Caminhos errados

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] este o título de um livro de Aquilino Ribeiro, livro esse de novelas, tendo incluído para teor aquele que aqui nos traz « Menos sete». Este autor devia ser de leitura obrigatória pois que em tudo exerce o dom maior da contemplação da língua que não perde o fôlego na sua vasta produção.

Nós, que parecemos ter ficado em atrofia face a estas gerações que nos precederam pois que nos basta verificar as gentes da Primeira República, onde e quiçá, ainda estão os nossos avós, para verificarmos que eram mais altos, mais bem parecidos, mais civilizados. Só a geração que se lhes seguiu pareceu estranhamente ter mirrado, havendo sem dúvida uma atrofia notória em todas as suas dimensões. Tudo isto existiu sem que fosse muito nítido um subtil “crepúsculo dos deuses”, pois que entre estas gerações há efectivamente um hiato que nos faz aludir à estrutura do pensamento como arquitecto da forma.

O corpo pode ser também esse veículo mecânico e desmontável com as próteses em rosca que desagua na nossa geração de «Crash» do Cronemberg e os implantes podem ser a forma encontrada para diminuirmos o que em nós há de massa modificável, pois que já vem feita, é precisa e mantem-se inalterável. Mesmo com ideias medonhas de sedução e excitação sexual, a tecnologia exacerba aspectos outrora desconhecidos, ou conhecidos, mas não aperfeiçoados.

Janeiro é o teor da novela de Aquilino e isto, por causa dos gatos, das noites e do escrever para as Academias, recorda-nos como tal momento nos instiga a sacrifícios, a transformações interiores e a uma saudade na lonjura que sentimos face à Primavera e nos dói só de pensar que a não saudamos uma vez mais. – É o mês dos gatos – sim – do luar, do frio, do cio… de toda a semente fechada. A descrição do magistral Aquilo começa por se manifestar assim:

“O pior é que chegou o Janeiro e escancarou-se neste bicho todo o seu impossível ser. A três quartos do Inverno os gatos pressentem na orla de claridade, mais cheia, que vem do Nascente, a quadra do Renovamento. As noites de grande luar prateado, como praias de embarque para Citera, convidam-nos ao amor. Ao seu gosto de recato e de silêncio, mesmo à sua algidez de maneiras, agrada a incomparável serenidade que o céu reveste por estas alturas…. Os gatos, de certo… Assim se combina a poesia das noites de Janeiro, amplas e religiosas como catedrais.”

Sete é o tal número que abrange muita coisa e até há a interessantíssima obra de Trindade Coelho «O Senhor Sete» que são histórias tradicionais portuguesas, um levantamento etnográfico que ele foi escutando em regiões diversas do país, coisas maravilhosas que foram estrategicamente esquecidas para dar início ao Halloween, bem como a outras adaptações culturalizantes do país “moderno”. Tenho sete gatos, agora que se vão dois, ficarei com cinco «Menos dois» e não encontro nas bermas deste ciclo nada que se pareça com a majestosa dádiva deste conto que acaba mal, mas começa bem.

Sabemos da impetuosa virtude que tinha Aquilino, a de extinguir o que considerava ser o adversário, mas isso todos os homens orgulhosos de si o fazem com mais hábil ou inábil manifestação. Só agora é que temos este adormecido sistema de aceitação programada que nos faz engolir delirantes sapos vivos que vertem para os sistemas fechados do corpo os cancros que a todos abrasa e, delinquentemente, vão gerando a pestilência mórbida do desaire pensante. Mas ele sabia da soberba (não menos orgulhosa do que a sua) deste ser que o fez refém no seu mais poético conto: depois de ter corrido com todos do Jardim ele recorda ainda este episódio:

A Meni- meni nunca mais voltou a casa. Encontrei-a tempos depois à porta duma taverna a pentear-se ao sol, na companhia dum carocho lazarento como ela. Fingiu que me não conhecia.”

Há dilemas gigantescos nos corações dos escritores e atitudes menos prudentes quando a razão lhes pede coragem, como se a vida se confundisse já com uma página das suas obsessivas transmissões, depois de muito contemplarem podem ter súbitos desvios e mudanças repentinas de humor, perigosas para todos, sim, mas especialmente para eles.

Mas é dessa caldeira de lava transbordante que lhes advém a beleza de nos contemplarem. Por isso, não há método que os subjugue numa norteada vertente de si mesmos. Estão vedados aos bens multiculturais da estultícia dos étnicos e aos insubordinados curiosos da espécie, dado que podem não ter uma consciência nítida a que espécie pertencem. A travessia de um mês ou a relação com uma outra espécie não os centra de forma razoável na tão distante natureza humana e, por isso, saúdam os que somos todos nós com uma inédita maneira de se expressar.

Os gatos, nem sempre sabem que o são, também é certo, e pensaram-nos até de forma opulenta nas suas características que ora divinizaram ora ostracizaram, não havendo aqui a razoável medida que os contemple como seres normais, e vamos encontrar então estas duas espécies em grande confronto e osmose, de forma a refletirmos, todos, nas suas intransigentes e espectaculares características.

Não duvido que Aquilino tenha ido propositadamente averiguar onde andavam os que foram expulsos do Jardim e todos tenham sentido um orgulho arquejante às suas passagens a quando das avistações, que não se tivessem socorrido do arrependimento e os outros do perdão, afinal, faz parte do seus incontornáveis encantos. No fundo, não mais se esquecerão uns dos outros, mas cada um silenciou para sempre o seu amor. Que o amor deste silêncio certamente pertencerá apenas a criaturas divinas.

“Remontar de quando em quando o rio de Cronos, poder fechar na cara dos patifes as cancelas que em boa fé deixámos abertas para a nossa intimidade, libar segunda vez a dulcidão de certas taças, quem não mataria o mandarim, quanto mais um gato maltês.”

Se isto se diz!

24 Jan 2018

Castor e Pólux

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos na era dos filhos gémeos, eles nascem de forma talvez pouco espontânea mas a realidade deste fenómeno não pára de crescer. Estar acompanhado, vir junto, começar unido, é uma plataforma de entendimento recente, e, esta dualidade quase nos remete para um corpo dominante com um alter-ego associado que firma o irmão, isto no tempo em que os casais se derretem à medida que o Sol sempre uno os faz perecer no asfalto, de modo que, e cada vez mais, de um, nascem dois, ao contrário de dois, nasce um. Tudo nos remete para o duplo a haver na medida em que também as doenças que tinham designações simples tais como, depressivo-compulsivo, são agora muito justamente designadas por bipolares.

Creio que estas polarizações estão patentes na Terra como modelo bem demarcado, agora mesmo se gela no hemisfério Norte e se escalda no hemisfério Sul, as zonas intermédias sobem e descem num dia, muito mais do que esperamos (fortes amplitudes térmicas) e até no Sarah a neve cai. Castor e Pólux não eram filhos do mesmo pai, o que pode acontecer mesmo aos mortais gerando produções onde a família nuclear se esvai e se confunde com um qualquer modelo de produção fragmentada e como abarcar a mudança da multiplicação nestas individuais presenças que somos todos nós no rigor per capita onde construímos um mundo de severos independentistas? Parece um desafio a contemplar pois que nascemos algures um de cada vez e sozinhos e encaramos o mundo por essa perspectiva.

Portugal é, no entanto, um país apto para os desdobramentos do ser. Veja-se a ficção nacional que está pilhada de duplos que falam entre si, que têm um si, que se contemplam em “si” que se projecta em outrem, que sendo o mesmo é outro alguém. Vejamos a noção de uma verdade ou situação simples que logo se transforma em outra coisa oriunda da primeira impressão recebida. Vejamos os motes que mudam para delírios não deixando para trás qualquer espécie de semelhança perante a avançada substância “manufacturada” de verdades transfiguradas.

Não se dando conta de como isso é tão natural como o respirar, procura-se a “alma gémea” que incorretamente designada quer nem mais nem menos aludir ao grande amor, aquele que faz de espelho, que é igual a si, encaixa em si, é o outro por extensão sendo ainda o reflexo distendido por multiplicação de uma desassombrada imagem de si. Somos capturados para experiências de assimilação compulsiva e esta dinâmica constante abrange as leis que ora são assim, mas, e é neste mas, que entretanto muda, que se vai legislando outras realidades mutáveis feitas para que as equações legislares abranjam as caprichosas manobras das fissuras da objectividade dos factos. O isco da complexidade precipita no abismo as mais ricas naturezas e empata-nos a vida de forma incongruente.

Os Dióscoros… os Diáconos… os Dinossauros são grandes Ovos chocados para resultar numa associação indivisível e só os deuses retiram o seu para resgate filial, os Homens, esses, adoptam tudo, os deles e os seus, são useiros e vezeiros na arte da consubstanciação. É claro que gostam mais dos seus que são menos perfeitos e menos capazes, mas essa é a melancolia humana que assim mesmo dos próprios deuses se defende. Os Diáconos que passaram a bispos começaram por roubar os filhos, não às lindas Ledas, mas às filhas do Homem que assim as subtraíram a um Ovo para uns ninhos de víboras, e que num local múltiplo passaram a ter vários nomes e muitas existências sem que ninguém coordenamente conseguisse alinhar por uma verdade simples e uma justiça salomónica.

De Castor e Pólux (Dióscoros) sabiam apenas os antigos navegantes portugueses que se chamavam fogo-de-santelmo e que era tido por presságio favorável à navegação. / eu não sou eu nem sou o outro sou qualquer coisa de intermédio pilar da ponte do tédio que vai de mim para o outro/ : assim permanecemos arquetipicamente como novelos de lã de cabras sem pastor. – Vimos mas não vimos- sabemos mas desconfiamos – acreditamos em tudo que dê jeito – depois já não acreditamos – queremos – mas já nos finda o querer – somos- mas não somos – fomos – já éramos. Fingimos. Mas o poeta é um fingidor! Somos todos poetas, excepto os que o são e é neste binómio que andamos equivocados face a nós mesmos, esse ser remoto que entretanto se foi.

Casas geminadas, condóminos fechados, lar simétrico ao lado, fabricação de duplos humanos em baixo, dúplex individual ( paradoxismo de uma existência limitada) toda a nossa estrutura ambiental e espacial nos empurra para o desaire, isto, quando um dos progenitores não foge com a tenra presa que é o filho subtraído a uma indizível questão. Os poetas que todos se acham deviam agora pegar em pequenas frases como estas nascidas de poetas que o foram: /preciso de espaço para ser feliz/e de outro tanto para ser raiz: Vasco de Lima Couto. Destes, porém, já ninguém quer saber. Há sempre espaço, afinal, para todos, nos poleiros de alguns. E se o voto é rentável para os Partidos, esses gémeos singulares, pode ser que o voto duplo cubra de festim esses laboriosos grupos cujos elementos são deles e de mais alguém.

« Romeiro, meu romeiro, quem és Tu?» – Ninguém.

16 Jan 2018

Arcas

 

São um simulacro recente as paredes com orifícios para arrumação que define o nosso «modi operandi» logístico; nada que nos faça já recordar qualquer modalidade de emparedamento: as paredes não ouvem mas muitas falam quando existem demolições e sismos, isto para não abarcar ainda os tectos falsos, os soalhos tapados, toda uma arquitectura de construção acumuladora de coisas que deviam pela sua natureza não ser reveladas.

Por isso e ao longo do tempo usámo-las para agrupar elementos, sempre com ferrolhos, fechaduras, como de um cofre se tratasse. Elas eram uma espécie de condomínio fechado tanto pela magnitude das suas proporções como pela sigilosa presença dos seus conteúdos, não havendo habitação que não as tivesse para usos vários que ninguém obviamente ousava indagar. A sua remoção era difícil mas tinha a particularidade de não serem anexos e não estarem escondidas. Esta forma de “arcar” era para os antigos escravos que as moviam com o peso dos seus interiores constituindo assim uma particularidade móvel.

E, voltando a algumas, a mais recente e impressionável será mesmo a Arca de Fernando Pessoa, cujas dimensões reduzidas conseguiu englobar a mais vasta obra da poesia portuguesa e páginas inteiras do mais soberbo ensaio. As Arcas têm fundos, não são objectos que simulem apenas uma aparência, e quem anda de um local para outro leva a sua Arca de forma inteira, nem que tenha de deixar as outras peças soltas nos exíguos lugares por onde passa.

Uma espécie de outra Arca, a da Aliança, pois ambas continham apenas palavras: uma, o decálogo, a outra – muitas outras – de versos, eram depósitos de palavras de Deus dado que os poetas são receptáculos também dessa voz e não raro vejo-o a acompanhar a sua Arca como o rei David num contentamento estonteante que no nosso poeta era coisa rara. David dançava enquanto ela se movia; Pessoa pensava enquanto ela se mudava mas a beleza era mesmo por que não estavam fixas.

E se uma era constantemente preenchida já a outra transportando em pedra a palavra, preenchia os requisitos imutáveis de uma Arca que não se expande. Pessoa deixou bem clara a definição entre Mala e Arca ao analisar Nossa Senhora no seu «Guardador de Rebanhos», que pastores eram estas gentes todas. Claro que em ambos os casos estamos distantes das belas ânforas de bondade uterina. Aqui, entre o que se traz e o que guarda, vai uma longa fila de sucessivos revezes femininos. O feminino tende a juntar muita coisa em espaços fechados – coisas de natureza vária – o que faz que se podendo ser apenas uma mala, não haja tal incómodo, mesmo assim vociferam as línguas que lá também cabe tudo.

Mas a Arca onde coube mesmo quase tudo e não era de todo uma Mala, foi a Arca de Noé! Todos sabemos que as diversas alterações climáticas do planeta deram movimentos às águas sempre que a Terra mudava ligeiramente de eixo. Falam-nos disso todas as Civilizações e uma das mais belas constatações é sem dúvida o poema épico da Mesopotâmia «Gilgamesh», a primeira das obras literárias mundiais e que nos dá conta exactamente de um dilúvio, obra esta que tanto influenciou o Gênesis. Hoje esta Arca está no monte Ararat, a de Fernando Pessoa foi vendida e está no Brasil, e a da Aliança crê-se que se encontra debaixo do que é agora o Domo da Rocha o edifício mais sagrado do Islão. Há salteadores para as «Arcas Perdidas», há iniciativas prestes a saírem do seu conforto para as contemplar, fazem-se réplicas, pergunta-se pelas madeiras, mas só as Arcas reencontradas saberão transmitir-nos o segredo das suas funções. A do poeta saiu da sua terra, a da Aliança, está por assim dizer em terreiro inimigo, a outra descansa em ruína entre o Irão e a Turquia. Para réplica temos a «Nau Catrineta», que devia ser um sinal à “navegação” para não fazer esquecer a importância das Arcas. Tal era a semelhança entre a tripulação, que ambas soletravam para mim, algures, a mesma história. – Uma história de encantar!

Hoje ouvimos falar em Arcas, mas só as frigoríficas, que é uma adjetivação que tem como fim conservar: mas conservar o quê? Coisas que se estragam. Ora nas Arcas não há decomposição, elas serviam mesmo de grandes salgadeiras, mas o interior delas desvaneceu-se para o frio glacial onde a leitura está rutelada, indicando apenas a espécie dos elementos. E são feias, abrasivas, temíveis, quem se adentra numa dessas industriais pode ficar morto e hirto. Funcionam por electricidade, se ela faltar, uma Arca destas é um depósito de coisas que apodrece, é uma barriga de aluguer para o monstro voraz insaciado que é o consumo, são enfim, a mais degenerativa forma de as nomearmos. Não nos lembramos destas coisas porque “arcamos” com as forças temíveis do grande entulho mundial, nem nos fixamos na desmesura destes imensos objectos, nem consta que tenhamos já Arcas em nossas casas, mas elas foram as componentes mais respeitáveis não só do mobiliário como dos grandes arquétipos Humanos.

Hoje guardamos o seu imenso fascínio no nosso imaginário e se as tivermos sabemos como são singulares as suas presenças e como elas contam todas uma história, que começou por um sonho como os antigos enxovais, ao proteger folhas e folhas de papel, de pedras, e de caravanas de animais de várias espécies. As Arcas são ainda uma aliança e todas são sem dúvida – Arcas da Aliança – entre o fazedor e a sua obra, arcar sempre com o peso da responsabilidade movida quando nelas depositamos tantos sonhos. E alguma coisa ficou da mobilidade deste trajecto no «Papamobile» que é uma espécie de trono andante muito semelhante à velha Arca.

Arcas, também foi algures um deus que governou a Arcádia, emocionamo-nos perante os «Pastores da Arcádia», a bela obra de Poussin que reflecte tanta coisa… a decifração das palavras tumulares… o prodigioso momento de reflexão das personagens… Esta era ainda a cidade da Idade do Ouro, o mais emblemático mito utópico. «Arcas Encoiradas», um grande romance de Aquilino Ribeiro. «Ouvi contar que outrora», de Ricardo Reis, ardiam casas, saqueadas eram as arcas/ e as paredes/.

Caminhemos nestas coisas.

5 Jan 2018

Deus Ex-Machina

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]indo o Ano, recapitulamo-lo. Ano este que foi ateado pelas penas flamejantes do Galo de Fogo que a todos não só aqueceu como abrasou, carbonizou, fazendo jus à labareda. Em todos os palcos lhe sentimos o garbo e não raras vezes a jocosa actividade de manobras ameaçadoras, fustigada por lutas de poder entre dois governantes mundiais que insistem em fulminar o mundo na sua “máquina- brinquedo” de mísseis e nuclear. Nas cinzas do Ano Findo contamos agora com alguma sagacidade de pensamento, lugares seguros que sobram para a razão. Nem sempre somos galvanizados.

Camões já nos tinha deixado «A Máquina do Mundo» e agora ela pode ser de novo a grande «Máquina do Mundo Reinventada», o mecanismo impresso numa Esfera Armilar que nos indaga ainda e nos incita ao prazer de a visitar. Camões não perfilava uma concepção mecanicista do mundo, do cosmos. Toda a sua epopeia está repleta de animismo que assenta nos deuses como força interpretativa e se coloca na esfera do Olimpo, uma ideia Renascentista do universo como ser vivo e que está presente também nas epopeias gregas. Ora a descrição desta máquina pensante aponta para o plano da ciência e da inteligência tecnológica não deixando por isso de ser um elo visionário que a sua maravilhosa capacidade enquanto grande poeta lhe dava permissão de ver, imprimindo quase uma tónica de contradição a toda a narrativa. Vejamos então as estrofes 78 e 80 (canto X) do poema:

Qual a matéria seja não se enxerga/ mas enxerga-se bem que está composto/ de vários orbes que a divina verga/ compôs/ e um centro a todos só tem posto/volvendo ora se abaixa, ora se erga/……-Vês aqui a grande máquina do mundo/ etérea e elementar, que fabricada/ assim foi do saber alto e profundo/ que é sem princípio e meta limitada.

Aqui, na grande «Máquina do Mundo» não estamos estritamente num código Ptolemaico, mas sim muito mais perto da visão de Ezequiel com os querubins das quatro rodas que influenciou o romance de Raymond Abellio «Os olhos de Ezequiel» e ele comenta: o Espírito constrói e destrói, os olhos de Ezequiel são habitados pela luz e perseguidos pelas sombras.

Só que na máquina camoniana a ordem e o movimento em vez de se oporem, conjugam-se, dando uma grande harmonia espacial que a globalização presente não tem, não passando por isso de um trenó ou mesmo uma carroça que produz aparentemente efeitos duplos mas está assente numa infindável monotonia de igualização do espaço. O mito reconciliador desta Máquina não tem nada a ver com a massificação dos mecanismos, talvez estejamos num estado de ascese da matéria e que os materiais se iluminem numa luz não gerada por combustão estando finalmente na presença de um Deus ex machina.

Nós que no ano transacto atravessámos as fogueiras, tivemos, alguns, resoluções que em muitos casos se nos podem afigurar como acções heróicas e algumas vezes quase sentimos a presença de uma intervenção inesperada que fez descer à cena um qualquer mecanismo: escutámos o primeiro robot e vimos uma realidade para a qual estamos ainda toldados – o calor toldou-nos o entendimento – presos andamos a um mecanismo chamado Geringonça, cujas visões não rasam nenhuma destas esferas e que pela própria constituição torpe dela nos abeiramos à procura de milagres ou de uma outra matéria rarefeita que não engloba tais poderes.

O que está configurado nestas duras ferramentas de Vulcano não dá nem para passar a primeira prova de um tempo novo que nos indicaram. Com a usurpação e a necessidade construímos uma gigante Roda Paleolítica cujo resultado testámos desde a condição sem nunca nos abeirarmos da frase derradeira de Goethe «o quê? bebo a luz?». Bebemos vinhos e água – pouca : a seca arrasa e promete calcinar os solos. Há sem dúvida uma plataforma artificial que luta contra o tempo porque neste caminho serão tão artificias os organismos atávicos como estes já mencionados nos parecem.

Situados no limiar da modernidade os grandes poetas se encontram, talvez a muito espaço luz da sua filiação temporal, e voltando às rodas: as rodas avançam e recuam, quatro Querubins fazem mover quatro rodas: Quando eles paravam, elas paravam. Quando eles se elevavam, elas elevavam-se juntamente com eles. A Máquina estava unida a um propósito. O que me lembra um poema de Elliot: no ponto imóvel do mundo que gira/ nem carne nem sem carne/ nem de nem para/ no ponto imóvel, lá está a dança/ mas nem parada nem em movimento/.

Findo o acto o pano cai, entramos em mais um Ano Novo sem percepcionarmos o labor que foi preciso para que raras vezes no vasto mundo aconteça nascer um poeta. Sim, será sempre aquela “máquina” de efeitos que nos colocam as Naves por onde iremos passar. Alguns. Ninguém entra nas naves a haver sem calcular tamanhos dons.

Um Bom Ano.

29 Dez 2017

A Vinda

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]sperar por quem partiu é uma actividade da ordem da expectativa redentora: erguer o que caiu, reerguer, tornar a levantar. Nascer de novo. Toda a nossa existência tem o ciclo da ilusão rotativa ampliada a uma esperança que supera em muito o nosso comedimento temporal e racional e amplia a vida para lá das fronteiras do possível. Desmesuradamente construímos a esperança como um doce sacrifício a manter mesmo quando a única que se nos é dada viver seja o momento, que sabiamente vivido é a mais bela casualidade de todos os factores.
Não diferimos aqui das grandes desovas marítimas em bandos de vida animal, nem nos falta o canto de amor das baleias, nem o banquete ártico dos ursos, nem o construir em cima do já feito voltando ao mesmo ninho. O que difere um pouco da frase pré-socrática que é o não nos banharmos duas vezes nas mesmas águas, o que, entenda-se, pode designar que o pensamento é um exercício relativamente recente na esfera da vida. Tudo se move pela memória, ou nos parece que ela é tão avantajadamente mais lata que o pensamento fica entorpecido nas suas malhas. Ora, em princípio, quem nasceu já não volta a nascer, a menos que figuradamente e aí acrescenta então mais espaço ao conceito de nascituro. Mas nós, que pensantes e a soçobrar de sonhos queremos que nasça alguém já nascido, prosseguimos um estranho caminho configurado de lenta transformação sem recurso a singularidade.
Neste momento todos os ânimos se ateiam no Médio Oriente devido a um agente incendiário que irracionalmente governa o mundo, pois ele achou que à beira da “desova” natalícia o melhor presente seria fazer perigar o instante, o que não é de todo oposto a uma certa animalidade atávica de configuração dinâmica; aquele local é uma masmorra em forma de dinamite planetária que um ligeiro toque remete para as enguias em pleno Mar dos Sargaços. Ora, aqueles povos inteligentes em vez de inteligir o óbvio, imediatamente respondem sem freio a um estímulo de causa-efeito: imaginai os não inteligentes, como se comportarão?! Abaixo de um qualquer enxame de vespas.
Naquela terra tudo espera vindas a duplicar… a triplicar: a vinda de Cristo, a vinda do segundo e terceiro Templo, a vinda de Elias, mas quem ali se instalou, enquanto uns morriam e outros eram desterrados, não quer abrir a sua mão nem para acenar do outro lado da rua onde deslizam com as fortes correntes de ar da cidade os que estão nas tendas, uns ao relento, outros atrás de um sudário, enquanto eles, os do usucapião, se instalaram no melhor dos locais, que os outros dizem que é seu, mas que também é deles, porque também um outro ali subiu aos céus. Aquela gente estava sempre a ascender. E para que se saiba do arfar do movimento, aquele é o ponto mais fundo da Terra. E assim, entre memória e conflito, a tensão faz do cérebro um grande órgão de fogo.
Efectivamente, e à medida que fomos desenvolvendo capacidades, instalámo-nos em terrenos muito estranhos para a frágil anatomia transportada: já nada nos lembra a primeira lava de extração da raça dos gigantes que casavam com as filhas dos Homens, e aquelas personagens de crânios ovais, tudo o que circula na nossa corrente sanguínea do nascer de novo se assemelha descomunalmente. Esta rotatividade imparável faz-nos um atordoamento simbólico mas muito belo pois que somos feitos desta fórmula composta. Quando os grandes ciclos se festejam, eles não sabem já o que seja a festa, mas, chegados ali, como o corpo tem memória ele segrega a mesma baba Pavloviana. É interessante ver que não diferimos em nada de um cachorro. Em Jerusalém preparam-se as festas, Hanukkah, Natal, uns julgam que o Messias vai a qualquer hora nascer – que não é aquele – mas nada é aquilo que estamos à espera, é sempre outra coisa, ou não será? Que vão reerguer o Templo e já há quem esteja a fazer utensílios com madeiras do Líbano e tudo… enfim, Deus é total, sim, e onde ele estiver, saibamos que não morremos de monotonia, pois que o cérebro humano tem o dom maior que é o de fazer, refazendo, aquilo que já estava feito.
Lembro-me de Arafat em pranto quando desejou passar o Natal em Belém e não deixaram, lembro-me da morte de Isaac Rabin, dos ortodoxos russos na Igreja da Natividade com as cadeiras pelos ares e, de facto, quando olho tudo isto é como se fosse pela primeira vez. Depois penso que a forma de vida cultural é tudo o que não é passível de mudança. Para se mudar um homem, sem dúvida que a única mudança possível é matá-lo. E mesmo assim, ele volta, reergue-se, ressuscita, elevam-se as pedras, erguem-se os altares, tudo o que algures radicalizámos, volta. Mas não nasce, nascer é outra coisa. Nós ainda não nascemos. Estamos configurados até ao fim das provas para este desastre em permanência e até ele tem o seu labor e os seus equilíbrios a manter. Vamos aqui, e já que ainda aqui vamos, para a semana é de novo Natal e até os Orientes se embebedaram desta seiva dos mais loucos da Terra para finalmente deles extraírem um propósito que também nos ultrapassa.
A vir então que venham todos, pois que para sairmos da Roda há que não deixar nada e ninguém para trás, há que salvar todas as vidas como se fosse a nossa e deixar de pensar que voltar é tornar a existir. Ascensionais vamos à Ceia. Muda o mundo os seus ângulos e da recta parada nascerá a vertical subida.

O Espírito e a Esposa dizem: «Vem!»
Diga também o que escuta: «Vem!»
O que tem sede que se aproxime; e o que deseja beba
Gratuitamente da água da vida.»

Apocalipse- Epílogo- 17

18 Dez 2017

Ouro, Incenso e Mirra

Sou negro, mas sou rei. Talvez um dia mande inscrever no frontão do meu palácio esta paráfrase do canto da Sulamina «Nigra sum, sed formosa» ….até ao dia em que o loiro irrompeu na minha vida.

Michel Tournier in «Gaspar, Belchior & Baltasar»

 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssim inicia o célebre romance de Tournier que celebra a trindade das oferendas com uma riqueza metafórica impressionante e um incontornável fulgor histórico. Há porém uma lenda da ortodoxia russa que nos diz que existe um quarto rei mago que faltou ao encontro de Belém, assim como um heterónimo de Pessoa que será mais uma espécie de Rafael Baldaia que na mágica heteronímia resolve ser astrólogo mas que não chega à “manjedoura”, um auto-nominado Bernardo Soares .

Atravessar um deserto real ou metafórico requer cautelas inimagináveis sendo os riscos mil vezes superiores à travessia dos mares, pois que ele é uma antecâmara que dá para um outro mundo. É lá que alucinamos, escutamos, olhamos, nos fustigam ou libertam, é lá que toda a sede se torna uma necessidade sobrenatural. Tem metástases aquele vasto corpo que rápido nos levam e gotas ínfimas que de repente nos salvam. Atravessá-lo, só com o olhar alto e a visão de um deus. O saque das caravelas é a mais requintada forma de roubo desenvolvida no mundo e aos reis que atravessem desertos nos seus camelos só mesmo a força de serem magos os pode afastar da requintada arte destes assaltantes.

Os reis seguiam ao que parece uma Estrela, mas que efectivamente era um cometa. Era chamada estrela cabeluda por causa do lastro dourado à sua passagem, assim como um cabelo sem cabeça; foi ao que parece uma grande viagem – partir é para estas gentes uma cura de desaparecimento – desde o delta do Nilo passando por Tebas, os nossos reis lá foram guiados, suados, mas como eram mágicos falavam com todos os elementos naturais, e nisto, Baltasar exclama o seguinte: “Quem sabe se o sentido da nossa viagem não se resume a uma exaltação de negritude?” Talvez percepcionemos aqui uma “magia” de espécies humanas atravessadas pelo deserto de um esquecimento qualquer e já que a Estrela se encaminhava para Norte fosse clareando Adão, que significa exactamente, terra ocre.

De Palmira vinha Belchior, séquito não tinha até se juntar aos outros e foi exactamente o mais pobre que levava o ouro. Atravessaram então todo o deserto da Judeia e na mansidão das noites devem ter contado coisas que só as areias escutaram; as noites arrefecem muito nos desertos e, nesta época do ano, são enormes. Estes viajantes tinham apenas um senão: eles não controlavam o tempo! Tiveram mesmo que iludir Herodes com quem antipatizaram, tendo, sem que o previssem, despoletado a ira do hirsuto rei: crianças mortas às mãos de algozes que lhes tiram o direito ao futuro, primogénitos tão caros a suas mães, meninos que esperávamos para salvar o mundo. Estas cicatrizes não se curam com a bondade sábia dos Magos nem as suas oferendas redimem a pobreza dos que esperam e nunca são saciados. A divindade de qualquer criança deve ser abençoada com estes nobres viandantes e constitui matéria de herança que de velha a nova se renova e todos aqueles que nascem têm o direito de ser por todos nós louvados. Os nossos magos não quiseram por isso atravessar as cidades e despedir-se de Herodes, seguiram as suas viagens depois de nascer o Menino e deles não mais ouvimos falar perdidos e indiferentes aos desígnios estranhos dos assassinos de crianças.

Todos os anos o meu coração de criança deseja vê-los, desejo nascer e olhar para eles no fundo de um tempo que tenha cometas cabeludos, mas por aqui, nesta imensa necrópole, nada passa, muito menos o nascimento de um Criança. É um céu gelado com luzes artificiais como tudo o que inventámos para fazer a festa. Mas a festa é um maravilhamento trazido em vasos solenemente doados aos que nascem. Aqui não chegou ninguém, e creio que até a morte se possa agora esquecer, tal a existência de vazio. Consegui não ir para o deserto onde me esperava Satanás e os Anjos, amargamente dou por perdidas todas as etapas do caminho, todos os anos regresso em sonhos à gruta que dá vida, e sem o velho culto de Mitra, festejo os dias que vão crescer e que não banharão a Terra na tão temida noite eterna.

Lá longe ficam os Homens.

O incenso e a mirra têm o poder de afastar os insectos e as serpentes, a mirra é um bálsamo medicinal, o ouro faz bem ao sangue, todas as componentes para se andar nestes locais sem ser mordido e afectado pelas pragas. Mais tarde as serpentes vêm com suas bocas abertas mas na voragem dos solos nada terão para tragar, os males não se curarão mais com plantas espinhosas, mas com o mel das últimas abelhas, que dizem, que ao deixarem de existir o mundo perecerá, e com leite, enquanto formos mamíferos e pela carne e o seio nos propagarmos no espaço circundante.

Aos que enaltecem a dádiva e nos protegem do solo sempre agreste nos cantarão as lendas ficando nós suspensos como jardins da Babilónia – nós – esses felizes herdeiros dos sonhos. Por ora cessam as Fadas madrinhas que tinham no fim das bênçãos a escatológica harpia que num anátema disferia o golpe mortuário. Dessa ninguém se livrou nem algures uma criança que fora abençoada por reis.

12 Dez 2017

O dom das lágrimas

Ele voltou um olhar de amor
Para que Pedro o bem- aventurado apóstolo
Dissolvesse com lágrimas amaríssimas o pecado da tríplice negação.

 

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ofrer é um nobre mistério se interpretarmos a vida como uma manifestação onde a dor é presença constante – os antigos textos litúrgicos cristãos tinham as Oblatas, aqueles belos poemas que davam o dom das lágrimas para amaciar a tormenta das dores secas e mudas que no peito se tornam pedras duras e insuportáveis. Os códices medievais foram também eles invocações para os males, afastar maus pensamentos, pedir chuva, afastar as tempestades e, por fim, também e sempre, consagrados ao efeito benéfico de melhorar a condição da vida.

Há nestes poemas litúrgicos o desejo de que o pranto acorde a consciência à sua ligação divina, mas talvez que a nossa forma de viver nos remeta mais para Ulisses que preferiu cobrir a face com o seu largo manto púrpura quando, ao escutar um canto, se envergonha que lágrimas lhe caíssem na face. A temperatura do sofrimento porém não esmorece com ou sem elas, mas são elas, essa compunção, que nos aproximam de um estranho amor que não sabemos revelar e na quente abundância do seu dom nos libertam e nos fazem talvez sentir uma inegável saudade de Deus.

No tempo do riso e da abundância, de fluxo para a felicidade simples, como o de agora, talvez haja estranheza nestas coisas. Afinal, tão naturalmente combatidas como quedas ou frágeis manifestações, mas na realidade estamos a perder grandes dons que eram libertadores e a entregarmo-nos a todo o género de recursos que nos desvinculam da nossa natureza sagrada. Daí uma certa rudeza nos afectos, uma legião maciça de caritativos, uma domesticação indevida para um bem que não sente mais que uma politicamente correcta adesão; se o coração é esse órgão de fogo há que restar de nós alguma água para um húmido silêncio e uma fresca acalmia: corremos o risco de carbonizar sem o dom das lágrimas: « Junto dos canais de Babilónia/ nos sentamos a chorar/ com saudades de Sião». Saudades da terra, saudades de um rio… Esta importância do pranto era então visto como efeito libertador, como um signo de salvação.

Por vezes estamos dolorosamente cansados, tendencialmente nervosos e fartos de tudo – convalescemos – estamos prostrados sem saber como acudir a tanto desanimo parecendo não aguentar alguns ciclos da vida e damo-nos conta que já não choramos, que nos fomos tornando um lume qualquer que se esgota, vimos o mundo secar, arder, os efeitos atmosféricos tão aflitos quanto a nossa alma esquecida e lembramo-nos de coisas simples e redentoras, despojados então de efeitos queremos um chão para regar com algumas lágrimas e que dele possa nascer uma planta que seja a salvação. Mas não só a liturgia cristã original está prenhe destes bens, o pungente grito da lamentação têm-no os judeus em farta abundância naquele Muro onde todo o choro é visto como um elo que une um povo inteiro. «Vacilas por ternura Deus omnipotente/ da pedra fonte de água viva rompeste/ a um povo sedento/ retira da nossa dureza a compunção das lágrimas/ longo pranto por nossos pecados concede/ pois vendo-nos assim te compadeces/ e obtemos remissão».

Houve efectivamente uma era muito líquida, que não será certamente parecida com a de hoje, aquele tempo do sangue, suores e lágrimas, havendo um domínio claro de um tal elemento como esfera transbordante. Vamos até às águas de Noé e depois já em terra vêmo-lo a plantar uma vinha, que de líquido forte passa a ser um poder manifestado. Estamos inundados de um estranho amor e nem por isso sorrimos ainda, aqui. Na tradição bíblica, o riso não é desperto pois que dele advém um princípio modelador, só a gravidade acorda a lembrança divina.

Na maior parte são textos do latim litúrgico-cristão o que os torna de uma grande plasticidade na composição através dos séculos e nas sociedades onde se inserem, mas creio que não perderão jamais a primeira essência pois quem os transcreve está em sintonia com a função original. Há matérias que se habituam a ser esquecidas ao ponto de quase desaparecerem, mas quando isso acontecer de nós não sobrará grande coisa que também valha ainda a pena lembrar.

30 Nov 2017

Os Prémios

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ivemos numa sociedade de premiados. Todos os dias os grupos fechados que fazem parte de coisas várias premeiam gentes. De tanto prémio já nem sabemos os que se auto-premeiam com a ilusão constante da rotatividade dos clubes e da imensa e inócua produtividade dada em corrupios de um inflamado génio que sempre falta. São quase organizações clandestinas estas que se estrangulam no delírio do prémio. Ora, os prémios, são de fato o que menos importa. Ninguém talha um caminho para erguer taças ao alto, nem a vida é essa insustentável leveza de vaidades ardilosas fechada nas benesses dos que trabalham para a mesma causa em suportes variados de sujeição.

Os imensos esforços de camaradagem forçada que se denota nestes ambientes impulsiona o mais desprevenido a desejar sair dali e não querer sequer que saibam que está vivo. São de facto um atentado à inteligência e um festival de ousadas demonstrações de salubridade mental.

É um espectáculo insano estes pequenos guetos assaltados por uma gente detentora de poderes para gerir, absolver, ignorar e inutilizar: em muitos instantes nem o pensamento sobre a função é claro, pois que não conseguem explicar de forma natural aquele amontoado de situações, entrando assim numa esfera comprimida onde a inventividade estanca, a mobilidade é morta, mas passeando-se mesmo assim pela orla das suas degeneradas funções.

Há Ministérios para certas actividades que devem ter as verbas distribuídas para grupos das suas legiões, mas nada disto é um assunto abrangente e muitos vivem de nada fazerem para além de assinaturas a petições, acabando-se aqui a intervenção cívica e social . É grotesca a forma como se movem os seres que destroem não só o erário público bem como aquilo que poderia haver ainda de talentoso. Continua a ser tudo “sacristão maçónico” com o aguilhão da polícia secreta, estão habilitados a matar, a salvar, a expulsar… é, sim, é uma gente malsã! É um espectáculo desprezível desde os cumes até às bases. Para não falar na jactância emproada de alguns protagonistas. Claro! Há muita violência doméstica, as pessoas não são expansionistas para andarem na rua a gritar, fazem-no então entre quatro paredes onde não raro se matam todas umas às outras. E é neste estado que vivem os presidentes de certas associações que andam por aí. Gente que não tem um rasgo de cultura adquirida a que possamos chamar civilidade.

Os nossos pares? – Devem estar a brincar! – Primeiro, há seres ímpares, depois os pares escolhem-se, e isto não deve tomar mais do que o tempo de uma análise da nossa reflexão. Geralmente quem teve a sorte de escolher o bom, olha para isto com ar incrédulo, mas há que não desmerecer a confiança que nos depositaram. Há coisas que trazemos como um distintivo, uma conquista, uma forma de merecimento, e outras que são tão circunstanciais, que não passam disso mesmo.

Todos os dias nas sociedades dos prémios há gente a jogar para ser premiada gente que se esforça por ganhar o euro milhões, outros o pódio, e outros a atenção de aqueloutros- e mais outros- premiar este que já premiou aquele, e assim sucessivamente até ao dia de os tirar a todos de lá para fora porque afinal eram outros que tinham feito a Obra. Isto para não falar do excesso de zelo para com uma população cada vez mais afugentada do saber da linguagem e que a única razão de não passar definitivamente a dialecto é o de poder sustentar uns nativos longe da sua região de origem. O que estes Institutos e linguistas ganham para degenerar tudo por onde passam na sua insensibilidade verbal, dava para fazer ensinos de grande qualidade, mas, agora como sempre, há uma forma de vida artificial por onde passa um ardil de gentes sem mérito que na sua consciente falta dele se auto premeia a si mesma.

Sabemos que de nós fica pouca coisa na duração do tempo, essa deve ser a visão clara, não nos é dado “sujar” o espaço de forma metódica e continuada pois que seria do grau da insuportabilidade, e que o barroco oco da nossa ganância pátria para com o maior , o mais importante, o mais este, o mais aquele, deu esta imensa decrepitude social onde agora se mergulha. Neste imenso opróbrio onde a liberdade foi sonegada em detrimento de vantagens tão substituíveis que nem notamos, nota-se o artefacto de uma moléstia tardia que vingou. Quando se contarem as peças desta manobra feita de angariadores e mercenários, talvez muitos fiquem esmagados de vergonha perante a robustez dos tenazes, e que a supremacia dos distribuidores de prémios se sinta cruelmente nua no meio de uma história que não querem contar e outro a recitará. E os euromilhões fiquem escancarados nas esquinas dos prédios e as notas em sacos dos carros de Estado, estampados nos semáforos.

Não chamaria inaptidão ao legado frouxo que ninguém quer, chamar-lhe-ia um acto previsível. Quanto à astúcia e toda a estultícia, garbo, altaneiro estado, guardem tudo. Vão precisar de todos essas características quando mais nada restar de uma continuada e valente fraude.

27 Nov 2017

O ovo de Símias de Rodes

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste poema inaugural foi escrito três séculos antes de Cristo e aparece-nos como um primeiro poema visual. É de uma beleza que nos enfeitiça e espanta pela sua composição toda ela ovalada e plena da primeira instância materna; é uma reverência, um diálogo de amor e de acção no domínio do filho.

Ele é quase a primeira anunciação, a fecunda emanação do Verbo na concepção: acolhe da fêmea canora este novo urdume que, animosa tirando-o de sob as asas maternas, o ruidoso e mandou que, de metro de um sopé, crescesse em número e seguiu de pronto, desde cima o declive dos pés… quando as pernas velozes dos filhotes; é um texto sincrético entendido visualmente pela configuração ovular. Considere-se também que os hieróglifos foram os primeiros Caligramas, mais tarde – milhares de anos mais tarde – reerguidos por Apollinaire o que não obsta que não tivesse havido bem mais para trás, especialmente no barroco belíssimos exemplares desta natureza.

À escala figurativa dão-nos os registos gráficos muito mais que um código de linguagem. Eles contêm a associativa transformação das infinitas leituras que nela se produzem a partir de símbolos verbais. Nós que usamos a linguagem escrita em torrentes de horizontalidades diárias, pois que adaptamos o método corrido da visão imediata, pensamos, como escrevemos, em linhas rectas que fornecem um molde cerebralmente imposto na leitura, mas ela cresce e transforma-se em todas as visões que criativamente lhe queiramos dar.

Por vezes estamos cansados de tanta estrada igual que desfere nas nossas causas uma certa monotonia e não as transgride em posição, o nosso olhar também se cansa de tanto plasmar de linhas sem contramão, e, destes alfabetos, destas formas de leitura tão especiais como a que menciono acima, tudo se torna de repente uma voz que entoa no meio da palavra.  Mais do que artefactos as suas disposições são a própria melodia.

Este texto não pode por isso ser lido linearmente  como um texto comum: tem de se fazer de maneira alternada, depois do primeiro verso, leia-se, não o segundo, mas o último; depois do segundo não o terceiro, mas o penúltimo, a leitura que se faz de alto e baixo para o centro numa fecundação enaltecida da conclusão do fruto. Temos assim o princípio da fecundação em todo o seu esplendor da composição alfabética o que ajuda a um treino fecundo antes de concluir a importância de tal via manifestada. Os gregos não usavam rima, o ritmo regular era a sua característica no poema e é neste ritmo que ele se dá e se entende como arte poética. Toda esta matéria nos remonta também para a antiga tecelagem na composição das suas várias formas e se com fios as Parcas tinham o poder das vidas dos Homens também com as palavras esse poder emana como o mais forte de todos eles. Tinha-se assim elementos que comandavam os destinos humanos de forma sobrenatural e mágica sendo nestas teias que os maiores dons germinavam.

A Cartilha Maternal fala-nos também da vogal canora que transmite o som da palavra ao filho e forma o aprendizado da língua. Talvez  João de Deus tenha ido por caminhos de recordação até aqui buscar a sua pedagógica fonte de receitas e sempre que as reformas de ensino se pronunciam  deviam ter em linha de conta muitas coisas destas registadas. Mas não têm. E daí a não proliferação de uma harmonia instintiva na forma de crescer e muito menos uma implantação de motivações que ajudem a fazer de cada ser um elemento criativo e naturalmente motivado. Sabemos que a aridez das composições eram maiores à medida que o tempo passava, nem de copistas  tínhamos  noção… não nos recordamos nunca da beleza que era repousar e alongar nas iluminuras o olhar e em que cada maiúscula que  parecia uma renda de alta concentração gráfica elevarmos o olhar com aquelas cores que produziam a fantástica experiência do complemento da leitura. A aridez foi avançado proporcionalmente à proliferação, até ao hoje onde as abreviaturas são caracteres que não dobram o limiar da contemplação:  passamos sinalética como se tivéssemos na grande autoestrada do livro comum.  De trás para a frente temos ainda a leitura talmúdica que não deixa de ser altamente estimulante para  todos aqueles que queiram ainda expressar-se nesse preceito religioso e dizer o que não deve ser mencionado. A origem faz o original, mas coisas iguais fazem apenas muitas coisas.

Rodes é ainda a ilha de um Colosso. De pernas abertas vai de margem a margem nas águas, e com seus braços guarda uma chama. Era talvez daquela raça dos gigantes que se apaixonaram pelas filhas dos Homens e delas tiveram uma espécie falante. Transformam-se em Cisnes e fecundam deusas que ao porem ovos fizeram destes locais o mais precioso dos recantos poéticos.

Vamos lá buscar este instante  com a sua fêmea canora que  compôs um dos poemas mais belos da Humanidade: arauto dos deuses, Hermes, jogou-a à tribo dos mortais, e pura, ela compôs na dor estrídula do parto do rouxinol dórico benévolo. O ovo dos cinco remanescentes do poema figurado alexandrino.

21 Nov 2017

Escorpião

[dropcap style≠’circle’]— Q[/dropcap]uem?

— Eu não!

De facto não sou Escorpião, esse emblemático e tenaz signo. Era tão grande enquanto casa zodiacal que ia de Setembro a Novembro e teve de ser partido ao meio dando a constelação de Libra com todas as características de César. Hoje, por exemplo, nasceu Pablo Picasso e quem não vê naquele monstro belo um derradeiro Escorpião não viu nada. Um monstro de beleza! Já a mãe o apelidava assim por causa da sua aura de perfeição. Estes hipnóticos seres também se auto-hipnotizam pois que ninguém fica imune aos venenos que fabrica. Mefistofélicos, o olhar estabelece direcções fixas que vêem tudo ao redor e num assombro de ilimitada audácia olham para coisas que cegam. Os seres simples tendem para uma grande harmonia e jamais lhes ocorre o que pode acontecer numa estrutura complexa, vão até ao olhar de uma comoção qualquer e voltam para trás para que não perturbem a sua existência de leis instáveis, mas que funcionam. A mais brilhante é manterem-se vivos e nem mesmo essa chega para iluminar.

Escorpião!

Onze horas da manhã, missa solene. Todos os Santos e mais que fossem, e eis que de súbito a terra treme, o rio levanta-se, uma menina nasce a essa hora na Áustria, a Fada Malvada a seu lado desfere um anátema – Escorpião – tudo em roda de fogo para esse dia. Que Fausto também se circunda numa e de lá diz: «Agora sou eu o deus para toda a Eternidade». Vejamos como se comportam os Fados, Escorpião, neste teu tempo ainda em cinzas para que não se acabe de vez o que fora começado, ou, na labareda ainda dormente, terás, Escorpião, de te socorrer da doutrina Kamikaze fundada neste dia: vou morrer, pois que a morte a mim não me mata, quem mata a morte sou eu. Escorpião!

Escorpião!

Avança o tempo incerto que tão forasteiro é e que perto está de ser levado para a gruta trituradora da tua natureza que um génio soberbo arrasta para o fundo. Entre ti e o Dragão há agora uma guerra pois que a fúria não é Escorpião, mas sim o ódio, o poder indómito, a eternidade transformada, o sagrado fixo que ao redor das chamas avança sobre si, severo e sem flores vamos encontrar o teu jardim das pedras trituradas e da aridez mais transparente, o único local para continuar. O quê? Não sabemos. Tu sabes, Escorpião, e na profunda telepatia que une tudo, em ti esconjuras os nossos medos e penetras nos sonhos onde desocultamos esse instante vindouro.

Escorpião!

A fronteira entre a nação dos espíritos e a roda viva dos mortos, a fugaz passagem, a tua máscara, a beberagem, a orgia, o vício, a maré baixa, o lodo, o pântano, a combustão… és uma festa de Assombros! Todo este tempo é Escorpião mesmo dividido, mas o que se passa mais abaixo são coisas que não vejo, afinal tudo é queda, chegamos ao fundo e recomeçamos somos a pedra de Sísifo em roldana móvel para o improvável, lá nos aguentamos até um cume costumeiro que desliza mais rápido do que sobe pois que há leis tão graves que lhes chamamos até de gravidade. Vamos impelidos pelo teu olhar, mas na fornalha do meio nem tu lá estarás para nos receber, Escorpião, por isso navegaremos sem rotas nesse limbo até de novo se abrir a porta.

Escorpião!

Hoje ainda é Verão e o teu calor baixa como uma atmosfera sem longas catedrais, a nave jaz nesta recriada atmosfera onde não sabemos já nada das Estações, mas sente-se o teu estandarte de fina estampa nas nossas veias, parece mordaça… fazer sangrias não é de Escorpião, o pântano não engloba o vermelho, filtra tudo em negritude e estanca a hemorragias essa massa orgânica dos insuportáveis mártires, por baixo, nos pântanos, somos eléctricos com desejos tais que fazemos do sexo a mais brilhante marca da tua urdidura, que não são precisos dentes para nos estilhaçarem, não, com pinças precisas atingimos os altos cumes onde bem vistas as coisas o amor mora. Só depois de transfigurado. Escorpião, o teu reino está quase vazio. Não havendo espaço para a deidade dos pequenos instantes de prazer o deserto é uma estrada sem fim mas a única possível onde te podes esconder…vem o Fogo, e os desertos não ardem, e se assim acontecer será sempre às portas dos oásis, fronteiras, sempre fronteiras para saciar os vivos e os mortos e o teu reino não ter fim.

Escorpião!

Há um acelerador de partículas em movimento mas que não sabemos para onde se dirige, sem que se mova, mais nada sabemos da secreta origem, que tu guardas, parado, cauda levantada bela a curva o ataque na curva curvados vamos e tão indómito te tornas que as serpentes se afastam pondo os ovos nas nossas cabeceiras onde sonhamos frágeis esses dias breves. Urdiduras, sinais, rebentações. Transformamo-nos. E agora que a morte é tabu, acabarás como Urizen por ver consumado o perpétuo isolamento do teu mundo. E as Paixões que se querem estáticas como os antigos glaciares derreter-se-ão à nossa frente como o fim provável dos mistérios; sombrio concebia os seus horrores gelados, a ressoar como trovões de Outono, que sobre as searas incendeiam nuvens.

Escorpião!

Viemos prestar-te culto.

14 Nov 2017

Ai flores de verde pino

Na noite escreve um seu cantar de Amigo o plantador de naus a haver

E ouve um silêncio múrmuro consigo:

É o rumor dos pinhais que, como um trigo.

De Império, ondulam sem se poder ver.

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap], neste Outubro, oito séculos depois do rei amigo ter plantado o seu pinhal as chamas deste ano o devoraram. D. Dinis nasceu neste belo Outubro – dia 9 de 1261 – e não será certamente o presente que se recomende a ninguém na memória do tempo com naus a haver, mas, o certo é que tem havido no seu país longínquo a mais séria devastação que os seus cantares não visionaram nem a sua natureza gentil teria feito alguma vez ideia. O vasto manto de verde pinho com cheiro antigo e fresco onde me lembro das camarinhas e da leveza e do cheiro a iodo que vinha ali rente ao mar, esse manto que dir-se-ia eterno feito por Deus num recanto da Terra, pereceu.

Não é um facto de somenos estar triste e refém da orla das suas sombras belas e frescas, não é um acontecimento qualquer este que me faz recuar cinquenta anos e de onde agora sou expulsa, mas sim, o primeiro trago na maçã que desencadeia a fúria e a expulsão de um recanto adorado que alguém criara para mim. – Creio que me o plantaram, sim – que me foi doado pelo amor de um rei e estes presentes que consideramos tão nossos rasgam o postigo por onde passam também as labaredas, a nossa saudade fica em pranto o nosso adeus é uma asa negra de cinza naquele escuro que na alma se perde e os olhos não querem contemplar. Arrancam-nos bocados, assim, como que tragados, subtraídos à substância do húmus que os pés de uma criança trouxera intacto para o resto da sua vida: Amor, a aldeia ao lado, está intacta – Amor que arde e não se vê – essa ficou de pé, lembrando a rota por onde depois de vistoriar a sua plantação correra amante e terno o rei para os braços de uma filha destas terras. A seiva dos seus cantares de Amigo estava ali também plantada e não raro escutávamos a sinfonia dos elementos com a sua voz de rei e de poeta. Cantares de Amigo. De um amigo rei.

Esta imensa chaga não tem fim é uma desconsideração sistemática face à alma nacional feita por um mundo que resolveu carbonizar seres e sonhos, caminhos e canções e este instante é um assombro que nos fica gravado na carne ainda em brasa. Não voltarei a ver o mar de um ângulo todo exacto por onde deleitosamente se espreguiçavam pinheiros impedindo ventos, estancando areias, fazendo a fronteira entre o solo bom e o caminho agreste das marés. Não voltarei à sua orla tão suave onde fui aprendendo o doce significado de fronteira, que estar separado e próximo de alguma coisa é a melhor harmonia de se estar no eixo certo que é onde nos devemos manter. Não voltarei aos seus flancos naturais que sabem corrigir o excesso de zonas abertas que produzem a dogmática noção de espaço imenso, um espaço assim aberto e morto de pé é agora uma visão de Dante e embora seja belo tudo o que a sua imensa natureza produziu será também por a ter sido que nos indicou os caminhos por onde o mal se estende, o percurso é longa e estranhos os desígnios. Foi aos seus ramos e ao verde pinho que cantou o seu cantar de Amigo o gentil rei por isso eram árvores encantadas.

Fica-nos assim uma era de exclusão onde por horror e martírios sucessivos expulsámos as últimas fadas e os seres da floresta que eram garantes da memória, com eles se vão as nossas defesas e os nossas sombras- que um ser quando perde a sombra tem em si registada a morte.- Do que se canta já não vemos o Amigo, e as vozes, nenhuma nos indica as naus que outrora em sonhos partiram e navegaram ainda no sonâmbulo das chegadas, pois que de um jardim se faz um sonho que avança e se transforma até ser vela nau e nave, até ser tempo. Nestes dias a Barca da Morte veio buscar-nos e ainda navegámos com ela até à margem mais fina da sua ondulação como náufragos de uma viagem inventada. De súbito, estávamos em terra, em terra estranha, aquela por onde ela acorda o que até aí nunca viramos, tão inexperientemente como neófitos de olhos abertos, estamos na vida nova. E para trás não olhamos, pois que nos dizem as lendas que ao fazê-lo desapareceremos mesmo nesses reinos onde devemos saber guardar morada para os que vêm depois; há quem se perca e continue no limbo e tão transfigurados, que nem dão por mim: meu criado e amante vem comigo saberás o que nunca imaginaste.

Revejo o Outono que se adentra como um louco quente e logo abrupto, dos fogos do Inferno criaram-se céus laranjas noutras Estados e os furacões ameaçam-nos levar o chão. Em permanente instabilidade de condições desejamos ir recuperar o corpo dormente destas esferas que os martírios tornam lívidos e parecem cavalos as teclas que se soltam à medida que as rédeas de um grafismo de ideias assolam o coração que se gasta na jornada.

Desejei dar-te outros Cantares querido rei, mas só estas coisas sou capaz de compor nestes amargos presentes que o nosso aniversário selou. Eu recebo-os como injúrias e não choro, já, tu estás no limbo das fontes e deves ter remado a tua Barca para outra estrela distante de tão sórdido planeta, terra, país e suas gentes. Mas valentes e guerreiros quero salvaguardar os Bombeiros Portugueses que em condições quase miseráveis enfrentam todos os Adamastores perante o olhar de uma gente sem brio, sem conhecimento, cúmplice de aturados anos de insensibilidade e descaso que arremessaram um país para um campo de treino do mais vil “jihadismo” da luta partidária em cima de cadáveres ainda tão “frescos”. – Segreda-me: os teus súbditos já eram assim? – Ou plantou o Diabo uma coisa indigna e colocou-os algures aqui? Há porém um homem que tem braços e os dá aos braços que se lhes estendem em pranto, que perto anda de um grau de iniciado e não deixa secar as terras os corações e a seiva de um finíssimo “verde pino” esse homem também poderia ter sido rei e sem dúvida que seria de ti um Amigo. E num cantar sonhado por homens assim, inventávamos um país e esquecíamos para sempre tal tormenta. Venceríamos a primeira morte, pois que só os que estão inscritos no Livro não morrerão.

– E como nós meu bom rei, somos descendentes e filhos queridos dos avós, o Avô Afonso X, escrevera para ti e para nós este poema, porque a musa do rei era herança carnal.-

O que atravessou a serra

e não quis servir a terra.

O que arrecadou dinheiros e não trouxe cavaleiros

Se só vem com os derradeiros, maldito seja!

Quem cobrou grande soldada se tem fortuna ou mesada,

maldito seja!

Quem muita manha meteu no saco e pouco de seu,

maldito seja!

9 Nov 2017

Uma frescura de asas

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]oltar para o limbo das coisas transfiguradas, não misturar as fontes com as formas nessa incessante busca de afastamento face aquilo que no sensível se mantém, mergulhando assim no dom inalterável. Descarnar, não querer efeitos, retirar o excesso de humano, vencê-lo, secar o pântano acre-doce do instinto que alimenta espectros – movimento extinto – (…) tempo, suspende o teu voo (…) Ficar puro como a ideia, vigiar, estar preparado para o défice de compreensão dos transferidos para as zonas dos impactos, não mais nos alimentarmos de presas vencidas cuja deglutinação ajudou a subjugar os que servem de repasto- herdeiros dos medos- testar em cada um a superação humana por um processo alquímico muito próprio, não alinhar na corrente transacta de um corcel de Fados e de prantos, não ver a arena por onde as festas anunciam o banquete pois se tangerdes uma lira as próprias feras lerão na superfície das provas uma outra mensagem. Instar, inibir qualquer gesto de traição, colar a nós os sacrifícios como forma de deposição das armas.

É a sombra que salva a voz do assombro e no negro alvíssimo que transluz, devemos nós, os que temem as côres, resignar-se a tecer o tempo como um círculo de frágeis fios, pois que, sem a tenaz noite que de tão escura é sempre nova a voz poderá sair um ronco carregada de poeiras que são os pensamentos e o grande arco trazer somente a ilusão colorística que um deus maligno compôs para seu disfarce. Sangra, sangra, mas não te queiras na gleba. Lá, bem dentro do seu labirinto, está o Minotauro e se te apressas na marcha forças com leis te virão buscar carregadas de aflições, criaturas bestializadas ao serviço do centro: enquanto tardas, guarda a fonte. — Relembrando títulos de livros de autores de alma timbrada e tão longínquos — . António Quadros e ao pensar que ao existirem me servem hoje de uma gratificante brisa! Estamos no meio das experiências da côr, no auge da dobra fractal de similitudes alteradas onde se fez de quase tudo um amontoado de sujeições : o mundo grito, o mundo claque, o mundo clube, o mundo cor, que de cor, só o coração.

Tempo haverá em que o elemento humano estará quase ausente e se dele não restar a qualidade da sua brisa que é o único dom da sensibilidade criativa, saibamos que nada o desgastou mais do que esta felicidade sem esperança, mais, muito mais do que a dos seus tempos felizes na miséria. Neste labor de reter o melhor que foi Homem chegar-se-á a um ponto em que o conteúdo humano da obra seja tão escassa que quase não se veja, a Humanidade será lembrada pela sua secreta perfeição, de tal ordem que se pensará que fôramos uma tribo tão pequena quanto aquele povo inventado, nas horas mortas todos morremos sem que seja necessário outro entretenimento. Então, só depois a nossa consciência “sentou-se na sombra profunda quando por sobre a cabeça o ulmeiro murmura… e canta, quando a água santa e sóbria assaz bebeu, escutando ao longe no silêncio o canto da alma”… Horderlin .

É esta a Asa, a sombra profunda que salva a palavra da claridade do raio. A frescura e a sombra correspondem ao Sagrado e a palavra funda o seu advento.

Já não há rebelião, outrora até os anjos a tinham e das suas centelhas se fizeram fogueiras, mas o enxofre gerado tinha ainda a molécula do bom cheiro a Bode e frases mágicas que produziam efeitos mais fecundos que alucinogénios, havia na sombra, sombrias formas que criavam cismas tão divinos como quaisquer santos, havia uma dor de fundos imprevistos e talvez o cérebro estivesse em outros momentos da sua liturgia, havia isso tudo que criou indómitos espectros, que hoje, quase os visitamos sem supor do cativeiro a que estiveram sujeitos e olhamo-los sem malícia, esse artefacto não tinha, nem sabia, o que poderia ser ainda o coro de uma tragédia, hoje, mergulhados nela, achamo-nos paradoxalmente os mais felizes dos Homens.

Que as sombras partiram e a frescura é menor, que tudo se transforma sem que nos transformemos à velocidade dos ventos, que aqui retidos entre domínios imponderáveis se nos esgota o oxigénio e o escuro apagão é tido como o fim dos nossos quotidianos. Não brilha mais para nós o azeviche que precede a luz, a nossa natureza gosta da noite do néon mas não quer ver o efeito das sombras que produz, que sombras, são benignas, as dos ulmeiros quando murmuram… e sem eles, não há ao longe canto. Se dizem estas Asas no fim que a finalidade é libertarmo-nos libertando os outros, todos somos uma proposta ampla de Liberdade que será necessário aguardar com o sentimento do dever realizado. Pela noite entram os amantes, sempre caminhando para ela, pare então tempo o movimento triste que alimentou um brilho insuportável. Nós, os cegos, somos uma visão madura de Deus, usamo-lo nas vestes ainda tingidas de preto total , não ousamos, contudo, não somos encarnados, quase, brancas Aves, pois que todos os fantasmas o são.

Tingidos neste suporte toda a sensação não sentida como desejo é enfim glorificada num imenso adeus às armas pois que não nos fizeram vorazes e nos manteve na rota certa para a dádiva e não para criar raízes no próprio esquecimento. Para não nos tragarem, escondemos os dons, e para continuar, oferecemos os serviços, nenhum gratidão é suficiente para agradecer tamanhas coisas.

11 Out 2017

A China fica ao lado

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau é um esplendor. Um degredo longínquo em que suamos até aos ossos e nos banhamos da luz nocturna de todos os néones num vórtice de coisas tais que nenhum tufão por mais intenso esmorece a atracção da sua rota. Lembrei-me deste título retirado de um romance da querida e saudosa Ondina Braga que ali viveu alguns marcantes anos da sua vida e que tive o prazer imenso de conhecer e partilhar na sua tão bonita influência oriental. Era uma pessoa rigorosa, afável e leve. Hoje, como todos aqueles que as asas levaram para bem longe, parece quase esquecida. No seu tempo, ficava, sim, ao lado, hoje é de novo a China, não sendo porém um território a mais desse grande útero nacional. Quando a China ficava realmente ao lado, trazíamo-la para dentro do pequeno legado para que não sentisse a falta do corpo social a que pertencia e tudo o que lhe levámos foi uma transação de coisas felizes pois que nada se pode sobrepor à sua própria herança civilizadora.

Estar em Macau é como aterrar na Lua, ou algures na Galáxia, onde a grande mobilidade nos acelera de modo estranho, talvez metabolicamente. O tempo é tão quente e húmido que pensamos que as máscaras antipoluição são bombas de oxigénio: a cara tapada das islâmicas pode agora concorrer com os rostos escondidos das asiáticas, o que prova que andar de rosto descoberto, só mesmo nas regiões amenas. As mulheres asiáticas são lindas! Talvez todas estas mulheres nos venham agora dizer que são assim graças à velada camada de tecido que sempre as cobre não deixando os intrusos apoderam-se das suas sombras.

A Comunidade Portuguesa de Macau é activa, bem preparada, cosmopolita e muito integrada no conjunto dos factos culturais e sociais. Pessoas que se vão, fazem parte do melhor do país, pois que por aqui, no país real, ficaram vai para séculos os que não ofereciam capacidade de partida. É dessas gentes estranhamente impróprias que se compõe o país de hoje, pois o melhor da casta sempre se foi. Levamos sempre portugueses atrás, com as suas manias, pesporrências e enfatuamentos de género: no tempo das Naus deitá-lo-íamos ao mar, mas agora não os podemos deitar para lado nenhum, pois que o que sobrou, vai junto. A falta de graça é pior que a economia banditista de uma pequena nação cheia de dejectos. Pensamos que não aguentamos mais e, por milagre, conseguimos resistir.

Macau, com toda esta intrepidez de cidade cibernética, é no entanto um oásis de segurança: pode-se andar de noite palmilhando o chão sem nenhuma ameaça ou outras formas de comportamento assustadiço. A educação dada por um regime que todos acusam a Ocidente teve fortes vantagens no comportamento social. E os orientais têm sem dúvida outra forma de interpretar a violência que não passa pelos nossos desassossegos. Num vasto promontório, que diríamos sagrado, fica o Consulado Português, onde a seus pés corre sereno o rio das Pérolas e onde nos foi preparado um magnífico jantar com os mesmos pratos do tempo de Camilo Pessanha, generosamente confeccionados por uma neta do melhor amigo do poeta. Um recanto de arquitectura colonial do mais belo exemplar e um paladar do tempo transportável para as noites daquele Verão onde fácil foi entrever a longa e magra figura de Pessanha em sintonia. Ganhámos nesta ilustre convivência com povos tão requintados e eles ganharam connosco a riqueza que também transportámos. Se foi degredo, exílio ou diáspora o que se passara com Camilo Pessanha, não o sabemos ao certo, embora exista uma galvanização viajante na consciência nacional que a faz falar nos porquês ininterruptos da diáspora e aí se plasmarem como se esse fosse toda a causa por onde um homem nesta vida perde os dias:- ora, eu acho que não é! – Porquê estar ali e não em outro lado? De ter sido assim e não de outra maneira? Numa desenfreada dialéctica sem freio que nos deixa atónitos tanto quanto o próprio ficaria.

No fundo há sempre que contextualizar a circunstância e cada ser está onde pode; as causas só ele as deve entender, mas não me parece ser difícil de interpretar o que leva alguém para tão longe, podemos contornar toda a temática, mas há uma evidente: ele não desejou estar na sua terra com seus pares naquele tempo preciso o que é profundamente entendível, muito mais, tratando-se da sensibilidade genuína de um Pessanha. Conheci sobreviventes que apanharam barcos para um sítio e foram ter a outro e ali ficaram como se aquele ou outro fossem coisas irrelevantes, quando um homem precisa de sobreviver, foge à morte, ao mau estar, a essas coisas, põe de imediato fim ao delírio da expatriação. O que somos levamos connosco e todos os lugares são dignos de reinventarmos uma pátria. Mas Macau não era, não é, um local qualquer. Era o mais remoto de um território nacional oferecido e não conquistado, e tão longe que apelava ao mito: era como um limbo onde guardávamos a memória de uma outra vida.

Pessanha uniu-nos num longo trajecto onde a sua inigualável fímbria poética foi o centro: a deidade desta marcha é uma rota sagrada. Era por ele que ali estávamos e não o mote para aparecermos, essa singularidade pela consideração devida a tal pessoa que ele foi, é a mais bela homenagem que pode ser feita a todos e a cada um. Pessanha pouco ou nada se dedicou ao arranjo formal da sua obra, onde muitas vezes o ser se sente tolhido face ao conflito permanente entre os seus pares, o carreirismo subjacente ao triunfalismo não era para os seus frágeis ossos, mas nós devemos também corrigir esta noção agora, devemos saber como defender a nossa causa sem as orgulhosas manifestações isolacionistas que muito longe das prerrogativas de um Pessanha são feitas por um memorial de falsas noções dos egos.

Viver em Macau há cem anos devia contudo ter sido lindíssimo, uma outra organização social, menos gente, mais espaço portanto, concubinas belas, casas coloniais, amigos como um Wenceslau de Moraes, ópio em terrinas de porcelana em fogo brando e toda a saudade que hoje não há de uma coisa qualquer. Era o tempo dos Homens. O tempo dos lenços brancos que enxugavam lágrimas até ao dia de se deixar de chorar.

Obrigada Macau. Levei-te no coração.

19 Set 2017

Um vermelho tardio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara Oriente nos fascina a cor vermelha – a sua cor vermelha – tão diferente daquelas que conhecemos, um escarlate sempre rubro no nosso imaginário, talvez no negro a Ocidente se dê este complemento e seja tão intensa esta atração.

Macau! Esta distante terra é como as oferendas que transportamos por méritos, tendo ficado assim como aqueles dons que se presenteiam e nessa transação não entrasse a guerra da conquista pelas coisas, apenas o usufruir de um merecimento. Nela têm desembarcado ilustres seres de uma Nação desavinda com a sua fixação, por ela andaram mergulhados de longos pensamentos que escutámos sempre nela, e, quase seria de esperar que as suas longas formas de praça forte tivessem ao longo de séculos protegido aqueles que o solo natal não acarinhou.

Escutávamos coisas vindas do Oriente como as suas sebes vermelhas, o Mar das Pérolas, o mandarim, e as húmidas e quentes Estações, as influências no duro osso nacional amansavam e dele saiam mais refinadas do que em nenhum outro local.  É por um deles, que agora para lá nos dirigimos, Camilo Pessanha, que se imolou numa nuvem de ópio e paz muito febril e cheio de uma nostalgia assim permaneceu como os mais belos gases que se evolam: todo ele era uma natureza quase gasosa desfazendo-se talvez numa  água, que os dias não precisam do pesado das carnes em locais onde elas pesam mais e os vermelhos não são sanguíneos. É por ele, esquálido e de génio iridescente que nos aglutinamos no extremo do mundo e tomamos como nossas as tempestades nascentes: assim, como um acto de amor inalterado que nos ficou para não esquecermos na voragem dos tempos os nossos melhores.

Pressagiamos a festa, e a volúpia vermelha do Galo de Fogo que tem fustigado a Ocidente as florestas e os dias de Estio feito mais duros, O Galo garboso e belicoso, esse ser da aurora que nos orienta agora na marcha dos sítios onde nasce a Luz, entendemos este Bestiário, e vamos sabendo que ele é muito mais, e cada vez menos, regional. Buda é o reflexo que nos diz que os homens de paz amam os animais, até os Ratos, tendo-lhe dado o primeiro lugar neste podium. Só eles acham encantos a este rastejante sobrevivente do asfalto que se franqueia em todas as marchas por onde Dragões hão-de passar.

Não é um dia como os outros aquele em que a vamos visitar. É assim como uma antevisão de uma vermelha tonalidade que só eles compõem, pois que a arte oriental, chinesa neste caso, deplora a tragédia e, nas suas mais inofensivas fórmulas, trabalha para um decorativo permanente, genuíno e delicado. A caligrafia disso é registo pois que desenhar alfabetos não será exactamente o mesmo que compor siglas. Esta maravilhosa arte do efeito gera em nós hipnose. Nós somos definitivamente e como modelo outros seres que foram felizes na Estética do Feio e se não fôramos mais felizes foi por que não nos deixamos ser por modelo filosófico.

Se Camilo Pessanha não era na índole um ser de natureza feliz foi porque  também o resultado de um país triste de fim de século «dos vencidos da vida», dos seus contemporâneos dos «Só» das negras sombras de Junqueiro, das lágrimas quentes do suicida Antero, da vaga nortada destes trajectos  se fez uma grande experiência de fogo interior. Os saudosistas de coisas outras da filosofia nacional, o momento político talvez vexatório, as amarras da família, a mãe, a namorada, a amiga, os homens. Mas a alma dos poetas são faróis eternos, olham-nos nas vidraças do outro lado do Espelho, e ele sabe que vamos por ele, louvá-lo a ele, por ele percorrer as distâncias.  A sua, nossa, dele Pátria, anda ocupada com tudo que é nada na visão concreta de um descortinar mais poético, que talvez em muitos casos nem saiba já quem ele seja. Ficam assim os redutos e os nichos da memória como canteiros vivos de vermelhas flores.

Dentro de algumas horas estaremos na sua aura calorosa, no seu mundo que para os que agora  a cidade se dirigem nunca fora distante, e nesta enseada nos vamos estreitando, aqueles que estão certos no fabrico dos laços. Os laços de amor tinham-nos sempre os Vice-Reis das Índias, eram formas de representar os tratados e as alianças. Os dedos já não as suportam nem os tempos as sabem usar.

Quando estivermos no Verão asiático o mundo será outro e nem os furacões e as desditas torrenciais nos afastarão esta alegria escarlate que nos corre no peito como um sangue lavado sem mais nada. É o coração que nos guia e assim não haverá tormenta e se cumprirão os pactos.

São os nossos Fados.

4 Set 2017

Intertextualidade e poema

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem se move na esfera do poema sabe o quanto inacabado um verso é. Por isso a vigilância exerce esse poder de síntese tão do gosto do poeta amante da língua, onde só ele mais do que ninguém sabe como transformar: mas quais as metamorfoses e transformação do texto poema?

É nele que a intertextualidade mais faz sentir o texto base desta variante, como um sincretismo que acrescenta particularidades tão ricas na recolha de todos os elementos de uma caracterização. Não esgotamos em nós a fórmula, a língua não é como o sangue, um circuito fechado: é de correntes abertas. Foi no fazer e refazer dos textos sagrados que encontrámos a primeira polifonia linguística, é nela que acrescentamos corpo ao conceito metafísico de Deus. Fizemo-lo pelo Verbo, tanto como ele a nós nos gerou no princípio. Sendo assim, dir-se-ia que desocultámos o humano que somos pelo texto permanente criado e não gerado, pela recriação contínua do que significa no fim de contas – Todos os Textos- um só texto, contínuo, ininterrupto.

Hoje as complexas relações de intertextualidade estendem-se a vários campos criativos, entre os quais os audiovisuais. Há quem, a propósito do tema, fale em «intertexto», pois que todo o texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou por escrever. A presença efectiva de um texto em outro pode ir da citação, à alusão, à menção indirecta, até ao plágio (embora este último não apresente carácter inventivo que acrescente o original). Há em grau a polifonia que ocorre com o texto inserido em outro texto que no poema temos mais presente como uma monofonia, só quando se trata do poema épico se exerce então e brilhantemente o outro anunciado.

Por uma constante leitura de obras paralelas, não raro nos damos conta do que acima foi exposto: que continuamos numa leitura do mesmo texto – hipertexto – com ressonâncias de tempos e espaços que se vão ampliando de forma apaixonante. E passo a citar apenas muito poucos mas significativos exemplos: o poema bíblico do «Livro de Jó» e o poema de Camões «O dia em que nasci», «Sonnets pour Hélène» de Pierre de Ronsard e «When you are old» de Yeats, «Spleen et Idéal» de Baudelaire e «Sacha e o poeta» de Manuel Bandeira, «Soneto amoroso definiendo el amor» de Francisco Quevedo e «Amor é fogo que arde» de Camões. Estes bastam para legendar o título do artigo recorrendo a extractos de todos os poemas.

Manuel Bandeira/ Baudelaire

 Quando o poeta aparece Sacha levanta os olhos claros.

o poeta a seguir diz coisas incríveis…

 Quando, por uma lei das potências supremas

neste mundo aparece o poeta

a mãe ergue os punhos para Deus

que dela se apieda:

  Pierre de Ronsard/ Yeats

 Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle

assise auprés du feu, dévidant et filant…

 Direz chantant mes vers, en vous émerveillant…

 When yoy are old and grey and full of sleep

 and nodding by the fire, take down this book

 And slowly read, and dream of the soft look.(…).

 Quevedo / Camões

… es hielo abrasador/ es fuego helado/ es ferida que duele y no se siente/ es un sonado bien/ un mal presente/es um breve descanso muy cansado .

 

…amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente/ é um contentamento descontente/é dor que desatina sem doer.

 

«O Livro de Jó» / Camões

…então Jó abriu a boca e amaldiçoou o seu nascimento :

Pereça o dia em que nasci/ que esse dia se mude em trevas/ que trevas e obscuridade se apoderem dele/ que eclipses o apavorem/ por que não pereci no seio materno

 

O dia em que nasci morra e pereça/ não o queira jamais o tempo dar/ não torne mais ao mundo, e, se tornar, eclipse nesse passo o Sol padeça. …/ a mãe ao próprio filho não conheça.

 Todas as leituras serão, neste caso, releituras na vertente de construir um hiper-poema que vá definindo, com estruturas de tempos, épocas e autores, a verdadeira marcha do texto que se está fazendo, sempre em aberto, sempre outro e sempre o mesmo. Que os vínculos que professam as correntes também ditam as proximidades e todos os nossos pares são aqueles que connosco constroem um percurso que é o mesmo. Talvez isto explique a cisão da Poesia como arte regeneradora neste momento, dado que as releituras nunca se fazem como um processo contido nos hábitos de ler. Apanhamos a marcha interrompida e avançamos em outro lado como se de uma catedral em pedra se tratasse o grande acórdão de um Poema Final.

“Só uma época avara de originalidade produz tanta coisa em circuito fechado, numa demonstração lasciva das suas próprias vivências”. Só uma arrogância idílica provoca tanto desastre na linguagem escrita. A experiência de cada um não serve uma causa comum, a menos que dela se retire elementos que pertencem a toda a Humanidade e, mesmo assim, terá de o saber dizer com labor formal para produzir uma obra de arte.

Nunca se viu mesmo tanta gente aparentemente unida sem espírito associativo, faculdade reservada aos de boa memória, que a construção do poema não permite que nos esqueçamos do essencial. Precisamos que a palavra volte a ser o elo mais sagrado em certos domínios e dela só se utilize esse essencial que importa. É uma blasfémia não sermos acordados por uma organização perfeita de um discurso belo como é desesperante tanto ruído para nos fazermos entender.

4 Ago 2017

A narrativa do crescimento

“Pinóquio: um livro paralelo”, Giorgio Manganelli, Cavalo de Ferro, 2004. Todas as citações da obra “As aventuras de Pinóquio, história de um boneco”, de Carlo Collodi, foram extraídas da edição portuguesa.

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] preocupação de crescer é subjacente a tudo, já que somos se crescermos, já que se conquista expandido, toda a vida se impulsiona nesse domínio de tal modo acelerado que umas coisas expandem matando hospedeiros de finitudes variáveis que levam no aluvião os vitoriosos com eles.

Se está ordenado para viver, a desordem da expansão é cega e sempre expandido exerce a força contrária. E a morte alarga ainda o mecanismo mas só o da modificação, dado que o tempo se torna não urgente na vaga das transformações. De resto, estamos em aceleração constante na casual forma que nos é dada viver com velocidades tais que nem damos conta do quanto existe em nós de fabulosa urgência. É de tal ordem que até a dor se torna sinónimo de crescimento: não queremos perder nada da sua essência e, por isso, se para tanto passarmos por vicissitudes, elas são fixadas como lutas “crescimentistas”.

Crescer! Eis o slôgane. Multiplicar em abundância, eis a vontade que orienta o organismo vivo, mas, dado que a função não pode pôr em causa a duração, temos mecanismos de defesa como a contenção, a economia do esforço e até a hibernação, que é uma morte terna e faz da permanência um sonho e está unido a uma ordem vital. Não podemos estilhaçar-nos em milhões de átomos inundantes e fecundadores do mundo sem colidir com os milhões de outras vontades, todas voltadas para o mesmo lado: seria insustentável. Por isso e dado o gigantismo de cada ser, existe nele a vontade de resistir a um domínio cósmico que traz certamente de uma qualquer estrela.

Dir-se-ia que mesurar estes aspectos faz o Homem. Sem eles não teríamos chegado até aqui, tantos, e com tantas ideias e tão elaborados. Teríamos sido engolidos pela volúpia da expansão. Esta constante ordem que inscrevemos na defesa do nosso vazio circundante é uma manobra que aprendemos a cultivar, deitar fora o excesso, não nos deixarmos invadir, tomar conta do que restou de uma funda memória que só a quietude pode levar ainda pela mão.

Esvaziarmos os cálices, ficar em sóbrio imobilismo, ter a liberdade de não querer saber, e estarmos a centralizar a esfera que nos foi prometida desde o princípio dos tempos. Mas independentemente disto e a ver pela carga que existe em expandir, há neles, expansionistas, formas terríveis de serem vítimas de encantamentos, pois que eles se esgueiram para todos os lados de onde lhes parece vir a força e, como súbditos de um sol menor, entram em órbitas desgovernadas, que só pode ser o lastro de uma magia aplicada às suas febris e famintas condições.

O mito de Pinóquio é verdadeiramente actual, muito embora o seu autor não o tivesse adocicado como a «Disney» até porque era um homem que não gostava de crianças. Carlo Collodi, nascido em 1826, pessimista, mas um grande pedagogo, não teve tanta energia a fazer crescer, a denunciar a protuberância do apêndice nasal, a procurar o ventre da baleia por antítese à fada azul. Ele foi descrevendo a relação da criatura com o criador e pondo nas personagens femininas arquétipos de forças várias que assomavam ao herói como as aparições. Senhora, menina, irmã…

Pinóquio é aqui uma figura desgovernada criada por uma mente saturnina em busca do seu humano que tarda, uma vez que não se revê em nenhum dos trabalhos da espécie. Há mesmo uma passagem deveras inquietante:

Nesta metrópole da euforia não há alegria (queria ele dizer do crescimento); na verdade tinha escrito matrópole; e não sei se esta cidade é mais notável pela recusa de acesso a todas as mães, ou pela contínua presença negativa; esta cidade esta cheinha de fantasmas de mães. A solidão masculina desvenda a manipulação que se exerce nesta cidade ruidosa, projectada pelo falsificador do mundo.

O herói passa por metamorfoses, sim, mas o mito do crescimento quase se esconde. O aprendizado da dor como manobra de crescimento não tem aqui significado. A sê-lo, será mais por aquilo que vai fazer dele um ente sociabilizado, que é o crescimento das orelhas e do nariz e que embora sem espelho – uma cautela vigilante da providência da Cidade – ele vai buscar uma bacia com água e fica horrorizado e conhece então três sentimentos: dor, foi alvo de violência que o deformou de si; vergonha, pela metamorfose a que dá um significado; e desespero, porque sente o terror de ter ido demasiado longe ao rejeitar o humano. Todos estes apêndices eram à partida elementos harmoniosos. Ele também se censura por ter abandonado a Fada que era para ele uma mãe.

Vemos aqui o quanto andamos à volta do mito do crescimento sem estrutura para nos engradecermos, sair do plano da manobra; observamos como a dureza do pai é um martelo de bigorna na ascensão do filho, oscilamos entre temores de uma Cidade cinzenta em que criamos a imagem e não damos forma à plástica tenacidade da alma. Então ela cresce de descontroladamente, de modo a não ser reconhecida no invólucro. É um longo desenrolar de conceitos quase filosóficos e sem dúvida absolutamente poéticos, nevrálgicos como as auroras que estão sempre do mesmo tamanho em qualquer latitude do mundo.

Se a grandeza de um nariz associada à mentira desse frutos, nós seríamos os grandes herdeiros da falsa questão a ver por onde correram as verdades todas a partir de um ponto tão reduzido, mas que alguns têm tão grande. E que não se pega um ser pelo nariz como não se toca na barba de ninguém. Há subtis intenções que são disfarces pois que subtilmente nos fazem ir até anatomias bem desenvoltas nesta matéria. Podem ter produzido grandes mitos e talvez pais temíveis mas não se lhes nota uma grande ausência de verdade.

Creio por isto tudo e muito mais que a aceleração “crescimentista” possa ser uma super- masculinização do tecido social que se vê impulsionado para a conquista sem freio de quase tudo o que mexe e trespassa de morte organismos e vidas inteiras na mesma escala de valores que faz disparar a sua proliferação em massa. O crescimento conquistado pela perda de vidas é um naufrágio que só a quimera do movimento dá ensejo e encoraja. De resto creio que tudo está bem.

Aquele que acabou de levar a termo uma criação é acusado de ser um torturador, um matador. A acusação é socialmente contraditória, mas filosoficamente não é senão a repetição de uma denúncia de que todos são alvo: aceitou ser pai. Finalmente, por um instante faz-se luz sobre o parentesco entre «crianças» e «bonecos».

Um grande tratado ontológico, portanto. E talvez o momento de nos firmarmos na nova substância em crescimento de uma ideia humana que é um propósito intermédio na longa e ainda crescente marcha da sua transformação.

25 Jul 2017

1888

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á anos especiais e números que se repetem como anunciados. Este oito, três vezes repetido, é uma miríade de números, sem dúvida, mas neste ano a trindade poética nasceu como se fora um octogonal propósito: Pessoa, Ungaretti, Eliot, em locais diferentes; um no Egipto, outro no Missouri e outro em Lisboa, com poucos meses de diferença, Fevereiro, Junho, Setembro, sem qualquer intimidade aparente e até mesmo cultural mas, por uma boa casualidade, fundaram o que de melhor existiu em décadas de poesia.

Os tempos estavam despertos, sim, estavam abolitivos neste final de século com os séculos passados, o tempo corria rasurando muito e inventando mais, os dons eram maiores, as estradas mais sinuosas e plenas de incentivo a uma nova vibração na consciência, bem como no refinar de uma certa sensibilidade. Muitos se atiraram para o futuro de forma brilhante e irromperam pelo vinte e um tirando a modernidade ao moderno vício de ser actual. Quando os perscrutamos ficamos indefesos dentro do casulo lânguido do presente e tentamos inventar um ano como que abrangente onde caibam alguns mais latos para a dianteira do mundo e os nossos cálculos flutuam muito, dado que não repetimos tantos números assim, que têm um lado qualquer onde se suspeita estarem registos maiores do que o anos eles mesmos. Ano do Rato para os chineses que nada conheciam destas andanças da trindade.

Se Eliot achava que o poeta em que se tornara não existiria se tivesse ficado nos Estados Unidos, o mesmo se pode dizer de Pessoa: se a um tempo não tivesse ido para a África do Sul, e Ungaretti nascido no Egipto, não fosse ele filho de italianos, de modo que foi-lhes proveitosa esta deriva por portos onde começaram, sem terem de ficar sujeitos a uma pátria só. Eliot vai para Inglaterra mas em Paris tem os seus anos de amor simbolista pelo seu amado Baudelaire, Pessoa não se sabe ao que veio e desagua numa Lisboa sem Baudelaire e caminha tanto que lhe perdemos os passos, Giuseppe também andou por Paris e colaborou com Giovanni Papinni numa revista, depois, e mais musculado que os seus dois congéneres, parte para as fileiras da Primeira Guerra Mundial.

Haroldo de Campos traduz a sua poesia quando dá aulas mais tarde na Universidade de S.Paulo. De facto, nada há de menos belo no seu percurso literário, ao contrário dos seus momentos políticos, se formos a ver, também Eliot se converte ao cristianismo e Pessoa exerce um pensamento que hoje em alguns momentos teríamos que considerar demasiado conservador. Mas, e mesmo assim, as suas modernidades não são basculhadas na imensa inventividade e no registo de viajantes da bela construção.

Em Alexandria nasce-se talvez mais poético, nos Estados Unidos depende da latitude, em Lisboa, assinala-se esse feito, mas tudo bem interligado forma uma mandala de caracteres geográficos espalhados no ano em que de oitovas se fizeram versos. – Ilumino-me de imenso –

um verso de quatro palavras de Ungaretti, a concisão torna a sua poesia uma preciosa fonte de inspiração, e mesmo Eliot não se inibiu de estudar sânscrito e religiões orientais para retirar dela a previsibilidade no poema. Todos um pouco herméticos ou não fosse a capacidade da vertente poética a verdadeira essência da religião e penso que este aspecto não deverá ser neles jamais uma questão formal, mas sim, estrutural, fazendo parte da raiz que abrange estes destinos.

Não há registo que tivessem escrito cartas uns aos outros, ou mesmo se conheciam a existência uns dos outros, possível que sim, mas, dado as buscas incessantes de cada um nas suas tarefas, onde se poderiam ter encontrado? No céu das suas abundâncias e nas vagas lumes dos patamares da época, Pessoa parecia mais enclausurado, até por que o país dele é mais país para ele quando mais se debruça acerca do seu próprio mito. Um mito que fragiliza e enche de neblina a vida dos seus indagadores. Se Eliot se passeia entre o jardim e o deserto indo buscar a profetas as suas escadas e visões dantescas, fá-lo no enquadramento de uma vida social activa mas sempre um pouco esquiva dado que não lhe agradavam as perguntas devolvendo ao indagador a pergunta intacta, já Ungaretti se esforçava para que um maior número de gente falasse o italiano. Eram três homens estranhos.

Os números para um, a síntese para outro, a imponderabilidade tamanha em outro ainda, a correcta forma de organizar um pensamento sem o entulho gigantesco das línguas… que de números, só Pessoa tinha cincos, e Ungaretti devia ser o oito total dado que também nasceu a oito. Depois, consta-se que Eliot apenas se debruçava mais sobre o profeta Elias que tinha uns números que cabiam na sua articulação verbal. Nós somos vigiados pela narrativa dos poetas e se lhes quisermos sentir o pulso temos de não contar e, sobretudo, nunca contar como foi, dado que não deve ter sido fácil a soma de tal missão mas, há anos, como há tempos, e tempos como homens, em que vemos coisas que nos encantam de tal maneira que pensamos serem do mesmo Ovo Cósmico. Que se desova cá em baixo de forma geométrica, não tanto como as enguias, é certo, mas programados como as estrelas e umas à distância de universos embatem umas nas outras. São nossos pares aqueles que de forma concertada e incógnita giram na mesma luz do impacto e nos deixam a pensar nestas coisas. Que coisas há onde o pensamento não é necessário, e o sentir é só para quem lê, e debaixo de zimbros estamos todos sem noção aparente; regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros… E Ungarretti nos diz:

eis que chega o poeta… desta poesia me resta aquele nada de inexaurível segredo…

Sem mais anos que consintam tanta dádiva acrescentamos datas à vida que dura por tempo incerto e onde muitas vezes nos sentimos tão sós, nós que com tantos, em tanto lado, não seguimos estas rotas, gostaríamos de nascer um dia em 1888. Depois seríamos arquitectos de templos octogonais, todos previstos como pistas de aterragem dos senhores dos céus, e já não havia Capelas Imperfeitas por que o tecto das Catedrais dá sempre para o infinito, não se completam, como não se termina um poema.

18 Jul 2017

Definitivos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] legenda de um tempo pode ser feita a partir dos títulos comerciais para o consumo. Distantes do “marketing ” os anos sessenta e mais além (até mais aquém, no tempo em que os poetas eram óptimos publicitários) foram bastante criativos na sua função de nomear. Tanto que hoje é com espanto que damos por nós a contemplar a estrutura gráfica de embalagens, revistas, objectos e até jornais. Não sei se se vendia muito ou pouco nem mesmo das características e do sucesso dos conteúdos, mas tudo era sem dúvida feito numa escala mais atraente.

Do «Português Suave» aos «Definitivos» os cigarros seriam deste ponto de vista “light”, fortes e normais, o que está muito bem designado pois que cada um procura nas coisas um certo grau de intensidade, já na marca «Coração» – desenferrujador de metais – não vemos grande ligação a não ser o símbolo solar do órgão visado… e, quanto aos metais, desenferruja-os, que os nobres por assim serem, não precisam de tal acção. Coisas tão bonitas com imagens tão refinadas que ficamos a contemplar: senhoras elegantíssimas lavando o chão até ao restaurador «Olex», em que o espanto seria a textura dos cabelos entre povos diferentes.

Víamos isto como se o mundo fosse uma lenda onde todas as coisas estavam ordenadas. Os Piratas que furam as orelhas para verem melhor ao longe, num local preciso do lóbulo da orelha, eram esticados em pastilha elástica, o «Ajax» era um tornado branco a cavalgar entre sebes fazendo de um detergente um antídoto mitológico, a pasta medicinal «Couto» exaltava a dentição africana como se fosse natural andar com cadeiras na boca, as «Sebentas» tão inteligentes e úteis para fazer coisas nem que fosse riscar… era tida também como sinónimo de sujidade aplicada à condição física juvenil caso nos sujássemos todos a comer gelados «Rajá».

Era um mundo assim, eufemístico, que se iria aos poucos endurecendo com o recurso cada vez maior à imagem. A legenda era uma graça que nos entrava pela imaginação adentro e onde cada um completava o artefacto dos conteúdos, não raro tinha o poder de recriar em volta um paraíso. Havia regras a preto e branco, também, aquela placa a dizer« As crianças com menos de oito anos não devem assistir aos nossos programas a partir das vinte e duas horas». Uma secura, sem canção de embalar, uma ordem, sem beijos dentro: mas, não raro, também censurávamos a programação pondo-nos à frente do ecrã que de tão grande e nós tão pequenos deixava ver as bordas dessa intransigente mensagem.

Vamos assim recuperando os nossos sonhos, mas não deixávamos de ser despertos para o estranho mundo que nos envolvia. Hoje, há distância de décadas que parecem séculos, não somos essas pessoas graves urdidas de censuras constantes, pois que guardámos o transitório como se guardam os poemas antigos e não nos fizeram o mal que porventura era suposto ter sido possível fazer: não, não fizeram.

O Verão é assombrosamente nostálgico para estas coisas pois que damos por nós a querer aquelas figuras com cabeças enormes que vinham nos prémios, a pensar em como um chapéu mexicano era o abrigo ideal para se ter uma etnia longínqua, as nossas bicicletas eram supersónicas, e não faltava a irreverência por capítulos de uma « Pipi das Meias Altas» que levantava polícias com as duas mãos e vivia a sós com um cavalo e um macaco dentro de uma casa cheia de dinheiro de um barco naufragado. Eram instituições!

Aos oito anos vimos um senhor num programa que tinha um Ovo e que usávamos como elemento para os fios do pescoço, com olhos boca e cabelo, e esse senhor era Almada Negreiros: muito hirto, com um perfil imponente, sentado ao meio – no meio de tudo – falando monossilabicamente e o tempo parou ao contemplarmos a sua figura, ela está na minha retina como as coisas da revelação. Claro, faltava-nos todo o mecanismo da complexidade móvel dos nossos tempos, mas haverá alguém que tenha detonado pelo órgão da visão, hoje, a mesma carga energética com a intensidade desta aparição? São brasas acesas!

Temos sempre de voltar a ser discípulos, principiantes, de superar os troços dos caminhos e passar a outras transformações, temos toda a rotina e todas as derrotas, e todas as conquistas em forma comprimida, mas, soltamos as vias do percurso quando nos abeiramos da infância onde nenhum sofisma é possível que possa interpretar melhor aquilo que a realidade tão bem conseguiu. Isso, suponho, seja uma grande dádiva. Esse tempo para tudo sem o arrastão demencial da “brincadeira” para adultos que a todo o momento nos querem impingir para sermos mais felizes: ninguém tem nada a ver com a nossa felicidade!

Nem queremos receitas para tais estados de espírito, sentimo-nos insultados e até desconsiderados como pessoas com tanto receituário. Embora possa não parecer, nós somos de um tempo civilizado. Hoje olham-nos com a desconfiança de que olham para tudo, de soslaio e com o criticismo massivo que revela doença interpretativa, mas é natural, estamos ausentes das receitas e somos só a cobaia por onde os testes passam indiferenciadamente. Mas atrás de nós ainda há deuses, e falam forças, e estão em sentido muitas coisas que nem sabemos que as herdámos. Não viemos ocupar o maravilhoso «Homem Novo» a partir de um cromagnon ignoto que na ideia se instalou. Não, nós somos de facto de um mundo que, embora não acreditado, era à sua maneira civilizado.

Certamente mais pobres, mas hoje também somos tão pobres que andamos disfarçados de ricos. A felicidade que nos querem dar não se aplica em nenhuma dimensão da vida quando a vivemos por dentro. Parece que continuamos com os mesmos enigmas disfarçados e aplicamos defesas em coisas já em si tão sitiadas… cercamo-nos de um vínculo de comportamentos externos para não termos que estar todos os dias a inventar a vida, mas seria bom inventá-la mais dado que a norma é incrivelmente parasitária. Vamos a mais locais e países porventura, mas somos turistas que é tudo quanto há de mais triste. A ir que seja para dentro dos locais e povos, de modo, a sentirmos a mesma experiência diante de um Almada de quando fôramos crianças, que seja a revelação vestida em nós, que estejamos tão dentro e perto que esqueçamos a linha divisória entre estar e visitar.

Acabou tudo como sempre acabou: os mais velhos morreram, nós ficámos, os lutos são posições espaciais e não uma paragem no tempo da dor, dado que nos querem fazer acreditar que ao não existir não devemos ter intervalos para ela e que todos, numa cripta incinerada, ainda damos matéria para um elemento que poderemos utilizar ao peito e matéria para estátuas. Não longe estamos do nazismo higiénico das cinzas, mas nós que labutámos para que nada disso voltasse a acontecer, de forma cega utilizamos os moldes que nos servem a medida de uma felicidade nunca antes conquistada. O paradoxo é o acaso mais conseguido e nem sempre estamos disponíveis para continuar sem as devidas rectificações. Numericamente gravados, somos um Holocausto predestinado à fúria das convenções onde a norma é aplicada sem retaliação: afinal, tal como os primeiros da saga, não sabemos exactamente para onde vamos. Só quando fecharem a luz e os gases começarem a inundar os espaços, teremos quietos a resposta.

Definitivo é este século todo de correntezas imprevistas e súbitos acontecimentos que nos deixam a fumar água pelas narinas… Sabe-se lá se os cigarros são líquidos! Daquelas lindas embalagens guardamos os rótulos como de poemas se tratassem e somos seguidos pelos fumos sombrios de um planeta voluntariosamente ígneo, mas também glacial. Numa demonstração definitiva de que não só tudo mudou como aos poucos se tornará impróprio como habitação de todos.

Por isso seria bom avançar rápido com as novas formas de êxodo galáctico na medida em que definitivamente se irá tornar um planeta radical.

Tudo vai, tudo volta, tortuosos são os caminhos da eternidade…

14 Jul 2017

Como água que corre

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m longo manto de Estio se precipita e não somos contemplados com as noites macias da Estação. Há na atmosfera muita fuligem que nos toma e dissecamos os instantes, não em beijos mas em torrentes de azáfamas que estão mais quentes que os combustos incêndios. Não nos permitimos correr como os rios e os tempos não são a foz das águas com caudais transparentes: por todo o lado soam avisos e para os mitigar prosseguimos como se os eles fossem os ecos de eflúvios sem sentido, nós que suados transitamos de queda em queda com formatos de guindastes e erguidos só nas intenções que gostaríamos de ver realizadas.

Nenhum poeta, nenhum artista, detém sozinho o seu completo significado e tudo o que herda é de árduo labor. Porém, se aciona o fluxo das formas onde deslizam as suas fontes e enigmas mais profundos, há sim uma água que corre numa imensa dádiva tangente à dança. São orquestrações que nem de falta de som padecem. Há sempre melodia entre os sinais e sinalizar as coisas é comprometê-las com os seus pares que se transformam em outro corpo de ser, uma unidade para o efeito comum que não dispensa a parte de cada um numa manobra de simpatias que provoca a completude. Saber ir para a região que está jorrando, e nas quedas de água nos banharmos, é mais natural que estar atento a esta dimensão tão redutora de muitos sem uma voz comum de entendimento, este lastro de músculo tolhido pela formatura das pragas do entendimento estreito que lhes parece global numa máquina louca de produzir efeitos.

Depois de destilados os líquidos e alguns nobres metais eles são imiscíveis mesmo tentando tocar-se, podem sim, estar lado a lado com um muro de separação qual fio de prumo que os ajuda a identificar, e lá se vai a doce visão da amálgama que tentamos saciar pelos outros, em outrem, para nos diluirmos, mas, sabemos que a partir de certas composições também nós nos separamos para sempre. Esse intransponível condão é tão extensível que vivemos dele e mesmo que queiramos interromper o fluxo da sua inexorável lei, não há forma de a contornar. O equilíbrio de forças contrastantes gera não raro um estado de beleza mas toda e qualquer permanência torna-se inadequada , se a natureza não suporta o vazio muito menos suporta a desarmonia de um estar continuado.

Não endereçamos a vida a ninguém, não há nenhum receptor à nossa espera, nós somos os emissores constantes desse emissário do Deus desconhecido que se vai recriando em cada um de acordo com a sua consciência, por vezes, escutamos a sua voz, noutras, ela se silencia e cala, apenas a sua lembrança gera o movimento de prosseguir ditando alguns sinceros sinais de uma ininterrupta interrogação e vontade de fazer. Se não obscurecermos nas actividades da vida, talvez haja no fim a revelação procurada mas não discutida como finalidade, e de todas as buscas, se nos ficar só uma surpreendente verdade, todo o esforço parece então ter sido ganho.

O mundo não é, ao contrário deste coro em rede, uma acção forçosamente política. Aliás, é matéria que interessa muito a inertes, demagogos, ociosos e populações a retalho nas suas pequenas hierarquias de grupo. O mundo, não é isso, este barulho, estas realidades, estas preocupações generalistas dos hiperinformados que em manobras diletantes são aspirados também eles pela malha esganada dos sugadores do fluxo.

O mundo não é isso, nem matéria jurídica embrulhada em gordura legislativa para em esteiras de má conduta todos andarem ditando setenças. Há comportamentos dados pela civilidade que não necessitam do crivo legalista, eles são da ordem natural dos civilizados, e ao fazer-se um pequeno país de juristas, quer ele dizer, o pequeno Estado, que a sobredosagem nestas coisas é agora o que sobrara da opinativa forma do denunciador, regedor e delator das cidades.

Perderam-se sem dúvida muitas funções que fazem das sociedades unidades harmónicas, o dom das coisas eternas deixou de funcionar e o efémero é tudo – até cada um de nós – não nos foi dado desenvolver recursos que são dádivas na formação do pensamento e um mundo desorientado e sôfrego se encaminha já cego para um estertor que ele próprio não conseguiu prever.

Onde deixaram os sonhos, onde lhes faltou adquirir a dobra que faz a curva mais suave antes dos estrondos e das formas de ruína? É uma jangada à deriva, mais triste que a da orfandade daqueles que passam os mares, mas se lhes dissermos de coisas outras eles não querem, eles são quem tem as soluções, eles sabem tudo daquilo que agora já não interessa. São gentes de Estação. Finda a época eles passam como espectros sem que tenhamos deles mais lembranças, mas ainda, e sempre melhor, sem que tenhamos tido remorsos por sordidamente lhes termos infligindo algum dano. Eles desconfiam de tudo, desconfiam uns dos outros, são predadores à solta e não têm nada agora que lhes saiba verdadeiramente ao sabor sadio de uma bela e sacrificial presa. As presas prendem-nos, ficam na jaula de uma condição tão desgraçada que de os ver, a vida se encaminha quase em surdina para outros locais.

Das gerações precedentes não há que tomar legado, quem se abstiver de tais fidelidades cercar-se-á de outro tónus e marchará na impertinência do tempo com toda a sua novidade que será sempre melhor que qualquer repetição. Heraclito diria isto na sua frase de sábio que é a riqueza que fica.

11 Jul 2017

Livre Pauvre – Livre Riche

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] manuscrito, que tanto saiu de moda nas lides da escrita, tem ainda pelo mundo alguns amantes que em colecções de muita beleza e criatividade unem não só a arte da caligrafia como expressão visual identitária de cada um, bem como nela inserem a pintura e o desenho numa orquestração de Livro de Horas. Falo de uma criação que há muito galgou o espaço da sua origem e tem unido poetas e pintores pelo mundo « Livre Pauvre-Livre Riche», criado por Daniel Leuwers, professor de literatura na universidade de Tours, crítico literário e especialista de Rimbaud.

Um livro que em si resume a natureza principal que o objecto designa, neste caso, um texto, sempre acompanhado de uma composição pictórica que releva para a sua primeira essência : sendo de uma extrema humildade, pois que não passa pelos circuitos editoriais, impressão, distribuição e outros, é no entanto o mais luxuoso objecto livresco dadas a sua raridade e composição e foi por isso assim apelidado por causa da não confrontação com o circuito económico. Por outro lado, a primeira colecção foi apresentada no priorado de Saint-Cosme, situado em La Riche, onde Pierre de Ronsard viveu os seus últimos vinte anos. O poeta, que era dado à botânica e cultivou rosas, não foi esquecido neste emblemático título.

É um projecto que começou por volta do ano dois mil com um vasto roteiro de correspondência pelo mundo e onde todos se foram agrupando de forma criativa, consensual, rica, em relação a projectos e aberturas de múltiplas formas. Há colecções belíssimas, desde a Gallimard às autarquias por onde passaram algumas das suas exposições de exemplares únicos em várias línguas e formatos, sem dúvida uma Babel multicultural repleta de cor e grafismos raros. Foi por aqui que conheci o poeta sírio-libanês, Adonis, outros da Martinica e argelinos, um mundo onde a política não toca, mas onde os poetas têm o dever de se comprometer na luta pelo bem dos povos sem resvalarem na forma agreste dos comentaristas, um mundo quase belo num desastre ambientalista de ideologias e esquemas internacionalmente enfadonhos, esses, sim, pobres, muito pobres.

Teve contudo este projecto o chamado projecto-mãe: a colecção « Vice Versa» com os seus delfins e grandes adeptos do livro de artista como Jacques Dupin, Bernard Noel, Jean-Luc Parant e Yves Bonnefoy, que se associou ao pintor Gérard Titus-Carmel, consagrando apaixonantes estudos. Quase que estamos numa emanação desse Livro de Horas na pista do duque de Berry, mas esta colecção galgou as fronteiras da poesia e foi extensível a Michel Tournier, Fernando Arrabal, Jean-Marie Laclavetine e outros, e se nos remetermos à ideia de Jean Cocteau para quem tudo era poesia: poesia do romance, poesia do teatro… poesia da poesia, então, estamos na presença de um grande e imenso tratado poético.

E continua a sua marcha com outra das colecções «Les amoureux solaires», a colecção «Pli», em dois mil e três e que vai em definitivo encontrar a simplicidade de uma folha de papel, anotando a expressão de Mallarmé na sua nomeação, é uma colecção da francofonia pelo mundo; colecção « Éventail», com o poeta vietnamita Nguyen Chi Trung, um iminente calígrafo que nesta colecção se apresenta como escriba. Depois, Portugal- Brasil, onde venho com Victor Belém numa Lua-Nova que no dizer do autor é aquela que irradia no mundo, vem o poeta Ernesto Melo e Castro que gentilmente convidei via Leuwers num Fractal-Vento , Roberval Pereyr (quatro rotas de solidão), António Brasileiro com pintura de Juraci Dórea.

Das Américas vêm também outros nomes como a jovem poeta colombiana Andrea Cote e do Quebéc Rocher des Roches e Jacques Rancourt. Há depois toda uma parte dedicada aos poetas helvéticos e seus pintores, um mundo de imensa perfusão e quase constelar. Em dois mil e quatro aparece « Feuillets entre-bâillés » que tanto entusiasmou os pintores sempre mais sensíveis ao formato da visualidade. Há um lado de «Caligramas» nesta colecção com a arte alfabética como base da expressão. « Feuillet d’album» a mais simples das colecções que são quase pequenos haikus em folhas minúsculas , poetas tunisinos e belgas numa manifesta noção de economia verbal, Alexandre Voisard, Fernando Arrabal. Segue-se «Billet» que recebe o primeiro livro em língua alemã e o primeiro livro em língua árabe de Moncef Mezghanni. E a aventura continua.

Uma bela colecção de dois mil e dezasseis «Entre Alfa e Omega», uma leitura Apocalíptica publicada em Angers do «Livre Pauvre» foi doada à Biblioteca Municipal que dela fez uma exposição com um livro-catálogo de rara beleza.

É, sem dúvida, emblemática toda esta natureza da escrita e da sua complementar amiga, a pintura, poetas e pintores foram sempre próximos, e não raro se estimularam mutuamente para a realização das suas obras, e este imenso lastro de beleza relacional não raro me recorda os tempos em que se estava junto com todos, fazendo-nos mais completos e solidários, onde ainda não havia vedetas, nem cismas, ostracizados, que inundou de modo vário o presente em que vivemos.

Parecendo tudo mais fácil, creio que é bem mais difícil formar com os da nossa natureza um mundo melhor. Dispersos os ossos como na «Quarta-feira de cinzas» quem voltará a juntá-los? Por outro lado, falta uma vocação nova ao país para certas coisas que o dinheiro pareceu amordaçar e a soberba contaminou. Estamos esquartejados uns para cada lado fazendo dos dedos a vocação que ainda não findou. Mas, se não fosse o mundo, que estaríamos também nós a fazer aqui tão dentro de casa? Nada. Com o que sabemos e podemos não tinham nada para nós. Mesmo assim, vamos deixando pedaços que o país guardará mais tarde como presentes indispensáveis e para os quais não soube ou mesmo se dignou olhar.

O luxo estará hoje naquilo que é essencial e bom. Todos parecemos fatigados do forte entulho descritivo que conseguiu eludir o mundo de falsos saberes. Regressar “à La Pauvreté”. O país e a língua portuguesa continuarão a ter assento aqui se o desejarem e se para tanto o louvor de cada um não achar esta gesta um serviço menor. Nestas coisas devemos ser como os amantes: amar e não fazer perguntas, o resultado da confiança é sempre um alto instante poético. E resulta bem quando o espaço é alargado e cada um ressalva a sua memória e a sua cultura.

É muito bom ele existir. É urgente que exista.

6 Jul 2017

A ressurreição da rosa

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz a lenda que rosas nascidas no Inverno são prenúncio de mau agouro. Talvez por isso a exclamação do rei não tenha sido de desconfiança mas de receio, de súbita apreensão, nesta altura ainda ele plantava uma nação feita de baldios por todas as áreas recentemente conquistadas e a cavalo conhecia bem o país e dele tirava amplas vantagens de generosos acolhimentos. As rosas são comestíveis e não há mesmo sinal de mesquinhez por parte de tão gentil rei.

Distantes andamos contudo desses tempos mas, neste tão lustroso em que temos a maior honra de viver, outrora como agora tive a mesma interrogação em pleno Inverno: rosas em Janeiro? Mudei logo e pensei: o mundo é um grande país e as rosas florescem em qualquer Estação, os anos são convenções de medida para o Tempo – o nosso tempo Alfa, do mandatário, do coronário, dos órgãos gigantes em pequenos tufos de carne e esqueleto que já sabe que vamos morrer ou somos mortais por eles, por causa deles, e que seria bom para já uma Humanidade a pilhas, mudadas a cada Glaciar. A terna noção de “estufa” foi rompida como sabem. Hoje a temperatura, as condições, são fórmulas absolutamente radicais, neve-fogo, ventos-calmarias, abrasa-gela… Um pontapé sem precedentes na nossa secular vida bucólica dos queridos tempos de antanho.

Penso que o local que se mantém muito igual a si mesmo desde o tempo em que Deus lá nasceu é mesmo o deserto, tendo levado, claro está, o rombo da gigantesca pegada, mas mais em altura do que em largura… a sua robustez pode ainda ser considerada como a manutenção de uma ordem e por ela nasce o ser eterno que é a Rosa de Jericó.

Ela, porém, não é a rosa efémera procurando o instante, a colorida e elegante menina dos olhos em botão, a enjeitada; ela é a eterna, a robusta, a densa, a mais complexa, a vertiginosa evidência de que tocamos numa outra “plantação”. Ela tem o dom de fechar, secar e morrer, e mesmo nas escaldantes areias se lhe tocamos morta, ela está fria não passando de uma ressequida imagem de um esqueleto, mas podemos voltar e ela já não estar por lá, levada pelos ventos. Sem dúvida, foi-se para ressuscitar mais para além.

Ao primeiro dia ela rola, ao segundo sai do sepulcro e ao terceiro torna-se verde. Esta rosa não é unida à Estação. Assim, basta-lhe condições propícias da ordem dos bons ventos e de contacto imediato com pequenas concentrações de água, para o sucedido. Por aqui as rosas já tinham de novo nascido na estação delas, mas as do Inverno estavam intactas na sua lei fatal, não querendo falar na estrutura linguística das “inverdades” como sinal abrupto de Leviatã, nem em “inveracidades” da ordem do probabilístico, pois está provado que o que está certo são sempre as contas pequenas.

Sabemos, no entanto, que na catástrofe só enumeramos números grandes, a rapidez é grandiosa e quase sempre rica em génio arrasador, pois que “tomar gosto a” não é um efeito fúria mesmo que se possa ser viciado em desportos radicais “tomar gosto” é uma educação pelo gosto, onde há pilares de benfeitoria que atenuam o risco do impacto. Dir-se-ia que é um aprendizado de amor, se os instintos e a sensibilidade são espontâneos, naturais, por vezes deliciosamente fortes e até brutais, épicos, já o amor fica longe de tudo isto e por ser tão diferente é preciosa uma educação de forma a não corromper a sua designação.

E no distrito do rei das rosas passou um fogo devorador, anunciado já pelas minhas próprias rosas, que forças desceriam na equação simples de um numeral consequente na ordem da manifestação de três para três. É aqui que perdemos o livre arbítrio e jamais na terra de ninguém onde toda a razão nos pertence – pensei muito no rei – no rei das rosas que semeou pinhais e namorou gentilmente por ali e fez sementeiras de filhos, que namorava em nichos escondidos nas florestas. Se lhe ardesse o seu pinhal que ele não viu crescer à distância de cem anos, se não foi excessivo visionarismo, se o visse arder em sonhos, se os sonhos ardem… enfim, pensei nele como nas rosas para não ter a doente propagação de um coro de outros condenados.

A rosa é ,no entanto, «sem porquê»… a rosa é sem porquê: floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos. Ângelus Silesius, na sua bem conhecida obra de aforismos, qual novo florilégio, o jansenista teólogo que no instante das grandes lutas religiosas se manteve em relativa paz com os luteranos da sua cidade – ele o era de origem -, teve esta metáfora fundadora da Rosa como místico e como teólogo. Os dísticos são belos e descrevem uma profunda raiz do pensamento Ocidental como síntese de uma abordagem.

Tanto de ressequido tem a terra que habitamos que mesmo agora gostaríamos de dizer como Silesius : “Gosto de ouvir as trombetas. O meu corpo, ao seu clamor, de sob a terra despertará e voltará a ser meu“. A Rosa de Jericó! Ouve-se cantar pela zona do impacto melodias nada agrárias que o dinheiro que salva é o mesmo que mata e o dinheiro arde se for todo em papel e não houver mais rosas, nem ouro que o funda numa outra riqueza que também já não vem nos mapas pois que foi ele o cúmplice e combustível por onde a fornalha se agiganta.

“ Amigo, onde quer que estejas, não te deixes lá ficar, é preciso incessantemente partir de luz em luz.”

Os que partiram já não estão aqui, como é óbvio, os que ficaram estão no mesmo sítio onde a luz não penetra por entre a negra folhagem, não há comunicação alquímica com a haste, aquele segredo que lhe diz.. .cresce, cresce… preside ao estrondo o ruído, aceleram-se os requerimentos, armazenam-se mantimentos. Investiga-se quem tem o desplante na imprensa estrangeira inventar boatos falsos acerca da orquestração territorial, e, amealham-se víveres que bem poderão servir para outra imponderabilidade.

Faltam duas. Isto se não nascerem mais rosas em Janeiro.

3 Jul 2017

O senhor sete

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] chegado o momento em que teremos de ir buscar autores por gerações esquecidos, concluída a inércia do fulgor literário a partir de distúrbios disfuncionais da componente da leitura que tem ficado em jazidas, passado o impacto da novidade e, talvez, da deslocação linguística que não ajudou a modelar a capacidade inventiva da língua como uma ferramenta de transformação, tão pouco como código de uma herança vasta e simbólica: esquecidas as fontes, os rios secam.

Desarticuladas andam as funções entre leitura e narração, como se houvesse um hiato intransponível entre fenómenos complementares, esquecendo o poder encantatório da linguagem no desenvolvimento de um cérebro saudável. A língua é uma cifra onde todos querem algemar sentimentos e sensações, pequenos conhecimentos na cadeia do aprendido, respostas, e quase nenhuma indagação, nenhuma outra ilusão que a transponha – que sensações e sentimentos não devem interessar a não ser quando produzidos por fértil capacidade de junção das partes dissonantes – ou seja, se dentro de quem sente estiver uma grande capacidade onírica de despertar.

Trindade Coelho é o senhor do título acima mencionado. E que título é este? Ele advém de um estudo que o autor se deu a coligir da tradição portuguesa, é uma interpretação da arte contística e fruto do seu estudo etnográfico. Autor do século dezanove abrangido ainda pelo período Romântico é talvez o mais emblemático dos seus representantes, andou pelo país recolhendo dele a lenda e o sonho, amante por esta sua corrente da cultura popular nas suas formas mais remotas que passam necessariamente por poemas, provérbios, rezas, superstições, contos orais; aqui se dignifica a capacidade da linguagem enquanto material que ajuda ao espaço onírico que tanto agora nos falha.

Será impossível fazer-se um ordenamento do território, seja ele qual for, se não tivermos presentes certas coisas a ele integrado, como e onde se produziram os sonhos, os mitos, as correntezas que desaguaram naquilo e não noutra coisa; preciso será entender essa linha de terra que nos passa em toda a superfície e mais fundo no chão. O que acontece é que exauridos os laços com a forma e a terra governada sem lembranças, ordenamento e território são funções tão cegas como desordenamento e não espaço. Daí que, não havendo plano, não há leitura. Em boa medida, digamos que, um bom Plano Nacional para a Leitura poderia travar os fogos! Mas um plano que não fosse ele mesmo tão inclinado.

— Sim, as gerações descarnadas dos seus autores, neste caso, um republicano, romântico e maçon, também, religiosidade de madrigal, as gerações assim impedidas de aceder a tais riquezas não poderão ir ordenar coisa nenhuma, muito menos um território. —

Há caminhos tão fantásticos nestas transmissões que longe andam dos asfaltos de alamedas de árvores sombrias que se deslocam em todas as direcções que vão dar a locais onde nem queríamos passar… caminhos de Santiago, que romar é ir até cumprir o sonho da viagem. Não se pode exigir que sirvam um país quando não lhes servimos a memória e se, como sentinelas os mais frágeis ficam nas terras quais sonhos esquecidos, não saberemos entender as suas lágrimas nem a desolação que se lhes abate de formas surpreendentes quando as duras provas irrompem.

Os grandes dons quando não exercitados transferem-se para outros, como os que têm “incendiado” a Nação: a inveja destilada em paranóia, a megalomania demencial, a usura, e assim se avança como nos guindastes até o céu num movimento quase perfeito nos atirar dele abaixo, exactamente no solo que plantámos.

« Onde a crónica se cala e a tradição não fala antes quero uma página inteira de pontinhos ou toda branca ou toda preta….do que uma só linha de invenção de croniqueiro….» Garrett.

Seguramente que este número não é em vão, sete é todo o imaginário, a tradição, a configuração de um tempo interior que nos fala – o número mágico – também há o «Senhor Teste» de Valéry» e os «Sete Cantos Iluminados» de Blake. Uma mistura que daria « Os sete iluminados senhores». Iluminados senhores, nem que seja por um raio, dado que a crescente cavalgada de calor não parece alumiar os cérebros, nem tirar deles a devida claridade para uma coordenada iluminação. Estamos em terreiro sem memória, com sombras escuras e com saudades dos antigos carvalhos por onde nesta noite e neste dia (21 de Junho) algures, cantavam os celtas do território, ainda não ordenado, as suas lendas. E outros! Estamos sem borboletas, e joaninhas, e andorinhas, e raposas, e lebres e linces. Calcinados de vazio.

Trindade Coelho escrevia para jornais. A sua imensa dimensão do espaço, onde havia um território ainda em folha vegetal, exaltava nas mentes desejos verdes, mas verdes na folha de jornais brancos e pretos que não eram menos verdes que as suas terras transmontanas. Foi deliciosamente espirituoso no uso dos dialectos, semeou oráculos e hoje creio que ninguém está apetrechado para uma sinalética que impeça os desastres – nós somos construtores de desastres – que nem disso já tem firme noção: há até frases mágicas exercitadas por mulheres das serranias que possuíam ( imaginem só a força da palavra) o poder de mudar os ventos, amainar tormentas, fecundar os solos.

Dito assim é tudo lenda, mas lido de outra maneira é a única forma de voltarmos à terra. Se não quisermos, ela também não há-de querer: nós só queremos a quem nos quer e a terra até ver é de dura cerviz no que respeita à infidelidade dos hóspedes. A mesma negligência dos homens para com as mulheres reflecte-se na terra. E estranho é o uso de contemplação face a duros carrascos de uma mesma natureza. Quase não parece, está tudo muito decorado, muito pleno de coisas artificiais, mas não, não nos deixemos enganar: há dolo e não há «plano» de leitura e de território.

Será bom voltar a desocultar o que está oculto e ler o que não foi lido ao invés de plantar desordenadamente o “eucalipto” do intelecto que alastra com a mesma ignição. Deus também será, e é, em última instância tal como foi no princípio. Sempre. « Um fogo devorador».

Os contos de tradição oral são aqui os mais relevantes e alguns já tinham sido publicados na Tribuna em 1899 em versão mais arcaica , menos literária, dando assim a entender que compunha os próprios textos para edição final.

….. subir ao sétimo céu é, pois, alçapremar-se uma pessoa num grande gozo, subir lá por essas esferas, até à sétima, que deve corresponder no sistema de Ptolomeu , ao Empíreo, ou ao lugar dos Bem-aventurados!

In – O Senhor Sete.

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,

Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo!

Camões.

29 Jun 2017

Todos os dias o medo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] nosso quotidiano não disfarça ainda a nossa perplexidade perante o efeito do desastre e suas leis que devem ser muito precisas e por isso de infalibilidade revestidas: comovem-nos sempre como se não pertencessem por inerência a todo este propósito. O impacto dele nos é dado nos dias que vivemos e nem por isso nos insensibiliza cada vez que um acontece, como se estivéssemos em pleno cenário de guerra com lesões do funcionamento neuronal. Há gente que cai aleatoriamente enquanto passa por locais onde todos acabámos de passar, mares de azul lindíssimo feitos mortalhas, edifícios em chamas trespassados por máquinas voadoras, sangue em todas as arenas. Noite após dia, dia após noite, olhamos incrédulos, sempre, para o último amontoado de escombros como se um frémito violento nos levantasse das nossas calmas funções.

O longo caminho da História deu-nos terreiros e hortos para a compenetração formal da morte que vinha como inimiga a combater: tinha trombetas, frases mágicas, líderes que a encabeçavam, como se de um compromisso se tratasse. Isto embora saibamos que, por onde passassem estes guerreiros, as populações nem sempre estavam a salvo: a guerra obedecia a um plano, havendo mesmo datas combinadas com o inimigo para exercitá-la, mas a nossa realidade, de contingências feitas, não nos dá segurança nenhuma nestas coisas e tudo o que existe à vista é uma guerra contínua e disparatada, feita de picaretas e outros utensílios que nos rebentam nas mãos. Com choques, afrontas, colapsos, amálgamas de cimento e sangue, de luz e treva, que é de arrepiar as nossas reservas de coragem.

Nós, cuja liberdade nos fora consagrada como um registo pessoal, temos por isso toda a legitimidade de nos alhearmos e vivermos os dias à nossa maneira, transcritos à nossa realidade. Cada ser pode firmar para si um isolamento saudável como partícula de sobrevivência e, até chegar a esse globalizante desastre, nada entretanto aconteceu. Mas isto, que parece a melhor das aptidões do instante, tira-nos a perspectiva da ocasião e do momento histórico que nos foi dado viver – para viver – por vezes há que desviver devagarinho…

A realidade, essa, será sempre esse ponto de partida por onde nos é dado então regular o que queremos esteja inscrito nos acontecimentos não permitindo o acto invasivo do mundo se aproximar de nós.

Ao iniciarmos os dias, não devemos começá-los por notícias e visões esmagadoras: a nossa força vacila e a nossa coragem esmorece, a esperança ofusca-se, o diálogo embarga-se, os olhos ficam grandes de espanto perante imagens tão sobrenaturais… existe um imediato reflexo de insustentável pavor e, até nos colocarmos na marcha da lucidez necessária, temos de ir deixando passar as horas.

Nós sofremos quando vimos os outros em dor. Nada daquilo é gratuito e apenas informativo, existirá sempre um fio condutor que nos liga aos outros no instante em que padecem, e tantos, e tão continuamente, gera a mais preocupante prostração. O facto de irmos antecipando a nossa defesa nestas coisas, promove uma vantagem contra o meio ambiente, que é o de haver pessoas saudáveis quando for preciso a sua imediata intervenção. Nota-se muito a desarticulação das fontes de salvamento, o titubear dos que podem e não sabem… da avalanche quase demencial deste cenário.

O medo aproxima-se de nós também como um amigo, pois que nos insufla de consciência, mas andar aterrorizado sem saber atrai o caos e a vida começa a ser um jogo diário onde não vemos o propósito maior que é o estar vivo para além dos nossos medos. Claro, esquecemos, temos de ir, de fazer, de continuar dentro de nós; no entanto, não sabemos bem como avançar de forma precisa, a nossa mente está em alerta, o nosso cérebro tem hoje, talvez, possíveis ligamentos em áreas que lhes estavam reservadas para funções que não se parecem com estas.

Toda a nossa antecipação na arbitrariedade da vida nos deixa inquietos na busca de a vivermos sem que saibamos dirigir o desígnio do viver. As coisas vão baixando como as pragas e se a economia nos secou a visão onírica, hoje estamos “salpicados” de sangue que nos dias corre no seio da União. Desconfiamos de todos, claro está, quem são os que nos matam? Serão quem se diz? Ou somos já nós a fazer esse projecto para adicionar interesses que fingem ser incólumes? Vamos vendo à medida que os sinais se propagam… vendo coisas novas que não estavam lá, e sabemos do medo imenso que é o da loucura mais grosseira nos ter possuído.

De quem, afinal, não devemos ter medo, quando nos dizem para não ter? Que calma querem que tenhamos no meio de tais acontecimentos e quem nos educa para a abulia total de sermos os espectadores de coisas tais? Que confiança, em que liberdade, em que maravilhoso sistema desejam que acreditemos? Desculpar-me-ão mas eu não acredito nele. Pois que tenho medo e sei o que significa chegar aqui de olhos abertos a ver todas estas impensáveis realidades que nem dela fugindo estamos a salvo. Construímos por ócio todos os fantasmas e tecemos a malvadez como um plano bastante inclinado mas deveras excitante, e, enquanto ele vogava na sétima arte, e na ficção, eram nossas todas as perversões da alma, já danada, de tanta felicidade, agora, eles mesmos, os espectros se tornaram tão autónomos como nós, e agora, somos nós e eles, de corpo presente a constatar a nossa mais medonha obra. Concomitante a toda a nossa realidade, seja ela resguardada, ou mantida em dose máxima de informação, há outras realidades que se passeiam, tão reais quanto estas. E dessas não temos memória, e estamos a construir espaço para a podermos abarcar, pois que nem em sonhos e visionarismos se teria previsto tanto! Como não ser a realidade uma esfera à parte, até da nossa capacidade de mediúnicos informadores?!

Nestes quotidianos, assim vamos vivendo como se de um cadáver nos estivéssemos alimentando, tornámo-nos necrófilos sociais, para não se desaparecer de vez e nos levarem as doces bactérias que restam à ameaçante guerra de neutrões que nos há-de suportar lavados de dissolventes naturais. E se as bombas não chegarem a Nova Iorque, vão chegar a outro local, que Nova Iorque é agora uma metáfora de Babel . E se os nossos filhos morrerem a percorrer o mundo, que tão generosamente lhes insuflámos na mente como lugar extraordinário, que mesmo assim não tenhamos medo das nossas lágrimas e saibamos com dignidade ir abrindo espaço à gravidade desta situação social.

Vivemos ameaçados, com cortes, com despejos, com ofensas, com desconsiderações tais que dava para nos atordoarmos de espanto até ao fim dos nossos dias, e agora mais esta terrível realidade de grupo que queremos contornar com uma compostura mumificante e nos trespassa a noite como um raio impúdico e imprudente. Sair disto sem feridas é impossível, nós estamos mais ou menos já em chaga, mas, talvez ainda se consiga uma certa nobreza que fará sempre parte de uma saudosa Humanidade sonhada. Nós, que inventámos o sonho e fizemos da vida uma obra de Arte ( os que a fizeram), não devemos acabar assim. O mundo é o cenário de um grande dramaturgo poético, um mundo em que o criador está presente em toda a parte, e em toda a parte oculto.

26 Jun 2017