Do amigo e do amado

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a Terra era maior e os homens mais pequenos por uma proporcionalidade de escalas o amor também perfilhava do mistério insondável da demanda do saber, vivendo-se na ilusão expansionista de uma Boa-Nova e tecendo-se histórias que levadas de um local para outro começavam a denotar um carácter de lenda, na distante Idade Média fundara-se o estatuto do romeiro e do eremita que tanto oravam a santos como a poetas  na linhagem da herança do Império do Al-Andaluz. Do amor nos chega ainda aqui os mais belos ecos e formas de louvor- amor cortês, amor amigo, amor paixão, amor sacral- que traziam para o terreiro dos dias a mais fina interpretação das coisas do Verbo.  Sem dúvida que falamos de outra Humanidade, de outras agentes, de outras demandas e estruturas, onde o casamento ainda era instituição insipiente e a família um laço alargado de Unanimidade. Morria-se muito mais….morria-se ao nascer, morria-se ao amar, morria-se pela terra…. e esta constante presença parecia limar o tecido do amor de forma redentora, e por isso também os reis eram amantes, compiladores de Cantigas, bastardos e legítimos, um laço de uma mesma árvore que brotava sem severas separações… o tempo posterior foi cerrando este respirar até ao estertor  do amor tabu que é onde estamos mais ou menos agora, mas o amor existe tal como as visitações e tem leis que tendemos a esquecer e merecimentos que não vemos,  muito ao estilo de Yourcenar quando afirma  ” não ser amado é tornarmo-nos invisíveis” .

Sabemos das leis da opacidade, mas desconhecemos as outras, numa vaga de sucessivos impulsos procuramos na nossa já quase invisibilidade um ponto de retorno à oração, ao desvendar de nós pelo outro, mas que outro que não há, e nos torna mais em nada? Sabemos lá no fundo que os amantes são a grande proposta de redenção, uma espécie de elemento predestinado sem noção de mudança ou separação, que são férteis, indivisos, poderosos, não expostos aos abrigos das traições sendo quase sempre uma natureza outra fora do ciclo das coisas transformáveis. A sua legenda era, seria, aquilo em que não deveríamos falhar, e foi por ela, afinal, que o erro se instalou.

Ramom Lull foi um prodigioso homem do seu tempo  (século XIII) aquele que fora apelidado como o criador da língua catalã, foi simultaneamente um teólogo, um poeta, um cientista, um místico e um homem da retórica, pois que tempo era que nada estava separado e da sua vasta obra talvez o «Livro do amigo e do amado»  nos devolva quase intacto o tempo em que viveu; fala-nos ele de um eremita que depois do Sol posto ficava em oração até ao primeiro sono, que se levantava pela meia-noite abrindo a cela a fim de contemplar  as estrelas e com oblatas se alimentava da sua ideia de Deus, é um tipo de vida da qual nada sabemos nem  os verdadeiros estados de espírito de quem toma por cada verso do « Livro das Contemplações» a chave do enleio dos dias, pois que esta obra de Lull é uma osmose entre a receptividade e a fé, esse elemento de amor que reflecte o princípio criador. O interlocutor melhorado é esse amado ser, ressonância talvez do seu alter ego que lhe fala da totalidade, da maravilha, é o outro, aquele ” a quem serve o vencedor” e mais tarde é Juan de La Cruz que o vem reabilitar na sua incomparável poesia de inviolável amor na «Noite escura» e« Cântico espiritual»  uma exegese, um ritmo, um anunciado….

São assuntos extensos e porventura intensos para uma abordagem só, mas neles se reflecte toda uma noção poetizante  do «pactum» da alma com a sua natureza, natureza essa que se perdeu na imensa selva do poeta das árvores sem raízes e dos sentidos sem disciplina, não sendo de prever mais que a morte desta arte que mais que exercício de escrita continha a noção de Humanidade, de ciclo criador, e nós, que distantes ficámos, estamos talvez como nunca no mais misterioso de todos os Invernos poéticos, porém, sem a sua existência teríamos perecido e nem aqui teríamos chegado.

Não devem no entanto abeirarem-se as gentes destes oficiantes com suas “botas cardadas” e ilusões vãs, pois não sabendo de quem se trata, pode a vida acordá-los de formas várias e nem sempre as melhores, vezes sem conta numa incontável falta de tacto de que dão provas: mau e bom, perdem aqui aquela moral tão cara ao código primitivo das suas fontes, e só o amor, que não sabem,  parece por fim misteriosamente intrigar neste mensageiro. Sem esta rara estranheza- pensam elas- que o mundo se equilibrava em si mesmo- mas não- pois que há leis que podem fazer compensar as falhas e as tormentas, e como taumaturgos cada um é uma fonte de equilíbrio que  impede que os elementos destruam ainda mais a “casa” dos Homens.

-Adoeceu o amigo e pensava o amado: de méritos o alimentava e com amor lhe saciava a sede, em paciência o abrigava de humildade e vestia com a verdade que curava.-

….e esta dialéctica do outro em permanência só uma delicada presença pode saciar.

         – Libertou amado o amor e permitiu que as gentes tomassem dele a sua vontade; e só encontrou amor aquele que o pôs no seu coração. E por isso chorou o amigo e teve tristeza da desonra que o amor recebia aqui em baixo por causa de falsos amantes.-

Toda a construção enaltece aqui a linguagem dos amantes numa quase unanimidade e concordância. Foi desenvolvido o hábito quase litúrgico da inspiração nestes tempos idos, e por isso, também o Cavaleiro honrava a sua Dama, a Dama defendia o Cavaleiro, e de todas as fontes a que abençoa mais é sem dúvida aquela que nos inspira. Por isso a ordem era Amar.

Aqui me lembro das velhas obras esquecidas como «Os Cavaleiros do Amor» de Sampaio Bruno que perto estão deste mito amoroso, e, quando descidos dos nossos cavalos, vemos a blasfémia do amor reduzido a insidiosa interpretação apetece morrer de amor por algo de irrevelado e do tamanho deste livro.

       -Desejava o amigo solidão e foi viver completamente só para que tivesse a companhia do seu amado com o qual está só entre as gentes-

  Os amantes estão sós no mundo.

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