Gomes Leal

[dropcap style≠‘circle’]F[/dropcap]ernando Pessoa foi um dos discípulos mais atentos deste precursor do Modernismo Português, e para tanto contribuiu também a prática ocultista que no seu rasto foi analisada por ele como um espelho de sucessões ditadas pela mão de um destino comum. Pessoa interroga-se na sequência da sua própria obra se não seria um seu sucedâneo directo pois que ambos os mapas das respectivas cartas astrais denotavam semelhanças extraordinárias; ambos nascidos em Junho ( Leal, em 1848, quarenta anos antes, precisamente) mas com todos os planetas nas mesmas casas o que para ele era o resultado da evidência de uma missão que não devia ser interrompida. Neste tempo era normal uma associação visceral entre pares, e este em particular pois que fora o das grandes abordagens científicas, psíquicas, esotéricas, numa proporção nunca vista onde todos debatiam apaixonadamente áreas que hoje praticamente desconsideramos ou foram banidas. Gomes Leal era um místico, um poeta Decadentista e Simbolista, mas ao contrário de uma negação que ultimasse o Nada, ele foi ascensional na sua grande permanência a favor da imortalidade da alma. Era o espelho invertido do «Corvo» e foi ele que anunciaria a sua morte.

Impregnado da corrente Romântica, o fantástico fora-lhe no entanto mais íntimo do que a parte lúgubre que a caracterizara em fim de trajecto, e dela pareceu exercitar um puro acto amoroso de conhecimento hermético: esta era a sua participação enquanto sensibilidade autónoma mas atenta ao discurso da sua época, é uma cultura literária muito bem analisada na obra “Le temps des prophètes”, um tempo banhado por uma fascinante intervenção do poder espiritual mas incorporado pela força cívica nas suas mais profundas manifestações. Gomes Leal chegou a ser um homem bastante maltratado pela vida, e para se estar de pé diante de um destino é sem dúvida necessário uma imensa reserva de energia luminosa para não sucumbir (…). Pessoa tudo olhou e analisou com a inteligência de um mago que se curva duas vezes a uma certa dor no rito da própria orientação. Leal chamaria a isto “os sublimes acordes da alma com as coisas”.

No seu conhecido poema que lhe é dedicado está presente o grande obreiro trágico, Saturno. É dele que se fala quando o poema irrompe, é afinal a marca, o distintivo, a grande alavanca que agarra em cada frase toda a semelhança sem contudo desocultar a que lhe está subjacente, Pessoa tem sempre o cuidado de se dirigir a ele através de si, sem mencionar o seu próprio eu, talvez aquilo a que geralmente se enuncie como o tal “eu poético”… –Sangra, sinistro, a alguns o astro baço/ seus três anéis irreversíveis são/ a desgraça, a tristeza/ a solidão…./ oito luas fatais fitam no espaço/ Este poeta, Apolo em seu regaço/ a Saturno entregou/ a plúmbea mão lhe ergueu ao alto o aflito coração.-

Seguindo a trajectória sabemos que a verossimilhança entre os aspectos estava enaltecida e, ao abordar uma, era a outra que interpretava. O astro baço é afinal o regente da acção e sem a corrente que une a sua subliminar leitura cairíamos numa casualística desdita que é o movimento dos desventurados sem causa nem – Lar – comum.

É bom voltar a eles quando todas as perguntas se desfazem e todos os registos avançam para respostas semelhantes na grande escala no espectro das Nações. Quando já levemente caídos de uma fé que julgáramos inabalável, eles nos aparecem, somos de novo nascidos, estamos de novo no local certo para entender a jornada. Creio mesmo que na cena internacional da época, e em linha directa com um Nerval, Edgar Poe, eles – e este em concreto – traz à luz dos resultados uma outra consciência que infelizmente não deixámos que se manifestasse com o devido reconhecimento. É que para lá do peso do astro baço há ainda um aspecto absolutamente redentor, quase enaltecido, uma esperança que afasta a negritude das trevas do fim. Esta metamorfose da anima é muito interessante na composição literária da estrutura nacional: vai-se, sim, em nevoeiro – muito – o fantasma em nós é sempre branco, do negro só a «Mulher de Luto» esse imenso poema que transluz de negritude e subitamente se ilumina de algo a que a natureza e a estrutura do poema não sabe fixar. Em certos instantes vemos o grande amigo de Pessoa a irromper, Aleister Crowley, no panteístico verso vinte e quatro, uma trança de influências surge, em que as magias, Negra e Branca, quase se confundem pela proximidade, quem escutou Crowley, sabe que a arte mágica do verbo é tão poderosa como um relâmpago na face. Depois, toda a temática até ao vale do adeus que afinal era uma brincadeira numa Lisboa cinzenta e paralisada. Leal já não estava, mas falava ainda na voz de Pessoa ao seu interlocutor.

No fundo é comparar os nossos Pãs, fazer-lhes as homenagens, tentar dissertar no meio do deserto uma tese que confunda os princípios, que os transforme e nos devolva inteiros aquilo que é melhorado em cada homem. Pessoa não foi tão arrojado como Leal, aí, o astro baço estava mais sombrio, ele não queria uma certa mistura com esse folguedo beduíno e panteísta dos seus pares: purismos!! Estas obras todas agora dormem: Eros e Psique, buscamos quem dorme e nos sonha tão tranquilos como a um corpo único, salvífico, ressuscitado.

Grata aos Mestres.

 

Depois deixem-se só- Espraio o olhar e cismo:

– Eis-me no antro enfim da bela feiticeira!

– Eis-me neste palácio, este enigma, este

Abismo!

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