Camões e o céu

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] início do século vinte foi verdadeiramente inovador e de uma dimensão moderna sem precedentes, começando pelo Futurismo de Marinetti , o Simbolismo, o Cubismo e todas as formas que ousaram avançar e transformar os signos linguísticos e as estruturas criativas em elementos de plena mudança social. De tal forma que a noção de original se baseou na origem, ao que ela pode servir de reminiscência do esquecido, e com as liberdades sociais que teciam o progresso foi dado ao criativo, ao artista, ao poeta, meios ímpares na transformação da génese colectiva. Olhamo-los à distância de um século e parece que não nos foi dada esta modernidade, esta qualidade, este saber e saber fazer, que uniam partes por vezes tão dissonantes.

Em Pessoa, sabia-se da sua forma hermética para interpretar horóscopos, mas não era só ele: havia por toda a Europa a transmigração das ciências ocultas e Crowley, o mal amado dos poetas, não deixa por isso de ter sido um soberbo escritor e junto a ele a flama sem fim dos espelhos e das bocas mágicas: muitos de carácter sexual que exacerbavam com beleza rara o mito de Pã e as germinativas capacidades da falocracia como estado ébrio da criação. Por isso não devemos deixar de ouvir este Hino, neste tempo em que se fala de paganismo como de idolatria a esferas de prazeres menores. Por esta altura vivia entre os nossos poetas do Orpheu, um homem, também da sua época e não menos inquietante, aquilo a que chamaríamos hoje de reaccionário, o que não deixa que fique como os naturais de hoje, sem interesse, e coisas também elas apaixonantes para contar: falamos de Mário Saa, conhecido pelo seu anti-semitismo primário e suas visões sobre a conspiração judaica. E é numa espécie de pequeno opúsculo que um escritor português mais recente descreve a visita de seu pai a Pessoa, combinada por ele como um momento simbólico de caça invisível à tal “espécie”. Chegados ao encontro, viu Mario Saa em duas, a mesma pessoa, o mesmo chapéu e, insultosamente, o mesmo nariz, empurrando-os humilhantemente um para o outro e culpando tal gene covilhanense. Como todos os “caças-fantasmas”, ele queria provocar em alguns amigos a tímida consciência das suas raízes, da qual ele não gostava, mas também não se separava. Vejamos que estes homens ainda não tinham o surro pequeno- burguês que invadiu a sociedade portuguesa da ditadura; eram homens brilhantes, com posições contrárias, sim, mas que dada a pequenez da organização social estavam condenados a unirem-se.

Mário Saa tem, entre muitas obras emblemáticas, uma, muito ao gosto de Pessoa, «Memórias Astrológicas de Camões», obra essa que lhe terá servido de inspiração para o poema de Saturno e os três anéis – fome, miséria e desolação. É, de facto, uma viagem secreta pelas entranhas do poeta, mais mitológica que lógica, mais simbólica que hiperbólica, mais refinada que exagerada, mais fatalista que elitista, e que nos dá a certeza de que entre mandala e céu conhecia em muito o seu destino. Aliás, esta recorrência a Saturno é muito poética e filosófica, e vejamos: «Sob o signo de Saturno», de Walter Benjamim; «Poemas Saturninos», de Verlaine; a máscara de Dante; «A Viúva», de Gomes Leal, de que Pessoa tanto gostava, pensando mesmo ser dele uma centelha. Nascidos no mesmo dia e com todas as esferas iguais e concertadas, este aspecto de uma radicalidade poética esbate o efeito da Primavera da Poesia, dos serões de meia província, da deidade branda do poetizar, da noção intimista das coisas vulgares. Aqui é de poetas que falamos e não de bucólicas criaturas em vários formatos da sua demência existencial. Saturno, como os anátemas, está gravado a ferros, que o fogo não entra neste frio.

Camões, de quem tão pouco se diz saber, nasceu a 23 de Janeiro de 1524, a um sábado, dia consagrado a Saturno num eclipse do Sol e o resultado parece mais assombroso quando o registo o dá pelas oito e meia da noite com Balança ascendendo. Saturno e Vénus estavam como o refere , em debilidade acidental; seria por isso Aquário com ascendente Balança, o que reforça o carácter estético da sua lírica. Camões quando escreve o célebre poema «O dia em que nasci» tinha uma vasta consciência disto e não nos esqueçamos também de que se baseia no próprio «Livro de Job» e dá-lhe a tónica final numa interpretação deveras fulgurante.

A terrível realidade inscrita nas suas lúcidas formas de saber não produzem facilidade nem estados de consciência brandos, são seres derradeiros que se manifestam no limite … sim – o dia em que nasci, morra e pereça, não o queira jamais o mundo dar… dê o mundo sinais de se acabar… a mãe ao próprio filho não conheça…– aqui está a completa consciência da sua Fortuna, mas Saturno, a quem os matemáticos da época chamavam Infortuna Maior, é o guardião do poeta «chamo dura e cruel a dura Estrela».

Para a definição do ano de Camões estão exaltadas as conjunções de Júpiter e Saturno, conjunção esta que preside aos períodos históricos: Islão, Reforma, Revolução Francesa. A Reforma foi a da época de Camões. Ocorreu no começo desse ano no signo de Peixes tendo determinado os infaustos prognósticos do Segundo Dilúvio Universal que irritados estavam com o Tempo e o Mundo.

Para quem do Amor – não viu se não breves enganos – há que dizer da supra maravilha de uma exigência interior que o faz escolher a Dama Sol, uma tal Violante. Foi esta ao que parece a sua Beatriz a quem chamou «A roxa flor de Abril» e foi sobre a sua sepultura, quando regressado a Lisboa, que escreveu o soneto «Debaixo desta pedra sepultada» gentileza da luz, que a noite escura tornava em claro dia…

É o maléfico Saturno que, antes mesmo da partida para Macau, num namoro de oito anos, lhe ofereceu a ofensa suprema do seu casamento com outro, por não reunir dotes para tal missão. Aquelas pessoas importantes que ninguém sabe quem sejam dado que aquele que não interessava era sem dúvida de importância extrema. Sentir isto é como a pedra forjada pelo elemento duro do astro baço e nem sequer estamos na presença de um homem comum, conquistador, que se limita a multiplicar a náusea da sua triste condição. Falamos de um Homem.

É nestes interstícios sonegados ao saber normativo que estão os elementos mais importantes para a compreensão daqueles que todos gostariam ter sido, mas que não teriam suportado tal destino, pois que é deste ferro, forjado a desterros e abandonos, a equívocos e ranger de dentes, a dias de eclipses, a astros muito baços, que faz nascer o mais belo dos “metais”: a alma humana e o seu génio.

Por isso, bem-digo tal dia, mesmo coberto das trevas de que o poeta se vestiu para que não morressem fulminadas as gentes perante a luz imensa deste ainda desconhecido.

Este tempo era ainda o da velha teoria de Joaquim de Fiore, o do ciclo milenário, e este era o ano que por toda a Europa corriam as notícias dos sinais apocalípticos anunciados para esse mesmo dia, era o tempo em que se falava dos monstros: mais tarde saberia dizer com precisão – Não torne mais ao mundo, e se tornar, Eclipse nesse «Passo» o Sol padeça, Nasçam-lhe «monstros»!

Este seria um monstro teratológico se é que chegou a ser alguma vez criança prodígio, pois que também havia os celestes como grandes sinais dos Céus.

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