nossos sonhos como cantigas de um circuito instável. Nós estamos efectivamente numa Terra com pouca sustentabilidade para podermos continuar aqui por muito mais tempo. O Ano que vem já deve ser a descontar para o «Êxodo» e nem que comamos as ervas amargas e o pão que o diabo amassou, parecemos aptos a recomeçar.
Como não somos a Fénix, não ardemos, nem fazemos arder. Estamos em formas mansas de atrasar a transformação radical, mas que seria bom não esquecermos da vista, pois que a saturação dos Invernos é como a saturação dos cadáveres: gera pestilência. Entre coisas que nos deviam aproximar e a distância do sorriso bom do Verão, vimos como as águas avançam mais que as labaredas e a humidade do ar seguramente será boa para batráquios daqui para a frente. Nada de gelar que estamos a aquecer, mas este melhoramento climatérico tem pouco de risonho, ele quase nos agride a reserva biológica de dispositivo automático.
Embora nem todas as plantas sejam acácias, o que arde deve fazer-nos pensar e o que nos inunda também. Não haver combustão não é suficiente para que salvemos o Mundo, nem as asas nos protegerão em caso de raios disparados, mas há algo que me intriga na grande marcha ambiental. Chegámos mais rápido do que julgáramos. Tão rápido que todas as esferas sonhadas e sabidas nos vêm agora à memória como possíveis esclarecimentos e tentativas de compreensão. A Terra é efectivamente e cada vez mais um planeta instável, onde a grande transformação se dá com alguma incerteza para o nosso permanecer. Vicissitudes de origem invulgar, abruptas, chegam-nos como tufões, os anjos devem andar chamuscados neste redil, e nem de nós por vezes dão conta, com o seu sistema de renovação radical.
Por vezes, podem ser desesperantes como o de Heine Muller, que se suicidou num 30 de Dezembro e escreveu o «Anjo do desespero», no qual acrescentou esta coisa tão bela e enigmática: «Depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que eu vi era mais do que eu podia suportar». Talvez que nascer segunda vez não seja afinal um bem, talvez que não suportemos essa forma de nós outra vez.
É certo que os anos passam, ou seja, que nós passamos pelo tempo, umas vezes tão indelevelmente que ele nos esquece. Parecemos abandonados da sua demolidora passagem, mas, depois, vimos que tal como a Sarça que estávamos sem nos consumirmos e sagramo-nos da sua luz estática. Depois tudo avança e desejamos descansar, um estranho sono que nos ajude pela mão das ervas daninhas a ficar sem a memória das coisas que fôramos. Quase nem podemos chorar! Há uma calcinação muito grande nos olhos que nos obrigam a manter abertos e que empurramos com quentes lágrimas pela vida que nos deram.
Por vezes era melhor saudarmos coisas mais simples, ter reservas, andar em outro chão… por vezes não aguentamos as “asas” como bem disse Baudelaire : “o poeta é semelhante ao princípio da altura …. exilado no chão em meio à corja impura … a asa de gigante impedem-no de voar”.
Sim, mas nunca de se gastar, de fazer de si a Fénix e deixar para Deus as labaredas sem chamas, como as línguas do Espírito Santo, que sendo luzes e em luz caem, permanecendo todas e como vozes, produzindo a não combustão.
A língua como um fenómeno imenso, os homens antigos ouviam sempre vozes… talvez haja um lado cerebral que os dispunha para isso… As vozes à medida que as sociedades se transformam vão tendo outras características. Esta nossa, mais visual, e já nada nos visita de forma apelativa, e com o tempo de tudo dizer, as vozes se foram. Nomear, ouvir, escutar, mas o cérebro tornou-se intolerante à solidão, o cérebro humano não ausculta e por isso não ardem as sarças nos locais de uma fogueira, que o lume aquece e os dias do últimos dias do Ano são frios.

7 Jan 2016

Sandeman – O homem da capa negra

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]andeman foi um teólogo do século XIX unido ao Catolicismo e talvez seja por aqui que a beberagem da marca tomou nome. As capas só depois de Cardeal é que se tornam púrpuras e talvez, acima deles, já fique mais ténue a própria noção metafísica de Deus. Porém, os meus sentidos captaram muito bem no rudimentar de um país cinzento a Capa Negra no alto dos promontórios de Lisboa, com um chapéu de breu e um cálice na mão. Seria um cálice normal, não era o sagrado, o da ceia, o do vinho da amizade, não era esse: o santo graal não entra nas capas negras, nem os promontórios lhe são destinados: esta era a imagem que fica da frágil infância, um convite velado como os antídotos da Rainha da Noite que nunca resultaram.
Ele ficou para sempre como um presságio de mau augúrio no topo da cidade, como os corvos e um poema de Poe. O tempo passou e deu lugar ao destronar da sua sombra, com muitos efeitos coloridos de néon que brilhavam doravante em caleidoscópica miragem, nos efeitos dos arco-íris da «Poesia está na Rua» dos rubros cravos e do panfletismo de massas. O mundo tinha-se tornado um Natal ao rubro, e das capas mesmo em épocas revolucionárias, havia ainda as do Pai Natal e as azuis dos Super-Homens.
Contudo, voltei a vê-lo com toda a nitidez das profecias na colina alta da cidade, ainda de negro, menos azeviche, opaco, mesmo, e mais esguio, simulado em frágil Deus do Sinai, disse-me: – Não olhes para mim!
Mas era tarde. Viu-o! E sei que o que se passou não é confidenciável. Numa escarpa onde morrem os sonhos, este estar de pé é um saudoso equilíbrio de antanho… prostrado está do cansaço do Homem.
A economia dispara ondas de choque e bem cedo já a repartição da riqueza tal como a conhecemos se alterará, desaparecendo o efeito do poder da materialidade financeira. O que foi dado do cimo de uma Montanha era outrora território mas, numa Terra como esta que herdámos, esse aspecto já não é passível de ser trocado por outro qualquer elemento. E, como um qualquer sem-abrigo, um pária ou um ser cansado, desaparece do espectro óptico, numa imanação toda de vulto e de gravidade. As minhas pupilas não se fecham neste isntante, ele ficou comigo a falar de coisas que não quero interpretar, descodificar, aquela presença magoa-me e, retornado que está nas cidades onde deambula, pressinto que nos ausculta, nos pede algo que não sei explicar. «Esta é a Voz da Europa» (Ezra Pound), ouvimos-lhe «Uzura», tão quietos no gelo destas transformações, que o relembramos. sandeman-anuncio-original-1928
Ontem mesmo, na cálida cidade, uma jovem mulher comprava trivialmente «Mein Kampf». Olhei-a, olhámo-nos, e quase sorri, e o homem da Capa Negra parecia dizer-me: Vê. «Arreceio-me de ti, de ti, Velho Marinheiro! Da tua mão macilenta! Assim comprido e delgado lembra a tua compleição um litoral enrugado». Rimas do Velho Marinheiro. A Europa gela com as idas às urnas, cada vez que lá deixa o querer, as nossas órbitas tornam-se mais profundas.
A China tem um véu de poeira inaguentável… em Portugal fazem-se lindos debates para daqui a cem anos, as redes sociais são transpessoais, as fúrias passeiam-se devagar entre ciprestes que confundimos com frondosas árvores do Paraíso. As serpentes vêm beber o leite no cimo das Falésias de Mármore, as cadeiras baloiçam de rabo em rabo, sem caudas nem capas para as suster.
Há um dia em que as capas negras dos estudantes também caem nos oceanos e se fica a pensar nas práticas ritualísticas de tais esforços, que os jovens se emolam por conquistas de tal ordem graves, que uma Nação inteira tenta rápido esquecer. Os Fados estão mais Fúrias que fadados ao seu trivial condão, enquanto as coisas se “normalizam” e pedimos tréguas para a montagem de uma era que nos foge. É previsível até certo ponto saber para onde vamos, mas nem todos, querem concordar que o espaço é o mesmo. Se o território se vai, os caminhos estão abertos, e nem sempre acontecem poemas como na minha rua que escrito tem no asfalto no espaço de um quilómetro esta coisa maravilhosa: “Adoro-te”. As estrelas podem cair a nossos pés e a rota dos Magos estar já desfeita, nem sempre nascem salvadores, mas a marcha prossegue. “No mais pantanoso dos abismos depuram os alquimistas os seus metais.”
Estamos parados a ver se não estamos delirando num vasto mar de probabilidades ameaçadoras. A vida é todos os dias e dia após dia vamos vivendo com as regras que temos, mas velozmente as coisas mudaram.
«Aqui a voz da Europa», fala Ezra Pound. Uma ideia é colorida por aquilo que contém. Sim, mas o Homem da Capa Negra não me veio dar ideias nenhumas. Ele não tem ideias, vive por um desígnio inalterável e já não bebe. Para combater o crescente, bebamos, bebamos vinho, mesmo que estejamos ébrios, é o nosso vinho. Mas não perder o sentido e nunca deixar a «Voz da Europa» tomar o pulso das grandes questões. Sempre os poetas são porta-vozes, e tanto as coisas saem bem, como lhes saem muito mal. Mas o mal é como as ideias, não se enegrece por aquilo que contém( se é que ele é escuro) uma vez que os fantasmas são brancos, de onde nos vem tal percepção?
Hoje, que porta bandeiras temos que não sejam os aviões de metralha? Os porta-vozes anunciam-nos e alertam-nos para o quê? Para nada. Cada um alucina dentro do seu mundo aberto que se quer adaptável para o efeito de maré morta do devir. Estamos confinados à desdita de tudo ser razoável e não ser viável, somos o que sobrou dos quentes dias, das cores e de um mundo feito de muita púrpura e vivos escarlates, mas, o que aconteceu ainda não sabemos, nem falamos disso, não temos concordâncias verbais para debates tão surpreendentes.
Expectantes estamos na Hora, como os corvos transportando a Barca, estamos a ver se o morto não tomba do bico impreciso das aves friorentas, se elas se mantém na zona de conforto que faz da morte dos mártires belas estátuas jacentes, estamos em guarda, salvaguardando as muitas coisas boas, bebendo-as, antes que os túneis sejam atirados aos rios, aos mares, e nos falte o sabor da Maçã. Parece que elaboramos o futuro que há-de vir como um furioso cavalo a relinchar, e subitamente, a quadriga não nos deixa ver a cor. Por detrás desta fórmula há factos, cobradores de impostos, quotidianos difíceis, vidas que ao tempo se dão para acalmar os vendavais, e de tão estanques e gelados com o que aconteceu nas eleições ali em cima, supomos que aquilo é outra coisa. Será certamente, mas com o mesmo prósito de sempre, e talvez seja por isto que encontrei o Homem da Capa Negra.
Somos os Cantos de Maldoror.
Prossegue o Natal em que as meninas adoptam perús para não serem mortos, talvez isto seja verdadeiramente a notícia melhor, coisas tão simples como um sorriso. O resto não retém o nosso entusiasmo mais que breves segundos num ciclo de coisas que começam a perecer.
«Eis que por vezes se ouvem gritos nos silêncios das noites sem estrelas. Embora ouçamos esses gritos, aquele que os solta não está, contudo, aqui perto; pois podem ouvir-se estes gemidos a três léguas de distância, transportados pelo vento de cidade em cidade.»
Lautréamont.
E, por fim, o mundo não é mais que a Cidade.

17 Dez 2015

Se nasce morre nasce… desmorre… desnasce

No dia da morte de Oscar Wilde e Fernando Pessoa

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omeçar com uma frase do belo poema visual de Haroldo Campos na rítmica compreensão do tempo cíclico, que é um mantra belíssimo na linguagem, na arquitectura métrica, para falar do dia 30 de Novembro, dia de Oscar Wilde e Fernando Pessoa, que morrem por razões naturais, no mesmo dia, num mundo, que nem sempre para eles, pareceu muito óbvio.

Se
Nasce
Morre nasce
Morre nasce morre
Renasce remorre renasce.
Re
Desnasce
Nascemorrenasce
Morrenasce.
Morre.
Se.

Sim! Este ir e vir, este vai e vem, que morre, que nasce, que desmorre… remorre… é uma dança tão bonita que podemos ficar nela pendurados até aos quadris da eternidade, se para os mais optimistas e vivificantes hiperbólicos «Tudo é vida», já para os tristes tudo «É morte», mas nada é do que se supõe de tão definitivo, nada mesmo nada se encontra de um lado só, e nada melhor que a frase de Pessoa: “morrer é só não ser visto”. Também não temos a certeza se vivos o somos… Daí que, na vasta perspectiva das sombras, estar vivo é uma função sombreada e estar morto é ser-se talvez um fantasma; e, como bem se sabe, eles são brancos.
Há dias inscritos como sombras florestais no seio de uma aritmética gigante, coisas dos fundos que os acompanham a compasso, estes dois poetas, escritores, foram desaguar no seu Sargaço no mesmo dia frio em que o Inverno assoma. Nem um nem outro se conheceram, obviamente, mas ainda tiveram vivos no mesmo tempo físico, breves anos é certo, o que dá uma ligeira intimidade contemporânea, mas com as diferenças típicas dos seus respectivos meios ambientes e educações.
Se o véu da possível homossexualidade de Pessoa se levanta indelével, já Wilde a tocou, sim, de modo trágico. Pessoa era um judeu em fuga às quiméricas Inquisições e por isso havia que inventar nomes, desviar, mitigar, perder o rasto, multiplicar…. aluarar…. pé ligeiro e alma ao vento.
Wilde era um «dandy» exibicionista, muito irónico, cosmopolita e perdulário. O mundo para eles era um palco de nações perdidas e de actos que não chegavam jamais à transcendência. Nisto pareciam semelhantes, na causticidade de um destino, onde Deus no último instante e cansado de os inspirar os abandonava, e eles se abandonavam a um nada que sempre pressentiram, em última instância, existir.
Se Wilde estava mergulhado na Inglaterra vitoriana que não lhe perdoa ousadias, nem prevaricações, Pessoa enublou-se de uma Lisboa cinzenta de tal ordem ofensiva que ele “desmorreu”. O traquejo dos sub-reptícios súbditos de sua Majestade não gostam desta gente: Wilde é mesmo condenado sem apelo nem agravo por todas as luxúrias que o seu apetite não ousou disfarçar e Paris, que nem sempre é uma festa, vai dar-lhe a mais assombrosa das experiências.
Escreve então a obra redentora para depois morrer na sua miséria e indignado por causa de um papel de parede: «De Profundis» uma obra epistolar onde as «Cartas de amor» de Pessoa parecem coisas anormais de caricatas. Wilde sabia de qualquer coisa… outra… grandiosa… essa, sim, redentora. Sofreu mais! Quando leio esta obra, peço-lhe sempre desculpa, pois que para isso acontecer está subjacente um drama imenso, uma náusea severa, um destino fabuloso. Dirigia-a a Lord Douglas mas, tanto faz, ele é um arquétipo de toda a mediocridade malévola que povoa o Mundo.
Por isso, creio, que entre cartas e fenómenos vários, ambos devem ter morrido, de fome ou coisa parecida, assunto de somenos, dado que no estádio adiantando de grande depuração comer é até perigoso, mas que se morre, morre. Tanto que comiam, que viveram alguns anos, um quarenta e outro quarenta e sete… um até bebeu mais do que comeu, suponho.
Por isso eu creio que a data “papoilita” do 21 de Março não corresponde à “coisa”, que esta coisa não é simples, nem fresca, nem florida, embora creio que eles tenham feito do Mundo uma espécie de «Jogos Florais»: sabemos que se morre no Inverno, morre-nasce na Primavera. Pés de Cereja para drenar o cérebro e os rins, pouco afoitos a datas eram eles, um disse mesmo: só ficam com o dia do meu nascimento e da minha morte, de resto, todos os dias são meus. O nascimento é outra história e não vamos falar dele se não o fantasma branco de Pessoa começa a fazer horóscopos. Por um triz que não bateu certo! Mas ele não era de coisas e disse logo: não morri naquele dia porque seis meses correspondem a dois minutos na carta do céu. Uma carta que era diferente do autor do «De Profundis» mas que ele explicaria muito bem, caso a tivesse averiguado. oscar-wilde
– Para histórias da carochinha, já bastam os dramas cómicos. Tu, Fernando, não sabes escrever cartas; tu, Óscar, fizeste a melhor do mundo. Achou-vos graça Deus, levando-os a 30, uma espécie de 125-Azul. –
Ambos gostavam de jovens, o Fernando era de crianças, mas, de forma exemplar.
– Oscar, não te devias ter metido com aquele rapaz!
Mas se não te tivesses metido com aquele rapaz tinha-se perdido o testamento que faz com que tudo na vida, afinal (e só depois o averiguarmos) fique tão certo, a matemática do destino que vos empurra para um mesmo número. Sabemos nós destas coisas, nós os “descamisados”, sabemos muito de números, e o mundo é irregular dado que quem toca neles não entende da sua aritmética.
Por mim, que vos amo, não me foi difícil, esta manifestação que embora estranha é à medida daquilo que sois. Estamos cansados de ouvir “palrar” coisas sem sentido da parte de uns e de outros, que até de vós fujo quando por eles pronunciadas… pois que quando nasce… morre… agora que ao desmorrermos iremos brincar, dado que a nossa tarefa no mundo também passa por essa linda experiência. Já encomendei uma morte para o mesmo dia. Vejam lá se aparecem, pois que não estive a fazer este texto por acaso.
E assim, na trágica composição do elemento que transforma palavras em coisas, se desmorre sempre para o infinito instante de nós mesmos.
Se um tinha amigos imaginários e outro escrevia cartas para o «boneco», eu não só tenho amigos fantasmas como escrevo missivas para os espectros. Não me assombrem mais, que tenho que vos ler e olhar por vezes o quanto as chuvas são oblíquas e tirar retratos sempre jovem.
O que mais me aprazaria era ser Salomé e que me desassossegassem sem ver de quê . Não digo o que fizemos no dia de finados porque já não nos acreditariam. Não me esqueço das más companhias como a do Alexey Crowley… de ti Fernando… e essas coisas que só o éter digere. Quanto ao querido Oscar deves ter ido mesmo para um local qualquer… passaste a fronteira, não foi? E repetiste a gracinha quando te perguntaram: que tem a declarar nesta alfândega?! «Nada mais que o meu génio». Pois claro.

10 Dez 2015

Susana e os velhos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] passagem mais emblemática que nos fala da concupiscente idade tardia talvez seja esta: Uma bela e jovem esposa é apanhada nas armadilhas de dois patriarcas que conspiram um plano de aniquilamento quando os seus desejos são gorados. Juízes do povo, anciãos respeitados, visitas da casa de Joaquim, seu marido, estes homens que há muito tinham passado a idade de se fazerem amar pelo corpo, encetam um plano, que dir-se-ia de vingança contra o tempo que passa, vingança contra uma mulher que era a imagem da sua impotência e do seu rancor, de entes a quem a vida abandonara para o grande festim dos belos encontros.
Talvez que, de tempos a tempos, seja bom não esquecermos toda este conhecimento herdado, que tenhamos em conta que o mais velho livro contém as mais intemporais questões. Efectivamente, dois velhos são uma imagem carregada de maus presságios… dois homens velhos subitamente despertos pela recordação de um Eros esmagado por carnes que definham e vontades que não se erguem… por uma raiva surda de um desejo esquecido. Nesta passagem, eles culpam um jovem a quem imputam culpas, um jovem imaginário, projectam a culpa numa virilidade normal e boa dos amantes. Para eles, o amor e a libido não são contemplações saudosas, mas raivas surdas, recalcadas. Impotentes, lançam blasfémias, sacrificam o objecto de desejo, incriminam uma inocente. Estes anciãos eram, no entanto, os sábios de uma tribo.
Pois bem, a sábia e respeitada velhice nem sempre é tão isenta de trama e perfídia quanto a julgamos e, num mundo envelhecido como o que nos foi dado viver, as sociedades requintaram a sua perversa dose de ignaras abominações. Tudo parece mais calmo, mais ordeiro e racional. Parece, porque, efectivamente, por debaixo deste glaciar, há uma antiga máquina de seres em desgaste que atemorizam e condenam a vida, pelo escape rasgado da esperança. Um velho, mesmo que seja Papa, lá no fundo, já nem acredita em Deus. Há um enorme despeito agreste que o tempo dá, como se enferruja o pouco de grande que uma alma contém. Porém, nós fomos apanhados na razão inversa da imagem do sábio.
Toda a trama ardilosa da matéria de facto, toda a clandestina tendência para o vício, a ocultação, o dolo e a má-fé se encontram neste tempo que passa, como uma vitória de que afinal o Homem não é passível de redenção. Conquistados os direitos fundamentais é com eles que devemos agir e é com eles que estamos seguros, jamais com a sabedoria dos outros que envelhecem e nos dizem que são a confiança melhorada.
A astúcia dos sobreviventes pode ser algo com que a soberana natureza dos fortes não contava, um dado demasiado agreste para os seus sentidos… uma erosão na incapacidade de lidar com o ambíguo. Nem sempre se deve deixar os mais velhos por aí, entregues a quaisquer uns ou a si mesmos, podem provocar reacções instintivas estranhas e o Homem não difere muito dos leões em matéria de macho dominante. As vítimas nem todas são biblícas… nem Deus se revela sempre para escorraçar os capciosos e o julgamento destes dois não deixa de ser uma nobre lição.
Nas nossas sociedades tão arrastadas no tempo, convém não esquecer componentes e factos. A geriatria é sem dúvida a mais honorável profissão do mundo, é uma missão quase superior. Vamos precisar de muitos e de uma competência sempre e mais actualizada. A fragilidade com que se revestem aqueles a quem o tempo esqueceu, a usura da sua mórbida sensibilidade, a reserva com que olham a vida, é já de si, e em muitos casos nos parece, um maligno olhar. Uma sociedade, que sexualizou as pessoas até à caricatura, pede para que se entre de novo nos sonhos de Daniel. Os anciãos de Susana existem. O tráfico e abuso sobre aqueles que são a denúncia a algo que morreu continua a ser o mais forte objecto de punição. Se consentirmos, eles não terão piedade, e a mentira das bocas desdentadas terá uma abjecta e tocante má fé que convém estar atento, para não nos abeirar-mos de uma monstruosidade.
Os velhos precisam de protecção, mas os novos também. Dir-se-ia que precisamos de estar salvaguardados da punição do ódio torpe, de um desvio da libido, de tramas subreptícias e da manipulação psíquica de que sempre deram provas. Pode ser duro o que se diz… mas mais duro é o que eles não dizem, inventam e conspiram nas costas das Susanas, dos mundos e das sociedades.
Vivemos em ciclos que não se preparam para questionar e abordar os ângulos das situações, vivemos quase que vinculados a estereótipos que nos impedem de ser defensivos e atentos, remetendo para um corpo colectivo, algo que o nosso não sabe explicar: o corpo, aliás, é um bem que permanece pouco falante… alguns apenas lhe vêem a nudez, a carnação, a gula onanista…. para nós, ele está parado a banhar-se no Jardim.
Mas o corpo pensa e informa-nos. O corpo pensa muito antes da nossa consciência. É um sinal de alerta máximo e não gostamos que nos espreitem sem a devida noção da medida. O corpo não gosta que os velhos olhares sabotem nele o novo, o improvável, o que inspira.
Uma advertência a todos nós que por avançados estados de desenvolvimento nos vamos tornando cada vez mais velhos: transformemo-nos! Nada mais velho, de facto, que uma juventude que se prolonga. Pensemos no bem que é estar perto de outra coisa, do quão difícil é ser jovem, do bem que deixámos de fazer-lhes e quanto isso é mais temível que a morte. Um pouco de afinidade com os que vão na mesma caminhada – um pouco mais de além – mesmo que já não sejam brasa, nem nunca tivéssem sido sóis.
Aquém disto é perigoso ficar. A alma dos anciãos é matéria esquecida pelas formas nascentes que amam os ciclos transformados.

3 Dez 2015

Novembro ou o mundo mutantis

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascidos das trevas e do breu, formamos pactos com a luz, pois que toda a estrutura é sombra ainda de outros reflexos, prostrados em cada mancha que o movimento cobre. É uma impudência este cerco com um imenso campo de probabilidades, que tanto prendem como libertam da imensa, e ainda, escuridão. Podemos ser aqueles que ansiaram a cólera e a tragédia como reflexo da origem, plasmadas em vício e trauma, como escamas antigas de um reino morto. Tudo aquilo que os lassos sentidos não firmaram, arrancados nos são em Novembro, quando o tempo se abre para a ranhura inescrutável do abismo.
A Festa dos Mortos, esse paradoxo, um Verão de noites que não são pequenas, um afundar na beberragem gratuita e fausta antes de se fechar o grande postigo do tempo cíclico: avança então para os úteros infernais de onde sairá a dois de Fevereiro, Festa da Candelária, Senhora da Purificação, cruzando com os mitos Eulesianos, mas de carácter judaico-cristão, a contar depois do Natal: (trinta e nove dias as mulheres seriam purificadas do nascimento de um menino). Mas Novembro era em si tão grande, que Outubro não tinha casa zodiacal, acabando por ficar subdividido com o símbolo da Balança as qualidades de César. Novembro começava em Setembro e tudo era outro tempo na roda das Estações.
Novembro hoje, agora, este ano foi todo ele o mês do breu. E se existe de facto uma hora propícia para as acções devastadoras, essa hora é a das manhãs, este Novembro adensou a escuridão, a mudança do paradigma; treze de Novembro, Lua-Nova e sexta-feira, a escuridão foi um selo que nos sitiou. Até os antigos condenados sabem bem do ar da Alba… dos amanheceres. Mundo-Mutandis.
Esta noite, este Novembro, este sangue, este medo, esta contaminação do terror em nossas praças, estas mandíbulas de cercos que avançam como se fossemos a Jibóia engolida pelo ventre da Baleia, faz mais escuros os dias que nos cercam. Vivemos sem pensar que a melhor herança da Liberdade, fora afinal a confiança no outro, e, sem pensar, o nosso tempo, não sendo o melhor, tinha tido esse alto grau da consciência humana; neste Novembro, vemos com a perplexidade dos que acordam no meio dos pesadelos, o que quer dizer a falta dela. Sitiados, os nossos sentidos estão cautelosos, em alerta.
São jovens a maior parte dos assassinos e também as suas vítimas. O sangue jovem sempre foi aquele que os deuses gostaram mais para saciar as suas sedes, como se um lado sacrificial do Novilho ainda fosse a condição «Tão jovem! Que idade tem? Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe».
Novembro nove, novo, é sempre o que restou das noites muito curtas do Verão. Disse Flaubert: “Felizes aqueles que comem demoradamente… afastam convivas insaciáveis que os importunam com pedidos e que, no último dia, à sobremesa, quando uns dormem e outros se foram embora doentes, podem beber finalmente os vinhos mais finos, saborear os frutos maduros, gozar os últimos fins da orgia, esvaziar o que restou, de um grande trago, apagar as velas e morrer!”
O ciclo das coisas alterou-se, e até quem gostava das brisas da manhã para as ideias irrigadas de fresco oxigénio, até elas, entram agora pela noite no transbordo de um ciclo transformado.
Que as trevas não nos vejam chorar que lágrimas nos caem sem sentido aparente na nebulosa Estação vivente, e que um Mundo tão mudado não nos tire uma certa claridade a que nos agarrámos como últimos sobreviventes. Ainda temos Goethe que às portas da morte exclamava com transcendente apelo….«Luz, mais Luz…». Mas os poetas morreram há muito neste mundo que se foi mudando sem eles, e quando morrem os poetas, levantam-se agrestes, as trevas. Eles estavam anulados mas ainda equilibravam o mundo nas coisas mais funestas tal como as sentinelas nos seus postes, seria preciso uma quase imolação para salvarem o que tanto se perdeu.
Novembro tirou-me a tranquilidade para amanhã pensar que a noite pode ser como os «Hinos de Novalis» e entrar nela cantando. Já não há Cânticos que apaziguem as feras, nem cítaras para que elas fiquem em paz. As flautas de Pan estão partidas nestes caminhos e os Concertos, a alegria, o som que se produz, parece até enraivece-las um pouco mais. Flautistas de Hamelin procuram-se para afugentar as pragas.
Uma música concertada que dê rumo aos que não sabem que o som pode vir dos acordes e dos acordos mais bonitos.
Talvez compor um Hino e pô-lo a cantar no Coração das Nações.

26 Nov 2015

Entre o seio e céu

«Sei os teus seios… sei-os de cor»

Alexandre O´Neill

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] um imenso instante do saber do que a língua tem de fruto, de nascimento, de acrescento, de volúpia e de bem-dizer. É para isso que os poetas eram feitos, trabalhados, identificados, respeitados e quase sempre consentidos na grande esteira da transformação. Para saberem do seio que sabe e ao que sabe o seio, que sabe a algo mais além do que sabor e saber.

Nesse céu límpido das formas que se jogavam em saberes e que nós nos deleitávamos pelo seu amplo sabor, estão inscritos os homens da linguagem, aqueles que fizeram o mais que admirável trabalho de escribas, escritores e professores de uma matéria quase gasosa, quase em éter. Alexandre, o Grande.

Toda a métrica deixada pelos poetas é uma quase noção de firmamento, teciam a metalinguagem e um metadiscurso, uma melodia plena de inventividade rítmica. O aparelho fonador é tão complexo, que para imitir sons coordenados precisamos de um enorme manancial de signos escritos e, depois, adaptá-los com tanta beleza que ficamos atónitos, mas produzir no cérebro os filamentos associativos das fórmulas e signos conhecidos formando outros é sem dúvida o mais maravilhoso.

Um seio amado desta maneira nunca cancerígena, não fica com metástases, não se inunda de vazio… pois que é “tocado” com saber que só o amor consegue. A sexualidade bravia deve ter provocado na anatomia feminina uma tormenta enorme, dado que não há razões aparentes para tanta coisa malsã. Claro que não há poetas em cada quarteirão que façam dos seios cânticos, nem que saibam deles assim, mas deve haver quem os encante, na medida em que são berço longo do mundo.

Há a síndrome do corpo vazio, daquele que fica triste e não responde à sua fórmula natural, que se deixa invadir e matar por exércitos de doenças quantas vezes requisitadas inconscientemente para pôr fim a outra doença que se transformou o viver: não é fácil estar em pé, nem andar de pé, nem amar, nem nascer, nem morrer. Um organismo só está apto quando o cérebro fez bem as suas associações e transmitiu ao todo o poema da vida. Antes disso, há uma imensa falta de coordenação motora e desordem sem fim naquilo que deve ser uma leveza a transpor.

Inundamos os afectos de coisas pragmáticas e tudo o que ficou por escutar nos mata de repente… não gosta a vida de ser desvivida nos seus círculos sacrais… e faz bem. De tanto andarmos podemos ficar insensíveis a uma maré que corre mesmo a nossos pés. Quando tudo gelar estaremos a pensar em brasas acesas num território que não tem fogo, e a memória que estava bem estruturada pode transformar-se em pequenos elencos sem sentido na mente ordenada , que não desarrumando, não gere mais memória do que aquela que armazena de fora, pela sua cabeça adentro.

Estamos numa enorme transformação linguística, mas os meios telepáticos não se equilibram nas orelhas estranhas dos homens… os amplexos laterais são para pendurar fios eléctricos, e fazer de cada orelha um suporte cujo descanso, serve apenas a surdez . Surdo, mas não fechado, nós vamos tendo coisas anatomicamente diferentes… Pensamos é que são doenças e combatemo-las… são doenças, mas não são mortais, nós ainda morremos por outras invasões. Por que temos as narinas dilatadas, por exemplo, e há oxigénio a mais… por que não sabemos ouvir o corpo… daí a raiva incontida contra as cabeças. Se não serve para o resto não tem espaço para o que quer… qualquer coisa assim de brutal ditou a raiva ofensiva contra elas.

Dizer que ainda aqui vamos é admitir uma fraca transformação, mas ela pode até não ser passível de mais metamorfoses. Nós podemos muito bem ter chegar ao máximo possível e a partir daqui haver um ser feito à nossa própria imagem e semelhança. Se, como bem disse Pessoa, «Deus é um Deus de um Deus maior», nós podemos ser os Homens médios de um maior, também. Impressiona-me o grau de atavismo de alguns médicos, ainda… como se fossem uma panaceia do tempo da «Morgadinha dos Canaviais» estão compelidos a uma técnica grosseira da anatomia, mas a felicidade é que vão aparecendo novas gerações que se sente fazerem o melhor de forma completamente nova.

Onde colocar esta medicina portuguesa com botas cardadas de doutores e mãos pesadas de curandeiros? Clínicas onde eles se entretenham a fazer “trabalhos manuais” . Não se podem deitar pessoas fora e temos de aproveitar o que sabem, mas não devemos estar sujeitos a saberes que não foram continuamente actualizados numa prática exigida pelas instituições que representam.

É muito penoso ver-se desaparecer gerações, mas elas, de facto, já não estão disponíveis para nada a não ser aos vínculos que têm e manter uma natureza enraizada a práticas desgastadas. Confrontamo-nos com multidões de paralíticos que não actualizam as fórmulas nem são permissivos a discursos outros. Há gente assim ao pé de nós, que caso estejamos mal , nos podem literalmente deixar morrer. Já não é um problema de liberdade individual, mas de consciência pública. Portugal deve ser o local do mundo onde mais gente se empata uma à outra, dado que quase todos fazem o mesmo, ou seja, optam pelas mesmas profissões.

A matéria “gorda” do entupimento colectivo é uma banha da cobra de tão difícil remoção que se morre sem que o próprio por vezes saiba de quê. Isto também é político, dado que se não fosse um martírio de governações dolosas e impertinentes nas chancelas, não havia tanta miséria e queda, que podem enfraquecer um país até à sua própria diluição.

Egos de gentes que vêm da Covilhã, do Minho, de Loulé, de Valado dos Frades… Gente que não tem a menor formação humanista: engenheiros, técnicos… (a Filosofia desapareceu dos currículos nacionais), toda esta tralha mecanicista ou economicista invadiu os pólos da Governação. E advogados? Há um em cada esquina. Vejamos o resultado prático desta “coisa”.

Claro que é preciso analisar o mercado e mais uma perspectiva sociológica, as leis laborais e governativas, pois que tudo é afinal muito difícil e temos de perder muitas horas a treinar nuns cursos fantasmas leccionados por inaptos, mas as sociedades estão em grande derrocada e todos estes aparentes saberes não dão para a vida das pessoas. As pessoas são, como começamos a ver, o que menos importa às outras pessoas, pois que se não houvesse uma mão cheia de códigos civilizacionais de base nem elas já existiriam.

A fome salva e a fome mata. De tanto laborarmos para a destreza dos bens para alguns o mundo corre agora o perigo de implosão a nível do seu próprio potencial humano, feito a duras penas por épocas e épocas de conquistas. Se a juntar a isto a crise energética vacilar, quem seremos nós, parados, num instante em que estar vivo é o mesmo que nos mexermos desgovernadamente todos os dias?

Lembremo-nos sempre da velha frase Romana «Os deuses enlouquecem aqueles que desejam perder». Pois nunca estiveram tantos condenados à espera da trombeta real!

E nós, os dos seios e os dos saberes, mesmo nus, não somos capazes de fazer enamorar as trevas. Com trevos se fazem as festas e os dons maiores, a nossa vida é uma peça gigantesca do próprio teatro do absurdo e nem Ionesco conseguiria agora descrever a peça inteira deste “puzzle”. Vivemos num conto fantástico para além de Kafka que, ao lado disto tudo, era apenas ilusionista de um imaginário saudável.

Atravessamos como os doidos as Praças, estamos a ir para o lado onde a força se faz e se fizerem mais força ainda nem memória teremos do que pode vir a acontecer. Tecemos o jeito gregário do mal adaptados, mudamos as coisas, mas as coisas não nos mudam mais do que a resistência de a elas nos adaptarmos de olhos vazios face aos abismos reais.
Entre os seios dos Cânticos e dos Poemas de Amor temos um abismo onde já não cabe a nossa anatomia. Já não sabemos o que de cor e de olhos fechados tocamos ….a nossa matéria não é a forma esperada nem a Humanidade sabe disso. Sem os «colos de garça» e os nossos sonhos somos agora, também, matéria apetecida por fomes que não esperámos. A fúria dos comedores de pedras.

20 Nov 2015