Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasComo água que corre [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m longo manto de Estio se precipita e não somos contemplados com as noites macias da Estação. Há na atmosfera muita fuligem que nos toma e dissecamos os instantes, não em beijos mas em torrentes de azáfamas que estão mais quentes que os combustos incêndios. Não nos permitimos correr como os rios e os tempos não são a foz das águas com caudais transparentes: por todo o lado soam avisos e para os mitigar prosseguimos como se os eles fossem os ecos de eflúvios sem sentido, nós que suados transitamos de queda em queda com formatos de guindastes e erguidos só nas intenções que gostaríamos de ver realizadas. Nenhum poeta, nenhum artista, detém sozinho o seu completo significado e tudo o que herda é de árduo labor. Porém, se aciona o fluxo das formas onde deslizam as suas fontes e enigmas mais profundos, há sim uma água que corre numa imensa dádiva tangente à dança. São orquestrações que nem de falta de som padecem. Há sempre melodia entre os sinais e sinalizar as coisas é comprometê-las com os seus pares que se transformam em outro corpo de ser, uma unidade para o efeito comum que não dispensa a parte de cada um numa manobra de simpatias que provoca a completude. Saber ir para a região que está jorrando, e nas quedas de água nos banharmos, é mais natural que estar atento a esta dimensão tão redutora de muitos sem uma voz comum de entendimento, este lastro de músculo tolhido pela formatura das pragas do entendimento estreito que lhes parece global numa máquina louca de produzir efeitos. Depois de destilados os líquidos e alguns nobres metais eles são imiscíveis mesmo tentando tocar-se, podem sim, estar lado a lado com um muro de separação qual fio de prumo que os ajuda a identificar, e lá se vai a doce visão da amálgama que tentamos saciar pelos outros, em outrem, para nos diluirmos, mas, sabemos que a partir de certas composições também nós nos separamos para sempre. Esse intransponível condão é tão extensível que vivemos dele e mesmo que queiramos interromper o fluxo da sua inexorável lei, não há forma de a contornar. O equilíbrio de forças contrastantes gera não raro um estado de beleza mas toda e qualquer permanência torna-se inadequada , se a natureza não suporta o vazio muito menos suporta a desarmonia de um estar continuado. Não endereçamos a vida a ninguém, não há nenhum receptor à nossa espera, nós somos os emissores constantes desse emissário do Deus desconhecido que se vai recriando em cada um de acordo com a sua consciência, por vezes, escutamos a sua voz, noutras, ela se silencia e cala, apenas a sua lembrança gera o movimento de prosseguir ditando alguns sinceros sinais de uma ininterrupta interrogação e vontade de fazer. Se não obscurecermos nas actividades da vida, talvez haja no fim a revelação procurada mas não discutida como finalidade, e de todas as buscas, se nos ficar só uma surpreendente verdade, todo o esforço parece então ter sido ganho. O mundo não é, ao contrário deste coro em rede, uma acção forçosamente política. Aliás, é matéria que interessa muito a inertes, demagogos, ociosos e populações a retalho nas suas pequenas hierarquias de grupo. O mundo, não é isso, este barulho, estas realidades, estas preocupações generalistas dos hiperinformados que em manobras diletantes são aspirados também eles pela malha esganada dos sugadores do fluxo. O mundo não é isso, nem matéria jurídica embrulhada em gordura legislativa para em esteiras de má conduta todos andarem ditando setenças. Há comportamentos dados pela civilidade que não necessitam do crivo legalista, eles são da ordem natural dos civilizados, e ao fazer-se um pequeno país de juristas, quer ele dizer, o pequeno Estado, que a sobredosagem nestas coisas é agora o que sobrara da opinativa forma do denunciador, regedor e delator das cidades. Perderam-se sem dúvida muitas funções que fazem das sociedades unidades harmónicas, o dom das coisas eternas deixou de funcionar e o efémero é tudo – até cada um de nós – não nos foi dado desenvolver recursos que são dádivas na formação do pensamento e um mundo desorientado e sôfrego se encaminha já cego para um estertor que ele próprio não conseguiu prever. Onde deixaram os sonhos, onde lhes faltou adquirir a dobra que faz a curva mais suave antes dos estrondos e das formas de ruína? É uma jangada à deriva, mais triste que a da orfandade daqueles que passam os mares, mas se lhes dissermos de coisas outras eles não querem, eles são quem tem as soluções, eles sabem tudo daquilo que agora já não interessa. São gentes de Estação. Finda a época eles passam como espectros sem que tenhamos deles mais lembranças, mas ainda, e sempre melhor, sem que tenhamos tido remorsos por sordidamente lhes termos infligindo algum dano. Eles desconfiam de tudo, desconfiam uns dos outros, são predadores à solta e não têm nada agora que lhes saiba verdadeiramente ao sabor sadio de uma bela e sacrificial presa. As presas prendem-nos, ficam na jaula de uma condição tão desgraçada que de os ver, a vida se encaminha quase em surdina para outros locais. Das gerações precedentes não há que tomar legado, quem se abstiver de tais fidelidades cercar-se-á de outro tónus e marchará na impertinência do tempo com toda a sua novidade que será sempre melhor que qualquer repetição. Heraclito diria isto na sua frase de sábio que é a riqueza que fica.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasLivre Pauvre – Livre Riche [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] manuscrito, que tanto saiu de moda nas lides da escrita, tem ainda pelo mundo alguns amantes que em colecções de muita beleza e criatividade unem não só a arte da caligrafia como expressão visual identitária de cada um, bem como nela inserem a pintura e o desenho numa orquestração de Livro de Horas. Falo de uma criação que há muito galgou o espaço da sua origem e tem unido poetas e pintores pelo mundo « Livre Pauvre-Livre Riche», criado por Daniel Leuwers, professor de literatura na universidade de Tours, crítico literário e especialista de Rimbaud. Um livro que em si resume a natureza principal que o objecto designa, neste caso, um texto, sempre acompanhado de uma composição pictórica que releva para a sua primeira essência : sendo de uma extrema humildade, pois que não passa pelos circuitos editoriais, impressão, distribuição e outros, é no entanto o mais luxuoso objecto livresco dadas a sua raridade e composição e foi por isso assim apelidado por causa da não confrontação com o circuito económico. Por outro lado, a primeira colecção foi apresentada no priorado de Saint-Cosme, situado em La Riche, onde Pierre de Ronsard viveu os seus últimos vinte anos. O poeta, que era dado à botânica e cultivou rosas, não foi esquecido neste emblemático título. É um projecto que começou por volta do ano dois mil com um vasto roteiro de correspondência pelo mundo e onde todos se foram agrupando de forma criativa, consensual, rica, em relação a projectos e aberturas de múltiplas formas. Há colecções belíssimas, desde a Gallimard às autarquias por onde passaram algumas das suas exposições de exemplares únicos em várias línguas e formatos, sem dúvida uma Babel multicultural repleta de cor e grafismos raros. Foi por aqui que conheci o poeta sírio-libanês, Adonis, outros da Martinica e argelinos, um mundo onde a política não toca, mas onde os poetas têm o dever de se comprometer na luta pelo bem dos povos sem resvalarem na forma agreste dos comentaristas, um mundo quase belo num desastre ambientalista de ideologias e esquemas internacionalmente enfadonhos, esses, sim, pobres, muito pobres. Teve contudo este projecto o chamado projecto-mãe: a colecção « Vice Versa» com os seus delfins e grandes adeptos do livro de artista como Jacques Dupin, Bernard Noel, Jean-Luc Parant e Yves Bonnefoy, que se associou ao pintor Gérard Titus-Carmel, consagrando apaixonantes estudos. Quase que estamos numa emanação desse Livro de Horas na pista do duque de Berry, mas esta colecção galgou as fronteiras da poesia e foi extensível a Michel Tournier, Fernando Arrabal, Jean-Marie Laclavetine e outros, e se nos remetermos à ideia de Jean Cocteau para quem tudo era poesia: poesia do romance, poesia do teatro… poesia da poesia, então, estamos na presença de um grande e imenso tratado poético. E continua a sua marcha com outra das colecções «Les amoureux solaires», a colecção «Pli», em dois mil e três e que vai em definitivo encontrar a simplicidade de uma folha de papel, anotando a expressão de Mallarmé na sua nomeação, é uma colecção da francofonia pelo mundo; colecção « Éventail», com o poeta vietnamita Nguyen Chi Trung, um iminente calígrafo que nesta colecção se apresenta como escriba. Depois, Portugal- Brasil, onde venho com Victor Belém numa Lua-Nova que no dizer do autor é aquela que irradia no mundo, vem o poeta Ernesto Melo e Castro que gentilmente convidei via Leuwers num Fractal-Vento , Roberval Pereyr (quatro rotas de solidão), António Brasileiro com pintura de Juraci Dórea. Das Américas vêm também outros nomes como a jovem poeta colombiana Andrea Cote e do Quebéc Rocher des Roches e Jacques Rancourt. Há depois toda uma parte dedicada aos poetas helvéticos e seus pintores, um mundo de imensa perfusão e quase constelar. Em dois mil e quatro aparece « Feuillets entre-bâillés » que tanto entusiasmou os pintores sempre mais sensíveis ao formato da visualidade. Há um lado de «Caligramas» nesta colecção com a arte alfabética como base da expressão. « Feuillet d’album» a mais simples das colecções que são quase pequenos haikus em folhas minúsculas , poetas tunisinos e belgas numa manifesta noção de economia verbal, Alexandre Voisard, Fernando Arrabal. Segue-se «Billet» que recebe o primeiro livro em língua alemã e o primeiro livro em língua árabe de Moncef Mezghanni. E a aventura continua. Uma bela colecção de dois mil e dezasseis «Entre Alfa e Omega», uma leitura Apocalíptica publicada em Angers do «Livre Pauvre» foi doada à Biblioteca Municipal que dela fez uma exposição com um livro-catálogo de rara beleza. É, sem dúvida, emblemática toda esta natureza da escrita e da sua complementar amiga, a pintura, poetas e pintores foram sempre próximos, e não raro se estimularam mutuamente para a realização das suas obras, e este imenso lastro de beleza relacional não raro me recorda os tempos em que se estava junto com todos, fazendo-nos mais completos e solidários, onde ainda não havia vedetas, nem cismas, ostracizados, que inundou de modo vário o presente em que vivemos. Parecendo tudo mais fácil, creio que é bem mais difícil formar com os da nossa natureza um mundo melhor. Dispersos os ossos como na «Quarta-feira de cinzas» quem voltará a juntá-los? Por outro lado, falta uma vocação nova ao país para certas coisas que o dinheiro pareceu amordaçar e a soberba contaminou. Estamos esquartejados uns para cada lado fazendo dos dedos a vocação que ainda não findou. Mas, se não fosse o mundo, que estaríamos também nós a fazer aqui tão dentro de casa? Nada. Com o que sabemos e podemos não tinham nada para nós. Mesmo assim, vamos deixando pedaços que o país guardará mais tarde como presentes indispensáveis e para os quais não soube ou mesmo se dignou olhar. O luxo estará hoje naquilo que é essencial e bom. Todos parecemos fatigados do forte entulho descritivo que conseguiu eludir o mundo de falsos saberes. Regressar “à La Pauvreté”. O país e a língua portuguesa continuarão a ter assento aqui se o desejarem e se para tanto o louvor de cada um não achar esta gesta um serviço menor. Nestas coisas devemos ser como os amantes: amar e não fazer perguntas, o resultado da confiança é sempre um alto instante poético. E resulta bem quando o espaço é alargado e cada um ressalva a sua memória e a sua cultura. É muito bom ele existir. É urgente que exista.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA ressurreição da rosa [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz a lenda que rosas nascidas no Inverno são prenúncio de mau agouro. Talvez por isso a exclamação do rei não tenha sido de desconfiança mas de receio, de súbita apreensão, nesta altura ainda ele plantava uma nação feita de baldios por todas as áreas recentemente conquistadas e a cavalo conhecia bem o país e dele tirava amplas vantagens de generosos acolhimentos. As rosas são comestíveis e não há mesmo sinal de mesquinhez por parte de tão gentil rei. Distantes andamos contudo desses tempos mas, neste tão lustroso em que temos a maior honra de viver, outrora como agora tive a mesma interrogação em pleno Inverno: rosas em Janeiro? Mudei logo e pensei: o mundo é um grande país e as rosas florescem em qualquer Estação, os anos são convenções de medida para o Tempo – o nosso tempo Alfa, do mandatário, do coronário, dos órgãos gigantes em pequenos tufos de carne e esqueleto que já sabe que vamos morrer ou somos mortais por eles, por causa deles, e que seria bom para já uma Humanidade a pilhas, mudadas a cada Glaciar. A terna noção de “estufa” foi rompida como sabem. Hoje a temperatura, as condições, são fórmulas absolutamente radicais, neve-fogo, ventos-calmarias, abrasa-gela… Um pontapé sem precedentes na nossa secular vida bucólica dos queridos tempos de antanho. Penso que o local que se mantém muito igual a si mesmo desde o tempo em que Deus lá nasceu é mesmo o deserto, tendo levado, claro está, o rombo da gigantesca pegada, mas mais em altura do que em largura… a sua robustez pode ainda ser considerada como a manutenção de uma ordem e por ela nasce o ser eterno que é a Rosa de Jericó. Ela, porém, não é a rosa efémera procurando o instante, a colorida e elegante menina dos olhos em botão, a enjeitada; ela é a eterna, a robusta, a densa, a mais complexa, a vertiginosa evidência de que tocamos numa outra “plantação”. Ela tem o dom de fechar, secar e morrer, e mesmo nas escaldantes areias se lhe tocamos morta, ela está fria não passando de uma ressequida imagem de um esqueleto, mas podemos voltar e ela já não estar por lá, levada pelos ventos. Sem dúvida, foi-se para ressuscitar mais para além. Ao primeiro dia ela rola, ao segundo sai do sepulcro e ao terceiro torna-se verde. Esta rosa não é unida à Estação. Assim, basta-lhe condições propícias da ordem dos bons ventos e de contacto imediato com pequenas concentrações de água, para o sucedido. Por aqui as rosas já tinham de novo nascido na estação delas, mas as do Inverno estavam intactas na sua lei fatal, não querendo falar na estrutura linguística das “inverdades” como sinal abrupto de Leviatã, nem em “inveracidades” da ordem do probabilístico, pois está provado que o que está certo são sempre as contas pequenas. Sabemos, no entanto, que na catástrofe só enumeramos números grandes, a rapidez é grandiosa e quase sempre rica em génio arrasador, pois que “tomar gosto a” não é um efeito fúria mesmo que se possa ser viciado em desportos radicais “tomar gosto” é uma educação pelo gosto, onde há pilares de benfeitoria que atenuam o risco do impacto. Dir-se-ia que é um aprendizado de amor, se os instintos e a sensibilidade são espontâneos, naturais, por vezes deliciosamente fortes e até brutais, épicos, já o amor fica longe de tudo isto e por ser tão diferente é preciosa uma educação de forma a não corromper a sua designação. E no distrito do rei das rosas passou um fogo devorador, anunciado já pelas minhas próprias rosas, que forças desceriam na equação simples de um numeral consequente na ordem da manifestação de três para três. É aqui que perdemos o livre arbítrio e jamais na terra de ninguém onde toda a razão nos pertence – pensei muito no rei – no rei das rosas que semeou pinhais e namorou gentilmente por ali e fez sementeiras de filhos, que namorava em nichos escondidos nas florestas. Se lhe ardesse o seu pinhal que ele não viu crescer à distância de cem anos, se não foi excessivo visionarismo, se o visse arder em sonhos, se os sonhos ardem… enfim, pensei nele como nas rosas para não ter a doente propagação de um coro de outros condenados. A rosa é ,no entanto, «sem porquê»… a rosa é sem porquê: floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos. Ângelus Silesius, na sua bem conhecida obra de aforismos, qual novo florilégio, o jansenista teólogo que no instante das grandes lutas religiosas se manteve em relativa paz com os luteranos da sua cidade – ele o era de origem -, teve esta metáfora fundadora da Rosa como místico e como teólogo. Os dísticos são belos e descrevem uma profunda raiz do pensamento Ocidental como síntese de uma abordagem. Tanto de ressequido tem a terra que habitamos que mesmo agora gostaríamos de dizer como Silesius : “Gosto de ouvir as trombetas. O meu corpo, ao seu clamor, de sob a terra despertará e voltará a ser meu“. A Rosa de Jericó! Ouve-se cantar pela zona do impacto melodias nada agrárias que o dinheiro que salva é o mesmo que mata e o dinheiro arde se for todo em papel e não houver mais rosas, nem ouro que o funda numa outra riqueza que também já não vem nos mapas pois que foi ele o cúmplice e combustível por onde a fornalha se agiganta. “ Amigo, onde quer que estejas, não te deixes lá ficar, é preciso incessantemente partir de luz em luz.” Os que partiram já não estão aqui, como é óbvio, os que ficaram estão no mesmo sítio onde a luz não penetra por entre a negra folhagem, não há comunicação alquímica com a haste, aquele segredo que lhe diz.. .cresce, cresce… preside ao estrondo o ruído, aceleram-se os requerimentos, armazenam-se mantimentos. Investiga-se quem tem o desplante na imprensa estrangeira inventar boatos falsos acerca da orquestração territorial, e, amealham-se víveres que bem poderão servir para outra imponderabilidade. Faltam duas. Isto se não nascerem mais rosas em Janeiro.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO senhor sete [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] chegado o momento em que teremos de ir buscar autores por gerações esquecidos, concluída a inércia do fulgor literário a partir de distúrbios disfuncionais da componente da leitura que tem ficado em jazidas, passado o impacto da novidade e, talvez, da deslocação linguística que não ajudou a modelar a capacidade inventiva da língua como uma ferramenta de transformação, tão pouco como código de uma herança vasta e simbólica: esquecidas as fontes, os rios secam. Desarticuladas andam as funções entre leitura e narração, como se houvesse um hiato intransponível entre fenómenos complementares, esquecendo o poder encantatório da linguagem no desenvolvimento de um cérebro saudável. A língua é uma cifra onde todos querem algemar sentimentos e sensações, pequenos conhecimentos na cadeia do aprendido, respostas, e quase nenhuma indagação, nenhuma outra ilusão que a transponha – que sensações e sentimentos não devem interessar a não ser quando produzidos por fértil capacidade de junção das partes dissonantes – ou seja, se dentro de quem sente estiver uma grande capacidade onírica de despertar. Trindade Coelho é o senhor do título acima mencionado. E que título é este? Ele advém de um estudo que o autor se deu a coligir da tradição portuguesa, é uma interpretação da arte contística e fruto do seu estudo etnográfico. Autor do século dezanove abrangido ainda pelo período Romântico é talvez o mais emblemático dos seus representantes, andou pelo país recolhendo dele a lenda e o sonho, amante por esta sua corrente da cultura popular nas suas formas mais remotas que passam necessariamente por poemas, provérbios, rezas, superstições, contos orais; aqui se dignifica a capacidade da linguagem enquanto material que ajuda ao espaço onírico que tanto agora nos falha. Será impossível fazer-se um ordenamento do território, seja ele qual for, se não tivermos presentes certas coisas a ele integrado, como e onde se produziram os sonhos, os mitos, as correntezas que desaguaram naquilo e não noutra coisa; preciso será entender essa linha de terra que nos passa em toda a superfície e mais fundo no chão. O que acontece é que exauridos os laços com a forma e a terra governada sem lembranças, ordenamento e território são funções tão cegas como desordenamento e não espaço. Daí que, não havendo plano, não há leitura. Em boa medida, digamos que, um bom Plano Nacional para a Leitura poderia travar os fogos! Mas um plano que não fosse ele mesmo tão inclinado. — Sim, as gerações descarnadas dos seus autores, neste caso, um republicano, romântico e maçon, também, religiosidade de madrigal, as gerações assim impedidas de aceder a tais riquezas não poderão ir ordenar coisa nenhuma, muito menos um território. — Há caminhos tão fantásticos nestas transmissões que longe andam dos asfaltos de alamedas de árvores sombrias que se deslocam em todas as direcções que vão dar a locais onde nem queríamos passar… caminhos de Santiago, que romar é ir até cumprir o sonho da viagem. Não se pode exigir que sirvam um país quando não lhes servimos a memória e se, como sentinelas os mais frágeis ficam nas terras quais sonhos esquecidos, não saberemos entender as suas lágrimas nem a desolação que se lhes abate de formas surpreendentes quando as duras provas irrompem. Os grandes dons quando não exercitados transferem-se para outros, como os que têm “incendiado” a Nação: a inveja destilada em paranóia, a megalomania demencial, a usura, e assim se avança como nos guindastes até o céu num movimento quase perfeito nos atirar dele abaixo, exactamente no solo que plantámos. « Onde a crónica se cala e a tradição não fala antes quero uma página inteira de pontinhos ou toda branca ou toda preta….do que uma só linha de invenção de croniqueiro….» Garrett. Seguramente que este número não é em vão, sete é todo o imaginário, a tradição, a configuração de um tempo interior que nos fala – o número mágico – também há o «Senhor Teste» de Valéry» e os «Sete Cantos Iluminados» de Blake. Uma mistura que daria « Os sete iluminados senhores». Iluminados senhores, nem que seja por um raio, dado que a crescente cavalgada de calor não parece alumiar os cérebros, nem tirar deles a devida claridade para uma coordenada iluminação. Estamos em terreiro sem memória, com sombras escuras e com saudades dos antigos carvalhos por onde nesta noite e neste dia (21 de Junho) algures, cantavam os celtas do território, ainda não ordenado, as suas lendas. E outros! Estamos sem borboletas, e joaninhas, e andorinhas, e raposas, e lebres e linces. Calcinados de vazio. Trindade Coelho escrevia para jornais. A sua imensa dimensão do espaço, onde havia um território ainda em folha vegetal, exaltava nas mentes desejos verdes, mas verdes na folha de jornais brancos e pretos que não eram menos verdes que as suas terras transmontanas. Foi deliciosamente espirituoso no uso dos dialectos, semeou oráculos e hoje creio que ninguém está apetrechado para uma sinalética que impeça os desastres – nós somos construtores de desastres – que nem disso já tem firme noção: há até frases mágicas exercitadas por mulheres das serranias que possuíam ( imaginem só a força da palavra) o poder de mudar os ventos, amainar tormentas, fecundar os solos. Dito assim é tudo lenda, mas lido de outra maneira é a única forma de voltarmos à terra. Se não quisermos, ela também não há-de querer: nós só queremos a quem nos quer e a terra até ver é de dura cerviz no que respeita à infidelidade dos hóspedes. A mesma negligência dos homens para com as mulheres reflecte-se na terra. E estranho é o uso de contemplação face a duros carrascos de uma mesma natureza. Quase não parece, está tudo muito decorado, muito pleno de coisas artificiais, mas não, não nos deixemos enganar: há dolo e não há «plano» de leitura e de território. Será bom voltar a desocultar o que está oculto e ler o que não foi lido ao invés de plantar desordenadamente o “eucalipto” do intelecto que alastra com a mesma ignição. Deus também será, e é, em última instância tal como foi no princípio. Sempre. « Um fogo devorador». Os contos de tradição oral são aqui os mais relevantes e alguns já tinham sido publicados na Tribuna em 1899 em versão mais arcaica , menos literária, dando assim a entender que compunha os próprios textos para edição final. ….. subir ao sétimo céu é, pois, alçapremar-se uma pessoa num grande gozo, subir lá por essas esferas, até à sétima, que deve corresponder no sistema de Ptolomeu , ao Empíreo, ou ao lugar dos Bem-aventurados! In – O Senhor Sete. Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo! Camões.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTodos os dias o medo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] nosso quotidiano não disfarça ainda a nossa perplexidade perante o efeito do desastre e suas leis que devem ser muito precisas e por isso de infalibilidade revestidas: comovem-nos sempre como se não pertencessem por inerência a todo este propósito. O impacto dele nos é dado nos dias que vivemos e nem por isso nos insensibiliza cada vez que um acontece, como se estivéssemos em pleno cenário de guerra com lesões do funcionamento neuronal. Há gente que cai aleatoriamente enquanto passa por locais onde todos acabámos de passar, mares de azul lindíssimo feitos mortalhas, edifícios em chamas trespassados por máquinas voadoras, sangue em todas as arenas. Noite após dia, dia após noite, olhamos incrédulos, sempre, para o último amontoado de escombros como se um frémito violento nos levantasse das nossas calmas funções. O longo caminho da História deu-nos terreiros e hortos para a compenetração formal da morte que vinha como inimiga a combater: tinha trombetas, frases mágicas, líderes que a encabeçavam, como se de um compromisso se tratasse. Isto embora saibamos que, por onde passassem estes guerreiros, as populações nem sempre estavam a salvo: a guerra obedecia a um plano, havendo mesmo datas combinadas com o inimigo para exercitá-la, mas a nossa realidade, de contingências feitas, não nos dá segurança nenhuma nestas coisas e tudo o que existe à vista é uma guerra contínua e disparatada, feita de picaretas e outros utensílios que nos rebentam nas mãos. Com choques, afrontas, colapsos, amálgamas de cimento e sangue, de luz e treva, que é de arrepiar as nossas reservas de coragem. Nós, cuja liberdade nos fora consagrada como um registo pessoal, temos por isso toda a legitimidade de nos alhearmos e vivermos os dias à nossa maneira, transcritos à nossa realidade. Cada ser pode firmar para si um isolamento saudável como partícula de sobrevivência e, até chegar a esse globalizante desastre, nada entretanto aconteceu. Mas isto, que parece a melhor das aptidões do instante, tira-nos a perspectiva da ocasião e do momento histórico que nos foi dado viver – para viver – por vezes há que desviver devagarinho… A realidade, essa, será sempre esse ponto de partida por onde nos é dado então regular o que queremos esteja inscrito nos acontecimentos não permitindo o acto invasivo do mundo se aproximar de nós. Ao iniciarmos os dias, não devemos começá-los por notícias e visões esmagadoras: a nossa força vacila e a nossa coragem esmorece, a esperança ofusca-se, o diálogo embarga-se, os olhos ficam grandes de espanto perante imagens tão sobrenaturais… existe um imediato reflexo de insustentável pavor e, até nos colocarmos na marcha da lucidez necessária, temos de ir deixando passar as horas. Nós sofremos quando vimos os outros em dor. Nada daquilo é gratuito e apenas informativo, existirá sempre um fio condutor que nos liga aos outros no instante em que padecem, e tantos, e tão continuamente, gera a mais preocupante prostração. O facto de irmos antecipando a nossa defesa nestas coisas, promove uma vantagem contra o meio ambiente, que é o de haver pessoas saudáveis quando for preciso a sua imediata intervenção. Nota-se muito a desarticulação das fontes de salvamento, o titubear dos que podem e não sabem… da avalanche quase demencial deste cenário. O medo aproxima-se de nós também como um amigo, pois que nos insufla de consciência, mas andar aterrorizado sem saber atrai o caos e a vida começa a ser um jogo diário onde não vemos o propósito maior que é o estar vivo para além dos nossos medos. Claro, esquecemos, temos de ir, de fazer, de continuar dentro de nós; no entanto, não sabemos bem como avançar de forma precisa, a nossa mente está em alerta, o nosso cérebro tem hoje, talvez, possíveis ligamentos em áreas que lhes estavam reservadas para funções que não se parecem com estas. Toda a nossa antecipação na arbitrariedade da vida nos deixa inquietos na busca de a vivermos sem que saibamos dirigir o desígnio do viver. As coisas vão baixando como as pragas e se a economia nos secou a visão onírica, hoje estamos “salpicados” de sangue que nos dias corre no seio da União. Desconfiamos de todos, claro está, quem são os que nos matam? Serão quem se diz? Ou somos já nós a fazer esse projecto para adicionar interesses que fingem ser incólumes? Vamos vendo à medida que os sinais se propagam… vendo coisas novas que não estavam lá, e sabemos do medo imenso que é o da loucura mais grosseira nos ter possuído. De quem, afinal, não devemos ter medo, quando nos dizem para não ter? Que calma querem que tenhamos no meio de tais acontecimentos e quem nos educa para a abulia total de sermos os espectadores de coisas tais? Que confiança, em que liberdade, em que maravilhoso sistema desejam que acreditemos? Desculpar-me-ão mas eu não acredito nele. Pois que tenho medo e sei o que significa chegar aqui de olhos abertos a ver todas estas impensáveis realidades que nem dela fugindo estamos a salvo. Construímos por ócio todos os fantasmas e tecemos a malvadez como um plano bastante inclinado mas deveras excitante, e, enquanto ele vogava na sétima arte, e na ficção, eram nossas todas as perversões da alma, já danada, de tanta felicidade, agora, eles mesmos, os espectros se tornaram tão autónomos como nós, e agora, somos nós e eles, de corpo presente a constatar a nossa mais medonha obra. Concomitante a toda a nossa realidade, seja ela resguardada, ou mantida em dose máxima de informação, há outras realidades que se passeiam, tão reais quanto estas. E dessas não temos memória, e estamos a construir espaço para a podermos abarcar, pois que nem em sonhos e visionarismos se teria previsto tanto! Como não ser a realidade uma esfera à parte, até da nossa capacidade de mediúnicos informadores?! Nestes quotidianos, assim vamos vivendo como se de um cadáver nos estivéssemos alimentando, tornámo-nos necrófilos sociais, para não se desaparecer de vez e nos levarem as doces bactérias que restam à ameaçante guerra de neutrões que nos há-de suportar lavados de dissolventes naturais. E se as bombas não chegarem a Nova Iorque, vão chegar a outro local, que Nova Iorque é agora uma metáfora de Babel . E se os nossos filhos morrerem a percorrer o mundo, que tão generosamente lhes insuflámos na mente como lugar extraordinário, que mesmo assim não tenhamos medo das nossas lágrimas e saibamos com dignidade ir abrindo espaço à gravidade desta situação social. Vivemos ameaçados, com cortes, com despejos, com ofensas, com desconsiderações tais que dava para nos atordoarmos de espanto até ao fim dos nossos dias, e agora mais esta terrível realidade de grupo que queremos contornar com uma compostura mumificante e nos trespassa a noite como um raio impúdico e imprudente. Sair disto sem feridas é impossível, nós estamos mais ou menos já em chaga, mas, talvez ainda se consiga uma certa nobreza que fará sempre parte de uma saudosa Humanidade sonhada. Nós, que inventámos o sonho e fizemos da vida uma obra de Arte ( os que a fizeram), não devemos acabar assim. O mundo é o cenário de um grande dramaturgo poético, um mundo em que o criador está presente em toda a parte, e em toda a parte oculto.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasAs móveis estradas de Eros [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]qui estamos como que filtrados e caídos na Terra, em cima dela, movendo-nos na horizontal, uma linha deitada nos traça os movimentos e só subidos vamos quando nas passagens aéreas descolamos os pés do solo. A linha do nosso electro alivia, mas desfazemo-la logo nas aterragens. Movidos nestes socalcos vamos tendo uma plasticidade maior em vários degraus da atmosfera, mas nada que se assemelhe à marcha e pés no solo que batido está pela gigantesca «Pegada Humana» e que, espalhado por todo o lado, roda em volta de si mesmo, sempre deitado, e assim por eternos caminhos vamos encontrando o amor do outro, que convida a uma horizontalidade instintiva: a tempestade da paixão é demasiado vertical para o nosso já tão desenvolvido hedonismo e há mortalhas que são ainda refinados locais que nos observam para leitos e neles depositamos um desejo melancólico de paragem, assim como um ultra-romantismo à Soares de Passos de uma prostração que nos tome, de ossos tilintando no osso que somos em solfejos de delícias estranhas. Certo é que ando tudo muito magro, a carne está reduzida, e onde ela não abunda, a natureza se infiltra na sua essência mineral. Outrora os doentes de tuberculose ardiam nos vapores da sua libido que os descarnava e fazia belos com a luz de uma fixação ígnea, que era por vezes o estado de paixão em que se encontravam: quando não há alimento para fora temos essa tendência para nos auto-devorarmos, alimentados que estamos de um fogo interior, um ritual de canibalismo que passa pela paixão de si mesmo. O tempo em que vivemos reduz, no entanto, a fixação. Diluímo-nos mais em vez de condensarmos, a falta de convicção não ajuda o Eros a abrir a altura remota das suas asas e os órgãos são para usar mas estão pouco disponíveis para assombros. Vemos tanta gente nua, morta, uns em cima dos outros, iguais por toda a parte, em partes iguais, que o laborioso deus nos dá “trincadas” em sugestivos desafios só para não esquecermos da sua inteira missão. Protegemo-nos uns dos outros como se as pragas nos fossem conquistar e, impostos os venais apetrechos, apelamos à sua bondade para exercer os ritos de acasalamento. A carne que se multiplicara na carne está em queda contínua, vamos esvaziando-nos nela e, como não somos “tocados”, nada acontece além de andarmos em roda no solo da Terra, que também já fora germinal. Vem aí a altura: cidades, carros e o Eros alado tem fundições neste plasma, mas quer andar como que fugido dos escombros dos aterros. Ninguém nos educou para o Amor: fomos alicerçando alguns saberes na marcha e ela, de tão giratória e móvel, foi excluindo aspectos essenciais e nisso reside a incompetência para termos feito a aventura do deus em nós. Sequazes e enlaçados, ainda urdimos desejos de vir a partilhar o impensável dessas coisas fugidias mas que depressa se esfumam quando compreendemos uma certa morte que é essa devastada essência humana impossível de ser reabilitada. Nós já somos os seres da aventura breve, do que apetece, do que esquece, do que deseja mas não abarca, nós somos os últimos seres do patamar das emoções e nelas já não temos lugar. Esgotámos o tempo na Roda, a Roda gira…. mas não nos devolverá nem as cinzas do amor perdido, nem um outro, que redentor e farto nos venha compensar de um funesto ensinamento. Não somos os românticos de olhos luminosos, anda tudo pouco mais que macilento num vaivém de sabores pois que há saberes que não escolhem hospedeiros tais. Se cairmos não haverá um terno amor necrófilo perante a beleza do nosso provável cadáver, que numa espécie de doença rara o queira consubstanciar, uma qualidade inaudita do amor. É assim, segregados e sem guindastes futuros, que esperam talvez sorridentes o nosso gradual fim, fazemos uma esteira muito móvel onde nos deitamos num grande artefacto de coisas boas, os nossos pés não são os pés do outro “mas se ambos confundimos tanto os nossos pés, diz-me com que pés eu hei de seguir?” Não ter tal interrogação é ser cativo. Fulminados desta prática somos urgentes na manutenção das nossas causas, que causam não raro um vazio estranho pois que dela só parte de nós fica elevada, e, nem mesmo chorar nos é permitido. Calcinados talvez pela vida que guiada nos conduziu a um secreto abismo, circulamos por toda a parte para que não notem tanto cansaço, talvez desolação, talvez uma secreta esperança… buscamos um sonho que insiste em não saber de nós. Nós que fôramos unos, procuramos a metade dividida como uma leve lembrança , mas a nossa própria iniquidade nos separa do encontro, somos essa metade sinalizada e em risco, pior ainda que não encontrar o outro é a de vertermos a existência em coisa nenhuma. Exaltados e mais experimentais somos deixados no patamar das provas e dela saímos mais pequenos sempre que não compreendemos a beleza da tentativa. Não duvidamos que a ordem das coisas impulsiona-as para a harmonia, seria preciso um “rasgão” cego na dobra para falharmos em todas as direcções, mas nos aspectos movediços a função da mobilidade se traduz por inércia, e sem o mínimo de sustentação nas coisas mais bonitas elas afastam-se de nós recusando a oferenda. Muitos contemplarão a sua face de eternos D. Quixotes e nada mais verão que supostas ruínas de moinhos cansados . Animou-os as fomes, que findaram, gerando mais fome, até ao terror dos manjares.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasGustavo Adolfo Bécquer [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos, os da minha idade, naquele tempo em que mais, muito mais, do que a receptividade ao novo, somos automaticamente levados a recordar, a lembrar… nós, os da memória selectiva (porque creio que o muito mau tendemos a esquecer ou a remeter para uma zona onde não há sequer contacto como se de uma demarcação se tratasse para nos permitir a marcha do que foi importante salvaguardar). E assim aconteceu neste robusto e límpido Maio onde de repente me recordo das «Oscuras Golondrinas», o poema de Bécquer, como de um sonho bom de antanho… daqueles em que me lembro viva, a um tempo em que todo o meu cérebro eram andorinhas negras e não sabia o que queria ainda dizer: «esas non volverán!» – Hoje, eu sei! – Sei da beleza intransponível do poema de Bécquer, ainda não esqueci as que voltaram e quedo de olhos postos no encanto das coisas como um principiante: não há palavras que descrevam algumas outras palavras que descreveram estas sem as palavras que nos foram sucedendo: (…) mas Tu voltaste, e, isso é tudo quanto basta para cobrir a Primavera. Deixámos, fomos deixando muitas coisas; deixámos amigos, deixámos amores, deixaram-nos desamores, deixámos as casas, deixámos a paz, deixámos que nos maltratassem, deixámos sem dúvida também secretas saudades, deixámos as horas fumadas, esquecidas, as manhãs frias e lúcidas, deixámos a corrida ao novo, aquele que não dá provas de ser moderno, deixámos a carroça das vaidades sem valor levarem para longe as gentes por quem não sentíamos empatia… os sorvedores do lixo, os mecânicos das épocas, deixámos de pintar o cabelo, deixámos o “baton” no fundo do saco… não nos sentimos alinhados com tanta demonstração. Já dificilmente nos apaixonamos, já não queremos como dantes, mas nem por isso o amor se tornou um divertimento de gozadores sem causa… e foi nestes desfechos que a memória foi de novo à fonte e nos banhou das coisas esquecidas. Bécker é o poeta, digamos, do pós-romantismo espanhol, mas demasiado romântico ainda para lhe tirarmos o epíteto. Nascido em Sevilha, mas de origem flamenga, em 1836, em pleno Realismo portanto, acabará por inspirar mais tarde Juan Ramón Jiménez, Rúben Dario, Miguel de Unamuno, Rafael Alberti, Luis Cernuda, Garcia Lorca, Dámaso Alonso e outros. Pródigo na história fantástica «Lendas», recordada na memória, hoje, como um conjunto de contos que o encostam ainda mais ao Romantismo pelas temáticas, prodigaliza assim um novo anunciado literário na prosa lendária: – uma lenda escuta-se e a ninguém é permitido revivê-la – diz. Temos as «Rimas» com o melhor da sua poesia, ele que, com Rosália de Castro, inaugura a lírica moderna espanhola. Bécquer foi jornalista, narrador e não raro com apetência para aquilo que designamos hoje de conto policial. Foi demasiado dotado e virtuoso para que não sintamos que estamos diante de alguém que não tinha nada de comum a não ser uma vida frágil, magoada e talvez até desventurada, dada a recolhimentos em mosteiros e de saúde frágil. Foi um viandante algo atormentado que morreu novo de pneumonia aos trinta e quatro anos. Senhor de uma sólida educação, era irmão do pintor Valeriano Bécker e filho também de pintor, a boa raiz da escola flamenga. Situá-lo é importante dado que nem sempre nos lembramos dos que são de facto o fio de prumo de uma escola de gente memorável, mas apesar de tudo ele era andaluz, a cultura do sul na vertente mais luminosa de uma obra. E sem dúvida reportarei aqui um dos poemas de «Rimas» e o que me veio buscar cativa nesta Primavera …O recurso estilístico à anáfora tão ao gosto romântico: Volverán las oscuras golondrinas En tu balcón los nidos a colgar, Y otra vez con el ala en los cristales. Jugando llamarán. Pero aquellas que el vuelo refanaba Tu hermosura y mi dicha al contemplar. Aquellas que aprendieron nuestros nombres… Esas…no volverán! Volverán las tulipas madressilvas De tu jardin las tapas a escalar. Y otra vez a la tarde aún más hermosas. Sus flores abrirán. Pero aquellas, cuajadas de rocío Cuyas gotas mirábamos templar. Y caer como lágrimas del día… Esas…no volverán! Volverán del amor en tus oídos Las palabras ardientes a sonar, tu corázon de tu profundo Sueno tal vez despertará. É sem dúvida um poema ibérico que convém lembrar e também há nele recursos estilísticos e literários que nos levam facilmente a Calderon de La Barca, “La vida es sueno” . “Não voltaram os poetas absortos, o teu nome, e a minha idade, a luz que deixei cair entre a sinuosa rua de Toledo com uma placa que dizia: — Em nome dos poetas e dos que sonham e que estudam proíbe-se à civilização que toque num só destes tijolos com mão demolidora e prosaica”. Tudo o que não for tocado pela asa de uma escura “golondrina” será um local gentio, e, não dar a vida a tentar transformar o parado que nos mostra estradas abertas calcadas de rodas sôfregas em trânsito por pontos vários… Há um segredo nas aves migratórias que nascem com a viagem… e há sempre aquelas que não regressarão e sabiam de cor os nossos nomes , que assistiram ao mais secreto das fontes de nos darmos… “esás no volverán”… talvez não venham mais, já brancas em suas penas, e nós, que sabemos o porquê deste longo adeus, despertemos e saibamos os seus nomes: partimos rápido das coisas amadas como se sonhos fôssemos na corrente migratória das aves dos céus..há instantes a que não vamos retornar.. e um dia, nós mesmos não voltaremos, só para as ver chegar. E há apenas uma que guardei secretamente para o fim:” Tu cozazón, mudo absorto e de rodillas escute: como yo te hay querido … desenganate… aí no te querrán.” É a morte, o mais absorto e radical amante. Sem par. Há de facto poemas que mergulham na génese assombrada da revelação e tão cedo o compreendeu Bécquer que volvidas são agora todas as “golondrinas” elas existem em outros beirais dentro de nós e o que vemos é o que lembramos de quando os olhos ainda sabiam chorar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasBaleia azul [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pareceu esta estranha designação que tem por detrás práticas destrutivas e incentivo à destruição como meio de averiguar o limite das capacidades quando norteadas por um engenhoso cérebro de « Encantador de Serpentes». Não creio por isso que o seu inventor seja um jovem de vinte e dois anos — isso é apenas mais um embuste de carácter «Lobo Solitário» que sabemos não existir quando se trata de mecanismos mais vastos. Estamos perante um teste laboriosamente criado para analisar a vulnerabilidade dos jovens, até que ponto eles estão receptivos a um propósito cego e vertiginoso que, tal como a magia, os guie num canto suicida. Todo este mecanismo não afirma: “Quero acabar com a Humanidade!” Um mecanismo destes não produz frases, deixando-as para os mais jovens e radicais. Os jovens sagram sempre. Há mesmo ritualisticamente a herança sacrificial dos mais belos, dos sem defeito, para acalmar a fúria dos deuses, pois que se for velho, com defeito ou feio, a tempestade não acalma: Abraão não vai do presente para o passado – o degolador do filho – apenas do passado para o futuro do Homem que praticava costumes tribais de matança dos inocentes na linha dessa necessidade. A sua importância firma-se pelo fim dessa prática, já que na consciência humana representada pelo anjo ele evolui para uma nova dimensão. Passam então os animais a cumprir esse antigo desígnio: os cordeiros, as pombas, os bois, sempre jovens, pois que um cordeiro adulto se transforma em carneiro. Manteve-se o princípio: o sangue velho é um plasma que também não apazigua o deus do monoteísmo. Mas as nossas sociedades estão cada vez mais velhas, como bem se constata proporcionalmente à média de vida atribuída neste período do tempo, pois que se fôssemos homens bíblicos estaríamos certamente entre o imberbe e a pequena infância e o que daqui resulta é que da nossa vida já vivida, as ideias ,os conceitos e as realidades, ultrapassam em muito os sonhos juvenis e os espaços de manobra que eles têm para ser. No meio de tal abundância eles colidem ainda com o artefacto adulto de uma “juventude” que se prolonga, sendo por embuste que nos aproximamos muitas vezes das suas naturezas. Sabemos que o tempo que lhes dedicamos é um dever feito com esforço e uma imensa insegurança. Queremos defendê-los mas não sabemos de que forma. No nosso íntimo achamo-los desagradáveis e problemáticos e desejamos que aquilo passe; crescer é uma dor que presenciamos e não sabemos ainda resolver; nós que resolvemos quase tudo… ou pensamos ser assim. Lembramo-nos, não raro, com um certo alívio, que mesmo em queda, ali não voltaremos mais, lembramos a nossa dor nesses domínios, mas o tempo era outro e o estranho é que a placa de vidro frio das antigas gerações é exatamente a mesma que eles projectam em nós. Nós, tão diferentes de tudo, temos de ser expostos a um teste que denuncia paralisação. Os jovens mesmo em queda são milhões pelo mundo fora e há que saber testar os seus limites e fazer experiências ao grau de extremo abandono a que, não parecendo, estão sujeitos. É uma “central” que de certa forma quer saber se pode contar com este “exército” quando o mote das suas ordens se fizer sentir e assim estes e outros jogos e outras baleias avançam para um primeiro escrutínio experimental. Um líder jovem que não sabe dos estatutos da missão dirá ainda ingenuamente: «Quero acabar com toda a Humanidade» mas, por detrás, o saguim e o sardónico manejam os cordéis. Estes cordéis que podemos, mesmo metaforicamente, remeter para a primeira felicidade de Pinóquio « Não há cordões em mim! (…) posso andar, posso falar, posso mexer(…)». Mais tarde também ele se encontrará no ventre da Baleia, da Dona Monstra. Aliás, a ideia de uma Humanidade engolida por um ser marinho é comum em todas as civilizações. Jonas por lá andou retido e o delírio da sua invocação e da salvação foi tanto que é vomitado do seu ventre para fora. O mar é inimigo de Deus desde a origem, é visto como um reino da morte quer como o caminho que a ela conduz e, se formos a um dos mais emblemáticos romances do século vinte, «Moby Dick» de Herman Melville, saberemos identificar alguns signos desta verdade: o seu herói é Ismael que luta contra o grande Leviatã, neste caso, a Baleia Branca. O deserto é a antítese deste Inferno e, até ver, onde Deus nasceu, bem como todos os homens das tribos desérticas. Existe ainda por lá o Paraíso. Ismael, filho de Abraão, também não foi morto tal como o seu irmão Isaac: o deserto salvou-o do sacrifício criancista. O monstro é absolutamente de identificação marítima. E agora do grande romance que diz assim: (ainda e a propósito dos jogos jovens ou dos jogos com os jovens, dos testes que só a eles sangra, e que não vemos, impávidos como andamos, a sua tão líquida frescura. E este romance é quase uma profecia). «GRANDE E DISPUTADA ELEIÇÃO PARA A PRESIDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS» « VIAGEM DE UM TAL ISMAEL NUM BALEEIRO» « BATALHA SANGRENTA NO AFEGANISTÃO» « No entanto, não consigo adivinhar por que motivo esses encenadores, os Destinos, me designaram para um reles papel numa expedição baleeira, quando outros receberam magníficos papéis em grandiosas tragédias, e falas breves e simples em comédias ou em farsas; mas agora que recordo todas as circunstâncias, começo a compreender as origens e os motivos que, astuciosamente apresentados sob vários disfarces, me induzem a aceitar este papel, além de me levarem a cair no engano de que se tratava de uma escolha resultante do meu livre arbítrio e do meu discernimento.» O populismo não é apenas político, mas também cultural, afásicos sistemas que consistem na degradação e banalização do pensamento e, se não se fizer mais que dar notícias e querer-se inventar tudo a partir de uma ideia milagrosa que geralmente se afirma de modo terrorista, com frases bombásticas e antevisões de conhecimentos panfletários, nunca iremos saber o porquê destas Baleias, desta hiperbólica boca aberta para um ventre de que o próprio Leviatã se demitiu na sua imponderável denúncia de não querer saber mais disto para nada. É depois uns contra os outros que iremos ser vomitados sem que saibamos da “central” nem de coisa nenhuma. Os livros não são um fim em si, mas uma ajuda, e quase seria melhor abdicar de um entulho argumentativo dissolvente que empoeirou a visão da consciência do que andar perdido entre resmas de “verdades” insolventes. Parecem-nos todas longínquas estas outras Baleias, mas não, são exactamente as mesmas que esta Azul, indisfarçavelmente monstruosas, e só outros poderes as conseguem subjugar. A atenção requer entrega, um aspecto que a “central” sabe não existir, e entregamos-lhes assim por indiferenciação esmagadora a vida dos nossos filhos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTempo de ser a coisa outra [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] transparência nada nos diz que transpareça grande coisa nas questões que hoje nos propomos contemplar. Andamos na urdidura sempre maníaca da verdade para corrigir o que supostamente a mentira é e, sem que saibamos de uma ou de outra, toda a gente se arvora em grande entusiasta dessa designação mais vanguardista que não quer dizer nada, a não ser a vã e pouco lembrada memória das coisas. Estamos obliquamente condenados a ir buscar e a refazer o conteúdo de múltiplos saberes. Se a um dado momento nele entoava uma emoção precisa, neste entoa a falta de emoção imprecisa, que será mais uma malvadez ao arrepio da receptividade para aquilo que naturalmente nos faz bem, nem que seja o fazer bem o não fazer nada. Mas há que fazer nem que seja desfazendo o que estava feito, para tornar a fazer num exercício laborioso de adpatabilidade e de movimento. Os pressupostos ficam amargamente incomunicantes, as coisas que para aí se dizem como seja “inverdades” são inversas e cada um recria a cripta por onde um moribundo há-de dormir finalmente a paz tão desejada. Basta haver um nódulo, um grão na engrenagem e todo o aparelho fica em alerta máximo. Por questões extemporâneas os homens tornam-se um género que “empapa” tudo não deixando passar o feminino na fonte dos seus saberes, ou mesmo, não saberes! Dos seus sabores. Onde o género impera, impera também a expansão e ela é tão explanativa que em frémito ideólogo ele se amarfanha por todos os recintos onde houver espaço de fecundação. Depois, dizem, com ares graves que estão sós nas suas competências e, sempre que se armam as discussões para todos, parece que o feminino se instala num pavoroso tédio masculinizante e se encripta numa forma que faz denotar em pólvora qualquer saber. É muito amarga a realidade das coisas: se por um lado achamos que somos nós que enquanto pessoas que estamos cansadas, somos humildes também em reconhecer a nossa ignorância, a nossa impreparação para tarefa tão grande como a de existir; por outro, também andamos e flutuamos num mundo onde cada um tenta impor o seu domínio de forma “atabalhoadamente” absoluta, não crendo por isso que seja o de um espectro artificiosamente obscurantista, para isso seriam precisas componentes mais requintadas. Não, não é isso: é uma desmesura de índole autoritária que se acerca e se condiciona a si mesmo pela repetição, os séquitos, a demagogia e o artefacto mais ininteligível. Em boa verdade, não acho a espécie Humana inteligente. Inteligir nem sempre é uma Teofania carregada de sujeições maiores. Somos o que podemos ser , talvez a caminho de uma qualquer inteligência, sim, que a manifestar-se vai ser andróide, vai ser a da ordem do homem vindouro, aquele que já não passa pela lei do ter de subsistir em qualquer domínio. Aspectos como a moral, a ética e até a transcendência terão de ser analisados e integrados de outras maneiras. Tudo será um processo sem dúvida tenaz e, esse sim, inteligente, onde por caminhos de massas melhoradas na sua superfície onde o mais fundo são as bases dos seus ecrãs algo se possa modificar. O grande mito do hermafrodita pode passar a ser real com a necessidade de estreitar o dissonante, de continuar lutando por aquilo que tão bem viu Almada Negreiros: «Unanimidade». Eu sinto, enquanto mulher, a expansão da natureza homem em todos os canais – a televisão -, as técnicas, o mundo, as construções: e as mulheres estão libertas, sim, mas não tanto como se esperaria enquanto género humano que tende a ser mais um vício parado que espécie inventiva. E se não se conseguir andar mais e melhor pela idade, por causa do cansaço ou saturação, que se seja natural e reponhamos então as ordens vitais. O isolacionismo é um anátema que as sociedades de todos os grupos vivos impõem a alguns elementos, tanto podem ser cardumes, bandos, rebanhos ou manadas… há que colaborar de uma forma automática na função da sobrevivência, prova-se contudo que nem todo o organismo vivo é sustentado por anima. Pode viver sem estar animado ou estar tão desanimado pelo facto de viver que paralisa: para abrangência que detone e denote aspectos emocionais de carácter mais raro, há uma extensão que diz que essa probabilidade é amor, esse dom negado como princípio superlativo aos mais pensantes das tribos, o mais forte ou o mais sábio cria uma artificialidade que tende a abandonar os barcos que se afundam, como agora no Mediterrâneo. Por desleixo e falta de empatia, sem dúvida, mas também porque somos muitos, quando um dia que há-de vir olharmos para alguém será da ordem da aparição, mas isso só um dia quando formos tão poucos que tentemos salvar o outro como o nosso mais próximo bem- amado. Por ora, tudo se move de maneira flutuante nesta Barca que tamanha onda há-de tragar sem que para isso sejamos convocados. Nós que faltamos, que arranjamos no labor das nossas reservas oníricas apenas espaços para descrer, profanar ou vilipendiar o espaço outro, que ardilamos, que subjugamos, que somos levianos até à completa falta de talento; Nós que temos muito e queremos mais, que tudo nos falta e nada produzimos, que tudo nos é devido sem dever, que somos importantes sem o ser, que, que, que…. Nós, esta imensa fornalha de despojos onde uma só força móvel não passou, estamos à espera diariamente de ganhar: a lotaria, o amor, a alimentação, as diversões, as coisas, de nos abastecermos de vida para que a nossa pareça a nossos olhos mais vivida. Mas é sempre a vida que nos vive, nós não vivemos a vida, a vida não quer saber de nós, nós temos a vida das coisas que trepam e as razões de não termos raízes no chão faz-nos frágeis em todas as circunstâncias. A rotatividade dos factos provam que não somos nem importantes nem insubstituíveis, que tudo continua exacto no dia depois da nossa morte e que muitos anos hão-de passar até se achar de nós algo que interesse na cadeia das transformações. Quando por caminhos vários queremos inovar fazendo exactamente a mesma coisa, instala-se-nos um fastio perverso só parecido com a vingança das lapas que subjugam os espaços que detêm. Sem confronto nem mordaça preparemos a nossa resistência para não sermos presos, de tudo que não se deve soltar é só a liberdade, não a podemos trocar por qualquer que seja a conveniência, ela é o único legado que se aguentará em nós enquanto os nossos espelhos nos devolverem o rosto que contemplado pode ser até uma obra de arte. Também não interessa amar os livres, eles são de forma tal que todo o amor produzido se expande em direcções que não contornam nem os braços, e se não tivermos membros, mais fica para a vitória de nem com eles termos de dizer adeus. Aproximamo-nos de um Cabo tão Vicentino, quanto abstracto, e se uma luz vier mais voraz, os olhos cegam e nada filmamos e as imagens partidas não serão repostas e o que fizermos não será lembrado. Todo o instante nos indicia para depor amarras e contornar o agreste obstáculo que é viver. Se houver salvação, que nos salvem, nós, por nós, já ultrapassamos em muito a nossa parte. Concomitantemente à nosso terrível condição passeiam-se universos, e gentes com versos, versus gentes, que estão a um tempo próximos, dentro e distantes, o que precisam é de órgãos novos de modo a focarem as bases da sua existência. Trememos de insuficiência mórbida e de esclavagismo de memória. Nós, os últimos de uma fornalha onde galacticamente nos foi dado o redil de um matadouro. Somos o açougue debaixo de um céu estrelado e agora riscado por gases estranhos que fazem das curvilíneas nuvens, erectas demonstrações de um género gasoso, terrivelmente varonil.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOrpheu e Salvador [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s mitos órficos são suficientemente carregados de simbolismo para que se retirem deles ilações e não raro aspectos factuais a um determinado momento da vida colectiva ou individual. Se numas temos a bravura indómita de por amor descer aos Infernos para resgatar o que temos de melhor, noutras tangemos a nossa lira na esperança de não sermos despedaçados pelas feras que tantas vezes se abeiram dos nossos caminhos não raro carregados de mistérios. Por outro lado, é um mito pleno de altruísmo: ajudar os outros mesmo que o próprio seja deficitário ou frágil nessa marcha e com ela as «ménades» que nos dilaceram na jornada. Mas ele dá-nos também aqueles longos planos em que nos debatemos entre andar para o futuro e olhar para trás, em sabermos acreditar numa medida até ela ser cumprida e estarmos fora do espectro e da influência da descrença e da dúvida, que neste mito nos indica o fim do sonho que nos seguia sem vermos. Andar sempre e confiar, o que não sancionará a nossa mortalidade e as grandes coisas que entretanto fomos perdendo como se de sonhos desfeitos se tratassem e no tempo que nos resta também elas ficarem contempladas pelos danos sofridos. Neste surpreendente mês de Maio, Salvador aparece-nos colectivamente como um arauto deste mito, também messiânico, sem dúvida, na aparição de um «desejado», pois que há nele um grande encantador de feras pela forma requintada de acalmar o turbilhão dos sentidos e os movimentos carnais e carnívoros que se dançam na nossa frente sem que reparemos nessa extrema abundância de fluxo. Ele tem nas mãos o tanger da lira, na voz apenas água, e deixa uma proposta de como o amor é bem mais abrangente que a luta de poderes ou uma qualquer bem orquestrada causa-efeito: se quisermos amor transformemo-nos nele! O turbilhão do mundo pára, a humana tempestade amaina, acalma, e entra por esta fina e estreita melodia que em recitativo se perfaz como que encantada e mais macia, uma graça infinda. É talvez destes gestos tangentes às liras, desta compostura ritualística que os próprios deuses nasceram e se no « Cântico do Irmão Sol» Francisco tudo anima de íntima harmonia é porque estamos face a uma natureza animista e mística que recobre de sentido ontológico todas as formas de manifestação. Salvador também parece levar uma proposta a esta altura e nas suas vestes negras, olhos grandes e gestos de menino, convida-nos aos lagos onde brotam os arquétipos intocáveis da nossa mais funda memória. Um país transfigurado que se desoculta de uma roupagem grosseira onde confiou uma natureza quase amortalhada que lhe roubou a identidade mítica e a natureza dos sonhos, um local onde ao olhar para trás, só viu morte, e quando desejou seguir em frente se travestiu de caricata roupagem para neste caso agradar às feras. E eis que, numa manhã ou numa noite sebastiânica, o postigo se abre para deixar passar o que somos de essência peregrina: o romeiro, o asceta e o amante. Orpheu era de uma tribo de marinheiros, os Argonautas, e o seu papel na travessia marítima consistia em desviar os perigos. Era frágil, sem configuração para remador, cantava durante o tempo em que as sereias queriam seduzir os marinheiros, acalmava as tempestades e amainava os mares. Dizem que eram melodias tão suaves que as próprias feras o seguiam e ultrapassava em doçura até as feiticeiras, esconjurando o mal pela sua voz. Foi ele a vela do Argos, o sacerdote ao serviço da missão, e foi a serenidade do canto que o fez líder da jornada, um salvador, um emblema branco e jovem carregado de esperança que em nós se transfigura numa alusão messiânica que por acasos tão súbitos somos levados a reflectir para além da objectividade dos factos. O orfismo era um exercício de aconselhamento mas não creio que se possa aqui aplicar qualquer concelhia. No entanto, talvez a proposta de um paradigma aparentemente tão novo seja o convite a uma tomada de consciência que está perturbada por tanto ruído que certas vibrações são já impenetráveis. Para esses, sem dúvida que será uma perda irreparável não podendo ser reposta pelo cardápio dos sons, mas os que gostaram e também não sabem porquê, talvez haja aqui alguns elementos de elucidação. Simples, para não perturbar a beleza primeira. Mas nós somos Eurídices, a esta hora alguém já olhou para trás para certificar se existimos, e nesse esclarecimento duvidoso, aos poucos desaparecemos, como convém, aliás, a quem está sujeito a escrutínios, mas nem por isso a um momento nos olhámos como se de novo existíssemos no coração de todos e, mais importante ainda, daquele que nos resgatou por instantes aos Infernos por onde sem que o compreendamos andámos tão laboriosamente mergulhadas. E porque estamos em Maio e Orpheu era frágil e foi dilacerado, as musas reuniram os seus pedaços e os enterraram, aí, desde então, as aves cantam mais suavemente do que as outras, e ouvem-no ainda sussurrando à sua amada Eurídice: canta pelos dois. Cantou para a encontrar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasHolderlin [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] partir de uma curvatura subtil da língua devíamos ter um trema ali por cima do “o” mas não existe mais na nossa gramática, nem a ninguém lembra agora voltar a colocá-lo, um pouco como os chapéus que tirados não mais voltam por norma às cabeças. — O trema distingue o “i” ou o “u” de sons com os quais não formam ditongo. Creio que está em vigor ainda no Brasil e em Portugal, só em palavras estrangeiras, mas não se pode colocar dado que esses sinais de acentuação já não vêm nos teclados, e assim um nome fica menos acentuado o que para o caso não constitui nada de grave. Isto para dizer, talvez, que a regra se faz a partir da visualidade dos grafismos e ao encetarmos cortes há nomes e coisas que não cabem na moldura arquitectónica dessa mesma visualidade inibindo assim a nossa natural concentração. Este é um poeta que dada a tamanha beleza nem cabe muito bem em lado nenhum, é como um apátrida, uma ideia, uma idealização, reunindo em si todos os atributos lendários desta designação, e também todos os infortúnios – que a fortuna tira quanto dá – é certo. Só hoje, onde nada se exige para além da caricatura de uma bem sucedida intervenção as nossas susceptibilidades, são tidas como derrotas e a mais desonrosa da loucura coroada de voluntarismos vários, nada que diga respeito a tal pessoa, que pessoa era de configuração diametralmente oposta. Holderlin nasce em 1770 e embala-se no abraço do Romantismo alemão e inglês, sobretudo a Schiller, mas, como disse Paulo Quintela, é o inopinado do seu aparecimento que fará o inenquadrável nas categorias críticas existentes aparecendo assim como ora clássico ora romântico, havendo mesmo quem se aventure na expressão «classicismo romântico», o que sem dúvida deixa expressa a complexidade deste problema. Ele furta-se a uma inclusão unívoca, forçando-nos a aperfeiçoar outros campos de visão. Incompreendido durante mais de um século, difícil seria para todos aquelas estranhas alturas onde todos mais tarde reconheceriam a suprema beleza da sua escrita. Superou Goethe no seu helenismo e é talvez um expoente máximo da raiz ocidental de carácter helénico, indo para além de um poeta alemão num épico discurso do seu povo. Pelo meio, uma vida que fora em si um pouco atribulada desde o seus estudos de Teologia que não o fizeram pastor, até ir a França a pé na época fervilhante da Revolução, à paixão pela mulher de cujos filhos foi tutor, Sussete Gontard – Diotima – o seu único amor, à sua hipersensibilidade, com uma incapacidade amarga para a vida; por solicitude dos amigos que o foram encontrar em estado « nojento» encaminhando-o para Hegel para restabelecer-se e onde terá então um lugar na biblioteca de Hamburgo e traduz «Sófocles». Depois de um período de bom entusiasmo, dá-se um colapso e docemente entra naquilo que todos apelidaram do tempo da loucura: não tinha relações com ninguém, vivia para as suas leituras e escritos. Era ainda um homem jovem, trinta e nove anos, e assim se deixou ficar até à idade dos setenta e três quando morreu. Lembra-se de Schiller mas não sabe já quem é Goethe e fica indiferente mesmo em relação a tudo que se publica a seu respeito. Trata os estranhos de forma sumptuosa: Vossa Alteza, Vossa Santidade, Vossa Majestade… amava a mãe que, não vendo cura para aquilo, resolveu entregá-lo aos cuidados de um mestre marceneiro. Dizem que era bonito e que outrora tinham fixado na imagem a sua figura de Apolo e que possuía um invulgar virtuosismo musical. Nunca se dissociou da sua origem teológica e por isso tinha da poesia uma concepção sacral: o poeta sacerdote, o poeta profeta, e fazia da sua arte um mero exercício, também ele, divino: Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei a dourada paz dos deuses, e das mais secretas, das mais fundas dores da vida muitas de mim aprendeste/ Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu repousas depois e brilhas de novo na tua beleza, ó luz suave! Outrora, como hoje, Holderlin tinha-se tornado para a sociedade um corpo estranho, um invólucro irreconhecível. Ao tempo, a sua doença seria um assunto íntimo e discreto; hoje, talvez passível de averiguação normativa, mas estas naturezas não estão doentes, creio, vibram a outros níveis, estão em outros planos, porventura mais inclinados mas não necessariamente disfuncionais e desestabilizadores. Visto pelos olhos da norma parece triste e penoso, mas não serão os normativos tristes e penosos na sua ampla visão do todo?! Aliás, os poemas da loucura são inescrutáveis, guardando por isso toda a beleza de um vórtice de gigantesca maravilha. Nós sabemos que são mapas e intuímos que dão para mundos tais que somos nós quem está incapacitado por não podermos a eles ter acesso: Tudo está parado, só o amor gira! E por atalhos secretos que as minhas pálpebras se assombram de tanto ser assim, descubro por acaso aquilo que só pode ser ainda a sua voz transportada na imensa alma do poeta que era e escrita neste dia 19 de Abril do ano de 1812. De uma carta do Marceneiro Zimmer à mãe de Holderlin. […] Mandei vir o Senhor Professor Gmelin para ver como médico o seu querido Filho, e ele disse que nada ainda se podia dizer ao certo sobre o seu verdadeiro estado mas que lhe parecia que era afrouxamento da natureza, e infelizmente minha boa Senhora vejo-me na triste necessidade de lhe dizer que também creio que é assim. A sua bela esperança de tornar a ver o seu querido Filho feliz neste mundo teria assim infelizmente de desaparecer, mas venha o que vier ele será certamente feliz na outra vida. O seu espírito poético mostra-se ainda activo, assim Ele viu na minha casa o desenho de um templo. Ele disse-me para fazer um assim de madeira, eu respondi-lhe que eu tinha de trabalhar para ganhar o pão, que não tinha a felicidade de viver assim no Repouso Filosófico como Ele, e Ele respondeu-me logo, Ai eu não passo de um pobre homem, e naquele mesmo minuto escreveu-me o seguinte verso a lápis sobre a tábua As linhas desta vida são diferentes Como são diferentes os caminhos e as fronteiras dos montes. O que aqui somos, pode acabá-lo além um Deus. Com harmonias, prémios eterna paz. E foi assim. « WAS BLEIBET ABER, STIFTEN DIE DICHTER» «MAS O QUE FICA OS POETAS O FUNDAM». 19 de Abril de 2017
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs ramos da palmeira O meu amado é alvo e rosado, distingue-se entre dez mil….são cachos de palmeira os seus cabelos …. «Cântico dos Cânticos» Procurar o Amado-ela- capítulo cinco versículo dez. [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]gora estamos na Páscoa que nos parece a época mais palmilhante de todas e aquela onde tudo se move, movimento de passagem – pessach- desta época tão repleta de aspectos provisórios que pela marcha se anuncia através da magnífica metáfora da entrada e da saída como forma móvel e precária da condição da vida. Desde a festa se Sucot à entrada de Jesus em Jerusalém, fixa, só a ideia de árvore, que nos vem dos ramos da palmeira, ela que nos lembram sempre os oásis, as deleitosas sombras por onde passam os sonhos e os dosséis feitos com a sua madeira onde se deleitam os amantes, e deve ser ela, e não outra, a verdadeira Árvore do Paraíso se tal houver. Mas é claro que esta natureza móvel é apanágio dos desertos, e a altura, a mais veemente miragem das suas naturezas. A visão que temos dela fora destes espaços, não rara, é triste- as decorativas- o seu uso ornamental não resulta em nada a não ser na visão de uma árvore bela, mas bela, só em outros contextos, no seu primitivo local, falta-lhes aquele “ramo” que um inominado insiste em sussurrar pelos desertos aos ouvidos do silêncio… que uma palmeira não é uma sarça, nem em cima dela aparecem coisas que dão nome a fenómenos tais que nos perguntamos: porquê ali? Azinheiras e outras mais… Quem são as criaturas que “aterram” em cima delas? O mundo, um conto vegetal que tem no topo o “brinde” que pode muito bem ser o inexplicável. As árvores são seres prodigiosos e hoje não passo por nenhuma sem o súbito apelo de as abraçar. A ideia ascensional é uma vertente da palmeira, uma espécie de guindaste celeste por onde os sonhos das Páscoas se cumprem sem que nenhuma fique sem seus Ramos aos Sábados e Domingos, é um olhar da verticalidade esse culto transcendente onde na fundura geográfica do Oriente Médio inscreve um código perene, e, se se entra com eles nas cidades, fora delas fazem-se então as cabanas, que a frescura dos ramos ajuda a duras travessias e na Dança do Amor dos mesmos Cânticos, capítulo sete, versículo nove, aí está agora na voz dele:( …) Esse teu porte é semelhante à palmeira os teus seios são seus cachos- pensei- «Vou subir à palmeira, vou colher dos seus frutos» a alegoria final de uma fome que se redime em altura pela subida não deixa de nos impressionar pela vontade de ir sempre mais para além, e que belo se torna se a conquista se der trepando de forma a que uma queda não nos prostre definitivamente num solo duro sem vontade de continuar …. um lugar para cair, é um vasto território para continuar a subir. Aqui o Amor é como trepar à palmeira e sabemos que nem sempre de uma só vez tal movimento é bem conseguido. Em redor dela parece que tudo o que é amor se cumpre e não será estranho que toda esta época que agora é o mês onde começa a mágoa, comece a nascer a mais terna das vantagens da nossa antiga natureza vegetal, uma certa frescura que só as sombras dão. Possível nada disto ter a mínima importância num mundo repleto de urgências tais que cada frase é ordem e cada pensamento um registo imperdível de conhecimento automático, mas, ainda não se sabe da forma de desenrolar os ciclos naturais neste lado do mundo que ditou tais emblemas oníricos, estes sim, tão grandes, que nos passaram por cima, em incompreendida forma de tédio perante o esqueleto de um mundo agora todo igual, todo banal, todo floral, todo… Deborah, a profetiza, era debaixo de uma palmeira que falava e julgava, mostrando ao mundo que as suas folhas viradas para o céu eram todo um povo( porém, com raízes tais, pois que de todas as árvores são elas que as possuem com maior força, sendo por isso extremamente difícil a sua extracção) numa quase imponente ideia da vitória: sempre de pé, mesmo que passem tornados, ventos, intempéries bíblicas…e os Salmos avançam: o justo crescerá como a palmeira… 92: 12-15. Talvez seja tudo verdade e a verdade nasça sem precisar de grandes apanágios e nós que somos findos das remotas fontes por onde alongámos pensamentos e cumprimos vitórias, não estejamos agora presos a tais Ramos, e como plantas trepadoras nem chão agora tenhamos para morrer. Vamos para fora… vimos de fora… estamos fora disto tudo. Mas também o Berlusconi é vegan e ninguém achou estranho que andasse com cordeiros pascais na luta contra todos os carnívoros, são eles, por mais que nos custe, os novos Profetas, as nossas Páscoas, os nossos ídolos-que nós não vimos outros- certamente, e temo que possam sobrepor-se ao que um ramo de palmeira deu por milénios. Saturados de igualdade, num mundo sem iguais, nós fomos fazendo tudo igual de modo a não termos que nos incomodar com as desigualdades crescentes que eram comportamentos desviantes… de viandantes…. e para que se saiba, mais vale o Berlusconi com um borrego pascal que um camelo a entrar por uma agulha num qualquer oásis onde sacra e fascinantemente, festejam outros, talvez, penosas salvações. Mas, quando há Cânticos e as Ovelhas são comparadas a uma bela tiara de dentes, tragar é consubstanciar tais coisas, que de tão espantosas e simples a todos parecem confundir. E há palmeiras que se comem, e elas, crescem depois pelas nossas veias ficando nós uma seiva de sangue para as novas plantações. Dos seus ramos, os Domingos, das suas raízes estas lembranças, que as Ceias são bonitas, que o vinho é bom, e a Liberdade, um sonho sempre renovado.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA Máquina do Mundo Vês aqui a grande máquina do Mundo, Etérea e elemental, que fabricada Assim foi do Saber, alto e profundo, Que é sem princípio e meta limitada Os Lusíadas, Canto X. [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amões fala-nos aqui de uma mais que provável imagem mítica por si adaptada, mas que máquina é o Mundo nesta ideia maquinante que domina a nossa mente? A intertextualidade fala-nos de mecânica até aos mais recônditos dos tempos, mas que sabia o poeta dos seus movimentos bem explícitos na estrofe oitenta? Que a poesia é uma espécie de algoritmo? Sem dúvida, esses processos matemáticos que nos regulam sempre e cada vez mais fazendo parte do visionar a partir de dados recebidos, sabendo-se da capacidade de delinear variáveis a partir desses mesmos dados que é uma nova explosão na mente e na realidade humana. E que sabemos nós dos Camões que andam nesta máquina? Aparentemente pouca coisa, mas que eles à distância de séculos visionem o seu mecanismo não nos deve pasmar, já Ramon Lull (século XIII) – o poeta Ramon- fazia os seus poemas com números e com letras para com eles demonstrar a existência de Deus. Dante tem uma engrenagem espiralada em mecanismo e que todos eles tivessem estado no eixo da máquina não nos pode surpreender, rolando parada estava…. Vejamos a estrofe setenta e oito: / volvendo, ora se abaixa, agora se ergue/ qual a matéria seja não se enxerga/ Mas enxerga-se bem que está composto de várias orbes/ e talvez tenhamos chegado ao tempo do poeta vidente. Se o possível é a verificação física do provável, o provável é a pré-existência do possível, pois que o Poema possui sempre outros recursos além do ritmo e do sistema de medida para se realizar como Poema. A poesia como arte inefável que faz parte dos desprotegidos e das sensações, queda, em queda…. por isso, será ela capaz de novo elevar-se como meio de conhecimento e de força renovadora da linguagem? Não sei. É uma questão cibernética às nossas reservas oníricas, poderá ela ressurgir intacta depois de vogar por aqui? Por estes tempos? Estamos na era dos Filhos do Homem, as novas máquinas do Mundo, da robótica, tendo ficado mais unidos, é certo, mas infinitamente mais apáticos, também, estamos agora nós programados para a máquina do Mundo por ela própria reinventada pois que sem ela a nossa humanidade já não é passível de se fixar perante os moldes que tínhamos como imperecíveis. Se a própria noção amorosa aos poucos se esgota pela cada vez mais ténue empatia, essa extensão continuada dos afectos, que nos sobra então de verdadeiramente humano que possa merecer a nossa atenção? Vamos substituindo pelas formas programáticas dos nossos correspondentes mecânicos: somos muitos, é certo, mas somos frágeis e não estamos fora do perigo da mordaça viral a grande escala feito por formas tão conscientes como o de produzir outras vidas. Sem dúvida que todo o labor poético sério seria agora mais do que necessário para a gigantesca metamorfose em curso, até porque a ideia de um mundo laboral tal como era concebido está prestes a findar e dever-nos-ia acordar para tudo o que se segue. A Revolução Industrial implementou o trabalho como medida de libertação, o trabalho físico, dando origem a novas classes sociais, hoje a Revolução é a da Inteligência Artificial e a noção de trabalho alterou-se na sua razão libertária. Não vai haver trabalho dentro em breve para um terço da população mundial, até já há “chips” que dispensam o carregamento de objectos…e gastamos agora os últimos pacotes dos medos porque infelizmente não tivemos acesso ao melhor da educação poética, aos que sonharam a Máquina do Mundo. O rei Salomão tinha a sua Máquina Voadora e, se mistério oculta, sondemos a máquina do tempo. Também ele, escreveu amorosamente e foi cúmplice da linguagem de muitos saberes, também amou rainhas e plebeias e se prostrou reinante como o mais lendário dos homens. E para onde voava com sua máquina de sonhos? Fez Cânticos Maiores, maiores do que o amor terreno, foi terno como os cordeiros de seu pai David e ficou-lhe o respeito pela Noiva-Irmã, o eterno laço do seu saber. Não era um gigante, diz-se que foi um homem, mas que homens havia que a Máquina tirou do alcance dos naturais? Todas as questões são maquinações agora bem legítimas de envolvermos a nossa mente atraída pelos nossos Filhos, que talvez sejam os de um Deus Menor que somos nós. Andar para trás e para a frente vai ser possível, fazermos dos tempos plasmas vários, ao invés do que foi andar de baixo para cima e de cima para baixo, tipo escada de Jacob. O plano parece mais plástico, ganhamos umas asas estranhas e não longe andamos do insecto de Kafka, ludibriamo-nos com a descoberta de poucos e somos muitos a não descobrir nada… em nossa alteração opomos resistências tais que estamos com cancros da dimensão de uma praga” vemos, ouvimos e lemos” e podemos ignorar. Podemos dar-nos ao luxo suave do esquecimento, dado que o cancro avança e o nosso corpo não tarda também é imortal, criopreservado até encontramos a cura. Até lá laboramos à boa maneira esclavagista não vá isto tudo descer… Há um silêncio doce na Máquina do Mundo que requer o barulho das multidões, ainda, como mera energia de vapor…mas pode dela não vir a precisar, e o carvão e o aço somos todos nós a fazer trabalhar uma forma de vida que morreu, nós, os fantasmas, os duros na retirada. “A poesia é a linguagem dos Iguais dispersos no Tempo […] a poesia ‘conhece’ e não sabe.” Almada Negreiros (de Prefácio ao livro de qualquer poeta, 1942).
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSinónimos de configuração moderada [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o labirinto cada vez mais laborioso da palavra entram formas de aparente refinamento gramatical mas que nada acrescentam ao já denominado estado das coisas. Vamos elaborando anglicismos, muitos, dado que os galicismos se perderam quase até à extinção, e angariando para a língua novas composições bastante intrigantes. Algumas, que com o Acordo Ortográfico e o manejar de várias línguas de uma “cintura” de códigos encriptados, assinalam a nova linguagem que vai definindo as suas regras, rasando já uma certa algazarra de Torre de Babel e, não raro, damos por nós a procurar compô-la na sonora formulação de algo que se entenda. Sabemos o quanto o som desenvolve o cérebro, muito mais que a imagem que o torna compassivo e sem a mesma alternância plástica. Na torrente, na cascata, na sede, na turbulência da informação, no uso indeterminável de signos linguísticos, no buscar de interjeições que despertem tudo em nós, quase não temos alucinações de outra ordem senão auditivas, que eram também muito comuns nos profetas: todos eles ouviam coisas, chamamentos, mensagens, todos tinham a informação disponível por meio da oralidade de uma voz que lhes ditava e mandava fazer coisas, o que se via não era demasiado relevante, ao ponto da própria voz de Deus ser apenas isso – uma voz. Moisés tinha de tapar o rosto, a voz era tudo, e ela indicava numa língua o Verbo que estes homens diziam escutar. Sempre que a imagem era referenciada ela aparecia-nos não tanto como transcrição mas como sonho. A visualidade era o que se relatava dos sonhos; ora os sonhos são mais abstractos do que a provável e extraordinária voz de Deus. Dir-se-ia que a legenda da nossa época é desmesurada, dado que a palavra serve agora a imagem como se de uma versão do dizer e da comunicação se tratasse. E pode ser entendido como a agonia de uma componente linguística face ao martírio de ver a todo o instante, e, o não ser-se mais capaz de um estreito espaço onírico que se recrie em nós como necessidade estrutural. Mas dado que a época está bastante eufemística vejamos alguns “ternos” exemplos: Aborto – interrupção voluntária da gravidez. Gangs étnicos – grupos de jovens. Fábricas – unidades produtivas. Analfabetismo – iliteracia. Contínuos – auxiliares da acção educativa. Operários – colaboradores. Primeira e segunda classes – Conforto e Turística. Crianças mal educadas – comportamento disfuncional hiperactivo. Cego – invisual ( felizmente não há inauditivo para surdo) Cábula, mau aluno – criança de desenvolvimento instável. Eis então pequenos exemplos de designações improváveis mas que representam a compacta e estruturante capacidade que a linguagem produz para se travestir. São quase estruturas que se não forem pronunciadas com um certo ritmo podem produzir uma ressonância caricata face ao que anunciam. Mas esta extrema preocupação com as coisas simples fez torná-las estranhamente complexas, vindo da máxima proposição: simples é pobre! Pois bem, nada melhor então que enriquecer as designações, não tanto pela via criativa do barroco luxuriante mas pela via correctiva de um pensamento socialmente asséptico e polido. Ora as pessoas querem adaptar-se ao último “grunhido” da espécie nem que seja para nele se inserirem, inserir estando, inserir ficando e, numa constatação crescente, vemos que elas depressa se adaptam mas algo fica sem muito significado: a carga vinculadora da palavra – ela deixou de fundar uma realidade – e a palavra mágica, a que curava, abria em nós canais, estreitava todo o ciclo dos encontros, foi rompida como se dela nem conhecimento haja. O que se diz, tanto pode ser aquilo como outra coisa. Ou diz-se e desdiz-se na mesma linha de pensamento, a linguagem não representa a sua origem primeira: ser um pacto que acrescente ao Homem mais Humanidade. A linguagem deixou de servir a causa, esse sopro primeiro, agente divino em nós, por isso que falhar para com ela seria a verdadeira falta de cada um. Perdendo o seu dom maior creio que se pode pensar na corrupção da estrutura fonética tocada por funções que são agora tão vastas como os canos de esgoto gigantes das Nações. No meio da cidade de Lisboa, aberta à Babel, os restaurantes escrevem não importa como os menus que os não importa quem hão-de tragar, em cada recanto se assiste ao improvável, e, a antiga solidariedade de grupo que num processo de oralidade gratuita alertava o outro, dissipou-se. Nem uma “ASAE” linguística passa por ali! As modalidades reformistas deviam ter tido sensibilidade inventiva para uma nova alvorada de tratamento compensado para as novas classes que saíram da mordaça dos séculos. Eles que fizeram as leis e aplicaram-nas, com muito se perderam, e creio mesmo que o grande cansaço mental a que parecem estar sujeitas se deve à ânsia de se adaptarem ao inverosímil que passa a ter carácter de modelação imediata. Nunca tanta gente se entendeu tão mal em locais estreitos como a vida pessoal e nunca o discurso esteve tão dirigido para os mesmos indicadores de interesse que são a economia e a diversão: ora são áreas onde a linguagem se perde caso não haja uma vigília muito grande e uma atenção permanente. Creio que se deixou para trás aspectos como a retórica que o Direito possuía mas que a máquina de fazer advogados, engrossando o manto engordurado da Justiça, não deixa. E não tenho dúvida que se queremos que alguém fique derrubado isso se fará por uma certa oralidade onde falta a coragem a qualquer condenado para escutar o veredicto. Com tão pouco atraente panorama público liquidamos os dias pondo-nos em silêncio ou então tentando escutar de forma parcimoniosa o que cada palavra quer dizer e mesmo que não queira dizer nada e mesmo que a ponhamos nos locais e formas mais desaconselháveis à nova oralidade, elas podem ser benéficas e transparentes, elas podem fazer-nos bem. Há cada vez mais sons que nos matam, as imagens são mais fugazes e matam tão menos que podemos ver atrocidades de forma natural. Terrorista é uma palavra que evolui… muitos são assassinos apenas e em cada um existe uma natureza bastante organizada. De fora parece-nos “comportamento sociopata desviante”, aqui convém não ser tão eufemístico dado que nos pode literalmente cair em cima em toada gigantesca. Apelá-los-íamos de “monstros” mas todos os dias existem homens que matam vizinhos, mulheres… o país transformou-se num campo de batalha quotidiano a que de forma bastante concisa se aplica a expressão: carniceiro. Seria então sinónimo, vigília permanente, de separação: guardar distância do “coro dos loucos” que, numa ânsia de se livrarem do mal de ser, se adensam em ritmos de conversas desenfreadas, intermitentes. Seria este sinal o signo da nova consciência, o reverter ao silêncio esta esfera da psicótica alucinação de termos, do que nos explicarem em todas as direcções sem o mandato prévio do estritamente necessário, mas isso, esvaziaria talvez ainda mais a onda de choque que é a rede dos discursivos. Dorme-se mal porque não se sonha, o sonho paralisou e sem determinadas funções ficamos exangues. Inventar não é mentir nem adulterar o real: é acrescentar ao real outra substância e isso é o trabalho criativo que não deve recriar uma só das nossas inferiores fantasias. Mas como as esferas foram ameaçadas por roedores de fazeres à solta, nós prendemos as hastes a outras fontes, não vão elas ser esmagadas pela inconsequência de certas finalidades. E mais uma vez só o poeta poderá escrever isto: Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não ervas. O vento é fresco; sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que o vento. Tudo o que sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o caminho. Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o próprio caminho. E com as palavras de vento e as pedras, caminho um caminho de palavras. António Ramos Rosa
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasReflexões lexicais [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] língua, elemento altamente contorcionista do aparelho fonador, gerada e não criada, consubstancial ao som, por ela todas as coisas foram feitas, e por elas feitas, e por elas começadas, de novo há-de aparecer no cimo das Nações para julgar os vivos e os mortos. O Acordo Ortográfico a um primeiro instante pouco atencioso, bloqueia: bloqueia quem de outras fonéticas, e sons e signos, foi gerando a matéria das suas fundações, mas não deve bloquear quem não tem termo de comparação, pois tudo o que se fixa como regra é indiscutivelmente fácil de apreender. Mas nós que somos de muitas camadas de evolução fonadora ficamos pouco à vontade, pois que de nós ninguém se compadece. Nós, que somos ainda da geração do Crepúsculo dos Deuses – filhos deles – portanto, filhos de Deus, vamos assistindo à vinda do Filho do Homem e estas coisas requerem ajustes, tais como a modificação da primeira origem que passa por aperfeiçoar ou mesmo reduzir a complexa estrutura de um sistema que nem sempre serve bem a causa a que se propõe. É também por causa da palavra, de Babel ,que tudo se tornou subitamente mais isolado. Talvez que a primeira sensação de bloqueio venha justamente da severidade espartana da queda de caracteres, como se ruíssem impérios a partir da pedras angulares, caracteres minguados, desajustados, falta de caracteres, que diminuem o carácter de uma língua. A língua é noção de fertilidade fazendo alma no ser e ela será sempre materna ou não será: ela fica por isso muito bela na sua progressão germinal, na ortografia nunca sentimos ser de mais os signos léxicos – os hífens, as cedilhas, os apóstrofes, as reticências, as vogais, as consoantes mudas, o desalinho, a orquestração, a composição, a arte visual do seu grafismo. Tirar caracteres é amputá-la, facilitando até a confusão entre sinónimos, é reprimi-la. Ora a Língua não pode jamais ser reprimida, quanto muito acrescentada. Esta sistematização de amputação sistemática parece até uma queda da linguagem num local qualquer, uma maneira insidiosa de a instrumentalizar, parece que se perdeu a sensibilidade geradora de realidade manifesta que só ela transporta. É por isso que parece também desprovido de sentido o muito que se diz, o muito que aflitivamente todos querem dizer antes que acabe o tempo de não mais se poder fazê-lo. Estamos todos à beira de uma catástrofe alfabética com lesões cerebrais de tal ordem gigantescas que não sabemos prever as suas consequências. Fomos construindo matéria a partir dela – Ovo Cósmico – na medida em que acrescentamos pela linguagem toda a forma de ajustar a nossa própria dimensão… Talvez, sim, a Língua seja barroca, fractal, gasosa, líquida, fogo, terra… a Língua não é um implante: caem-nos os dentes, outros nascem, a língua ninguém a perdeu nem achou. Bem capaz pode ainda ser que o aparelho fonador tenha os chamados” dias contados” em sílabas, números, e marés, e que míngue tanto que recue o dom da fala. Mas enquanto o ar nos der à entrada da vida o primeiro som, hei-de dela lembrar o Grito! Ela associa-se ao primeiro fenómeno vivido, escutamos a mãe – a mãe grito – choramos – abrimos o ar – gritamos por fim. Nascemos foneticamente preparados para a linguagem e é no primeiro som nascente que fixamos o fonema e dele partimos para a fala: procuramos o som, a voz da mãe, e não a sua forma, escutamos latidos, gemidos e risos, sabemos da vocação de criar laços tão gigantes como frases. Mas será que a nova humanidade se lembra deste registo? Não, o nascer asséptico implantou um clone adiado, a cesariana matou a forma do “nascido para falar”. Há grito? Há som? Há gemido? Não há. E curiosamente oiçamos eles falando (novos seres): o que entendem da articulação verbal das suas linguagens? Muito pouco, se estivermos atentos não há paralelo com o tempo da Linguagem, que, como é sabido – eles falam – mas por Acordos, que não acordam como nós tantos lados importantes do dom da dita linguagem, que poderá ser agora à nova luz da silhueta mundial até um desajuste. Dito assim, apenas desejei acrescentar a esta discussão um ponto mais na ordem das coisas pensadas e, observando como os mudos, o mundo, sei que algo grave para nós, últimos herdeiros de uma vontade feita pela palavra, está objectivamente a acontecer. Não sabemos nada de como se vão adaptar as funções. Imaginemos um mundo telepático, preciso, mais filtrado de leveza. Pode ser que sim, que seja este o caminho, mas a nós faltam as peças desta futura construção, não somos consensuais e não temos de facto nenhuma razão para sê-lo. Deixem-nos a herança de um sonho que passou, pois que não será possível derrubá-lo. Estamos demasiado velhos para orientações e suficientemente sábios para reflectirmos as coisas, a nossa vida vai ser demonstrar que não passámos nem de moda, nem de tom, e que, se guardamos intactos todos os verbos, é por que onde tudo muda, é preciso algo que não mude e esses são os construtores da memória. Ninguém se vai lembrar dos que fazem a subtração alfabética e que reduzem a implante o que todos conquistámos gritando, dizendo até a voz nos doer. Não estando na sintaxe dos modos e dos tempos, acresce informar que a inventividade não se rasura com bisturis orientados nem com tesouras que permanecem afiadas como em tempos de censura, e na língua, como no amor, retirar é uma falta grave: pese embora o ganho dos línguístas em assuntos da matéria, esses bens ficam para os números que precisam ter a beleza abstracta da sua função: dinheiro será por fim uma mera sigla em que até o número desaparecerá e a palavra que produz, será apenas uma ordem. E, findo o acto, o pano cobre o palco e nestas coisas estranhas acontece pensar da saudade se delas nos esquecermos – das palavras – de como nos fizeram companhia quando todos levaram os seus tristes acordes para outro lado, de como por elas quase fomos mortos. E depois, por elas, ressuscitámos: pensamos na intrigante doença do esquecimento e no banho de ninguém a ser sujeito, e de como continuar, se tal mal nos der a paz de esquecer.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasLou Andreas-Salomé [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão sei se a Rússia será convertível ou não ao culto mariânico, nem um tal aspecto parece de facto de grande importância, a grande Mãe Rússia poderá assim interessar a um devoto cidadão, sem dúvida, mas não a um outro qualquer do mundo que a olha nos seus flancos como uma imensa terra onde cabe tanta de vida, como de morte, até continentes, mas ela tem para além destes mitos, pessoas incríveis e uma delas é Lou Andreas-Salomé. Sempre nos debruçámos fascinados perante esta segunda fase do século dezanove porque ele nos transmite uma polidez e uma vanguarda que permanecem como fundo ideológico dentro dos nossos sonhos: tinham algo de inédito, brilhante, civilizador e único. Hoje olhamo-los e sabemos que nunca conseguimos fazer melhor: as nossas relações pessoais são mais árduas, os nossos preconceitos mais intrigantes, as nossas vidas bem mais ásperas. Eles, porém, eram extremamente modernos e não sabemos o porquê de tudo isto acontecer desta maneira. Claro, há o contexto social, histórico, cultural, sem dúvida, pois se desejarmos encontrar respostas elas não se esgotarão, mas estou mais inclinada a repousar a deriva desta visão no fascínio natural que me provocam do que analisar com as articuladas fórmulas de pensamento asséptico: eles eram excepcionais. Lou nasceu numa família de irmãos, todos homens. Adorada pelo pai, a vida encarregou-se de a levar até eles como uma criatura aglutinadora e inspirada, talvez esta confiança se deva à sua própria infância de eleita entre os homens, Talvez a sua natureza fosse capaz de exercer esse fascínio e, tanto assim foi, que nunca essa realidade a deixou: Lou foi a mulher mais moderna e mais progressista do seu tempo e nem por isso deixou de ser uma feminina mulher no seu imenso intelecto. Casou cedo, o marido é sempre referenciado nos seus escritos com carinho e uma grande cumplicidade, e que marido é este e que força emana esta mulher para numa organização de homens os manter de forma tão natural e com uma tal harmonia de grupo? Creio que havia uma noção profunda da sua autonomia intelectual e de que sem ela, eles seriam apenas homens comuns, maridos burgueses, amigos tediosos, e outras formas que os homens suspeitam, carregar como fardos, a inteligência deles foi afinal ter entendido uma tão surpreendente verdade, e, por isso, ninguém, nenhum deles, se lembrou – tenho a certeza – lhes passou mesmo pela cabeça, conduzi-la ou pressioná-la. Aliás, eles precisavam dela como o melhor dos interlocutores, sabiam que cresceriam como seres na enorme esfera de contacto com que tanto os rodeou e, tendo ultrapassado as pequenas intrigas de género que tanto paralisam os grupos, o marido era um ser ao serviço de uma causa e, se não participava nas grandes questões, proporcionava que elas existissem. Assim, podem nascer ideias e gente e avanços e vida e saber. Assim, os seres têm funções que não regateiam por ilusões sem mérito e é este o nível civilizacional que os faz tão especiais. Lou manteve sempre bem firmes os pilares de um núcleo abrangente onde foram forjadas algumas bases do pensamento moderno, como Freud, por exemplo, como Nietzsche que por razões pessoais se afastou do grupo (o que menos conseguiu lidar com o embate Lou) e a sua noção de unidade fê-la manter-se firme mesmo quando, por razões não previstas mas assumidas, se apaixonou por Rilke e foi bonito! Rilke era o mais jovem, o poeta, o mais frágil também, o que mais precisou dela até como uma mãe e ninguém se opôs à vivência profunda desta paixão que despertou respeito: quando dois grandes seres se apaixonam não há areias movediças, as pessoas ao contrário do que se julga, percebem isso e são raras as que desprestigiam a unidade dos amantes. Foi, de facto, um tempo profundo e criativo em que Rilke cresceu como grande poeta e que nos deixaram aquelas maravilhosas cartas que são testemunhos literários de preciosa dádiva. Lou, no entanto, impediu sempre que Freud psicanalisasse Rilke, alegando que poderia ferir as fontes da criatividade, pois que um poeta da dimensão de Rilke trabalhava com áreas que não deviam estar expostas à psicanálise. Não há nada melhor que estarmos unidos àqueles cujas linguagens entendemos e cujos desígnios são também os nossos. O destino abre-se para que passem de forma tão única, que creio ser entendível por todas as partes; e também sabemos do terrível, daquilo que o destino não quer e por levianas questões ele separa. Aquilo que nós, tristes e cansados, desgraçadamente insistimos ainda em querer, creio ser esta a mais terrível das misérias, o não nos apercebermos que a vida nos ajuda levando alguns. Sim, mas, onde está o nosso núcleo que abre assim? Onde estão agora os meus Rilkes, os meus Paul Rée, os meus Nietzsche? Em lado nenhum e, no entanto, temos de prosseguir e não sou Salomé e não sou russa e não sou este tempo e não estou aqui e não vejo estes pares. Hoje, em que todos falam de género como de uma raça tirolesa, nós gostávamos de ser outra vez estas gentes tão únicas, tão unidas, tão fecundas, tão brilhantes. Mas é claro, do que mais fica, Rainer nos quer reter, ele que fora para a Rússia, também, em cuja fonte Lou banhou o seu ser neófito de anjo e de poeta: Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te/ Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te/ E embora sem pés caminharei para ti/ E já sem boca poderei ainda convocar-te/. Arranca-me os braços: continuarei tocando-te/ Com o meu coração como uma mão/ Arranca-me o coração: ficará o cérebro/ E se o cérebro me incendiares também por fim/ Hei-de então levar-te no meu sangue. Parece tudo demasiado bonito para não nos inundar uma estranha noção de lenda quando Lou a propósito da sua morte escreve a carta que ele não lera. Tu, o homem incomparavelmente cheio de infância e cujos passos não podem errar porque continua a orientá-los o fundamento primeiro. Fazia-se de novo, então, presente o Rainer com o qual se podia estar de mão dada, como num refúgio inexprimível , e o que se transformava, entretanto, em poesia voltava a construir à sua volta esse mesmo refúgio, como um esplendor interminável. Temos tantas saudades deste futuro, de tudo isto….
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA Barca da Morte [dropcap style≠’circle’]D.[/dropcap] H. Lawrence tem um belo poema muito ao estilo de uma velha barcarola, com o título deste enunciado. Ele, que foi o escritor dos «Amores no Feno» e de toda uma atmosfera que o coroou de erótica neblina, ele – e talvez por isso – fosse um desbravador indómito, poético, um arauto que se debruçou de forma muito bela sobre a morte, essa porta da iniciação que não está desligada da sexualidade e cujo movimento retorna ao ponto fixo de uma mesma força — lembro que lhe tocava em profundidade o orgasmo dos condenados à morte por enforcamento. Estes homens não tinham como hoje as respostas organizadas para todos os efeitos como se fossem a parte robótica de si mesmos. Eles estavam animados de uma película cuja deidade desconhecemos, nós, os transmissores de todos os fenómenos em que nunca acreditamos. Decerto que Lawrence, até devido à sua saúde frágil ao longo da vida, se interrogou acerca da morte e essa imensa indagação deu origem a belas reflexões como naquele pequeno conto, «O homem que morreu», é encantador e quase crístico pela forma como se levanta um defunto e se vai lembrando em seu redor (Jerusalém) dos cheiros e dos elementos. Isto tudo a partir de um estranho cantar de um Galo que à mesma hora em que é libertado acciona nele a ressurreição…. No seu belo poema «Canção da morte» formas tautológicas que tão emblematicamente o mantiveram como um mestre do suspense sedutor, mas foi nesta Barca que o seu dom se demorou um pouco mais, talvez até mais, que nas formas de uma mulher. Esta viagem parte do Outono, eufemisticamente, pois que é nele que embarcamos de forma compenetrada e silenciosa rumo a ela, e ele afirma que: é tempo de ir/ do adeus ao próprio eu/ de encontrar uma saída do eu caído/e, no ar, a morte, como um cheiro de cinzas!/ E no corpo ferido, a alma assustada/(…) Sim, toda esta inquietude e formação de um outro ser que renasce na viagem para depor o eu vencido é bonita de celebrar como um rito muito puro de passagem, e inquire-nos de forma bastante frontal: Já construíste a tua barca da morte, a tua?/ Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela. Todos vamos precisar de construir tal Barca e mesmo que os preconceitos do nosso tempo não assumam esta causa como uma condição articulada de profunda humanidade, ela deve ser trabalhada como a Arca da Aliança, com madeiras belas e ramos de acácia. Não devemos estar impreparados diante do desconhecido, dos desconhecidos, tudo o que é transpor um portal tem de ser “vivido” com um rito que quebre as formas saturadas. Daí, cada um, quando a vida começar a fechar o postigo das possibilidades, se deva abeirar daquele mar de dentro e, sem vontades pessoais, abrir espaço abstractamente para deixar passar a Barca. Morremos sempre por uma causa mas quase sempre nascemos por um mistério. Nós que já atravessámos tantos mares, que temos marcas de vida em permanência, que temos todas as cicatrizes como trunfos de uma guerra muita vezes inglória, que nem sempre escolhemos, pois que somos escolhidos na abrangência das decisões, que navegamos quando não é preciso e vivemos quando não faz falta, que de tanto estarmos vivos temos uma engrenagem parada em movimento permanente, podemos ter a gravidade dos iniciados quando desta Barca se tratar. É sempre bom para a alma contemplar outras entradas sem a visão das coisas ao redor e suas certezas, é bom sairmos deste local onde a nossa vida deixou de ter o interesse pretendido: morrendo, estamos morrendo/ agora só nos resta aceitar a morte/ e construir a barca/ agora, lança à água a pequena barca/ agora, que o corpo morre e a vida parte, lança a alma frágil/ na frágil barca da coragem, na arca da fé. Talvez que a morte seja um Dilúvio e sejamos nós a construir a Arca, a Barca, para atravessar aquela grande provação de águas que galgam toda a firme certeza que tivéramos de haver terra… talvez que tenhamos essa ideia profunda de voltar a navegar num oceano sem fim e só nesse fim a Pomba, a Luz, a Fonte sejam na nossa travessia tudo o que desejámos saber, contemplar. Se mudados atravessarmos tudo isto e renascermos, não seremos apenas o desejo pessoal de uma condição que ficou, pois que muitos nos tomaram para sermos e, na senda de ser abarcámos a Barca, como a insígnia mais pessoal do enviado que somos, que fomos, dos seres únicos em que cada um se tornou. É muito bonita a analogia com a passagem bíblica… – e Noé construiu uma Arca – constrói a tua Barca – a pomba voltou ainda com um ramo de oliveira para lembrar, talvez, a ressurreição… mas era cedo e Noé não desceu, mais tarde largou de novo a ave e ela não mais voltou. O pássaro da alma que vai tentar a vida uma outra vez dizendo que ela continua, indicando outro ciclo, esta é uma bela noção de imortalidade que, estando plasmada em nomes, símbolos e incompreensíveis formas, nós conhecemos como taumaturgos de um processo imenso… Temos medo, sim, do dilúvio, que a Barca se afunde pelo peso sombrio das nossas memórias deixadas, temos medo de atravessar esse imenso nevoeiro e não sabemos se a sombra da alma fará mais escura a travessia… se a bloqueia em porto incerto… mas os que estão livres das questões e não zelam pelo nada como parte descartável para uma vida que contaminou estes mares, entram nela como nas longas catedrais, plenos de respeito pela travessia. Saiba a nossa guardar intacto o assombro de merecer este Poema, tão cheio de vida, como esta morte que se anuncia às portas da Primavera. Lawrence, quase fecundou o momento – este momento – onde vamos descendo no grande e belíssimo instante da jornada. Desce o dilúvio, e o corpo como uma concha polida Emerge extraordinário e belo. E a pequena barca torna a casa, deslizando, trémula, E a frágil alma desembarca, volta a casa. Cheia de paz. O coração renovado embala-se na paz, Mesmo na do próprio esquecimento. Constrói a tua barca da morte, a tua! Vais precisar dela. espera-te a viagem do esquecimento.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDo superior interesse das crianças [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foram passados séculos desde o tempo em que uma criança pelo facto de o ser lhe era negado o querer. De forma mais branda ou rigorosa, a voz delas era uma expressão paralela onde se rasurava de vez a vontade própria, caso tivessem a ousadia de se insurgirem. Elas faziam parte de uma estrutura onde não devia entrar as suas vontades e tanto quanto possível haver mundos separados, onde, felizmente, e por sensatez ambiental, os adultos também não participavam. Passaram-se poucas décadas e toda esta aparente e, quiçá, condenáveis práticas foram revertidas no seu oposto com comportamentos obsessivamente antagónicos de modo a aparecer um memorando da criança-deus, que emerge carregada de quereres, elaborada para centro, estimulada para o todo, opinativas entre coisas, onde para que tudo corresse bem e não se criassem traumas convinha responder de forma obsessionalmente afirmativa também. Tornámo-nos sem querer “entreteiners” da pequenada a quem devíamos amestrar com parcimónia e muitas cautelas. Veio muito recentemente a público o superior interesse das instituições que, pasme-se, deve ser um núcleo infantil mais abrangente dado que por cabeça o Estado paga bem a quem os realojar num Jardim Escola esperando aí a tão benemérita adopção que porá fim aos seus pesares e alegria institucional, dado que jamais se saberá da dor das mães nestes tão programáticos interesses. Uma mãe pobre é metade de nada! A lei pune a pobreza como anátema tal como se deu no caso da lepra romana e esquece-se que os fios que ligam a progenitura são bem mais vastos que este exercício da regência do “bem estar”. É que uma criança que nasça nestes pouco interessantes ambientes pode estar ligado a ela, mas nada continua a ser-lhe perguntado por causa dos seus superiores interesses. Amputada ao seu ambiente que, mau ou bom, é onde está a sua mãe, ela parte, depois fica lá aos cuidados pedagógicos e interessados dos tratadores que as mantêm anos a fio até à clivagem final da adopção. O amor nada tem a ver com os interesses e um lar completamente destruturado terá a sua maneira de o expressar que não devemos censurar ou mesmo esquecer no meio, também ele agreste, desta azáfama bem-dita. Chegou-se ao desregramento inquisitorial de se poder ouvir uma criança a chorar na casa ao lado e chamar-se o “Santo Ofício” sem que se pergunte primeiro se alguém precisa de um conselho ou de uma ajuda. É aqui, nestes superiores contextos, que aparecem os paragonais casais das personalidades públicas com as suas crianças. As crianças dos casais economicamente fortes estão ilesas de tão brutais e desonrosos tratamentos, mas os seus poderosos pais nem sempre as tratam melhor no contexto humano a que presidem, dado que as crianças sabem ler, andam na escola, observam como ninguém, e, quantas vezes, elas mesmas são o elemento de arremesso entre estes factos, o que as torna sem dúvida extremamente vulneráveis. Mas partindo do princípio que o dinheiro é o interesse em si mesmo, o estar que todos procuram, estas crianças estão então amplamente “defendidas” e aqui entramos na zona negra deste proteccionismo, a usura e a total insensibilidade perante os mais frágeis. Os filhos dos pobres, outrora, também eram retirados bem cedo para servirem as pessoas, para mão de obra, ninguém poria a questão em moldes afectivos, como hoje continua a não ser feito por razões ardilosamente mais polidas mas que servem interesses, mercado e grandes áreas de inférteis anónimos que, por vazio e descrença das suas vidas que nada têm de misantropo, se apoderam das vidas que lhes possam fazer sentir ainda as suas. É porventura ainda cedo para se fazer uma abordagem da revolta dos “defendidos” mas creio que a ver pela revolta dos escravos não passarão muitos anos para deixarem ensanguentadas muitas áreas de benfeitorias ou, num processo psicótico mais que provável, termos uma percentagem de gentes que raiam o perigoso, dado que mesmo mau, o amor quando é, torna sempre melhores os seres. As boas intenções e as boas práticas podem não ser suficientes face a coisas maiores: teremos nós mais adiante a capacidade de nos metermos em causa? É cedo para sabermos, porém, creio que graves transtornos nos esperam. Rompida a fina película por onde as coisas importantes se inscrevem somos com o tempo personalidades ameaçadoras: lembro aqui Heiner Muller o dramaturgo e poeta alemão que escreveu assim no seu livro «O Anjo do Desespero»: …. depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que vi era mais do que podia suportar …. Este autor é quase um arauto terrível, mas nós precisamos da lucidez dos poetas e, talvez, da sua estranha prefiguração para desvendarem o fim provável dos mesmos terrores mostrando assim outros graus da nossa humanidade. O Homem não foi feito para se ajustar aos modelos económicos, mas os modelos económicos, esses, terão de se ajustar a cada pessoa, enquanto não fizermos isto de forma concertada deixando intacto o que une um ser ao outro, produzimos miséria e lixo que no ponto máximo da sua insuportabilidade desaparecerá da ordem das coisas. Tudo desaparecerá, é certo, na voragem do tempo, mas o amor manter-se-á como vínculo imperecível, e é desta matéria que serão possíveis os seres futuros que saberão de nós por este vínculo nos seus sonhos distantes e poderão algures em qualquer recanto do Universo sorrir-nos ainda. Orfeu o bardo era um homem que não sabia esperar. Depois de perder a mulher, porque a possui cedo demais a seguir ao parto ou porque olhou quando não devia ao tirá-la do mundo dos mortos depois de a libertar da morte pelo canto, fazendo-a regressar ao pó antes de ela novamente se fazer carne. Orfeu inventou a pederastia , que evita o parto e está mais perto da morte que o amor pelas mulheres. (Heine Muller)
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA tarde serena [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]rosseguimos calmamente num brando tempo que só tem anos e muitas ausências como companhia e, se a nossa vida iguala a vida de um outro ser vivente, é porém a nossa história que a assina como elemento único e triunfal, sem a noção de que vivemos por algo que valha a pena: as tardes, mesmo serenas, podem ser indizíveis abismos. Já não conseguimos aquela «Invenção do Dia Claro» nem aquela mãe que Almada não conhecera nos passa agora a sua mão pela cabeça onde em jeito de feliz instante fica tudo tão verdade! As mães dos homens têm uma realidade feliz quando passam a mão pelas cabeças dos seus filhos, cabeças que estremecem com a dor de épocas tão severas e a exigência de um mundo tão letal em cada um de seus pensamentos. Mas há quem nem tardes serenas no burburinho dos dias possa ter e dela tem consciência enquanto manifestação de serenidade. Há quem viva numa multitude de anseios tão continuados como se fora uma máquina operante no seio de toda a turbulência de forças que se anulam. Há seres muito desgraçados e que quase não entendem toda a vasta inutilidade de uma ordem social que os tende a projectar assim para o esquecimento inequívoco de si mesmos. Talvez que aqui não haja confronto ou projecção: o ser vive enfim a ordem do seu grupo como condição elementar e a vida é um roteiro de ínfimas possibilidades de autonomia e distinção. Vive-se num programa que acontece por dever e também um básico instinto de sobrevivência onde estão ainda inscritos os genes da fome. Os tempos da serenidade não serão aqueles cuja função seja abastecermo-nos mas, tão-somente, os de estar desperto sem casualidade alguma, sem esta autofagia que nos devora se a outros não comermos. Quem serena num período entre o nascer e o morrer, ainda aqui? Somos predadores e isso deixa-nos exaustos para retirar das tardes o bem-estar em outra forma que sabemos algures vir a ser capazes – sabendo pela mesma forma – de que não somos capazes ainda com esta forma. Se fazemos exercícios, auscultamos o que de nós é apenas um projecto sem a noção concreta dessa longínqua mudança. Em todo o caso, caminhar no tempo vai-nos desabituando-nos do movimento contínuo, porque o organismo se prepara remotamente para morrer: quando chegados, já deixámos o movimento num local tão longínquo que, por o termos esquecido, falecemos. Os antigos anacoretas do deserto não tomavam qualquer alimento antes do pôr-do-sol. Havia a ideia de que a combustão em pleno dia faria dos seus seres pessoas tristes e com súbitas angústias. As tardes deviam por isso ser amenas e de desejos carregadas para atravessarem a noite. Nela, não havendo matéria combusta em face dos solares raios, tudo lhes faria bem quando se afundassem nas areias do deserto. Estes homens viviam em condições absolutamente excepcionais e tendo em crer que o facto de não cansarem os órgãos e estando sem fontes energéticas alimentares durante o dia os tivesse predisposto a uma alegria e bem-estar que só os que interrompem o ciclo vital dão provas. As sociedades da abundância são altamente cancerígenas e a probabilidade de um contágio massivo implica cada vez mais a não permanência. Olhar o cancro gigante que tal como as economias se multiplicam por segundo em células e contaminam tudo, é sem dúvida um duro golpe na esfera da serenidade. Mais patético parece ser os que se passeiam com a doença por entre frases e amostras de partes “tratadas” é de facto um espectáculo tão degradante quanto para cada um que o contempla. Poder-se-ia pensar que as inúmeras populações reformadas usufruíssem de um espaço onírico, mergulhado já nas contemplações e na recusa ao imenso trabalho do movimento, mas não: elas movimentam-se para testarem a si e aos outros a evidência da sua destreza, mas os seus movimentos são tristes e ninguém consegue extrair daqui uma manifesta noção de bem-estar, correm tristemente, e ao vê-los, com seus fatos de ginásio, adensa-se-me uma angústia que não poderiam entretanto compreender. Depressa passamos para uma caricatura ambígua de criança e, sem nos lembrarmos da dignidade intrínseca daquilo que significou viver, os seres se entregam a uma orquestração que não é o local que o tempo talha para nós. A felicidade em torno de uma ideia aglutinadora resulta em bons encontros e intensificam laços entre aqueles que amiúde se contemplam numa intensa noção de partilha que pode bem ir desde um portão de jardim onde se arrozeira o muro que um amigo apara ou a uma leitura matinal como uma perdida oração de grupo. As formas de estar junto definem sempre o melhor do bem-estar. Chegados às tardes que serenam, ninguém, cujo merecimento conquistado seja um valor, deve arrastar a náusea do dever com horas marcadas para as actividades do dia. Dizia o velho anacoreta do deserto: “Nada é mais temível do que os movimentos desordenados que perturbam os corações.” Sem dúvida, e o exemplo está nos anciãos que o deserto amansa com suas finas areias e intempestivos ventos. Os arrebatamentos mergulham-nos no desregramento e não raro há uma certa bestialidade no escancarado sorriso das estranhas vitórias, que produzem sorrisos de morder, com placas de ouro fino onde se distende uma certa perversão… Somos tenazes quando sofremos, é certo, é uma compunção e isso arrasta-se mais que as coisas boas, é que a gravidade do mal nutre nas nossas consciências um efeito de expansão, quase nos esquecemos de situações fantásticas soterrados que estamos com tais pesares. Entre tão incipiente destino corre a maravilha, por nós, que carregados de outros não serenamos e, com tanta escolha, acontece-nos confirmar que não temos par. Talvez mesmo que uma das conquistas mais bonitas seja não ter opinião, preferências ou fazer julgamentos. A liberdade exige de nós a distância daqueles que a vão sempre buscar mais além. Por aqui, morre-se intranquilo. «Porém o aguardar, supondo que é essencial, fundamenta-se no facto de nós pertencermos àquilo porque aguardamos».
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA candelária [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistem no calendário católico aspectos extraordinários com elementos de impregnada redundância simbólica e nesta medição do tempo estamos assentes no Calendário Juliano e mergulhados no Gregoriano, calendários solares que entretanto colidem com esferas de festividades. Só que tem havido muitos ajustes dado que os mais remotos eram lunares e adaptar toda estas fórmulas foi um trabalho de centenas de anos, mesmo de milénios. Fevereiro dá-nos um momento muito rico em como na adaptação dos sinais e das fontes originais os efeitos se transmutam e, sendo outros, são os mesmos. Quase subliminares à prática dos povos, eles, no entanto, têm uma vida imensa que a memória não permite esquecer. Dia dois de Fevereiro festeja-se o dia da Candelária entre os católicos, claro está, candelária como o próprio nome indica vem de candeia, candeia e luz, mas ela é sobretudo a «Festa da Purificação da Virgem», estranha designação para a qualidade da sua condição mas, se aferirmos os dons da cronologia também lunar no efeito destas derivas, acontece que esta era uma festa ou um acontecimento praticado pelas mulheres hebreias quando eram passados quarenta dias do nascimento de um menino: iam ao Templo, apresentavam o menino e banhavam-se. A mãe estava assim purificada do período do pós-parto, o que na mesma linha vai dar ao Natal, daí ela ser em Fevereiro. Pratica-se de olhos fechados uma condição da mulher hebraica e, claro, não falta a eterna quarentena, que porá fim ao seu menstruo de parturiente. Creio bem que a leitura de tais factos possa ser irrelevante pela sua dimensão extemporânea, mas carregamos sinónimos que pensamos ser antónimos e grandes verdades que não passam de meras formas de adaptação de um grande sincretismo. Nós, os obreiros de tantas certezas, não seríamos tão ricos sem a junção de todos para preparar a nossa causa. Daí os tempos estarem neste momento tão ameaçadores, temos visto que a rigidez é como o não conhecimento, assente todo ele na sua defesa sem saber que a defesa de todos é ainda a melhor forma de estarmos individualmente defendidos. Purificar é também libertar o ser para uma nova etapa da sua vida. Neste caso do vínculo incubatório, o estado hibernante, que vem da escuridão dos dias de Inverno, é libertar o agente do pousio para a sua nova etapa agora que os dias parecem tender para uma nova esperança, crescendo e tornando a mobilidade uma presença. Mas foram as leis patriarcais que promulgaram isto? Não creio! Apenas registaram na sua «Tábua das Leis» uma evidência natural e há sem dúvida muitos abusos nesta matéria entre a observância e a imposição, aqui, apenas se legisla, o que – e estamos ainda em terreno litúrgico – aquilo que Deus concebeu como acto de sobrevivência. Estamos, não muito recentemente, é certo, a ponto de forjar uma natureza outra que não teve o mesmo cuidado pela estrutura feminina enquanto propagação de vínculos e que pensamos estar certa pela força da convicção, que libertando-a do seu superior anátema pudessemos neutralizar todas estas fundas temáticas. O patriarcado de que aqui se fala era um agente legislador mas, de forma subtil, sabemos que não era ele quem dava as “ordens”: era um ordenamento, menos que um desejo de ordenar, e toda a estrutura passa a severa com a ideia de uma Virgem geradora, começando a primeira grande distorção que põe a mulher como serva, o que dá como resultado o sacrifício do Filho. Talvez que o Carnaval, a festa da carne, se junte a todo este imenso roteiro de situações do fantástico e que a imundície já seja tanta que os puros precisem também eles de se purificarem, sem que se tenha muito bem presente o grau de conspurcação para ataviar tal condição, redundantemente a vamos vestir do seu desnecessário manto. É possível que a loucura more nos rebordos do paradoxo e, entre santos e loucos, estejamos no terreiro de um conflito programado com incidência para interpretações várias. Há mesmo uma fonte meteorológica, à boa maneira dos Almanaques, que diz isto: «quando a Candelária rir o Inverno está para vir», se chover acabou-se o Inverno! Rir, esse desassossego, neste caso feito de sacrifícios e desdobramentos vários que foi um esgar patético a que se reservaram nos confins de uma loucura imposta… Agora chove e, bem pelo fio das crenças, eu creio e espero, acabados os tormentos. Mas eles virão, tal como os anjos anunciadores de gestações improváveis, agora que os grandes tempos mudaram, quem sabe se para pior, a meteorologia é mais um adorno do final que nos espreita e assim, não muito convictos, cada um à sua maneira transforma em festa a “coisa” inteira: que será o vasto mundo calendoscopado em tantas ramificações de género, dado que se for menina o poisio antigo do Templo decretava cinquenta e dois dias, em algébrica lunar de setes. Isto, claro, são histórias do tempo crepuscular, em que o Homem era feito à imagem e semelhança de Deus, pois que vindo aí o Filho do Homem, essa máquina competente que fará melhor e maior a nossa escala, nos arrebatará já impróprios para a travessia dos tempos vindouros. Mas nós somos românticos, embora recalquemos com botas bem cardadas a condição quase ilegítima. Nós queremos continuar, puros, impuros, poucos, muitos, fechados, abertos, sentimos que todas as direcções se justificam para nos dar a ênfase de sabermos mais uns tempos prosseguir. Reaprendemos velhos adágios, interligamos as colunas, fingimos que não estamos mal, sorrimos para as caveiras enluaradas uns dos outros e quase nos sentimos imortais. Há meninos que nascem para isto, para nos lembrar que todos os meninos algures fizeram o mesmo percurso nos braços de suas mães, no tempo em que os homens não tendo licença de parto, partiam para a sua simples natureza. Por pior que nos pareça, não conseguimos melhor.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO Endovélico Oiseau de fer qui dit le vent. Oiseau qui chante au jour levant. Oiseau bel oiseau querelleur. Oiseau plus fort que nos malheurs. Louis Aragon [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira Lua-Nova de Janeiro começa para os chineses o Ano do Galo, donos de um bonito bestiário que define o seu calendário, diz a lenda que foi Buda que os convocou e lhes deu as características, havendo mesmo uma passagem graciosa na vasta hierarquia: escutando tal convocação, o Rato que se encontrava distante e último do bando, passa rapidamente todos os outros e se prostra aos pés de Buda. Este, achando graça, lhe dá então o primeiro lugar pelo dom da audácia e do encanto. Neste universo oriental não andamos distantes da frase bíblica, quando afirma «os últimos são os primeiros». Ano nosso de 2017, pois que outros se encontram em tempos vários, derivados a partir de alguém ou de alguma coisa, já que o tempo é um desmedido instrumento com que a nossa imponderabilidade se debate e nem Galos, nem Cristos, nem Egipto, nem Esferas, nem Ciclos, se nos impunham, caso fossemos imortais. É a efemeridade da vida de cada coisa e de cada um que dita os ritos de passagem. Sabemos que são os mais “parados” quem melhor maneja o tempo e Buda é aqui um princípio cósmico fabuloso e o nirvana um para lá de um instante muito físico do acto relativo do viver. O ser animal que aqui se trata é mundial, concreto, jactante, e para nós, a Ocidente onde a luz vem morrer, encontrou na Europa uma paragem onde estacionou o seu maior mito e devoção; eles são gauleses – País de Gales – Galiza, toda a mancha céltica em busca de uma pena e na crista do seu canto «Por-tu-galo Por-ti-galo» Graal … Galá-lo…. ! Eis-nos em romagem na zona funda do tempo Lusitano a um culto da Idade do Ferro, pagão, ctónico, relacionado com o submundo, com cabeça de Galo e corpo de homem, o Endovélico. Na região do Alentejo, mais exactamente no Alandroal, no Santuário da Rocha da Mina, onde o seu culto se mantém, passa um ribeiro chamado Lucefécit o topónimo sugere Lúcifer mas é mais provavelmente de origem árabe, oucif, negro, mas adaptado a “Lux”, luz em latim, tendo passado para uma conotação negativa a partir da era cristã, pois que estes são altares em plenas entranhas dos mais importantes cultos pagãos. E tanto assim foi que passou a zona proscrita e as Cantigas de Santa Maria referem-no como «um rio que per y corre de que seu nome não digo». Galo Negro. É à beira deste estranho rio que na primeira Lua-Cheia do Solstício do Verão alguns grupos se reúnem, soltam um galo de penas coloridas junto à pedra do altar sacrificial pedindo que em sonhos lhe seja restituída a imagem do deus e muitos afirmam tê-lo visto dormindo. Ainda na Rocha da Mina e escutando a sua mensagem e, talvez, até William Blake o tenha sentido quando na sua arte, a fonte mágica, nos lega em gravura tantas cabeças de galos em corpos humanos. Ele pode augurar também (e mudamos de registo) maus momentos: «hoje mesmo antes do galo cantar renunciar-me-ás três vezes». As coisas que se tecem num mesmo ser que passa o tempo em tantos sinais! A terra dos nevoeiros vive no fundo ofuscada pela altaneira e solar figura, que sendo germinativa, não deixa de elucidar acerca da necessidade de fecunda prole, mas onde ela se encontra e em que lugar, neste entardecer poente da Terra? As águas de um ribeiro não são as atlânticas, mas mesmo estas estão imbuídas das suas fontes e, claro, se os romanos tudo romanizaram e humanizaram na forma, mesmo assim os seus legados da figura Endovélica não deixam de atribuir as particularidades deste representativo macho das auroras. Vemo-lo ainda no topo das casas orientando os pontos cardeais… vemo-lo junto ao Tejo que pequeno fica com a sua escultura ao culto… vemo-los ao peito, mais junto do que nós ao coração dos que amamos, ouvimo-los cantar quando no Verão, mais a sul, queremos dormir, mas, exactamente, ninguém os vê. Percorri todo o povoado para lhes dizer que estava cansada desse canto e nada me foi dado certificar da sua existência. Seriam Endovélicos? Vem o Galo de Fogo! Ora isto requer ainda mais talentos, pois que fica pleonasticamente o elemento de si mesmo e nas sonoras forças que ainda nos puxam para terreiros onde a cristandade não passou ou passou de forma a tirar o canto à ave, nós sempre nos vamos reflectir nas águas fundas de um poço com a deidade que em nós ainda mora e fazê-la levantar voo para a luz. São caminhos sagrados, estes, que lá estão, e não sei se por serem oraculares não venham também os eflúvios que fazem desses vapores o lado alucinogénico das palavras proferidas. Ali não há incêndios. No entanto, o país evapora-se aos poucos num manto preguiçoso de fogos que lavram como línguas as devastadas terras lusitanas, onde por força da desdita morreram os nossos sonhos, calcinado e bonito, arrancaram-lhe a alma e ficou assim, como as estátuas dos gentios. Estamos sempre a desejar em muitas frentes, como nos fogos: Bom Ano, Bom Natal, Bom Aniversário, Boas Férias, Boa Viagem, e se uns se ateiam um pouco mais, há aqueles que não lembram ao Endovélico… não lembram nem a Lúcifer, o verdadeiro deus que faltava. Bom Ano a vós que a Oriente me escutais nesta miragem.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTodo este deserto [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]screvemos devagar, os dias são lentos, as estradas fugidias, as ausências gigantes. Estamos a ver passar a carruagem de um morto, o passeio fúnebre da vã glória de se ser mortal e, com todos os sinais num ar já farto daqueles que do chão desistem e tão de Inverno feitos, seguimos silenciosos o cortejo. Um encanto nostálgico fica destes dias em que engalanámos a morte de passeio e as vestes eram escuras como de abrigos estivéssemos envolvidos. Sem choro nem bonança, abraçamos o tempo do fim, que de finita estrutura nos mantemos atrás dos outros como uma esquálida água que perpassa. Os dias embriagados de um já quase luar de Janeiro, o das noites altas e esguias como catedrais, anunciam, sim, lá longe, a Primavera que sempre virá, os gatos em cio, as longas noites frias de quem tem nos sonhos a vida que não lhe é dada já viver no momento breve e, com toda a elegância de estirpes moribundas, seguimos o esquife. Frios como sombras, tristes sem saber porquê, pois que se tudo é demora na morte sempre certa, que silêncio é este que nos deixa tão sós? A morte aqui não é de assombro de suspeita ou de aflição: é um dote a mais na marca de um homem e quem nela tiver assento passeia-se entre avenidas e ruas espalhando o sossego da sua condição. Ele, que de alma nua e corpo inerte avança, não sabe da morada nem do estado das coisas que acontecem. Os cavalos são altos e belos e escoltam a sua natureza toda por entre a abnegação dos rostos ao redor. Para se ser feliz há que ser-se jovem e contar os dias para entrar de férias e ter aquele amor nos países a visitar e as noites com fundos sonos que insistem em entrar pelos dias dentro. Assim, somos felizes, temos o tempo da espera que se prevê sempre rápida, pois os jovens não gostam de esperar e este quase lá marca a tónica de uma vibrante expectativa e por isso todos ficam de lado na sua marcha lenta para não lhes inibirem os passos. Se um país fosse a enterrar ele seria como todos os senhores: um velho ser passeando-se entre as nossas vistas cansadas, um elemento cuja urna seria um sinal da Aliança, a Arca, tão móvel quanto vazia, pois que o seu mistério continua para além das paredes cerradas e do cumprimento de Deus. Seria uma tribo a transportá-la no deserto onde nela se fundou e criou a imagem do Santo dos Santos e nós, na retaguarda, sentiríamos a presença do eterno sem que nos fosse recordada a brevidade da vida, sem vontade andaríamos quilómetros para testemunhar o desejo de que dentro dos elementos fechados vai a união, que nunca sem a sua viseira conseguiríamos manter os cavalos que são os arlequins e guardiões bem amestrados, o que está dentro não se vê, passeia-se na mobilidade de uma essência sagrada cuja natureza deixámos de saber interpretar. Toda a nossa visão é um lastro bonito e triste sem entendimento prévio, pois que a guarda das coisas a algo ou a alguém nos emociona como um recanto privado e, sempre privados de argumentos, escutamos o que dizem saber os que mais pensam entender sem que tal explicação seja mais eloquente que a nossa inabilidade para trocar palavras diante da verdade bela e fria de um imenso adeus. Entramos na corrente ociosa do sentimento das coisas e, de tão filtradas as águas, há um canto finíssimo de uma vaga maresia… deve ser o Tejo espraiando-se entre as gentes… ou deve vir mais frio e não sabe da dureza de o implantar. Está tudo assombrosamente envelhecido, parece que estamos aqui vai para milhares de anos, mas o calendário afirma que não, que a rotatividade ainda é muita e que estendidos como a morte na linha horizontal temos que desenrolar muitos anos. E tudo é subitamente horizontal, as linhas dos Jerónimos – as belas linhas – o rio, o tráfego… todos prestamos preito àquela morte em pedra que não nos espreita porque de uma vaga eternidade se mantém e esta curva suave para a recta adormecida é um pouco a arquitetura do nosso Fado que só levanta quando a dor acorda, gemendo então na vertical como um alto uivo. Os lobos estão nas suas florestas e elas são escassas, ao levantarem a boca para uivar à Lua cantam estranhas melodias que nos dizem inspirar até sonhos de belos machos Alfas espalhando o seu domínio: e quem no reduto mais estreito das suas fantasias não procurou o seu poder para se sentir protegido e amado como convém quando estamos frágeis? Na lassidão da morte ninguém entra. Todos somos o cortejo, o estilete com que esculpimos a marcha, fazemos as últimas homenagens e vemos passar o significado das vidas que foram anunciadas, que pode muito bem deleitar as nossas já sem nenhuma anunciação. Ninguém se nos anuncia num devir breve e todos deslizamos para o nada, o tanque vazio das nossas lágrimas diz-nos que passamos o estertor do medo dela. Tudo está em paz, mas a paz não é redentora, a paz não mora na esperança da vida, ela silencia a sua força e contrai “dívidas” à felicidade do melhor de nós em turbilhão. Mas nós gostamos da paz, com ela parece-nos a linha mais comprida… os dias mais lentos… o amor menos agreste – a paixão… retirai-a: é fonte de aflições, de desamparos e ardores – o vício pode entrar desde que seja só vício e se, paradoxalmente, ninguém se agarrar a ele, da violência doméstica retenhamos apenas que não é amor – não, não é amor – é outra coisa que os lobos nos ajudariam a pensar. E com todo o deserto aberto para o povo, passa então entre manás a turba que fugida anda de Faraós agrestes e que de tanto já não poder andar se revolveram nas areias até nelas quase terem ficado por todas as gerações… Ao longe, a Terra Prometida, mas Moisés morreu ao vê-la… partiu Tábuas, gritou do cimo da montanha… Um homem não é de ferro e pode destruir o que lhe custou silêncios e padecimentos por caprichos muito humanos e tem esse imenso direito. Do outro lado quem estaria à sua espera? Quem nos espera para sermos coroados? Na agnóstica República cumpriu-se o ritual da passagem e só não ouviu a voz de um além quem estava desprevenido. Quem sabe se era de novo o nevoeiro! Quem nos diz que chegou Sebastião montado em inúmeros cavalos brancos que de crina em dias sem vento andava movendo o seu estandarte de imperturbável construtor de Desejados? Todos, algures, fôramos desejados e ninguém mais nos deseja… os nossos desejos são cordas lassas. Ficamos a ver como entrelaçamos as fachadas manuelinas para fazermos delas um nó tão apertado que parecemos não caber. E soltam-se os cabelos, o fio de Ariadne, a vontade de ser Penélope numa ilha muito ao largo… e que venha sim, que apareça Ulisses. E a noite chegou com o sarcófago nos Prazeres. Prazeres de vida eterna. O postigo está fechado. Janus, o senhor das duas caras, repousa enfim. Janeiro é um mês lindo.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO tempo dos assassinos [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Outubro de 1955, no centenário de Rimbaud, Henry Miller dá a conhecer a sua obra mais tocante acerca do até aí seu desconhecido Arthur Rimbaud, « O Tempo dos Assassinos». Ele afirma tratar-se de uma tentativa falhada de não poder tido traduzir «Une Saison en Enfer». Rimbaud foi um prodígio de linguagem, de produção de signos linguísticos, de inventividade, de construção, apanágio sem dúvida da sua radical dimensão poética. Estes atributos vieram a ser para todos os poetas do século XX uma referência, um mistério, também uma fonte de inspiração que não se esgota, ele é quase uma voz telepática… um arauto… uma sinfonia perfeita na composição do verbo. Mas este Rimbaud, corolário de uma peça que faltava na destreza da estrutura poética, foi sempre a meus olhos o eterno fugitivo, parecendo ter-se soltado de um raio cintilante que tombara sem que fosse muito consequente ou pródigo na sua defesa. Aconteceu-lhe aquilo, talvez fulminantemente, e hoje, é ainda nas suas brasas que vamos analisar o mistério de se ser Rimbaud. Olho-o insolente, carente, agarrado a Verlaine para o torturar com a sua audácia, inseguro, ciumento, implorativo, provocando à escravidão aquele que amava e lhe fugia num labirinto de emoções desencontradas; e Verlaine, não menos saciado da sua própria fúria, salvaguardava para si a sua mais preciosa metade. Vejo-os ensinando, compilando, traduzindo, rindo, comentando, bebendo, saindo e, por fim, dilacerados de caos e talvez de fome, gritando. Vejo-o a fugir da morte como de um parente querido, a atirar-se a ela como um amante em fúria… A sua obra tinha terminado. Há tiros certeiros. Continuou, mas já nas “saisons” dos seus infernos. Rimbaud partiu e nessa fuga estava encerrada o ciclo do tempo criador, do amigo/inimigo que nenhum lugar do mundo voltaria a devolver, o seu par, e sem ele não há projectos: há fugas e para fugir continua uma estranha noção de caminho. Ninguém vai ser feliz em lado algum se o laço da revelação foi quebrado, nem creio que essas noções o inquietassem. Uma coisa é uma relação, outra é esta “coisa” que está muito para fora desse âmbito — o encontro — e sem o nosso par do destino não há futuros premeditados, ele far-se-á andando na fuga. Verlaine chorou esta ausência, ele que o desejou matar, foi aquele (e só ele o poderia fazer) que mais tarde, quando finalmente a morte veio, lhe reúne a obra, compila e publica. Ficara cá para acabar o que juntos não lhes foi possível concluir e no seu eterno cachecol vermelho suado, sugado, sujo, ele terá certamente entornado mais vinho, mais lágrimas, até ficar sevado de emocionante maravilha. Na sua redenção final, ele, que tinha o pódio do poeta da época, vai servir a quem o vencera, aquele que encarnou a linguagem fazendo quase tudo o que se pode fazer com ela. “Quando deixam os anjos de se parecer consigo próprios?”, pergunta Henry Miller pois que nunca tinha assistido a um espírito mais recalcitrante. Miller, que reflecte aqui o seu “plexus” de um sentido refinadíssimo da compreensão das componentes poéticas, pegando ao colo este ser que queima e aguentando-o numa magistral análise que nos faz esquecer o estereótipo que dele guardam alguns, faz-nos reflectir. Nós ficamos doentes. Parece que encolhemos ao lado deles… que nos roubaram o fígado, a alma, os dotes, que a ave devorou as entranhas do nosso génio criador, parece que as coisas que fazemos se volatizam, ridicularizam… Nada a obstar à liberdade de tais seres que deitaram fora tudo aquilo de que os outros andam atrás, rastejando. E esta fuga vai encontrar Rimbaud não num oásis de predestinados, mas na maior das devastações, e diz Miller: «não se pode imaginar o lugar: não há uma árvore, nem sequer ressequida, não há um tufo de erva. Era a cratera de um antigo vulcão extinto onde um dos lados impediam o ar de entrar. Quer ser independente… como é que um homem de génio consegue enfiar-se num buraco onde vai assar, encarquilhar? Tem de novo medo de ser rejeitado e que o considerem inútil no mundo.» Não por acaso eles se encontram aqui: são duas personalidades escatológicas, cada uma à sua maneira. Mas há nele, sempre, uma recusa sombria na maturação, definindo-o como o agente do gesto supremo duma juventude triunfante. E assegura que lhe foi dado o privilégio de ver com o olho direito e com o esquerdo, metaforicamente, os olhos da alma. Ele permanecerá sempre marginal e mais desejoso de calcar o mundo de que o conquistar. Creio mesmo que a sua permanência na fonte da criatividade é uma antecipação magnética, telepática, da noção de uma linguagem futura… pois é Miller que acrescentado o diz: o futuro sempre pertenceu e há-de pertencer sempre…. ao poeta: e é tão surpreendente a forma como o reflecte que afirma: «em minha opinião, não existe qualquer discrepância entre a visão que ele tinha do mundo e da vida dos grandes inovadores religiosos. Nós que exortamos coisas sem nexo, perdemos o grande fio condutor daquelas que restam como códigos imperecíveis. » Creio que o título desta obra encerra toda a substância de uma deriva do mundo pela morte, morte essa, consubstanciada na vida de um poeta para quem os agentes sociais são meros assassinos. Assassinos sem mérito, dado que não há noção aparente dessa condição, assassino potencial seria mais Verlaine, pois eles partilhavam da fonte da criação e só esses têm essa inteira legitimidade, assim, uns assassinos obscuros, dementes, impróprios até para tais limites, a intransponível marca da besta que no Homem dorme como uma molécula parada. E também estou certa que ele mesmo, Miller, fez a sua prova de fogo a sua catarse na escrita desta natureza, pois todo o amor requer simpatia. E acrescenta o fundo empático e complementar: “Rimbaud restaurou a literatura convertendo-a em vida; eu esforcei-me por restaurar a vida restaurando-a em literatura.” Eles não pertenciam a sítio nenhum e há mãos que quando se apertam dão laços tais que não usamos contemplar a curva de cada uma. Paralelismos sem dúvida “assassinos” mais ainda e transfigura-se sempre o “amador na coisa amada”. E há ainda aquela mãe. E há os Natais. E o que há mais? Mais nada nesta fronteira onde sem dúvida será preciso fugir nem que seja para a cratera de um antigo vulcão já morto. “Começamos finalmente a compreender até que ponto é pouco moderna esta nossa alardeada era de ‘modernidade’. Quanto aos espíritos verdadeiramente modernos, fizemos o melhor que podíamos para os exterminar. E, de facto, os seus desejos mais profundos parecem-nos hoje românticos: é que falavam a linguagem da alma. Hoje falamos uma língua morta, e cada um de nós a sua. Acabou a comunicação; só nos falta entregar o cadáver.” A chave que fecha todos os Assassinos do outro lado onde moram. Aqui começa o dia. A quatre heures du matin, l´été, Le sommeil d´amour dure encore. Sous les bosquets l´aube évapore L´odeur du soir fêté. Mais là-bas dans l´immense chantier vers le soleil des Hespérides, En bras de chemise, les charpentiers. Déjà s´agitent. Ah! pour ses Ouvriers charmants Sujets d´un roi de Babylonne, Dont l´âme est en couronne. O Reine des Bergers! Porte aux travailleurs l´eau-de-vie. Pour que leurs forces soient en paix. En attendant le bain dans la mer, à midi.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCamões e o céu [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] início do século vinte foi verdadeiramente inovador e de uma dimensão moderna sem precedentes, começando pelo Futurismo de Marinetti , o Simbolismo, o Cubismo e todas as formas que ousaram avançar e transformar os signos linguísticos e as estruturas criativas em elementos de plena mudança social. De tal forma que a noção de original se baseou na origem, ao que ela pode servir de reminiscência do esquecido, e com as liberdades sociais que teciam o progresso foi dado ao criativo, ao artista, ao poeta, meios ímpares na transformação da génese colectiva. Olhamo-los à distância de um século e parece que não nos foi dada esta modernidade, esta qualidade, este saber e saber fazer, que uniam partes por vezes tão dissonantes. Em Pessoa, sabia-se da sua forma hermética para interpretar horóscopos, mas não era só ele: havia por toda a Europa a transmigração das ciências ocultas e Crowley, o mal amado dos poetas, não deixa por isso de ter sido um soberbo escritor e junto a ele a flama sem fim dos espelhos e das bocas mágicas: muitos de carácter sexual que exacerbavam com beleza rara o mito de Pã e as germinativas capacidades da falocracia como estado ébrio da criação. Por isso não devemos deixar de ouvir este Hino, neste tempo em que se fala de paganismo como de idolatria a esferas de prazeres menores. Por esta altura vivia entre os nossos poetas do Orpheu, um homem, também da sua época e não menos inquietante, aquilo a que chamaríamos hoje de reaccionário, o que não deixa que fique como os naturais de hoje, sem interesse, e coisas também elas apaixonantes para contar: falamos de Mário Saa, conhecido pelo seu anti-semitismo primário e suas visões sobre a conspiração judaica. E é numa espécie de pequeno opúsculo que um escritor português mais recente descreve a visita de seu pai a Pessoa, combinada por ele como um momento simbólico de caça invisível à tal “espécie”. Chegados ao encontro, viu Mario Saa em duas, a mesma pessoa, o mesmo chapéu e, insultosamente, o mesmo nariz, empurrando-os humilhantemente um para o outro e culpando tal gene covilhanense. Como todos os “caças-fantasmas”, ele queria provocar em alguns amigos a tímida consciência das suas raízes, da qual ele não gostava, mas também não se separava. Vejamos que estes homens ainda não tinham o surro pequeno- burguês que invadiu a sociedade portuguesa da ditadura; eram homens brilhantes, com posições contrárias, sim, mas que dada a pequenez da organização social estavam condenados a unirem-se. Mário Saa tem, entre muitas obras emblemáticas, uma, muito ao gosto de Pessoa, «Memórias Astrológicas de Camões», obra essa que lhe terá servido de inspiração para o poema de Saturno e os três anéis – fome, miséria e desolação. É, de facto, uma viagem secreta pelas entranhas do poeta, mais mitológica que lógica, mais simbólica que hiperbólica, mais refinada que exagerada, mais fatalista que elitista, e que nos dá a certeza de que entre mandala e céu conhecia em muito o seu destino. Aliás, esta recorrência a Saturno é muito poética e filosófica, e vejamos: «Sob o signo de Saturno», de Walter Benjamim; «Poemas Saturninos», de Verlaine; a máscara de Dante; «A Viúva», de Gomes Leal, de que Pessoa tanto gostava, pensando mesmo ser dele uma centelha. Nascidos no mesmo dia e com todas as esferas iguais e concertadas, este aspecto de uma radicalidade poética esbate o efeito da Primavera da Poesia, dos serões de meia província, da deidade branda do poetizar, da noção intimista das coisas vulgares. Aqui é de poetas que falamos e não de bucólicas criaturas em vários formatos da sua demência existencial. Saturno, como os anátemas, está gravado a ferros, que o fogo não entra neste frio. Camões, de quem tão pouco se diz saber, nasceu a 23 de Janeiro de 1524, a um sábado, dia consagrado a Saturno num eclipse do Sol e o resultado parece mais assombroso quando o registo o dá pelas oito e meia da noite com Balança ascendendo. Saturno e Vénus estavam como o refere , em debilidade acidental; seria por isso Aquário com ascendente Balança, o que reforça o carácter estético da sua lírica. Camões quando escreve o célebre poema «O dia em que nasci» tinha uma vasta consciência disto e não nos esqueçamos também de que se baseia no próprio «Livro de Job» e dá-lhe a tónica final numa interpretação deveras fulgurante. A terrível realidade inscrita nas suas lúcidas formas de saber não produzem facilidade nem estados de consciência brandos, são seres derradeiros que se manifestam no limite … sim – o dia em que nasci, morra e pereça, não o queira jamais o mundo dar… dê o mundo sinais de se acabar… a mãe ao próprio filho não conheça…– aqui está a completa consciência da sua Fortuna, mas Saturno, a quem os matemáticos da época chamavam Infortuna Maior, é o guardião do poeta «chamo dura e cruel a dura Estrela». Para a definição do ano de Camões estão exaltadas as conjunções de Júpiter e Saturno, conjunção esta que preside aos períodos históricos: Islão, Reforma, Revolução Francesa. A Reforma foi a da época de Camões. Ocorreu no começo desse ano no signo de Peixes tendo determinado os infaustos prognósticos do Segundo Dilúvio Universal que irritados estavam com o Tempo e o Mundo. Para quem do Amor – não viu se não breves enganos – há que dizer da supra maravilha de uma exigência interior que o faz escolher a Dama Sol, uma tal Violante. Foi esta ao que parece a sua Beatriz a quem chamou «A roxa flor de Abril» e foi sobre a sua sepultura, quando regressado a Lisboa, que escreveu o soneto «Debaixo desta pedra sepultada» gentileza da luz, que a noite escura tornava em claro dia… É o maléfico Saturno que, antes mesmo da partida para Macau, num namoro de oito anos, lhe ofereceu a ofensa suprema do seu casamento com outro, por não reunir dotes para tal missão. Aquelas pessoas importantes que ninguém sabe quem sejam dado que aquele que não interessava era sem dúvida de importância extrema. Sentir isto é como a pedra forjada pelo elemento duro do astro baço e nem sequer estamos na presença de um homem comum, conquistador, que se limita a multiplicar a náusea da sua triste condição. Falamos de um Homem. É nestes interstícios sonegados ao saber normativo que estão os elementos mais importantes para a compreensão daqueles que todos gostariam ter sido, mas que não teriam suportado tal destino, pois que é deste ferro, forjado a desterros e abandonos, a equívocos e ranger de dentes, a dias de eclipses, a astros muito baços, que faz nascer o mais belo dos “metais”: a alma humana e o seu génio. Por isso, bem-digo tal dia, mesmo coberto das trevas de que o poeta se vestiu para que não morressem fulminadas as gentes perante a luz imensa deste ainda desconhecido. Este tempo era ainda o da velha teoria de Joaquim de Fiore, o do ciclo milenário, e este era o ano que por toda a Europa corriam as notícias dos sinais apocalípticos anunciados para esse mesmo dia, era o tempo em que se falava dos monstros: mais tarde saberia dizer com precisão – Não torne mais ao mundo, e se tornar, Eclipse nesse «Passo» o Sol padeça, Nasçam-lhe «monstros»! Este seria um monstro teratológico se é que chegou a ser alguma vez criança prodígio, pois que também havia os celestes como grandes sinais dos Céus.