Intertextualidade e poema

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem se move na esfera do poema sabe o quanto inacabado um verso é. Por isso a vigilância exerce esse poder de síntese tão do gosto do poeta amante da língua, onde só ele mais do que ninguém sabe como transformar: mas quais as metamorfoses e transformação do texto poema?

É nele que a intertextualidade mais faz sentir o texto base desta variante, como um sincretismo que acrescenta particularidades tão ricas na recolha de todos os elementos de uma caracterização. Não esgotamos em nós a fórmula, a língua não é como o sangue, um circuito fechado: é de correntes abertas. Foi no fazer e refazer dos textos sagrados que encontrámos a primeira polifonia linguística, é nela que acrescentamos corpo ao conceito metafísico de Deus. Fizemo-lo pelo Verbo, tanto como ele a nós nos gerou no princípio. Sendo assim, dir-se-ia que desocultámos o humano que somos pelo texto permanente criado e não gerado, pela recriação contínua do que significa no fim de contas – Todos os Textos- um só texto, contínuo, ininterrupto.

Hoje as complexas relações de intertextualidade estendem-se a vários campos criativos, entre os quais os audiovisuais. Há quem, a propósito do tema, fale em «intertexto», pois que todo o texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou por escrever. A presença efectiva de um texto em outro pode ir da citação, à alusão, à menção indirecta, até ao plágio (embora este último não apresente carácter inventivo que acrescente o original). Há em grau a polifonia que ocorre com o texto inserido em outro texto que no poema temos mais presente como uma monofonia, só quando se trata do poema épico se exerce então e brilhantemente o outro anunciado.

Por uma constante leitura de obras paralelas, não raro nos damos conta do que acima foi exposto: que continuamos numa leitura do mesmo texto – hipertexto – com ressonâncias de tempos e espaços que se vão ampliando de forma apaixonante. E passo a citar apenas muito poucos mas significativos exemplos: o poema bíblico do «Livro de Jó» e o poema de Camões «O dia em que nasci», «Sonnets pour Hélène» de Pierre de Ronsard e «When you are old» de Yeats, «Spleen et Idéal» de Baudelaire e «Sacha e o poeta» de Manuel Bandeira, «Soneto amoroso definiendo el amor» de Francisco Quevedo e «Amor é fogo que arde» de Camões. Estes bastam para legendar o título do artigo recorrendo a extractos de todos os poemas.

Manuel Bandeira/ Baudelaire

 Quando o poeta aparece Sacha levanta os olhos claros.

o poeta a seguir diz coisas incríveis…

 Quando, por uma lei das potências supremas

neste mundo aparece o poeta

a mãe ergue os punhos para Deus

que dela se apieda:

  Pierre de Ronsard/ Yeats

 Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle

assise auprés du feu, dévidant et filant…

 Direz chantant mes vers, en vous émerveillant…

 When yoy are old and grey and full of sleep

 and nodding by the fire, take down this book

 And slowly read, and dream of the soft look.(…).

 Quevedo / Camões

… es hielo abrasador/ es fuego helado/ es ferida que duele y no se siente/ es un sonado bien/ un mal presente/es um breve descanso muy cansado .

 

…amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente/ é um contentamento descontente/é dor que desatina sem doer.

 

«O Livro de Jó» / Camões

…então Jó abriu a boca e amaldiçoou o seu nascimento :

Pereça o dia em que nasci/ que esse dia se mude em trevas/ que trevas e obscuridade se apoderem dele/ que eclipses o apavorem/ por que não pereci no seio materno

 

O dia em que nasci morra e pereça/ não o queira jamais o tempo dar/ não torne mais ao mundo, e, se tornar, eclipse nesse passo o Sol padeça. …/ a mãe ao próprio filho não conheça.

 Todas as leituras serão, neste caso, releituras na vertente de construir um hiper-poema que vá definindo, com estruturas de tempos, épocas e autores, a verdadeira marcha do texto que se está fazendo, sempre em aberto, sempre outro e sempre o mesmo. Que os vínculos que professam as correntes também ditam as proximidades e todos os nossos pares são aqueles que connosco constroem um percurso que é o mesmo. Talvez isto explique a cisão da Poesia como arte regeneradora neste momento, dado que as releituras nunca se fazem como um processo contido nos hábitos de ler. Apanhamos a marcha interrompida e avançamos em outro lado como se de uma catedral em pedra se tratasse o grande acórdão de um Poema Final.

“Só uma época avara de originalidade produz tanta coisa em circuito fechado, numa demonstração lasciva das suas próprias vivências”. Só uma arrogância idílica provoca tanto desastre na linguagem escrita. A experiência de cada um não serve uma causa comum, a menos que dela se retire elementos que pertencem a toda a Humanidade e, mesmo assim, terá de o saber dizer com labor formal para produzir uma obra de arte.

Nunca se viu mesmo tanta gente aparentemente unida sem espírito associativo, faculdade reservada aos de boa memória, que a construção do poema não permite que nos esqueçamos do essencial. Precisamos que a palavra volte a ser o elo mais sagrado em certos domínios e dela só se utilize esse essencial que importa. É uma blasfémia não sermos acordados por uma organização perfeita de um discurso belo como é desesperante tanto ruído para nos fazermos entender.

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