Arcas

 

São um simulacro recente as paredes com orifícios para arrumação que define o nosso «modi operandi» logístico; nada que nos faça já recordar qualquer modalidade de emparedamento: as paredes não ouvem mas muitas falam quando existem demolições e sismos, isto para não abarcar ainda os tectos falsos, os soalhos tapados, toda uma arquitectura de construção acumuladora de coisas que deviam pela sua natureza não ser reveladas.

Por isso e ao longo do tempo usámo-las para agrupar elementos, sempre com ferrolhos, fechaduras, como de um cofre se tratasse. Elas eram uma espécie de condomínio fechado tanto pela magnitude das suas proporções como pela sigilosa presença dos seus conteúdos, não havendo habitação que não as tivesse para usos vários que ninguém obviamente ousava indagar. A sua remoção era difícil mas tinha a particularidade de não serem anexos e não estarem escondidas. Esta forma de “arcar” era para os antigos escravos que as moviam com o peso dos seus interiores constituindo assim uma particularidade móvel.

E, voltando a algumas, a mais recente e impressionável será mesmo a Arca de Fernando Pessoa, cujas dimensões reduzidas conseguiu englobar a mais vasta obra da poesia portuguesa e páginas inteiras do mais soberbo ensaio. As Arcas têm fundos, não são objectos que simulem apenas uma aparência, e quem anda de um local para outro leva a sua Arca de forma inteira, nem que tenha de deixar as outras peças soltas nos exíguos lugares por onde passa.

Uma espécie de outra Arca, a da Aliança, pois ambas continham apenas palavras: uma, o decálogo, a outra – muitas outras – de versos, eram depósitos de palavras de Deus dado que os poetas são receptáculos também dessa voz e não raro vejo-o a acompanhar a sua Arca como o rei David num contentamento estonteante que no nosso poeta era coisa rara. David dançava enquanto ela se movia; Pessoa pensava enquanto ela se mudava mas a beleza era mesmo por que não estavam fixas.

E se uma era constantemente preenchida já a outra transportando em pedra a palavra, preenchia os requisitos imutáveis de uma Arca que não se expande. Pessoa deixou bem clara a definição entre Mala e Arca ao analisar Nossa Senhora no seu «Guardador de Rebanhos», que pastores eram estas gentes todas. Claro que em ambos os casos estamos distantes das belas ânforas de bondade uterina. Aqui, entre o que se traz e o que guarda, vai uma longa fila de sucessivos revezes femininos. O feminino tende a juntar muita coisa em espaços fechados – coisas de natureza vária – o que faz que se podendo ser apenas uma mala, não haja tal incómodo, mesmo assim vociferam as línguas que lá também cabe tudo.

Mas a Arca onde coube mesmo quase tudo e não era de todo uma Mala, foi a Arca de Noé! Todos sabemos que as diversas alterações climáticas do planeta deram movimentos às águas sempre que a Terra mudava ligeiramente de eixo. Falam-nos disso todas as Civilizações e uma das mais belas constatações é sem dúvida o poema épico da Mesopotâmia «Gilgamesh», a primeira das obras literárias mundiais e que nos dá conta exactamente de um dilúvio, obra esta que tanto influenciou o Gênesis. Hoje esta Arca está no monte Ararat, a de Fernando Pessoa foi vendida e está no Brasil, e a da Aliança crê-se que se encontra debaixo do que é agora o Domo da Rocha o edifício mais sagrado do Islão. Há salteadores para as «Arcas Perdidas», há iniciativas prestes a saírem do seu conforto para as contemplar, fazem-se réplicas, pergunta-se pelas madeiras, mas só as Arcas reencontradas saberão transmitir-nos o segredo das suas funções. A do poeta saiu da sua terra, a da Aliança, está por assim dizer em terreiro inimigo, a outra descansa em ruína entre o Irão e a Turquia. Para réplica temos a «Nau Catrineta», que devia ser um sinal à “navegação” para não fazer esquecer a importância das Arcas. Tal era a semelhança entre a tripulação, que ambas soletravam para mim, algures, a mesma história. – Uma história de encantar!

Hoje ouvimos falar em Arcas, mas só as frigoríficas, que é uma adjetivação que tem como fim conservar: mas conservar o quê? Coisas que se estragam. Ora nas Arcas não há decomposição, elas serviam mesmo de grandes salgadeiras, mas o interior delas desvaneceu-se para o frio glacial onde a leitura está rutelada, indicando apenas a espécie dos elementos. E são feias, abrasivas, temíveis, quem se adentra numa dessas industriais pode ficar morto e hirto. Funcionam por electricidade, se ela faltar, uma Arca destas é um depósito de coisas que apodrece, é uma barriga de aluguer para o monstro voraz insaciado que é o consumo, são enfim, a mais degenerativa forma de as nomearmos. Não nos lembramos destas coisas porque “arcamos” com as forças temíveis do grande entulho mundial, nem nos fixamos na desmesura destes imensos objectos, nem consta que tenhamos já Arcas em nossas casas, mas elas foram as componentes mais respeitáveis não só do mobiliário como dos grandes arquétipos Humanos.

Hoje guardamos o seu imenso fascínio no nosso imaginário e se as tivermos sabemos como são singulares as suas presenças e como elas contam todas uma história, que começou por um sonho como os antigos enxovais, ao proteger folhas e folhas de papel, de pedras, e de caravanas de animais de várias espécies. As Arcas são ainda uma aliança e todas são sem dúvida – Arcas da Aliança – entre o fazedor e a sua obra, arcar sempre com o peso da responsabilidade movida quando nelas depositamos tantos sonhos. E alguma coisa ficou da mobilidade deste trajecto no «Papamobile» que é uma espécie de trono andante muito semelhante à velha Arca.

Arcas, também foi algures um deus que governou a Arcádia, emocionamo-nos perante os «Pastores da Arcádia», a bela obra de Poussin que reflecte tanta coisa… a decifração das palavras tumulares… o prodigioso momento de reflexão das personagens… Esta era ainda a cidade da Idade do Ouro, o mais emblemático mito utópico. «Arcas Encoiradas», um grande romance de Aquilino Ribeiro. «Ouvi contar que outrora», de Ricardo Reis, ardiam casas, saqueadas eram as arcas/ e as paredes/.

Caminhemos nestas coisas.

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