Nova biografia do escritor Luís de Camões deverá sair em Junho

Uma biografia de Luís de Camões vai ser publicada em Junho, nos 500 anos do poeta, mostrando o homem por detrás do mito, num trabalho de cinco anos de Isabel Rio Novo, que lhe trouxe “muitas surpresas”.

Este é o segundo volume da colecção de “Biografias de Grandes Figuras da História de Portugal”, que arrancou em 2020 com a biografia do Marquês de Pombal, e que conta com o apoio do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua e da Fundação Oriente.

Para a editora, o quinto centenário do nascimento de Camões proporcionava uma oportunidade singular para reflectir sobre o legado de um poeta amplamente presente tanto na literatura quanto na identidade portuguesa.
Por isso, para Isabel Rio Novo, não se tratava apenas da biografia de mais um grande vulto, mas de “toda essa carga de sentido que atribuímos a Camões”.

O trabalho, que se iniciou em 2019 e está em fase de conclusão, obrigou a autora a mergulhar a fundo em todas as biografias antigas e recentes, na pesquisa de fontes conhecidas e na reunião de informação que estava dispersa.

Contactos em Goa

Foi então à distância, devido à pandemia, que contactou com pessoas que lhe deram informações, que lhe enviaram documentos e de quem recebeu pistas de investigação. Já sem restrições de viagem a autora foi à “velha Goa que resta dos tempos de Camões”, e à ilha de Moçambique, “onde Camões viveu dois anos, na altura em que queria regressar a Portugal.”

A viagem a Goa revelou-se mais frutífera do que esperava, pois encontrou um grupo de investigadores do Laboratório Hércules, da Universidade de Évora, que lá se encontrava no âmbito de um trabalho de análise de retratos dos diversos vice-reis da Índia, e que a ajudaram numa descoberta que acabara de fazer.

“Descobri o paradeiro de um retrato [de Luís de Camões] revelado em 1972 e que andava extraviado. Graças à minha obstinação, encontrei esse retrato, de que se tinha perdido o paradeiro, num coleccionador privado”, contou. Com a ajuda do grupo Hércules, esse retrato foi analisado, e foi atestada a sua veracidade.

Para escrever a biografia de Luís de Camões, a escritora estudou muito bem a época, porque “em biografias históricas, a época não é apenas um pano de fundo, os indivíduos são a sua época. Há conceitos que no século XVI têm sentidos que se foram perdendo ao longo dos séculos.”

Para Isabel Rio Novo, o difícil neste tipo de biografias é reconstituir a época com o máximo rigor possível, mas, por outro lado, o facto de esta biografia ser recente “beneficia de todos os contributos prévios que foram sendo feitos ao longo do tempo.”

Por isso, a obra biográfica que agora vai ser publicada é acompanhada por uma “enorme quantidade de notas de rodapé”, explicou. A autora promete que “o resultado final vai trazer muitas surpresas”, embora reservando-as para a publicação do livro.

Além disso, dará ao leitor “a percepção de homem que existiu antes de ser um mito” e “dá um avanço decisivo no conhecimento” que se tem hoje em dia. “As cartas em prosa são um bom exemplo de informação conhecida, mas que, por o seu conteúdo ser avesso ao discurso oficial sobre o poeta, foi quase sempre descurada do ponto de vista biográfico.”

Segundo a investigadora, o retrato que sai desta biografia “não é o que ensinam na escola, a ideia de que grandes escritores nascem quase figuras consagradas.”

“Fui-me divertindo raspando a patine do busto e descobri o homem que existe por baixo dessas camadas de sentido que lhe fomos acrescentando”, disse, afirmando: “Camões foi um indivíduo do seu tempo, genial do ponto de vista do talento e da capacidade de reflectir sobre a vicissitude da sua existência, mas enquadrado no seu tempo.”

25 Jan 2024

Não posso crer

Ainda não consegui superar a minha velha dificuldade em pensar racional e friamente em certas pessoas antigas, mitificadas ou não, porque, apesar de todos os esforços que faço para me adaptar a uma norma ética no seu e no meu tempo, acabo sempre por descobrir que cada preconceito que estrangulo é sistematicamente substituído por outro, quase sempre o seu inverso.

A ética de Aristóteles ou Plutarco opõe-se mesmo à de Cristo e de Espártaco?
E a razão dos cátaros é maior ou menor que a dos iluminados?
E a resistência pacífica de Francisco de Assis e a de Gandhi causaram menos ou mais mortos que a luta armada, na Europa, na Ásia, e na Africa?

E o calculismo de Maquiavel é mais lúcido e menos justo que o de Giordano Bruno e de Lutero?
Como definir ou simplesmente contabilizar o saldo da contradição entre ambas as escolhas?
Como avaliar a necessidade do predador e a da presa?

Como não perguntar como Garrett quantos pobres são precisos para fazer um rico?
Mais concretamente, como enriqueceram os brasileiros de torna-viagem?

Assaltam-me estas questões, quando, por exemplo, me ponho a pensar na personalidade do Infante D. Henrique ou na de Luís de Camões. Um deixou morrer o irmão numa enxovia prisional de Marrocos para não devolver a cidade sarracena que havia conquistado e deixar saquear no meio de um morticínio, além de ser filho de rei e comandante de corsários no Mediterrâneo. Comandou drasticamente, com a insanidade da sua misoginia, o início da globalização económica mercantil e amoral, bem como a escravatura como um objetivo económico.

E como avaliar a honorabilidade de Camões sabendo dos seus poucos escrúpulos nos dias e noites de Lisboa, da Ilha de Moçambique, de Macau, etc., sabendo-o um marginal, um zaragateiro contumaz e, tantas vezes, um alcoólatra completamente destrambelhado? Tudo isto apesar da sua dimensão enquanto persona genial só comparável na Europa a Homero, a Petrarca e a Shakespeare.

E como distinguir a responsabilidade de um pedófilo, de um toureiro, ou de um vendedor de droga a miúdos e graúdos nas imediações das escolas e de certos cafés, como o da minha rua?

Porque não deixaram nem os gregos, nem Marx uma noção intemporal da diferença ontológica entre o moral e o imoral, até porque como amoral apenas sei do pragmatismo?

Mao terá cometido erros e talvez alguns graves, tal tomo todos seus sucessores, incluindo o actual, mas o que estamos a ver é um desempobrecimento de milhões de chineses e o fulgurante progresso do seu país. É caso para recordar o autocrata Marquês de Pombal e questionarmo-nos se o despotismo esclarecido foi uma perversão ou uma salvífica emergência.

Não gostaria de chafurdar no pântano do relativismo e muito menos no conforto insano do pensamento norte-americano, tantas vezes imitado pelos britânicos e por tantos outros, mas a pandemia de antivalores e de outros vírus de ocasião, mas temo que seja mesmo um risco muito sério para quem dá prioridade à sobrevivência e ao sucesso pessoal ou coletivo. Veja-se a história do Cristianismo e de todas as outras religiões e desígnios nacionais.

Quem sabe se o papa emérito não estaria ainda traumatizado pelo escândalo de pedofilia que envolveu o seu mano Padre Georg e o arranhou também a ele, quando ambos eram sacerdotes em Munique…

À tarde

Ninguém esperava, julgo eu, que o ano de 2023, além das sequelas da pandemia e da continuação do morticínio russo-ucraniano, tivesse também de suportar a carga de ridículo que Lula não conseguiu evitar num Brasil já tão ferido de tragédias e de irrisão.

Já tinha caído no esquecimento a postura bacoca da Presidente Dilma Rousseff, quando decretou que passaria a ser tratada por “Presidenta”, acabando corrida de Brasília por sofrer um “impeachment” injusto que teve outras razões, mas aparece agora algo ainda mais patético – a nova ministra da Cultura do enorme Brasil, a cantora baiana Margareth Menezes, já descobriu e mandou usar três géneros na morfologia dos substantivos. Exemplo: todos, todas e “todes”.

Não sei se este dislate resulta de pressões vindas de algum ‘lobby’ do universo LGTBI, que eu muito estranharia ver acatar por uma dengosa e morena filha da Baía, ou se é apenas uma ressonância da castiça pronúncia da beirã Alcains, onde o seu mais célebre filho, o ex-Presidente Eanes, aprendeu a falar.

O que sei é que ainda não logrei serenar, entre o riso e a náusea, vendo que vários ministros de Lula já começaram a também dizer “todes”.

Será que o novo Presidente vai ceder à palermice inqualificável da sua ministra da Cultura que corre o risco de ser vazada para o Ministério da Coltura, onde Bolsonaro aprendeu a falar?
Não posso crer. Nem com um Colt apontado à minha cabeça.

13 Jan 2023

A fome de Camões

A fome é meu final, o meu poente!
Saturnologia de Gomes Leal

 

Poema em 4 Cantos, este é um testemunho sem tréguas nem vacilações. Talvez que fomes tais tenham sido esquecidas no emaranhado das necessidades imensas e imediatas pela ideia peregrina do fim dos obstáculos e na procura do prazer a qualquer custo, não sabemos dar um nome para a nossa emergência, e na memória mais distante trazemo-la como a um espinho. Mas esta é também a fome ontológica da criatura em rota de colisão com a coisa criada, a senda de uma busca que bruscamente domina, faz destino, atravessa o ser – em 1881 já Gomes Leal tinha sido preso sem direito a fiança nem outras condições para contestar a acção, eram giratórias as portas dos desafios, e emblemáticos os Cantos desta matéria a tratar – estamos na presença de gatos, que mesmo escanzelados e empurrados para o cimo dos telhados nunca perdem a altivez dos invencíveis, uma teia difícil de ser tomada pelo medo, que fomes assim, impõem desassombro.

Nós que arquejamos e tanto nos deleitamos nas imediações do caricatural, devíamos poder vê-los lutar, seria boa essa visão electrizante, esse conhecimento das coisas tangíveis que colidem com as consciências, rever os jejuns das expurgas, tomar o punho das vidas no limiar, seria compreensível saber das suas fontes pródigas ao redor dos pântanos e por que não desertavam quando banidos da Cidade, teríamos mais tempo para saborear o que exigimos da vida e mais razões para agradecer uma saudável pequenez. Tanta gente de costas voltadas brandido na costumeira chacota dos hábitos, e nenhuma correspondência com estas coisas! O dom de esquecer pode ser bom, mas não deve seguir viagem para a vacuidade.

Que fomes assim deram a nascer as crias das feras que são sempre as mais belas, não nos ameaçaram com sua rotineira condição e ainda extraímos delas a maior doçura do universo ao redor, que muitas cresceram e se quiseram abatidas para pacificação da urbe de dentição escarninha, que não podemos meter o génio numa garrafa e deitá-lo ao mar, que se hoje dizemos como é, não conseguimos afirmar como se faz. Transfigurados com trechos de coisas ditas imaginárias e partindo da real razão do direito de cada um, a Maçã cai pela lei física da constatação toda feita ciência, aprendendo todos com a lógica as imponderáveis manifestações da vida. Há um dia que a Fome nos resgatará e não servirá de muito olhar para aqueles que tanto nos saciaram pelo seu frémito e que deixámos de saber ver. Um dia para voltar a rever estas paragens.

As vozes, essas, vêm de mais longe e os sinais estão intactos, nestas videiras já não se espremem as uvas, a beberagem não é forte, e os mostos são recolhidos em urnas; parece-nos normal a Abastança, este último estado de terror, que a Terra sem grades fecha tudo o que para cada um já não é vital. Já subsistimos parados como gado nos matadores, falando da estranha circunstância, e foi exactamente o que não muda aquilo que surpreendeu ainda mais.

Em Macau jogava xadrez, o poeta, bem longe dos Casinos e dos regimes, em «lôbregas jornadas» a política (inter)nacional era uma Barca que o levara e trouxera, sempre de longe, com os anéis do astro baço andaram rolando na matéria sem freio dos seus dias estes estranhos seres e ninguém pergunta agora por tais Fomes que os tornou tão desiguais.

« ……da Justiça sublime ao trono santo,
às solenes e eternas regiões,
Pedir justiça ao pranto de Camões.»

26 Out 2021

10 de Junho – “Da minha língua vê-se o mar”

“Sou de todos os mares,
De todos os profundos oceanos do mundo.
Sou de todos os portos, do barulho das suas docas
De todos os enormes navios fundeados nos cais
E dos que estão encalhados nos bancos de areia (…)
Sou de todos os faróis que há nas noites das costas
Indicando, nos segundos cronometrados da sua luz,
A traição dos continentes, das ilhas e dos bancos de areia (…)
Sou de toda a extraordinária força da gente marítima
Que se entrega aos abismos do mar com a sinceridade
De quem se dá ao único destino possível da terra (…)
Sou de todos os voos de gaivotas e das travessias
Quase incompreensíveis aos homens da terra tão lentos
Por isso a minha pátria é o mar (…)
João Meneres de Campos
Mar Vivo
em “Poesia da Presença”

 

[dropcap]É[/dropcap] um milagre.
Portugal (1143) é um milagre de quase nove séculos, nove séculos como nação livre e independente (sem grandes ameaças, nem grandes traumas) – que mantém uma identidade cultural vincada e uma língua viva -, se os países fossem ordenados pela antiguidade pela ONU, Portugal ascendia ao pódio, a um honroso 3º lugar, logo atrás da China e da Inglaterra. Mas, se o critério fosse a imutabilidade das fronteiras, então até os «nossos» Amigos chineses seriam suplantados.
Falta-nos um só século, um só, para atingir um milénio de existência e aí “um país deixa de ser um país e passa a ser uma civilização, essa coisa que funde a história com o mito”.

“um palmo de terra para nascer, um mundo inteiro para morrer” , Padre António Vieira (1608-1697).

Celebrar o 10 de Junho – o «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» – data que assinala a morte do “príncipe dos poetas portugueses” (em 1580), o Homem que “cantou” o dobrar do cabo das Tormentas, “para servir a Pátria, ditosa minha amada” – “uma vida pelo mundo em pedaços repartida”.
Se tivermos o privilégio de ler a essência do tema (Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas), e se tivermos os Lusíadas como auxiliar de Leitura, facilmente deduzimos que é nesta obra maior de Camões que encontramos, “apelos contínuos para a urgência da liberdade e justiça para uma sociedade construída nos princípios da honra e nos valores da solidariedade” e, não será aí que lemos “o humanismo universalista dos portugueses, a abertura para o mundo e a invenção da modernidade”.
Em Portugal, a origem dos feriados é tão longuínqua quanto a monarquia constitucional, entre 1820 e a Implantação da República, em 1910.

Foi Almeida Garrett, que introduziu o romantismo literário em Portugal – o seu poema “Camões”, de 1825, do período de exílio, foi a primeira obra do romântismo da história da literatura portuguesa -, que identificou Luiz Vaz como modelo de herói português.

A ideia de se comemorar o III centenário de o autor d’Os Lusíadas partiu de Joaquim de Vasconcelos, que a apresentou em 1879 na Sociedade de Geografia, fruto da confluência de vontades, do republicano Teófilo Braga e o socialista Antero de Quental, “foram durante as décadas finais do século XIX as faces opostas da mesma moeda” –viriam a cortar relações a partir de 1872.

A 10 de Junho de 1880, um grupo de intelectuais , com o republicano Teófilo Braga à cabeça – entre outros faziam parte Ramalho Ortigão, Sebastião Magalhães Lima (futuro grão-mestre da Maçonaria), Luciano Cordeiro e Jaime Batalha Reis – organizou a Comemoração do III centenário de Camões. Um cortejo cívico e patriótico português, marcado pelo protesto contra o sistema da regeneração, o Governo e a política colonial.

Apesar de vários amigos seus – Ramalho Ortigão e Batalha Reis – terem participado, Eça de Queirós, opôs-se, “considerou-o ridículo, tendo declarado não ser com colchas penduradas nas varandas, mas com uma cultura viva que uma nação se prestigiava”: “Eu não reclamo que o país escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos e que se interessasse pelas artes que já estão criadas”.

A festividade incluiu a transladação, para os Jerónimos, dos restos mortais de Vasco da Gama e de Camões, um velho sonho de Almeida Garrett que, desde 1836, pregava pela existência de um Panteão Nacional.
Após a Implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, foi criada uma comissão legislativa com o objectivo de elaborar o projecto da bandeira da República Portuguesa e decretar os feriados nacionais. O Hino Nacional – «A Portuguesa» -, já existia desde 11 de Janeiro de 1890, logo a seguir ao Ultimato Inglês (o princípio do fim da Monarquia Constitucional).
O Ultimato Inglês de 1890 e a crise financeira que veio logo a seguir, em 1891-1892, fizeram cair a monarquia.

Composto e orquestrado por Alfredo Keil como marcha patriótica, com letra do poeta Henrique Lopes de Mendonça, foi tocado pela primeira vez por uma banda filarmónica.

A banda do Carril, hoje Filarmónica da Frazoeira, do concelho de Ferreira do Zêzere.
Apesar de composta ainda no tempo da monarquia, «A Portuguesa» tornou-se de tal forma popular que os republicanos adoptaram-na como Hino Nacional.

Sete dias após a revolução republicana, a 12 de Outubro, o Governo provisório todos os feriados civis e religiosos, decretando apenas cinco, este mesmo decreto consagrava por outro lado a origem dos feriados municipais.

O primeiro feriado nacional, decretado pelos republicanos, foi o 1.º de Dezembro, como o dia da «Autonomia da Pátria Portuguesa», o vulgarmente designado «Dia da Bandeira».

Os outros feriados decretados foram: o 1.º de Janeiro, consagrado à «Família Universal»; o 31 de Janeiro dedicado aos «Precursores e Mártires da República»; o 5 de Outubro em homenagem aos «Heróis da República» e, finalmente o 25 de Dezembro, o «Dia da Família».
Honrar Camões, poeta da “Bíblia da Pátria”, foi o objectivo inicial de Lisboa ao adoptar o 10 de Junho como feriado municipal.

A primeira romagem à Gruta de Camões, dá-se a 7 de junho de 1923. Era governador o republicano Rodrigo José Rodrigues (1879 – 1963).

Só em 1933, no Estado Novo, sob a batuta de Oliveira Salazar, o «Dia de Camões» passa a ser festejado a nível nacional. A data celebrava o «passado épico e o carácter singular» dos portugueses, ideias da «nossa» identidade.

Até ao 25 de Abril de 1974, o 10 de Junho era conhecido como o «Dia de Camões, de Portugal e da Raça». Homenagear as forças armadas é outro dos objectivos do 10 de Junho, a partir de 1963. Exaltação da guerra e do poder colonial.

Finalmente, a terceira República, como não se revia neste feriado, a partir de 1978, converteu-o em «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» -, mas nem sempre o espírito da iniciativa está presente.

Agitações, tumultos, revoltas e batalhas – dentro e fora de portas – risos e emoções – e, como navegamos em mares agitados – angústias e tristezas -, saques, crises e bancarrotas. Tradições e virtudes, insatisfação e preconceitos. E, assim vivemos quase há nove séculos – é fado!
Foi neste desalento, pobre e à deriva “que deram novos mundos ao mundo”.

Saber criar uma nova perspectiva geográfica do pensamento, para não estarmos ainda hoje a recordar as palavras de Eça de Queiroz (em «O Distrito de Évora»): “É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política do acaso, política do compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”.
Deixámos abolir – inconscientemente (?) – a «nossa» auto-estima. Daí resulta que uma faixa significativa da população vegeta e uma percentagem mínima vive, um dos lados de uma moeda já fora de circulação – e, assim vamos cantando e rindo!

Subjugados ao poder de interesses, hoje como ontem – Ramalho Ortigão (em «Últimas Farsas» de 1911), escrevia: “O acordo de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder (…) falhara inteiramente na sua reiterada aplicação prática. O jogo permanente (…) desgastara todas as engrenagens, boleara todos os ângulos, puíra todas as arestas (…). Nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos”. Combater os «nossos» próprios defeitos, será um dos caminhos – estes pesam na «nossa» herança cultural -, temos de saber reorganizar o espaço afectivo.

Temos de criar e desenvolver a nossa própria gramática e sintaxe: uma nova linguagem de afirmação no mundo, a outra morreu nos finais do séc. XVI – não deixa saudade!

Em 2012, em pleno período da intervenção da troika em Portugal, foram abolidos quatro feriados nacionais, dois religiosos, dois civis: Corpo de Deus (11 de Junho); Dia de Todos os Santos (1 de Novembro); Implantação da República (5 de Outubro) e Restauração da Independência (1 de Dezembro). Neste último caso quebrou-se a tradição. Era o feriado mais antigo que existia em Portugal, vinha já desde a primeira metade do séc. XIX, tendo resistido até à I República.

Um dos primeiros gestos oficiais de Marelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, foi repor os feriados perdidos, contra o coro de protestos das Associações patronais. E aqui chegamos – “por este rio acima” -, às Comunidades! “Macau, a primeira República democrática do Oriente, e ponto tradicional de interpretação e sincretismo cultural”
… e, continua a ser o português a “língua dos nossos encontros, desencontros e reencontros”.

* Vergílio Ferreira (1916/1996)

10 Jun 2020

Eduardo Ribeiro, investigador camoniano, lança versão inglesa de “Camões na Ásia”

A versão em língua inglesa do livro “Camões na Ásia”, de Eduardo Ribeiro, vai ser apresentada na Livraria Portuguesa no próximo domingo pelas 17h30. Ao HM, o autor falou da paixão que tem pela obra do poeta português, das provas a que chegou acerca da sua presença em Macau e da importância que o poeta teve para dar a conhecer o que por cá se passava

 

Como é que se começou a interessar por Camões?

Sempre gostei de Camões, desde o liceu. Quando estava na Universidade, encontrei uma edição da Nova Aguilar, da obra completa, uma edição belíssima encadernada. Foi quando disse para mim que ia ler “Os Lusíadas” por prazer e não por obrigação. Adorei. Naquela altura, a coisa ficou por ali.

Mais tarde acabou por se dedicar à investigação.

Vim para Macau em 85. Andava por aqui, tranquilo e quedo, até que um dia em conversa com o Rui Manuel Loureiro, ele, a certa altura, diz que não havia certezas de que Camões tivesse estado em Macau. Já na altura não concordava com a tese dele e por uma razão muito simples: a historiografia que ele ataca é a historiografia antiga, que é aquela que defende que Camões esteve em Macau nos anos 50 do século XVI. A historiografia nova não diz isso. Não podemos dizer que Camões estava cá nos anos 50, porque nessa altura os portugueses ainda não se tinham fixado definitivamente aqui. A partir de 1560 é que isso aconteceu. Comecei logo por atacar esta falha na construção da crítica à historiografia camoniana relativa a esta altura. Além disso, há outros autores que defendem que Camões esteve em Macau, sem referir anos. Por exemplo, a Catarina Michaelis Vasconcelos afirmou que o poeta esteve em Macau e aqui escreveu três dos seus cantos, pelo menos o V, o VI e o VII. E Canto V é fantástico, é o canto que se refere ao episódio do Adamastor, que é um episódio autobiográfico e onde é que isso se passa? Este episódio foi escrito ali nos Penedos de Camões. O Adamastor é o Camões e tudo o que ele lá conta passou-se com ele. Entretanto, em 2007 a COD editou um livro meu e a partir daí nunca mais parei. Não me limitei a discordar do Rui Manuel Loureiro e comecei a defender a historiografia nova.

E o que nos diz essa historiografia?

Comecei a suspeitar e a defender a historiografia nova, aquela que defende que Camões esteve em Macau na década de 60. A partir daí, fui em busca de mais informação. Havia um livro do José Hermano Saraiva que referia que Camões tinha vindo para Macau em 1563 com os jesuítas. Já havia um precedente. Este homem dizia que era em 1563, ou seja, exactamente na década que eu também defendia. A partir daí, a minha tarefa era ir mais além, ou seja, descobrir com exactidão em que ano Camões aqui tinha estado. De repente, descobri ao ler Diogo de Couto, o cronista da Ásia, que dizia com quem é que o Camões tinha vindo para cá. Tinha sido com o Pedro Barreto. Estava lá escrito, bastava ler. Sei que não é fácil ler aquela escrita do nossos autores quinhentistas, mas estava lá tudo.

Então Camões veio para Macau efectivamente com Pedro Barreto?

Camões veio na viagem de Pedro Barreto a Macau como provedor de defuntos. Todas as viagens naquela altura tinham um provedor de defuntos. Normalmente, este provedor era também o capitão do navio por inerência.

E que função era essa?

Quando morria um português a bordo, na guerra, de escorbuto etc, era necessário arrecadar os seus bens para que fossem entregues no regresso aos parentes, à viúva, aos órfãos. Era um cargo de pouca importância na época de Camões e só veio a adquirir alguma importância a partir dos anos de 1580, mas nessa altura era um cargo, digamos, pouco rentável. O provedor tinha uma percentagem da venda dos bens arrecadados quando se fazia a licitação para que o dinheiro fosse entregue às famílias. Na verdade, Camões acabou por ter esta função porque o Pedro Barreto não queria saber dos réditos provenientes deste cargo. Para trazer Camões, Pedro Barreto acedeu ao pedido do vice-rei da Índia Francisco Coutinho que, por sua vez, estaria a responder a um pedido do próprio Camões feito em poema para que desta forma se livrasse da cadeia. Camões estava preso por dívida a um fulano que era parente do vice-rei. Naquela altura, também já toda agente sabia que andava de volta da escrita de um poema épico a enaltecer os feitos portugueses no Oriente. Camões era um folião e, provavelmente, estas dívidas até poderiam ser de jogo. Naquela época, os portugueses jogavam muito. Ora bem, chegam a Macau, o capitão-mor da viagem era por inerência o capitão-mor de Macau e o provedor dos defuntos, por inerência, era também o provedor dos portugueses mortos ou desaparecidos de Macau. Camões esteve dois anos em Macau.

Esta estadia de Luís de Camões em Macau não poderia ser mais explorada pelo próprio Governo e aproveitada na promoção tanto da obra do autor aqui em Macau?

Macau pode fazer isso e, se fosse inteligente, deveria aproveitar a estadia do primeiro europeu a vir para Oriente e que denunciou os desmandos de poder neste encontro com o outro. E mais, recentemente apresentei uma tese no Instituto Confúcio da Universidade e Aveiro onde explico muito bem, e em detalhe, a influência que se pode ver em Camões com a vinda ao Império do Meio. Camões, enquanto esteve aqui, não se deu só com jesuítas e com a fidalguia, ele dava-se com toda a gente e recebeu muita informação sobre a China.

Isso nota-se nas obras dele?

Claro e a começar pelos Lusíadas. Os três últimos cantos já são imbuídos de aspectos deste lado do mundo. Nesses cantos percebemos perfeitamente que Camões já está imbuído de outro mundo, de outro universo, de um mundo onde se subia não à conta do sangue da fidalguia. O intelecto, o saber, o conhecimento é que era tido em conta através do mandarinato estava muito desenvolvido naquele altura. Qualquer pessoa de bem, desde que mostrasse força intelectual e esforço escolar podia ir subindo de estatuto até um dia ser mandarim. Podia ser filho de ninguém e Camões denuncia isto mesmo. Camões foi realmente o primeiro europeu a fazer eco desta civilização e a denunciar os desmandos dos nossos aqui. Se Fernão Mendes Pinto o faz com sátira, escárnio e com humor, o Camões faz com seriedade, com aquele ar professoral e com aquele estatuto que ele sabia que tinha: ele sabia que era um homem superior.

Qual vai ser o seu próximo projecto?

Estou já a preparar um livro que vai tratar das minha memórias em Angola.

17 Mai 2018

A Máquina do Mundo

Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assim foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada

Os Lusíadas, Canto X.

  

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amões fala-nos aqui de uma mais que provável imagem mítica por si adaptada, mas que máquina é o Mundo nesta ideia maquinante que domina a nossa mente? A intertextualidade fala-nos de mecânica até aos mais recônditos dos tempos, mas que sabia o poeta dos seus movimentos bem explícitos na estrofe oitenta? Que a poesia é uma espécie de algoritmo? Sem dúvida, esses processos matemáticos que nos regulam sempre e cada vez mais fazendo parte do visionar a partir de dados recebidos, sabendo-se da capacidade de delinear variáveis a partir desses mesmos dados que é uma nova explosão na mente e na realidade humana. E que sabemos nós dos Camões que andam nesta máquina? Aparentemente pouca coisa, mas que eles à distância de séculos visionem o seu mecanismo não nos deve pasmar, já Ramon Lull (século XIII) – o poeta Ramon- fazia os seus poemas com números e com letras para com eles demonstrar a existência de Deus. Dante tem uma engrenagem espiralada em mecanismo e que todos eles tivessem estado no eixo da máquina não nos pode surpreender, rolando parada estava…. Vejamos a estrofe setenta e oito: / volvendo, ora se abaixa, agora se ergue/ qual a matéria seja não se enxerga/ Mas enxerga-se bem que está composto de várias orbes/ e talvez tenhamos chegado ao tempo do poeta vidente.

Se o possível é a verificação física do provável, o provável é a pré-existência do possível, pois que o Poema possui sempre outros recursos além do ritmo e do sistema de medida para se realizar como Poema. A poesia como arte inefável que faz parte dos desprotegidos e das sensações, queda, em queda…. por isso, será ela capaz de novo elevar-se como meio de conhecimento e de força renovadora da linguagem? Não sei. É uma questão cibernética às nossas reservas oníricas, poderá ela ressurgir intacta depois de vogar por aqui? Por estes tempos? Estamos na era dos Filhos do Homem, as novas máquinas do Mundo, da robótica, tendo ficado mais unidos, é certo, mas infinitamente mais apáticos, também, estamos agora nós programados para a máquina do Mundo por ela própria reinventada pois que sem ela a nossa humanidade já não é passível de se fixar perante os moldes que tínhamos como imperecíveis. Se a própria noção amorosa aos poucos se esgota pela cada vez mais ténue empatia, essa extensão continuada dos afectos, que nos sobra então de verdadeiramente humano que possa merecer a nossa atenção? Vamos substituindo pelas formas programáticas dos nossos correspondentes mecânicos: somos muitos, é certo, mas somos frágeis e não estamos fora do perigo da mordaça viral a grande escala feito por formas tão conscientes como o de produzir outras vidas. Sem dúvida que todo o labor poético sério seria agora mais do que necessário para a gigantesca metamorfose em curso, até porque a ideia de um mundo laboral tal como era concebido está prestes a findar e dever-nos-ia acordar para tudo o que se segue. A Revolução Industrial implementou o trabalho como medida de libertação, o trabalho físico, dando origem a novas classes sociais, hoje a Revolução é a da Inteligência Artificial e a noção de trabalho alterou-se na sua razão libertária. Não vai haver trabalho dentro em breve para um terço da população mundial, até já há “chips” que dispensam o carregamento de objectos…e gastamos agora os últimos pacotes dos medos porque infelizmente não tivemos acesso ao melhor da educação poética, aos que sonharam a Máquina do Mundo.

O rei Salomão tinha a sua Máquina Voadora e, se mistério oculta, sondemos a máquina do tempo. Também ele, escreveu amorosamente e foi cúmplice da linguagem de muitos saberes, também amou rainhas e plebeias e se prostrou reinante como o mais lendário dos homens. E para onde voava com sua máquina de sonhos? Fez Cânticos Maiores, maiores do que o amor terreno, foi terno como os cordeiros de seu pai David e ficou-lhe o respeito pela Noiva-Irmã, o eterno laço do seu saber. Não era um gigante, diz-se que foi um homem, mas que homens havia que a Máquina tirou do alcance dos naturais? Todas as questões são maquinações agora bem legítimas de envolvermos a nossa mente atraída pelos nossos Filhos, que talvez sejam os de um Deus Menor que somos nós.

Andar para trás e para a frente vai ser possível, fazermos dos tempos plasmas vários, ao invés do que foi andar de baixo para cima e de cima para baixo, tipo escada de Jacob. O plano parece mais plástico, ganhamos umas asas estranhas e não longe andamos do insecto de Kafka, ludibriamo-nos com a descoberta de poucos e somos muitos a não descobrir nada… em nossa alteração opomos resistências tais que estamos com cancros da dimensão de uma praga” vemos, ouvimos e lemos” e podemos ignorar. Podemos dar-nos ao luxo suave do esquecimento, dado que o cancro avança e o nosso corpo não tarda também é imortal, criopreservado até encontramos a cura. Até lá laboramos à boa maneira esclavagista não vá isto tudo descer…

Há um silêncio doce na Máquina do Mundo que requer o barulho das multidões, ainda, como mera energia de vapor…mas pode dela não vir a precisar, e o carvão e o aço somos todos nós a fazer trabalhar uma forma de vida que morreu, nós, os fantasmas, os duros na retirada.

“A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo […] a poesia ‘conhece’ e não sabe.” Almada Negreiros (de Prefácio ao livro de qualquer poeta, 1942).

12 Abr 2017

Camões e o céu

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] início do século vinte foi verdadeiramente inovador e de uma dimensão moderna sem precedentes, começando pelo Futurismo de Marinetti , o Simbolismo, o Cubismo e todas as formas que ousaram avançar e transformar os signos linguísticos e as estruturas criativas em elementos de plena mudança social. De tal forma que a noção de original se baseou na origem, ao que ela pode servir de reminiscência do esquecido, e com as liberdades sociais que teciam o progresso foi dado ao criativo, ao artista, ao poeta, meios ímpares na transformação da génese colectiva. Olhamo-los à distância de um século e parece que não nos foi dada esta modernidade, esta qualidade, este saber e saber fazer, que uniam partes por vezes tão dissonantes.

Em Pessoa, sabia-se da sua forma hermética para interpretar horóscopos, mas não era só ele: havia por toda a Europa a transmigração das ciências ocultas e Crowley, o mal amado dos poetas, não deixa por isso de ter sido um soberbo escritor e junto a ele a flama sem fim dos espelhos e das bocas mágicas: muitos de carácter sexual que exacerbavam com beleza rara o mito de Pã e as germinativas capacidades da falocracia como estado ébrio da criação. Por isso não devemos deixar de ouvir este Hino, neste tempo em que se fala de paganismo como de idolatria a esferas de prazeres menores. Por esta altura vivia entre os nossos poetas do Orpheu, um homem, também da sua época e não menos inquietante, aquilo a que chamaríamos hoje de reaccionário, o que não deixa que fique como os naturais de hoje, sem interesse, e coisas também elas apaixonantes para contar: falamos de Mário Saa, conhecido pelo seu anti-semitismo primário e suas visões sobre a conspiração judaica. E é numa espécie de pequeno opúsculo que um escritor português mais recente descreve a visita de seu pai a Pessoa, combinada por ele como um momento simbólico de caça invisível à tal “espécie”. Chegados ao encontro, viu Mario Saa em duas, a mesma pessoa, o mesmo chapéu e, insultosamente, o mesmo nariz, empurrando-os humilhantemente um para o outro e culpando tal gene covilhanense. Como todos os “caças-fantasmas”, ele queria provocar em alguns amigos a tímida consciência das suas raízes, da qual ele não gostava, mas também não se separava. Vejamos que estes homens ainda não tinham o surro pequeno- burguês que invadiu a sociedade portuguesa da ditadura; eram homens brilhantes, com posições contrárias, sim, mas que dada a pequenez da organização social estavam condenados a unirem-se.

Mário Saa tem, entre muitas obras emblemáticas, uma, muito ao gosto de Pessoa, «Memórias Astrológicas de Camões», obra essa que lhe terá servido de inspiração para o poema de Saturno e os três anéis – fome, miséria e desolação. É, de facto, uma viagem secreta pelas entranhas do poeta, mais mitológica que lógica, mais simbólica que hiperbólica, mais refinada que exagerada, mais fatalista que elitista, e que nos dá a certeza de que entre mandala e céu conhecia em muito o seu destino. Aliás, esta recorrência a Saturno é muito poética e filosófica, e vejamos: «Sob o signo de Saturno», de Walter Benjamim; «Poemas Saturninos», de Verlaine; a máscara de Dante; «A Viúva», de Gomes Leal, de que Pessoa tanto gostava, pensando mesmo ser dele uma centelha. Nascidos no mesmo dia e com todas as esferas iguais e concertadas, este aspecto de uma radicalidade poética esbate o efeito da Primavera da Poesia, dos serões de meia província, da deidade branda do poetizar, da noção intimista das coisas vulgares. Aqui é de poetas que falamos e não de bucólicas criaturas em vários formatos da sua demência existencial. Saturno, como os anátemas, está gravado a ferros, que o fogo não entra neste frio.

Camões, de quem tão pouco se diz saber, nasceu a 23 de Janeiro de 1524, a um sábado, dia consagrado a Saturno num eclipse do Sol e o resultado parece mais assombroso quando o registo o dá pelas oito e meia da noite com Balança ascendendo. Saturno e Vénus estavam como o refere , em debilidade acidental; seria por isso Aquário com ascendente Balança, o que reforça o carácter estético da sua lírica. Camões quando escreve o célebre poema «O dia em que nasci» tinha uma vasta consciência disto e não nos esqueçamos também de que se baseia no próprio «Livro de Job» e dá-lhe a tónica final numa interpretação deveras fulgurante.

A terrível realidade inscrita nas suas lúcidas formas de saber não produzem facilidade nem estados de consciência brandos, são seres derradeiros que se manifestam no limite … sim – o dia em que nasci, morra e pereça, não o queira jamais o mundo dar… dê o mundo sinais de se acabar… a mãe ao próprio filho não conheça…– aqui está a completa consciência da sua Fortuna, mas Saturno, a quem os matemáticos da época chamavam Infortuna Maior, é o guardião do poeta «chamo dura e cruel a dura Estrela».

Para a definição do ano de Camões estão exaltadas as conjunções de Júpiter e Saturno, conjunção esta que preside aos períodos históricos: Islão, Reforma, Revolução Francesa. A Reforma foi a da época de Camões. Ocorreu no começo desse ano no signo de Peixes tendo determinado os infaustos prognósticos do Segundo Dilúvio Universal que irritados estavam com o Tempo e o Mundo.

Para quem do Amor – não viu se não breves enganos – há que dizer da supra maravilha de uma exigência interior que o faz escolher a Dama Sol, uma tal Violante. Foi esta ao que parece a sua Beatriz a quem chamou «A roxa flor de Abril» e foi sobre a sua sepultura, quando regressado a Lisboa, que escreveu o soneto «Debaixo desta pedra sepultada» gentileza da luz, que a noite escura tornava em claro dia…

É o maléfico Saturno que, antes mesmo da partida para Macau, num namoro de oito anos, lhe ofereceu a ofensa suprema do seu casamento com outro, por não reunir dotes para tal missão. Aquelas pessoas importantes que ninguém sabe quem sejam dado que aquele que não interessava era sem dúvida de importância extrema. Sentir isto é como a pedra forjada pelo elemento duro do astro baço e nem sequer estamos na presença de um homem comum, conquistador, que se limita a multiplicar a náusea da sua triste condição. Falamos de um Homem.

É nestes interstícios sonegados ao saber normativo que estão os elementos mais importantes para a compreensão daqueles que todos gostariam ter sido, mas que não teriam suportado tal destino, pois que é deste ferro, forjado a desterros e abandonos, a equívocos e ranger de dentes, a dias de eclipses, a astros muito baços, que faz nascer o mais belo dos “metais”: a alma humana e o seu génio.

Por isso, bem-digo tal dia, mesmo coberto das trevas de que o poeta se vestiu para que não morressem fulminadas as gentes perante a luz imensa deste ainda desconhecido.

Este tempo era ainda o da velha teoria de Joaquim de Fiore, o do ciclo milenário, e este era o ano que por toda a Europa corriam as notícias dos sinais apocalípticos anunciados para esse mesmo dia, era o tempo em que se falava dos monstros: mais tarde saberia dizer com precisão – Não torne mais ao mundo, e se tornar, Eclipse nesse «Passo» o Sol padeça, Nasçam-lhe «monstros»!

Este seria um monstro teratológico se é que chegou a ser alguma vez criança prodígio, pois que também havia os celestes como grandes sinais dos Céus.

12 Jan 2017

O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Exposição Industrial de Macau, organizada como complemento dos trabalhos de propaganda do novo porto, tinha fechado a 12 de Dezembro de 1926 e A Pátria de 21 desse mês referia: “Diariamente têm sido transportados para o novo museu, instalado no Palácio da Flora, vários objectos, entre eles algumas pedras lavradas, lápides e lajes de antigas sepulturas. Dos artigos expostos na Exposição Industrial, saíram algumas amostras gentilmente oferecidas por alguns expositores à Secção Comercial do Museu, tal como a cedência, facilitada por parte de chefes de serviço, de alguns objectos.” Parecia agora a todos que Macau iria conseguir ter por fim um Museu. Luís Gonzaga Gomes refere, “Pela Portaria n.º 221, datada de 5 de Novembro de 1926, foi criado, pelo Governador interino e Director das Obras dos Portos, Almirante Hugo de Lacerda, um mostruário de produtos nacionais de Portugal Continental e Ultramarino, especialmente, de Macau e Timor, com carácter comercial, abrangendo uma secção do museu da Colónia e tendo agregada a colecção de exemplares de Comissão de Pescarias, sobre o nome de Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões e a constituir com os artigos que possam provir da Exposição Industrial e com os que possam ser dispensados por diversas repartições, devendo ir sendo completada à medida das possibilidades. Para orientar e dirigir este Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões foi nomeada uma comissão, por portaria da mesma data, composta, pelo engenheiro João Carlos Alves, director principal; o missionário padre Manuel José Pita, director da secção do mostruário; e o professor do Liceu Central, Dr. Telo de Azevedo Gomes, director da secção do Museu; o pouco que foi possível colher-se do refugo das repartições públicas e de uma ou outra igreja, se instalou, no Palacete da Flora…”

A ideia do Almirante Lacerda era um museu histórico e artístico e em anexo ficava uma exposição comercial. “Ora como não conviesse misturar objectos artísticos e históricos com espécies comerciais e etnográficas e sendo o Palacete de Flora demasiado acanhado para se poder dar um conveniente arrumo ao que se pretendia expor, o Leal Senado resolveu (…) ceder para a secção histórica do Museu, algumas salas do seu andar nobre”, segundo Luís G. Gomes. Já o semanário A Verdade de 1 de Setembro de 1927 informava: “Estão sendo colocadas no átrio do Edifício de Leal Senado, gentilmente cedido pela digna Câmara de Macau, as pedras com inscrições históricas, armas, brazões, etc. sob a direcção de um dos Directores Técnicos do Muzeu, Dr. Telo de Azevedo Gomes. Brevemente deverão começar os trabalhos da instalação da Biblioteca n’algumas salas do andar nobre daquele edifício, passando as Repartições Municipais para o Correio e este para umas dependências do Palácio do Governo.” No entanto, A Pátria de 4 de Novembro de 1927 referia que a secção comercial do museu ainda se encontrava instalado no Palacete da Flora, tendo essa mudança já sido efectuada para o rés-do-chão da Santa Casa da Misericórdia, como referia a Verdade a 2 de Outubro de 1928. Tal poupou essa parte do recheio do museu, pois a explosão do Paiol da Flora em 13 de Agosto de 1931 tê-lo-ia destruído.

O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, dividido por dois edifícios, abriu a 24 de Junho de 1929, tendo como Director o Cónego António Maria de Morais Sarmento.

Os antecedentes

Por decreto de 26 de Janeiro de 1871 fora organizado o Museu Colonial em Lisboa e pedira-se aos Governadores de cada uma das Colónias portuguesas para reunirem amostras de produtos industriais ou outros artefactos. Para tal, o Governador da Província de Macau, Joaquim José da Graça (1879-1883), “Considerando que para se reatarem os laços comerciais entre Macau e o Reino muito convém serem conhecidas as qualidades, aplicações e preços dos produtos da indústria e comércio deste mercado, o que melhor se pode conseguir expondo-os nos museus, destinados a reunirem as amostras das riquezas em que as colónias abundam”, mandou constituir oficialmente uma Comissão. Esta era composta pelo Secretário-geral do governo o bacharel José Alberto Côrte Real e os cidadãos, Filomeno Maria da Graça, António José da Fonseca, Maximiano António dos Remédios, Pedro Nolasco da Silva e Lauriano José Martinho Marques. “Outrosim hei por conveniente declarar que se tornou muito digno de louvor o leal senado pela parte com que contribuiu o município, que é o primeiro interessado em todos os esforços tendentes a desenvolver a actividade e a riqueza desta população”. A Comissão não só coleccionava produtos de Macau como de Timor, à data junta com esta Colónia.

No Domingo, 2 de Maio de 1880 pelas 13 horas ocorreu nas salas do Leal Senado da Câmara a Exposição de artefactos, produtos industriais e outros objectos desta província. Era assim em Macau “apresentado ao público numa das salas do Leal Senado da Câmara o resultado dos esforços empregados pela comissão em reunir, classificar, coordenar e expor metodicamente os produtos que vão ser remetidos ao museu Colonial de Lisboa e ao da Universidade de Coimbra, sendo de mais a mais esta a primeira exposição de carácter industrial que se faz na colónia”, como se encontra referido no Boletim da Província de Macau e Timor, Suplemento de 28 de Junho de 1880. Durante a inauguração, o advogado António Joaquim Bastos Júnior propôs a criação do Museu Municipal de Macau.

Esta exposição criou um enorme entusiasmo e a vontade de continuar a coleccionar produtos industriais chineses para enviar para Portugal que, a 31 de Janeiro de 1882, o Presidente da Comissão José Alberto Homem da Cunha Côrte Real, que era também Secretário-Geral do Governo de Macau, pedia ao Leal Senado a cedência das suas salas para fazer uma nova exposição. E foi com esta nova exposição que se reavivou a ideia de António Joaquim Bastos Júnior de criar o Museu Municipal de Macau. Um dos grandes impulsionadores para a existência desse museu foi José Alberto Corte Real que, por se retirar da colónia, na sua carta de despedida de 10 de Julho de 1883 refere remeter ao Presidente do Leal Senado “alguns objectos, que eu ia pouco e pouco reunindo por via dos meus amigos para o museu municipal cuja fundação tão útil se me afigurou sempre.” Seguindo o seu exemplo e como um dos principais mentores, em Macau começaram a aparecer muitos particulares a adquirir peças de arte chinesa, que foram transformando as suas casas em verdadeiros museus.

16 Dez 2016