A diáspora dos nossos dias

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ragmentam-se as sociedades, os tempos correm num equilíbrio de forças, a distribuição das riquezas é desmesuradamente instável, os impérios findam, outros nascem…. e sempre as populações do mundo andaram móveis nestes corredores da História. Fazer da Diáspora uma condição foi uma prática litúrgica do judaísmo que, várias vezes expulso da sua terra, andou pelo Mundo, e ainda mais atrás por questões de fome partiu para o Egipto. Não é apanágio de um Povo tal condição, mas que foi levada a uma imensa esteira de consequências culturais, isso, sem dúvida. Mesmo Jesus fala nela eufemisticamente e do seu Reino fora deste mundo. Dir-se-ia que o conceito é mito, mais para além do territorial e nos apela para outras “terras” onde esta é apenas Viagem.
Na bagagem levaram os Hebreus o seu Sião e nas noites Babilónicas ali o choraram como filhos sem mãe, nos longos séculos pelo mundo diziam: até para o ano em Jerusalém. Por isso, e pela escassez do território, aquilo não é apenas uma questão de sobrevivência, mas sim um amor atávico, feito por uma ordem aglomeradora que a memória não quis que se extinguisse. Um para lá das necessidades fala aos Povos das suas pátrias afundadas, uma força estranha que nos questiona: afinal o que são e para que servem os territórios? Ainda hoje os Gatos, oriundos de África se deleitam no calor torrencial como se fossem cobras ao sol… eles recordam-se do solo original depois de caídos os Impérios, refeitas as pragas, cruzando-se mais a Norte, eles, os dos telhados, ditos «Europeus» procuram como as árvores chegar ao céu onde os aguarda ainda aquele sol.
Como é que a máxima experiência da mente se conjuga com tais ditames ancestrais é um maravilhamento: Heidegger afirmou — O poeta quer dizer: onde deve medrar uma obra humana verdadeiramente alegre e salutar, o Homem tem de poder brotar das profundezas do solo natal, elevando-se em direcção ao Éter. Éter significa: o ar livre das alturas do céu, a esfera aberta do espírito. Sim! Nós as plantas carnívoras temos raízes que são tanto mais fundas quanto fundas são as vastas memórias. Esta infinita consciência deve estar em todos como preceito terreno. Não digo que sejamos daqui, todos de aqui, há seres mais terrenos que outros, para quem as leis se aplicam como compósitos de vida a qualquer custo e o mimetismo transmite o dom da sobrevivência, mas falo daqueles que não tendo “gérmen” terrestre querem da sua terra uma reposição cósmica mais alargada. Existe sempre e para além do mais, o pensamento que calcula e a reflexão.
Estamos em pleno século vinte e um, e o grupo das pessoas que se movem, é de facto quase uma experiência bíblica; assistimos a uma “transumância ” sem Pastor na deriva dos Continentes que nos deixa entreaberta a porta da delinquência e do desespero das debandadas. Talvez se fuja já a uma antiga consciência gasta… a um findar de códigos… a uma usurpação do melhor da memória. Foge-se para qualquer lado com a esperança de renascer num outro, leva-se de nós, ou eleva-se de nós um grito qualquer, a Terra é estreita, e a nossa, aquela que o outro nos tira, afinal não está em lado nenhum.
O território é a base da organização social, fez parte das Guerras, desse definir de fronteiras, do que pode e não o outro em território estrangeiro. As nossas casas são pequenos países onde quem entra passa a ter as nossas regras, mesmo como exilados, sem abrigos, e coisas desventuradas que vamos ajudando mas sem nunca perdermos o ordenamento do nosso próprio território. Os tempos ditam-nos essa consciência de que temos de ajudar! Que não podemos permitir que os seres caiam na rua, esse território de ninguém, onde habitam os espectros. Eles também nos ajudam em tarefas que até aí não fazíamos tão bem. Mas, este mas aqui é enfático, como viver-se na proximidade física, na intimidade permanente, na partilha de coisas que eram apenas nossas? Um outro ordenamento mental se tem de se estabelecer, ou então, entramos em ruptura, o mesmo que dizer, em guerra. Vasco de Lima Couto (acho que estamos num tempo que já nem sabe quem é) dizia: preciso de espaço para ser feliz, e outro para ser raiz.
Esta imensa noção poética do espaço é uma harmonia universal que não se coaduna com as homilias morais das Nações, estas andam a contramão daquilo que define as grandes Leis, são formas morais que estabelecemos para conseguirmos viver em grupo, mas, que activam a via de um demonismo que não faz brilhante o Homem. Se é certo que as trocas nos enriquecem, não é garantido que a prática de vida múltipla nos faça melhorados. Precisamos sempre de espaço para ver o outro, não como um adoptado, mas, enquanto um ente que nos olha e olhamos. Tudo junto é um processo acéfalo.
O desconhecimento profundo que os Povos parecem ter uns dos outros e a maneira como se integram faz prever o pior. É nestas “barafundas” que aparecem os grandes algozes, movidos de forças higienistas tão do agrado dos tempos modernos. Antídotos radicais que matam os que não têm a força de saberem o seu lugar nos organismos. Estamos a viver mais ou menos isto, de forma informe, tresloucada, de denominador comum.
A consciência procura o Homem, mas se não lhe damos ouvidos, ela se separa irremediavelmente ficando um charco perdido, nós, no meio das estrelas. E se a alimentação, a ginástica, as dietas e os “regimes” nos fazem viver mais anos, temos de começar a saber também para quê, para que estamos vivos. A vida é uma medida que não interessa só como hedonismo ou força de hábito, ela, serve sem dúvida um propósito que se não for maior a desprestigia como fim em si.
Alvoradas houve muitas e nenhuma combateu ainda esta ignóbil condição de nos machucarmos de forma impensável, se não for para sair da Roda, para que nos serve a Inteligência, a conquista e tudo o que nos ronda? Levemos a memória do Amor nestas grandes diásporas e já vamos com a bagagem cheia e fértil. Guarde cada um para si a sua” chama” porque, e rematando com os poetas «uma chama não chama a mesma chama há uma outra chama que se chama em cada chama que chama pela chama que a chama no chamar se incendeia».

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