Fernando Pessoa | Tradução para chinês de “Livro do Desassossego” à venda

O Instituto Cultural publicou a tradução para chinês tradicional do clássico de Fernando Pessoa “Livro do Desassossego”, que esteve a cargo do veterano Zhang Weimin, que há 35 anos traduzira “Antologia de Fernando Pessoa”. A obra encontra-se à venda na livraria online do Instituto Cultural

 

O Instituto Cultural (IC) juntou-se à Jiangsu Phoenix Literature and Art Publishing, para publicar a tradução em chinês tradicional do “Livro do Desassossego”, a colecção de manuscritos escritos pelo poeta português Fernando Pessoa sob o heterónimo Bernardo Soares.

A publicação do enigmático e fragmentado livro de Pessoa é integrado na “Colecção de Literatura Chinesa e Portuguesa” e encontra-se à venda na livraria online do Instituto Cultural por 100 patacas.

O IC salienta que a publicação tem como objectivo “promover o intercâmbio literário chinês e português e apresentar obras portuguesas célebres aos leitores chineses”.

A versão chinesa publicada pelo IC é da responsabilidade do veterano tradutor Zhang Weimin, premiado pela Sociedade de Língua Portuguesa, que em 1988 foi o autor da edição bilingue de uma “Antologia de Fernando Pessoa”, também lançada pelo IC.

A tradução para chinês da obra pessoana está intimamente ligada a Macau, com a primeira versão, incompleta, de “A Mensagem” da autoria do macaense Luís Gonzaga Gomes. A publicação da obra em chinês foi uma forma de assinalar o 24.º aniversário da morte do poeta e divulgar aos alunos do liceu onde Gonzaga Gomes era professor. A tiragem foi de quinhentos exemplares, dos quais trinta em edição de luxo.

Posteriormente, por altura do quinquagésimo aniversário da morte de Fernando Pessoa, e com o patrocínio do IC, foi publicada a “Antologia Poética de Fernando Pessoa”, resultado da colaboração de Jin Guo Ping e do macaense Gonçalo Xavier (na altura estudante na Universidade de Pequim), e a versão integral de “A Mensagem” em chinês, de autoria de Jin Guo Ping.

 

Só no mundo

O “Livro do Desassossego” é uma obra fragmentada apresentada pelo autor como uma autobiografia pouco factual, e que foi deixada inacabada e sem edição. O próprio arranjo e organização do livro tem sido motivo de debate desde a primeira publicação em português, corria o ano de 1982.

A componente heterodoxa de “Livro do Desassossego” permite estabelecer uma relação de intimidade com o leitor, a quem é concedida a entrada na vida do autor ao longo dos mais de quatrocentos fragmentos de prosa escritos entre 1913 e 1934, um ano antes da morte do poeta.

A propósito da nova publicação em chinês tradicional, o IC descreve Fernando Pessoa como “um escritor e poeta famoso português” e sublinha o carácter multifacetado da obra. “O ‘Livro do Desassossego’ inclui uma nova apresentação dos extensos manuscritos do escritor numa rica variedade de formas e estilos, abrangendo diários, ensaios e artigos. Explorando temas que incluem filosofia, estética, psicologia e sociedade, estas obras retratam os costumes de Portugal e, particularmente, de Lisboa, em que cada secção constitui um capítulo independente transmitindo visões instigantes”, descreve o organismo liderado por Deland Leong Wai Man.

 

A alma nas letras

A tradução em chinês tradicional deste livro constitui o oitavo volume da Colecção de Literatura Chinesa e Portuguesa. “Dedicada a reunir uma série de livros sobre literatura de Macau ou relacionada com o tema, de escritores chineses e portugueses, a Colecção de Literatura Chinesa e Portuguesa pretende que tanto autores como leitores ultrapassem as barreiras linguísticas, reconhecendo a essência e os diversos estilos da criação literária chinesa e portuguesa nas obras traduzidas para a língua chinesa ou qualquer outra língua”, refere o IC.

A colecção inclui obras como “100 Sonetos de Luís Vaz de Camões”, a versão em português de “Almas Transviadas”, da autoria do escritor local Tang Hio Kueng, a versão bilingue em chinês e português de “Amores do Céu e da Terra, Contos de Macau” da escritora de Macau Ling Leng, “Poemas de Du Fu” e “Contos Selecionados de Eça de Queiroz” numa edição bilingue, em português e chinês.

O IC indica ainda que tem descontos especiais para grandes volumes de compras do livro. Os leitores locais podem levantar as encomendas pessoalmente em qualquer uma das 13 bibliotecas públicas do IC (na Península de Macau, na Taipa ou em Coloane), e os leitores não locais poderão solicitar a entrega das encomendas através do Serviço EMS dos Serviços de Correios e Telecomunicações de Macau.

28 Fev 2024

Fernando Pessoa | Publicada primeira antologia organizada por Casais Monteiro

Fernando Pessoa nunca teve “o imediato como valor de expressão poética”, afirma o escritor e ensaísta Adolfo Casais Monteiro, na introdução à antologia do autor de “Mensagem”, uma edição pioneira que organizou e que é publicada na próxima quarta-feira.

Para o poeta, tradutor, professor, crítico e ensaísta Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), um dos primeiros investigadores a ousar “a construção de um percurso reflexivo” sobre a obra pessoana, Fernando Pessoa é “um dos quatro maiores” da poesia portuguesa, ao lado de Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes e Antero de Quental.

Na antologia “Poesia de Fernando Pessoa”, que organizou na década de 1950, uma das primeiras dedicadas ao poeta, e para a qual escreveu a introdução, Casais Monteiro afirma que “nem por sombras” pretende “‘explicar’ a poesia” do criador de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, referindo a sua obra como ”um produto de cultura, uma dessas obras cujas raízes vão buscar o mínimo de sangue que lhes é necessário a uma tradição literária”.

O “segredo” do poeta Pessoa “é que ele transforma, diga-se assim, em emoções os seus pensamentos”, “sensibilizou o cerebral, deu raízes de existência ao absoluto”, escreve o autor de “Canto da Nossa Agonia” sobre o criador de “Chuva Oblíqua”.

A antologia, publicada sob a chancela da Editorial Presença, conta mais de 30 poemas de Pessoa, incluindo dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Casais Monteiro defende uma absoluta unidade na obra de Fernando Pessoa, mesmo tendo em conta os seus heterónimos.

16 Ago 2022

A Lição do Diabo

«A musica, o luar e os sonhos são as minhas armas magicas. Mas por musica não deve entender-se só aquella que se toca, se não também aquella que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve suppor que se falla só do que vem da lua e faz as arvores grandes perfis; ha outro luar, que o mesmo sol não exclue, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturaes e nossos.
– Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo?
– É que o sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou idéa, e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a materia, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?».
Eis o que disse o Diabo à desprevenida Mãe em A Hora do Diabo, de Fernando Pessoa.
Fico semanas a matutar na natureza dos sonhos em Pessoa – ‘só os sonhos são sempre o que são’ parece-me uma hipótese acabrunhante -, até que, ao navegar na Net, na leitura avulsa de uma longa entrevista com Jean Borella, vejo explícito o que me parecia útil traduzir nestas formulações do Diabo:
« …numa aula, ao ouvir uma explicação sobre a chôra do Timeu – termo que designa a substância protoplásmica universal, esse “quid” de que todas as coisas são feitas, o ‘receptáculo cósmico’ – compreendi então, tanto quanto é possível, o mistério a que a Índía chama Prakriti – princípio cosmológico análogo à matéria prima – , e, por extensão, o mistério metafísico da divina Mâyâ. Esta intuição livrou-me do encadeamento dos conceitos porque me colocou face a face com um ‘pensamento pensante’ que supera largamente a experiência do ’pensamento pensado’. Porque os conceitos transportam-nos aos objectos, cristalizam neles. Mas a chôra, a matéria-prima, não é um objecto determinado (- advertindo de antemão que esta matéria não se assemelha ao puro nada). Ela é, independente do modo, a condição de possibilidade de todo o objecto, o receptáculo onde se podem moldar/ aparecer todos os objectos, a matriz universal pela qual todos os seres podem ser concebidos. Ao intuir isto, por abandono das coagulações conceptuais e da ordem necessária que as encadeia uma nas outras, descobri o pensamento como actividade pensante. Sem dúvida que, a partir daí, como todo o homem, estava condicionado a continuar a pensar por conceitos, mas percebia gratamente um espaço supra-conceptual onde a inteligência podia verdadeiramente respirar: do mesmo modo que um homem para caminhar tem necessidade das suas pernas mas a quem só o olhar mergulha na luz inteligível.»
Recordemos agora como o Diabo detalhou a coisa: «O sonho é uma acção que se tornou idéa, e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a materia, que é o estar no espaço», e demos por certo que, depois de uma breve soneca em Pessoa, o Diabo espertou nas páginas de A Gravidade e a Graça, onde Simone Weil, lhe ouviu o ditado e redigiu:
«Participamos da criação do mundo decriando-nos a nós mesmos (tendo Weil, na página anterior definido deste modo o acto de decriação:«transformar o criado no incriado»)». A decriação opera a reviravolta, a inversão das hierarquias e a re-conversão do espaço em tempo, do agido em emoção, da semente em ascensão, da categoria em devir: e assim se converte em acção a ideia.
E como é que o sonho conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria?
Aqui a lição teremos de ir buscá-la ao Oriente. Os chineses, como os hindus e os japoneses, postulam a existência de uma energia constituinte de tudo o que existe no mundo físico. Os hindus chamam-lhe kundalini ou prana, os japoneses ki, os chineses chi. É uma vibração emanada por todas as coisas e seres mas não é algo que se represente e para a captar há que penetrar para lá dos aspectos superficiais e ser-se, por sua vez, possuído por esse ritmo vital do espírito. Não há observação do fenómeno exterior à implicação do observador.
Também os andaluzes têm um nome para esta energia, chamam duende a esse ritmo vital do espírito.
Já o escrevi, às vezes, a dar aulas, quando engreno, sinto o duende. Que um fio discursivo se solta e se conduz a si mesmo, usando-me como veículo de um fluxo discursivo que ultrapassa em muito os meus limites expressivos.
Para o Oriente não existem seres ou situações claramente delimitáveis, mas sim um processo de convergências e jogos de forças que vão variando de intensidade e cujas interacções potenciam a mutação de todas as coisas, sejam seres ou situações.
É essa tensão, metamórfica, de uma energia em processo (o mundo composto de mudança de Héraclito e Camões) que conserva a força do mundo enquanto lhe repudia a matéria, a identidade pré-determinada e cristalizada em objecto.
É esta a lição do Diabo, em Pessoa.

30 Dez 2021

Pessoa, o Oriente e a Sociedade Teosófica

A palavra de ordem dos românticos alemães: “É no Oriente que devemos procurar o romantismo supremo” (F. Schlegel). Mas nunca conseguimos sair do plano das representações. Seria preciso esperar pelas vagas de emigração de proveniência dos países do mundo árabe e da Ásia, a partir dos anos 60, na Europa, e em Portugal nos anos 90, para termos acesso não a textos sufocados por traduções, mas a pessoas reais, com práticas e contextos reais. Mas já de antes o Oriente do budismo, do Hinduísmo, numa espiritualidade muito diluída e mal traduzida, exerciam um verdadeiro fascínio na Europa, ainda que sempre separado e alheio do contexto religioso, social, doutrinal em que nasceram. Acresce a isto o Esoterismo, que tantas vezes se misturou com muitas destas tradições, mas que tem uma linha europeia própria: tradição hermética, alquímica, maçónica, cabala, simbolismo cristão.

Um dos movimentos que mais fama teve, e logo na segunda metade do século XIX, foi a Sociedade Teosófica, cuja principal força motriz foi fazer essa ponte entre Ocidente e Oriente, daí o seu resultado textual ser fortemente orientalizado. Esse movimento propôs uma fortíssima e sincera revalorização das espiritualidades orientais. Com efeito, a fase madura da doutrina de Helena Blavatsky (1831-1891) foi influenciada pelo Hinduísmo e, mais tarde, pelo Budismo, sobretudo depois da sua viagem à Índia, em 1878, que deu origem à esmagadora obra em seis volumes A Doutrina Secreta (1888). É de notar que, instalada na Índia desde 1883, a Sociedade deu apoio ao combate anti-colonial contra os ingleses.

Fernando Pessoa descobriu a Teosofia em 1915, tendo traduzido para Português várias obras teosóficas como a da Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky, datada de 1916. Mas a sua relação com o movimento e com a Sociedade não ultrapassa o papel de estudioso e tradutor, nem consta que tenha sido filiado. De qualquer modo, a espiritualidade tradicional indiana, e asiática em geral (ou uma certa imagem dela), passa a ser um objeto de pesquisa de Pessoa e entra na formação do pensamento esotérico pessoano. Não por acaso o poeta Ricardo Reis e o filosofo António Mora sentem a necessidade de serem dois acérrimos críticos do Esoterismo, pois também no ensaio e na reflexão sobre estas questões a autoria heteronímica entra em cena. As posições da côterie heteronímica sobre esta questão são, como seria de esperar, diversas e contraditórias.

O inicial respeito e fascínio conduz a um progressivo desconforto que o poeta e intelectual vai experienciando com esta tradição. Tal implica um repúdio face ao Oriente reciclado que a Teosofia apresentava, o que é visível neste apontamento inédito, datável da década de dez [c. 1917], onde se opõe a perspetiva teosófica ao Rosacrucianismo: “A Rosicrucian is a kind of occultist a man <† to> of <†> /our/ mind can understand. He cannot understand a neo-buddhist. The detestable indian sub-jugglery, called Theosophy, so despicably, taken far from the great, though diseased beauty of the Buddhism of the East, by its □ mixture with /western/ modernities” (BNP/E3, 26B-8r).
Mas a crítica pessoana à Sociedade Teosófica visa não apenas as suas roupagens orientalizadas. Outro dos incómodos, para Pessoa, consistiria na vulgarização dos princípios do Esoterismo, que defendia não deverem ser massificados, ao contrário do que a Teosofia propunha, bem como no seu “humanitarismo” militante, visto pelo autor como uma espécie de novo supracristianismo, incompatível com o projeto do anti-cristianismo neo-pagão que estava a desenvolver. Confessa numa importante carta a Mário de Sá-Carneiro, datada de 6 de Dezembro de 1915, e que pode ser conferida pelo primeiro volume da edição de Manuela Parreira da Silva da Correspondência: “A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (…), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito”. Por isso, o caminho do esoterismo pessoano vai divergir para o Rosicrucianismo, a Alquimia, a astrologia ocidental. Mas certas ambições pessoanas de criar um sistema totalizante, que unisse as religiões, as filosofias, a ciência e da literatura, é da Teosofia que recebem o seu primeiro modelo e impulso de escrita.

9 Jun 2021

Duarte Braga aborda referências à China n’O Livro do Desassossego de Fernando Pessoa

Duarte Drumond Braga, investigador da Universidade de Lisboa, tem estudado a ligação ténue entre a obra de Fernando Pessoa e a China, nomeadamente as referências ao mundo pictórico chinês n’O Livro do Desassossego. Este assunto foi abordado numa palestra promovida pelo departamento de português e espanhol da universidade UC Santa Barbara

 

Decorreu ontem a palestra online intitulada “O Oriente e o Orientalismo em Fernando Pessoa”, promovida pela universidade UC Santa Barbara e em que participou o investigador Duarte Drumond Braga, da Universidade de Lisboa, como orador. Duarte Braga, que há muito se debruça sobre a presença do oriente nos escritos do poeta português, disse ao HM que tem analisado a presença da China em algumas das suas obras.

“Não há nenhum projecto pessoano de escrita sobre a China, mas há referências do Pessoa leitor, escritor, poeta, à China. Há momentos muito interessantes da obra pessoana em que a China aparece, como por exemplo n’O Livro do Desassossego, em que se presta muita atenção à questão da ideia da paisagem impossível, como chama Bernardo Soares, a paisagem da porcelana, dos leques, desse mundo pictórico chinês. Essa paisagem é valorizada por ser demasiado perfeita, irreal, impossível, que é muito a tónica d’O Livro do Desassossego.”

No entanto, estão sempre em causa “referências esporádicas”, uma vez que “quando aparece a China nesse livro é por causa da paisagem representada na porcelana, falar sobre a China não é a primeira ideia”.

Além disso, “há uma carta de Fernando Pessoa para Camilo Pessanha, pedindo a colaboração, e que foi enviada para Macau”. Há também “uma referência de Álvaro de Campos a Macau”.

Na palestra, apoiada pelo Instituto Camões, Duarte Braga falou também do trabalho de alguns investigadores sobre incursões de Fernando Pessoa no Japão, nomeadamente a tentativa do poeta de tentar a poesia do tipo Haiku, tema já abordado no número 9 da revista Pessoa Plural, organizado por Duarte Braga.

Ainda relativamente ao orientalismo na obra de Pessoa, há que destacar a Índia “que se confunde com a ideia do Império português, porque é centrado lá”. Coloca-se “a questão das índias espirituais, porque para Pessoa é necessário descobrir uma outra Índia, que já não estaria nos mapas”.

O português pelo mundo

Na conversa de ontem, Duarte Drumond Braga falou também “de um Pessoa esotérico, onde entra a Ásia”. Há também referências ao mundo árabe e à Pérsia.

O investigador, que viveu em Macau e que colabora com o HM, tem um novo projecto no centro de estudos comparatistas da UL, sobre a literatura em português nos quatro continentes, em zonas como o Brasil, Moçambique, Goa, Macau e Portugal, com um foco nos Açores.

“Esse projecto tem a ver com uma perspectiva não nacionalista sobre as várias tradições de escrita em português, e a Ásia mostra bem isso, com Goa e Macau. São sítios onde há escrita em português, mas não são nações de língua portuguesa, são outros formatos”, remata.

28 Mai 2021

Pessoa, Gandhi e as colónias

Há uma frase manuscrita de Fernando Pessoa sobre a figura de Ghandi, já parcialmente publicado por Richard Zenith na fotobiografia Fernando Pessoa (2008). Assim reza: “O Mahatma Ghandi e a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo. E é isso por que, em certo modo, não pertence ao mundo e o nega”. O interesse pela figura de Gandhi pode ter sua origem no fato de a estada do independentista na Africa do Sul, entre os anos de 1893-1914, ter parcialmente coincidido com a permanência de Pessoa nessa colónia britânica. No entanto, no caso específico deste esboço o foco parece ser a tão indiana renúncia de si e esvaziamento do sujeito. Pessoa insinua que a tendência mística e acética é que está na base da luta pacifista pela emancipação do Mahatma.

Num imaginário encontro com Ghandi, Pessoa não lhe reprocharia a luta anti-colonial, mas talvez também não a elogiasse. Interessa-lhe a sua qualidade de herói dessubjetivado, vazio de si mesmo. E para Portugal, para o fim que lhe imaginava e atribuía, não só sabemos que queria heróis dessubjetivados, mas também as colónias não eram curiosamente necessárias. Num dos muitos projetos pessoanos de escrita (não apenas poemas e autores, mas ensaios, filosofias e sistemas), há um chamado Atlantismo, de 1915. Ficaram apenas os títulos de Secções do Manifesto, texto pouco desenvolvido e meramente tópico, ficamos com uma perspetiva abrangente das dimensões deste estranho “ismo”, contemporâneo de Orpheu. Alguns desses tópicos falam em “A conceção atlântica da vida” ou em “imperialismo espiritual”, um velho projeto de Pessoa que depois animará a Mensagem. outros mais duvidosos, sobretudo tendo em vista o contexto da Primeira Guerra, são “Germanofilia de alma, anglofilia de corpo”. O mais interessante a este propósito diz: “Inutilidade e malefício das nossas colónias”.

Este último tópico significa, antes de mais, a entrada em cena de Pessoa numa discussão da Primeira República e de antes, com antecedentes no pensamento de Oliveira Martins, e de outros intelectuais portugueses de Oitocentos, que advogaram a venda de Macau e sobretudo de Timor para com tal dinheiro investir em África, centro e foco do império a partir do final do século XIX. Em Pessoa estamos ainda muito longe da sensibilidade para a descolonização, historicamente trazida pela Segunda Guerra Mundial; mais perto estamos da conjuntura do tratado de Berlim de 1884 de redefinição e reforço do colonialismo em África do que com um real pós-colonialismo, para Portugal ainda muito distante.

Há que pensar que o império está habituado à consideração da sua própria fragilidade através dos intelectuais portugueses, sobretudo deste a Questão Africana e do Ultimatum até 1975, no que à cultura contemporânea interessa. É por esta razão que o projeto de um imperialismo da cultura, do espírito e da literatura para o qual o Atlântico pode ser o melhor símbolo (anunciando as nossas lusofonias de hoje) é uma imagem que simultaneamente esconde e revela a hipótese de um Portugal sem colónias. Esconde-o porque é uma forma de dar sentido a um império frágil e ao mesmo tempo prova a sua fragilidade porque dela deriva, revelando-a. Afinal, como as cartas de amor, todos os imperialismos são ridículos, e se todos são ridículos, antes se prefira o que dá mais gozo, que é o imperialismo de poetas:

“É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos gramáticos dura mais e vai mais fundo que o dos generais. É um imperialismo de poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo imperialismo ridículo. O imperialismo de poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante.

Dizemos Cromwell fez, Milton diz. E nos termos longínquos em que não houver já Inglaterra (porque a Inglaterra não tem a propriedade de ser eterna), não será Cromwell lembrado senão porque Milton a ele se refere num soneto. Com o fim da Inglaterra terá fim o que se pode supor a obra de Cromwell, ou aquela em que colaborou. Mas a poesia de Milton só terá fim quando o tiver o homem sobre a terra, ou a civilização inteira, e, mesmo então, quem sabe se terá fim.”

Pessoa sabia que o verdadeiro imperialismo era pôr os outros a ler os nossos poetas, enviar as falanges anterianas para invadir Cádiz ou talvez uma outra Ceuta qualquer. Cromwell só existe para que possa existir Milton, Vasco da Gama só existe para que possa haver Camões. E esse, imperialismo, em última instância, como queria Agostinho da Silva, é sem império e sem imperador. Que os países, seus mandos e impérios, possam no futuro ser vagos e coloridos símbolos, já sem referentes, de atitudes mentais, filosóficas e literárias é coisa que aguardamos com expectativa, porque há de ser o mais ridículo e útil dos gozos de mandar.

7 Mai 2021

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

Teatro da Rainha, Caldas, terça, 20 Abril

As sessões do Diga 33, animadas pelo Henrique Dodecassílabo Fialho, são um refrigério. Um leitor que faz da inteligência uma casa onde recebe os seus convidados, no caso, a Rita [Taborda Duarte], que lhe respondeu da mesma maneira, quer dizer, expondo-se, explicando-se, dizendo-se. Sem merdas, desculpem que o diga, mas apetece. Gente de um lado e de outro, alguma que vinha já derramada de um encontro próximo e à mesa. Aconteceu por ali vida, o que não será dizer pouco. Estando nós para mais a celebrar regressos ao que não voltará a ser normal. Possa a poesia ser o corrimão destas escadas em vórtice. Possa a palavra ser mundo, que dizes, Rita? «O mundo não é feito de pessoas nem de casas nem de coisas/ menos ainda de afectos e sentidos. / O mundo é feito com palavras perfiladas/
como pedras/ sobre pedra/ em cima de outra pedra, ainda.// São de palavras de pedra as paredes do mundo:/direitas e exactas como um fio de prumo. //Se nos tiram a língua,/ as várias línguas que tem a nossa língua:/ esta língua com que te falo,/ a língua com que te beijo,/ esta mesma língua em que te digo esse nome que tu és,/ roubam-nos mais mundo ao nosso mundo.»

Fundição, Oeiras, quinta, 22 Abril

Até o mais escuro dos ateliers me aparece tomado pela luz. Assim com o esboço: mais do que revelar a ideia que desponta, o titubear antes do salto, portanto a potência, contém a mais livre e rude das espontaneidades. Se nos passos há caminho, naquela busca encontra-se logo logo horizonte. Daí que a oficina seja bastante mais do que bainha e bastidor, erro e ferramenta, suor e preguiça. É lugar de muitas subtilezas e espectáculos. «Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,/ Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,/ Olho e contenta-me ver». Com a mais infantil das atenções, entro, vindo do Tejo, no belíssimo atelier do Francisco [Vidal]. Correcção: no bairro do pintor.

A nave, em cujo canto repousam ainda restos das bombas, portanto destruição, que por ali em tempos se fabricavam, divide-se agora em jardim e cozinha, quadra de basquetebol e palco, carpintaria e estúdio propriamente dito. Imagino que possa ainda surgir, por conveniência, loja e laboratório. Por junto e à mão de semear. A arrumação casual das guitarras e das bolas, das serras e dos pincéis, cada detalhe diz do sagrado, da relação com o espiritual.

Sobre a decadência fabril e a fadiga dos materiais instala-se a cor gritante, abrindo vitrais iridescentes, atraindo a visão e pedindo paragem no tempo para que o corpo se permita ir atrás dos olhos. Exposição permanente, ainda mais essa. Encontram-se rostos da revolta e da afirmação, vítimas da violência, forma de os tirar da espuma dos dias para os instalar na memória política. Como ser negro com todas as cores, todas as letras? As grandes telas surgem compostas fragmentos e a pesquisa do Francisco está agora no cruzamento de técnicas mais pobres, a da impressão dos múltiplos, a da fotocópia dos fanzines, com o gesto dito puro da pintura. Talvez a cor não seja bem o tema, mas dividir a experiência assim é fazer logo autópsia do corpus vivo. De que falamos quando as catanas, lâmina e cabo, mão e corte, se alinham de modo fazer superfície que acolhe a imagem? No topo desalinhado, os bicos afiados e dissonantes não deixam de me perturbar, a pintura saindo do enquadramento, como se quotidiano procurasse o seu lugar de origem e nesse movimento nos ferisse. Deve ser por ali que se encontrará a identidade. Com risco e cesura.

Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.

Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”

5 Mai 2021

Casa de Portugal em Macau promove ciclo de concertos a celebrar o património

Começa este fim-de-semana o ciclo de concertos “Património Cultural de Macau” 2021 em que os músicos da Casa de Portugal em Macau vão tocar canções de álbuns como “Tributo a Macau” ou “Oito”, entre outros. Com entrada livre, os espectáculos acontecem na biblioteca Sir Robert Ho Tung, Casa Garden e Casa do Mandarim

 

Celebrar alguns locais emblemáticos do património de Macau é aquilo que propõe a Casa de Portugal em Macau (CPM) com três concertos que acontecem este fim-de-semana. Na sexta-feira, dia 19, tem lugar o primeiro, na biblioteca Sir Robert Ho Tung, junto ao teatro D. Pedro V, dedicado aos poemas de Fernando Pessoa musicados pela banda Sunny Side Up, que deram origem ao disco “Pessoa”, lançado em 2015.

Na altura os Sunny Side Up eram compostos pelos músicos Tomás Ramos de Deus, Miguel Andrade e Filipe Fontenelle, mas a banda foi, entretanto, extinta, até porque Filipe Fontenelle já não se encontra no território.

Na altura, este explicou ao HM como surgiu este projecto. “Na sequência do primeiro disco que fizemos, ‘Tributo a Macau’, esta foi uma proposta que a gente quis fazer aproveitando a data que ia ser assinalada este ano, dos 80 anos da morte de Fernando Pessoa. Aproveitamos para fazer uma escolha de poemas que gostássemos e fizemos um disco com dez poemas, todos compostos pela banda.”

“Pessoa” tem músicas em português e chinês, sendo que a versão traduzida foi feita com base em livros cedidos pelo Instituto Cultural (IC) e com o trabalho do departamento de Português da Universidade de Macau.

No sábado, dia 20, o ciclo de concertos prossegue com o espectáculo “Tributo a Macau”, na Casa Garden, às 17h. Ao HM, Tomás Ramos de Deus explicou que este concerto é dedicado ao segundo disco que a banda gravou com o mesmo nome. Este “Tributo a Macau” foi gravado em 2019 e não é mais do que uma homenagem a Macau e aos 20 anos da transferência de soberania do território. Cada poema escrito para o álbum é acompanhado de uma ilustração.

No domingo, dia 21, a música acontece para os lados da Casa do Mandarim, às 16h, com o espectáculo “Poesia chinesa cantada em português”, onde serão tocadas novamente as músicas do disco “Oito”, apresentado em 2017.

“Neste disco são só poemas de poetas chineses que foram traduzidos para português e que musicamos. O disco tem uma componente musical muito mais oriental porque trabalhamos com instrumentos chineses e temos mesmo músicos chineses a trabalhar connosco. Neste concerto não vamos conseguir trazer os músicos chineses devido a várias condicionantes, nomeadamente por causa da pandemia mas vamos tocar as mesmas músicas”, adiantou Tomás Ramos de Deus.

Uma vez que este espectáculo acontece na Casa do Mandarim, o grupo decidiu incluir também duas músicas compostas para o disco “Tributo a Macau” por Carlos André, ex-director do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau, intituladas “Casa do Mandarim” e “Casa do Lilau”. “Pensámos em tornar o concerto mais longo e incluir essas duas músicas porque têm a ver com o local”, disse Tomás Ramos de Deus.

Novo projecto na calha

Segundo Diana Soeiro, coordenadora da CPM, o objectivo deste ciclo de concertos é “proporcionar uma forma diferente de explorar estes locais emblemáticos da cidade”. “Primeiro pensámos nos espaços e só depois nos projectos musicais adequados à envolvência”, acrescentou. No total, já foram lançados com o cunho da CPM um total de oito discos.

Mas a banda da CPM promete não ficar por aqui, estando a ultimar uma nova versão de “Oito”, mas desta vez exclusivamente dedicado ao público mais jovem e composto na totalidade pelo poeta Yao Feng, pseudónimo de Yao Jingming, professor universitário, autor e tradutor.

O tema deste trabalho é os animais. “É sempre bom trabalhar com um poeta como o Yao Feng, porque ele fala português fluentemente e, sendo chinês, tem uma visão sobre o português que é refrescante para nós, é uma visão completamente diferente. É uma experiência óptima”, concluiu Tomás Ramos de Deus.

17 Mar 2021

O cinturão invisível de Pessoa

O som do violino vinha de longe. Como se estivesses noutro lugar a tocá-lo e não onde realmente te encontravas. Acontecia-te muitas vezes esse migrar dos pulmões para fora da respiração, ou esse migrar da expressão mais íntima para fora do rosto. Existias tanto do outro lado da praça, como no fio melódico das moscas que assaltavam o vidro da janela, junto à mesa onde os teus pais te tinham levado para almoçar. O restaurante Irmãos Unidos tinha dois pisos e, na parede da frente, o quadro de Almada Negreiros dominava os olhos fechados com que o tempo insistia em parar. 
 
A curva semelhante à de uma parábola definia o rosto de Fernando Pessoa e sugeria ser uma máscara colada à testa, por baixo do chapéu de abas. A luz alaranjada cobria todo o corpo por trás, ao mesmo tempo que transpunha o tampo da mesa em forma de traço descontínuo. O cenário geométrico desafiava tudo o resto a dançar: a caneta, a chávena de café, a revista Orfeu 2, o cigarro, o lenço, o papillon e o pequeno bigode. A recta directriz com que cingia o olhar através dos óculos, duas lentes elípticas embaciadas pelo torpor, quem sabe se pela flecha vazia de um dardo. 
 
Ficaste impressionado com a vulnerabilidade do mistério, era como se ele gravitasse à volta daquelas cores e parecia até fácil agarrá-lo com a ponta dos dedos. Coisa egípcia, pensaste, pois vagueavas ainda com o talismã dos faraós na tua memória, matéria recente das aulas de história no liceu. 
 
Três anos mais tarde, em Janeiro de 1970, o quadro, executado em Bicesse no mês e no ano em que tu nasceste, viria a ser vendido no leilão do recheio do café-restaurante por mil trezentos e cinquenta contos. Algum tempo depois, Sarah Affonso revelou que a obra fora pintada no quintal, num sítio onde a luz coada pela ramagem era quase perfeita. Após mais de um século de história, os Irmãos Unidos, presentes na literatura de Camilo ou de Fialho de Almeida, passaram tristemente o testemunho à Camisaria Moderna que teve assim a possibilidade de alargar as suas instalações no Rossio. Continuaste a lutar com o bife e com o ovo estrelado, enquanto afastavas as moscas do prato e sempre a escutar os sons agudos que provinham afinal do olhar do poeta que nunca mais te largou o cinturão invisível.
 
Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma. 
 
Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.”. 
 
Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele quadro pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar de Fernando Pessoa um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites).
 
(texto extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)
 

4 Mar 2021

Como tem passado?

“O sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?”
Fernando Pessoa, em Carta a Ophélia Queiroz – 29 Nov. 1920

 

[dropcap]A[/dropcap]lguém passa à janela de sombra vazia. Pressinto a sua solidão. Os olhos que lhe cheiram a vento. Vai encarcerar-se mais cedo ou mais tarde, atrás da porta do quarto, no silêncio obrigatório dos divertimentos possíveis. Conheço gente assim. Pessoas trancadas que lêem cappucinos e bebem Cruzeiro Seixas. Gente incansavelmente alta que se estende para lá de si mesma para ver uma onda casual num mar permanente. Passam por elas madrugadas sem olfato. Por entretenimento, travam uma batalha com um peixe-mistério que se infiltrou na frota. Jantam as suas espinhas. Aquele quarto podia ser um poema mas é antes uma equação. Quantos óbitos se confirmam entre os recuperados? Vários webinars depois, o sol não parece menos contagioso do que ontem. Mas elas põe o coração de quarentena, reorganizam armários e lavam as mãos como quem lava os pés, como quem compreende o Inverno melhor do que os outros. E eu na fila de espera. Nós na fila de espera.

Sento-me à máquina de escrever para te falar do meu dia. Este novo dia no novo normal. Esquecer-me de palavras: também eu deixei a minha sombra vazia e abandonei paisagens. A minha paisagem é esta, uma rua perto do mar por onde passam transeuntes ocasionais. Outrora foi uma visão para a metrópole pós-punk que é Pequim, noutra foi uma pequena estrada de passagem em Lisboa, noutra era um campo em Braga. É novamente dezembro. Mês de fecho. Fazem-se as várias contas, as referentes a contabilidade e as referentes a outro tipo de acertos a prestar com alguma entidade ou connosco próprios. Este olhar nostálgico pertence a uma disciplina importante: auto-conhecimento. Eu sei, a palavra tornou-se melosa. Esta época moderna, demasiado pós-positivista para qualquer decurso minimamente hermético. Pouco fã de abstrações.

Não terei pudor em admitir que me dedico, também, ao auto-conhecimento. A todos os níveis. Avalio as minhas crenças e ações, as escolhas tomadas em alturas em que havia escolhas a tomar. Serei parte de uma lonjura imperativa ou estarei a desenhar um único trajeto? Penso, “não é relevante atribuir-lhe significado ou valor”. Começo antes por considerar a importância de me tornar mais íntima comigo mesma. Reconheço que parte da ansiedade exibida como forma de estar nas janelas contemporâneas, deriva da evasão. Os mecanismos que acreditamos serem a cura para ultrapassar, seguir em frente, fazer o que tem de ser feito, são tantas vezes, mera distração. O prolongamento inadiável da distração, que nos parece confortar, resulta antes em desconforto. Afinal, estamos desconfortáveis com a mera ideia de desconforto. Ou seja, mais prisão, menos prisão, não somos exclusivamente o que pensamos que somos. Resta-nos o abandono como exercício. O deixar para trás como mantra de dia-a-dia à hora do café. “Vai-se andando” “como se pode” e quem tem mais experiência disto de estar vivo sabe que tudo passa. Que importa se hoje deixo para trás algumas das percepções mais basilares da minha vida na última década? Alguém passa à janela e depois passa outra pessoa após algum tempo. Tudo passa. A crise, o desalento, o tédio, a indignação, as dores de cabeça, o cansaço, a falta de olfato e a solidão. Tudo passa. Até as pessoas.

3 Dez 2020

Da memória

[dropcap]Q[/dropcap]uer dizer: sabemos que ninguém rejuvenesce nesta vida. Que os nomes, os lugares, as coisas, os dias começam inapelavelmente a escaparem-se de modo a que muito do que vivemos, bom e mau, se transforma em paisagens impressionistas e distantes. Francamente não me parece que isso seja uma má notícia do ponto de vista individual. Desde que escapemos à tragédia de patologias cruéis, em que lúcidos deixamos de reconhecer quem mais amamos, a erosão do que lembramos pode ser até salvífica. Quem sabe mesmo um mecanismo de evolução natural. Que a memória pode ser selectiva é um facto conhecido; o pouco que se pode lamentar ou louvar é o critério dessa selecção. Interessará que apenas me lembre dos melhores momentos da minha vida ou irei angustiar-me porque não os consigo lembrar? Qualquer que seja a resposta há um facto irreversível: não me lembro mas vivi-os. Isso, acho eu, deveria bastar.

Mas a este nível a questão leva a escolhas ou traços de carácter. Se lamentamos um paraíso perdido, lembramo-lo como uma redenção melancólica e inútil; se houver um acontecimento terrível que nos assombre, continuamos presos. “O passado é um país estrangeiro”, diz uma das mais famosas aberturas da literatura. Sim, certamente; e o ser humano divide-se entre aqueles que persistem em habitá-lo e os outros que aceitam que fez parte de um caminho que veio dar até agora mesmo.

Eu faço parte destes últimos. Mas se dou valor ao agora é porque tenho a possibilidade de lembrar o ontem e aprender com ele. A memória, como David Hume escreveu, serve também para conservar as ideias e a sua ordem. E é por tudo isto que me custa viver num mundo e mais particularmente num país cada vez mais amnésico.

Serei sincero: se há coisa que Portugal não tem é uma cultura de memória. Não se pode atribuir isto apenas aos ares do tempo e ao actual modo de pensar basta-juntar-água. Infelizmente o meu país tem rastilho curto no que ao lembrar diz respeito. Lembram-se ocasiões grandiosas, celebram-se efemérides; mas esquecemos os pequenos actos que podem mudar um destino colectivo. Muitas vezes até as grandes infâmias são levadas pela torrente do presente. É certo que quando se trata de factos históricos os fantasmas estarão sempre `disposição dos vencedores. Mas o que custa é o contraditório ter quase desaparecido, existirem poucos que digam “isso não terá sido assim”.

Esta ausência de memória colectiva leva a outro efeito mais grave: não honrar quem já não está. Para não variar socorro-me de António Vieira: «O efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco». Estes ausentes, neste contexto de país, são aqueles que se notabilizaram pelo bem comum. E são honrados não apenas pela lembrança individual mas sobretudo pela conservação de registos materiais de vária ordem que este país parece desprezar. Livros, documentos, fotografias – ou estão em lugar incerto ou é o próprio país que muitas vezes não os deseja nem protege.

A memória, é certo, pode ser nossa inimiga mas tem que existir. É um factor de civilização essencial que por aqui está em défice. E mais do que isso: são as migalhas deixadas no chão dos tempos que nos ajudam a encontrar a saída do labirinto dos dias.

1 Dez 2020

Perfumar a glande

[dropcap]E[/dropcap]spanta nos diários de 1906 de Fernando Pessoa a sua confessada decisão de ler dois livros por dia, um de filosofia e outro de literatura, de preferência poesia. E esse ritmo só foi baixando porque a partir de 1913 se imiscui a decisão de aprofundar uma voz poética, ainda por cima em arquipélago e com uma clara propensão para em suaves declinações ensaísticas refinar uma espécie de mathesis universalis.

Ou seja, Pessoa desatou a escrever ele mesmo um livro por semana. Exagero e caricaturo, mas releve-se a sua enorme capacidade de trabalho.

Mas não é único, apesar de nos ser difícil acreditar (e, em Portugal, no século anterior basta pensar em Camilo). Depois de um delicioso livro de entrevistas e de um muito parcial mas cativante Diccionario De Literatura, pego numa biografia sobre o espanhol Francisco Umbral (1932-2007), outro omnívaro que escreveu cento e tal livros e muitos milhares de artigos e crónicas (só no El Mundo manteve uma crónica diária durante 40 anos). E conta Anna Caballé, a biógrafa-não-autorizada que fez em «Francisco Umbral/ El frio de una vida» o livro definitivo sobre o escritor de Diario de un escritor burguês:

«Consideremos qualquer semana de sua vida. Qualquer semana de 1977, por exemplo, um de seus anos mais fecundos. Encontramos Umbral publicando um artigo diário (secção “Diario de un snob”) no El País e outro artigo, também de jornal, para a agência Colpisa, que o distribuia entre os jornais associados. Tem um artigo semanal na Interviú (algumas “Horteras Cartas” em que ensaia várias fórmulas coloquiais) e outro, mais exigente, na Destino, semanal. A essas colaborações regulares deve ser adicionado um artigo mensal com conteúdo erótico para a revista Siesta e uma história erótica bimestral que aparece na mesma publicação.

Juntem-se a estas outras colaborações que ele espontaneamente concede em Diario 16, em Triunfo, em Hermano Lobo. Não levo em consideração os textos aleatórios que surgiram no decorrer da sua vida profissional, mas chamo à lista os livros que publicou naquele ano: La prosa y otra cosa, Diccionario para pobres, La noche que llegué al Café Gijón, Las jais, Teoría de Lola y otros cuentos e Tratado de perversiones.

Seis livros – quatro deles de criação. Ou seja, um livro a cada dois meses. E não se pode dizer que seja fruto de acaso editorial, já que em 1976 publicou onze livros, quase um por mês. Com razão, o hispânico Jean-Pierre Castellani, baseando-se apenas na intensidade de suas colaborações jornalísticas, considera-o um fenómeno único na Espanha e “talvez na imprensa europeia contemporânea”».

O que assombra, com flutuações naturais, é a qualidade média de cada livro, invejável. Cada pico em Umbral corresponderia ao melhor do dos seus colegas escritores, só que Umbral tem uma dúzia de picos. De entre os cinco que li, talvez escolhesse Mortal e Rosa (traduzido, e bem, em português por Carlos Vaz Marques) o livro que escreveu depois da morte do filho, de sete anos, com leucemia, ou El hijo de Greta Garbo. Noutra ocasião farei uma descida à “morfologia do estilo” de Umbral que foi um defensor e um dos mais bem sucedidos cultores do “romance lírico”. Aqui fica um parágrafo, breve, de Mortal e Rosa: «Outubro.

Aperfeiçoa-se a rotundidade do mundo. As árvores são violinos cuja música é o azul do céu. O bosque brinca com o meu filho como um tigre verde com um pintassilgo. Somos o âmago de uma lentíssima maçã caindo silenciosamente no tempo».

Sirva agora esta nota só para meter alguma humildade no toutiço de alguns jovens escritores que conheço, tão vaidosos como ignorantes, tão convencidos como improdutivos.

Ontem fiz o download do livro póstumo que reuniu toda a sua poesia, um livro de 200 páginas. Não é o seu melhor mas tem coisas que me divertiram, como o ciclo de poemas em prosa erótica que dedicou à Letícia/Lutecia. Vê-se que lhe era fácil e como isso lhe menorizava os poemas, nem resistindo, por vezes, ao mau gosto; por outro lado, são divertidíssimos e a espontaneidade do seu jacto denota que aos setenta (morreu com setenta e cinco, suponho que gasto) mantinha ainda um ímpeto juvenil. Aqui traduzo um poema desse ciclo: EL PERFUME

«Há sexos de mulheres que perfumam a glande durante uma semana. Há mulheres que têm na geografia da vulva, nas gargantas da vagina, na caverna das secreções, uma infinidade de jardins subaquáticos, uma pluralidade de peixes que antes foram flores e sonham em se cristalizar, silenciosamente, no sal.
Há sexos que deixam um perfume a mancebia babilónica e a armazém portuário, e do mesmo modo que o poeta passou anos sem lavar a testa, pois ali fora beijado por outro poeta, pode-se passar dias sem lavar a glande para que não perca, no freio do prepúcio, a sua aura de mulheres e flores, o seu halo de mar e porto, que é como uma coroa olorosa, essa fragrância que hesita em adoptar uma forma única mas se vai assemelhando ao desenho balístico da glande.

A rigor, havia que descer-se à rua com o erecto membro ao léu, circuncidado como o azul no céu, ou uma proa, ou a pequena e vermelha agressão perfumada que distribui fitas aromáticas pela vizinhança, como quando passa o peixeiro. Disse que era preferível não lavar-se, nesses casos, mas a verdade é que há também a mulher indelével, a que perfuma e perfuma, e ao cabo de numerosas e meticulosas lavagens, depois de repetidas esfregas e enxaguamentos, a coisa continua a cheirar ao mesmo, com aquela fidelidade dos cheiros, que é a única fidelidade no amor. Não há maneira.”

28 Out 2020

Encontro Magik

[dropcap]U[/dropcap]ma história extraordinária que começou em 1929 e deu origem a artigos vários e a uma atmosfera de espionagem numa Lisboa já “amansada” pelo novíssimo Estado Novo. O início dela está num poeta que manda requisitar dois livros ingleses e promete fazer o horóscopo do autor por lhe parecer estar errado, este interesse serve certamente de isco a tudo o que irá unir dois homens em novelísticas manobras, ou por tédio a uma Lisboa onde nada mais se passava, ou por o outro ser espião inglês, ou, quem sabe, por puro passional, pois que o poeta caiu de amores pela sua mulher , tanto, e de tal forma, que até escreveu o seu único poema erótico. O que é certo é que aquele mês de Setembro de encontros e desencontros, culminando na Boca do Inferno com uma rocambolesca carta de despedida iria levantar celeuma público nos dois países. E claro está, falamos então de Aleister Crowley e Fernando Pessoa!

O repto que Pessoa lança com a averiguação da carta do céu não será apenas uma mera curiosidade pessoal, mas, quem sabe, uma aproximação à edição inglesa, e desde o início desse ano passam então a trocar correspondência com projetos de idas e vindas o que deixa Pessoa um pouco aterrado e que tudo faz para averiguar o tempo mais propício para tal encontro, por outro lado ele era avesso a compromissos, o outro, mundano e desgarrado, não deve ter entendido tanta objeção – e eis que veio e Pessoa foi esperá-lo ao cruzeiro onde tinha ficado ainda, algures, parado, por causa do mau tempo, e o nosso poeta é logo interpelado de forma surpreendente: «olhe lá, porque mandou o nevoeiro lá para cima?» Verdade ou não, é que parece que o encontro foi simpático e para aqueles tão interessados na sexualidade de Pessoa, este encontro, mais não seja, deita por terra muitas teorias acerca dela, diz assim o poema inspirado na tão almejada Dama Escarlate: « Dá a surpresa de ser/ é alta, de um louro escuro/ faz bem só pensar ver/ seu corpo meio maduro/ Seus seios altos parecem (se ela estivesse deitada)/ dois montinhos que amanhecem/ sem ter que haver madrugada/ …apetece como um barco/ tem qualquer coisa de gomo/ ó fome, quando é que eu embarco? Ó fome quando é que eu como?» Só por isto já tinha valido a pena. Alguns ainda dirão: que não, que não…..! Problema deles.

E vamos então viajar com os nossos Magos, um Negro, outro Branco, mas certamente muito competentes para virar a cabeça aos Cinzentos, e sempre lembrando o grande interesse do nosso poeta por literatura policial, aliás, os únicos romances que gostava, só que estes efeitos passavam agora por um protagonista real que se achava a reencarnação de um chinês nascido há três mil anos de seu nome Tu Li Yu, e que nesta reencarnação era apelidado de Besta- isto por causa da mãe que sendo irrascível dizia então que ele era uma besta- como lia muito a Bíblia pensou que fosse a do Apocalipse. Pessoa estava muitos graus de iniciação acima, e a sua mais alta demanda se bem que não o separasse do seu congénere, tinha trilhos mais apertados. É certo que sempre deixou o outro suspenso com a leitura da dita carta que nunca chegou a fazer, mas creio que o ajudou a virar costas a algumas contas que deixou atrás de si, que por pressa de se suicidar, ou porque teve de se “raspar” abruptamente para Berlim, ou fatal homicídio, o pusera a dar entrevistas e depoimentos nos jornais e na polícia.

Suponhamos que ambos se divertiram com o estranho caso em que se falou até de assassinato devido ao universo inglês altamente criminalista, mas o certo é que a Dama Escarlate embarca antes de Crowley com uma mais enigmática cigarreira pertencente a Pessoa (no interrogatório é assim que é descrita) e sabe-se lá o que eles andaram a fazer no insólito mundo que os catapultou para aqui?! Acho que ainda se escreveram para além da “morte” agora com o Mago Negro submetido às vantagens de Pessoa, que lhe traduziu o «Hino a Pã» mais as notícias que saíam no Jornal de Notícias e na revista Girassol. Afinal, o Bem vence sempre se quisermos tirar elucubrações do caso. E já de bem com a sua talvez inusitada e brilhante jogada, o poeta encerra a comunicação e assim se separam para sempre.

Tinha passado o tempo. As vantagens esgotaram-se e creio que o outro se lamentava amargamente com derrocadas financeiras o que para o nosso poeta seria assunto que ele não conseguiria jamais responder – amargurava-se agora ele mesmo de estar com posições tensas no seu próprio horóscopo para se ocupar de outros.-

O Hino a Pã, magistral poema deste fauno, foi enviado para a revista Presença, mas creio que nem isso lhe chegou. As mãos do Mago ficariam vazias de promessas feitas pelo nosso que já muito se tinha esforçado para uma história bem guardada nos Infernos e nos Céus. Era gente singular! Em Lisboa se não olharmos para o bom tempo podemos bem morrer de tédio e os portugueses também não incitam ao despacho do inesperado, e esta Inglaterra de espíritos do outro mundo sempre esteve muito presente na pessoa de Pessoa, que nunca tirando a máscara, se revelou infalível em matéria criminal.

«…..Assim sei que sou quem sou, e terei que o ser separadamente.
A alta lição do escárnio alheio alberga astros em seu futuro».

A propósito desta jornada.

29 Set 2020

Tudo é disperso, nada é inteiro

“Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro”
Fernando Pessoa (1888 – 1935) em

 

[dropcap]T[/dropcap]odos sabemos que uma evidência não é absoluta garantia da extinção da polémica – “a nossa História pertence-nos é como a colonização: reprimiu-nos mas não nos roubou as almas, transformou-nos mas não nos mudou a identidade”. Uma divergência nunca se deve transformar numa dissidência. Por vezes o inaceitável é facilmente aceitável, fruto do sistema que criámos para “viver”. Não no que somos, mas sim como vivemos/pensamos. Um escândalo em câmara lenta vai deixando de escandalizar, de forma lenta – existe mas torna-se dissolúvel. Já poucas ou nenhumas forças nos restam para lutar.

Não podemos viver de abstrações filosóficas ou doutrinárias.
Temos de transgredir, transformar o presente.
A vulneralidade não será uma experiência existencial?
Omite-se a verdade conscientemente.

Interrogação do poder fundador das palavras – crítica da linguagem (?) – ou palavras exaltadas.
A sociedade civil tem de ter capacidade intectual para resolver alguns dos vários problemas que se nos colocam neste “mundo” contemporâneo. Não podemos esperar por ordens superiores para organizar diferentemente as “nossas” vidas. Valores, normas, estratégias, ética, criatividade, lazer, solidariedade, para combater causas “imperiais”, ambiente, património, racismo, xenofobia, repressão consumo, autoritarismo, capitalismo, globalização, energia, destroços, remendos do dia a dia,…… ou seja tornar o ilimitado limitado – sem silêncios discretos. Temos de procurar uma maior dignidade para as nossas vida. Não nos podemos excluir da mudança. Temos de saber cruzar, intersectar a consciência global com a inquietação individual (procurar um mundo de recolhimento intelectual). A ignorância é a causa podre do desrespeito. Respeitar é conhecer. Até porque nunca é tarde para emendar, mas é preciso corrigir o rumo. Falta-nos a capacidade da incapacidade. Temos de saber governar o “nosso” poder. Não podemos usar o “nosso” poder para nos destruirmos – usemos a “nossa” Voz.

É o iludir da razão, desiludindo os pensamentos. Sem justificações.
As misérias vêm ter connosco. São as misérias que nos conhecem. O que estamos a viver e a forma como vivemos é um problema político, que exige respostas cívicas. É que não poucas vezes protegemos o atrevimento, a ignorância, o demérito, a incompetência, a deslealdade. Esta misteriosa continuidade entre aparição e dissolução, entre presença e indefinição. Fazemos escolhas por defeito. Desprezamos o pensamento. Improviso?

Mudados os tempos, de tolerantes e livres, os tempos de ontem, a inflexíveis e obstruídos, os tempos de hoje…mudados os tempos.

Temos de saber reinventar as nossas aspirações – “ com o optimismo de quem anseia alívio e sem a euforia de quem espera transformações”. Sociedade obediente, silenciosa e submersa como se nos estivessem a pagar a ociosidade e os privilégios (?). Sem modelo, nem definição.

O grande problema são as visões monolíticas da sociedade. Não existem contradições (pensamentos).
Hesita-se muito entre a teoria e a prática, ou por outras palavras, entre a acção e o pensamento, mas, ao não se saber gerar pensamento, não se estimula o debate de ideias. Procuram-se…

É preciso termos tolerância contra os dogmas e pragmatismo contra a utopia. Até porque não vamos incutir ao povo noções desajustadas da realidade.

Como alguém disse: “Utopia é pensar que podemos continuar como até aqui, quando tudo indica o colapso de uma civilização baseada na competição, na ganância, na opressão, na exploração e na violência contra o outro, seja o humano, o animal ou a Terra”.

Os pavões não dormem à noite e só gritam quando sentem o tigre…..

“A tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para descobrir o que significa estarmos no mesmo barco.”

Luís Vaz de Camões em , Canto IV

19 Ago 2020

O antepassado de Fernando Pessoa

[dropcap]S[/dropcap]ancho Pessoa, que viveu no século XVI em Lisboa, foi antepassado de Fernando Pessoa e era judeu. Devido à actuação feroz da Inquisição, acabou por converter-se ao cristianismo, sem deixar as práticas judaicas e a ligação ao seu povo. Era cristão para fora e judeu para dentro. Deixou um texto em prosa, «A Grande Mortandade», que data de 1698, que sempre foi mais um segredo do que um livro.

Consta-se que há uma publicação, cuja data também não se sabe, talvez em inícios do século XIX ou finais do século XVIII, mas não é certo e de qualquer modo, a ter existido, terá sido numa pequena edição, que acabou rapidamente por desaparecer. O texto, que é uma espécie de crónica e ensaio, e foi agora editado numa edição crítica de Marco Dante, começa assim: «A primeira grande mortandade de judeus ocorreu com as cruzadas. Independentemente de a origem da chacina ter sido incitada pelo Papa Urbano II, contra os sarracenos [o modo como eram chamados então os muçulmanos], os seguidores de Paulo e de Jesus chacinaram todos os que não eram por eles. Na cidade viviam judeus e sarracenos, em paz. Em paz também viviam pela Europa fora judeus, que foram sendo dizimados pelos cruzados, ao longo dos cinco mil quilómetros até Jerusalém. Mataram crianças, mulheres, velhos. Comeram-lhes a carne. As crianças eram colocadas em espetos e assadas no fogo, como se de animais de caça se tratasse; fatiados e comidos. Os mais velhos eram cozinhados em grandes panelas, durante horas, até que a carne amaciasse e pudesse ser comida. O medo pelos bárbaros do Norte espalhou-se como se espalhava a cólera. A crueldade era uma arma poderosa e eficaz. Os seguidores de Paulo e de Jesus eram terrivelmente cruéis e foi com essa crueldade que tomaram a cidade de Jerusalém, chacinando todas as almas que aí viviam, quer fossem sarracenos, quer fossem judeus, quer estivessem vivos e habitassem Jerusalém. Nunca tamanha violência tinha sido registada no mundo dos homens. Ainda hoje, a palavra cruzadas faz estremecer os povos desses lugares.» Como se pode ver, pelo começo, tratava-se de um texto que pretendia preservar a memória das cruzadas de um ponto de vista oposto ao da divulgação católica e, por isso mesmo, não tinha pretensões de ser publicado. Circulava em meios muito restritos e em segredo. Foi passando de gerações em gerações, como os próprios textos judaicos, longe da luz do dia.

Fernando Pessoa refere este seu antepassado, mas nunca refere o texto. Não o conhecia? É muito improvável que não o conhecesse, tendo Fernando Pessoa tanto interesse nos assuntos religiosos em geral e nos judaicos em particular. Podemos pensar em duas possibilidades, para essa não menção do texto do seu antepassado: 1) pensar que prejudicaria a sua obra, pois Portugal era ainda profundamente católico; 2) pensar que o texto deveria manter-se em segredo, passando apenas entre amigos e familiares. Não é difícil aceitar esta segunda hipótese, até porque o segredo era algo que fascinava Pessoa. Há ainda uma terceira hipótese, que é adiantada por Marco Dante, na introdução à edição do livro, que diz: «Fernando Pessoa nunca mencionou “A Grande Mortandade” [embora tenha mencionado o antepassado que o escreveu] porque nunca chegou a ler o texto, embora soubesse da sua existência e do seu conteúdo.» Esta posição de Marco Dante é alicerçada numa carta encontrada recentemente, em casa de um familiar de Pessoa, em que este escrevia a um primo o seguinte: «Não sabes como possa ler “A Grande Mortandade”?» E continua Dante: «Ora, a carta tem a data de 22 de Maio de 1931, o que mostra claramente que a 4 anos da sua morte, o poeta ainda não tinha lido o texto do seu antepassado. A partir daí não se sabe. Não se sabe sequer qual foi a resposta desse primo a Fernando Pessoa.»

Mas tendo em conta que o poeta encenou toda a sua obra, não nos custa a crer que essa carta tenha sido mais uma encenação. Não custa pensar que, na realidade, Pessoa tenha tido acesso ao texto e essa pergunta ao primo apareça propositadamente como uma pista errada para o futuro. Seja como for, e embora talvez não seja irrelevante, a verdade é que o texto de Sancho Pessoa existe e era conhecido em segredo por amigos e familiares e dava testemunho de uma atrocidade monumental, que tinha sido completamente «branqueada» ao longo dos séculos. Numa passagem do texto, Sancho escreve: «Talvez um dia se possa ver a verdade.

Mas não está ao nosso alcance poder saber quando é que a Europa será libertada.» Ou ainda: «A tirania do catolicismo não deixa ver.» Havia uma clara noção de que a Europa tinha sido sequestrada por uma ideologia, por uma tirania: «César foi substituído pelo Papa.» É, no fundo, um texto de liberdade. Um texto que em certo sentido é fruto do iluminismo europeu. E não deixa de ser um mistério a não referência ao mesmo por parte do seu descendente mais ilustre, Fernando Pessoa.

Cabe a nós, leitores, trazer à luz do dia o texto desse antepassado do mais ilustre poeta português. Marco Dante, ainda ano seu prefácio, escreve: «A prosa de Sancho Pessoa é tão vigorosa, contundente e clara, que mesmo hoje as suas palavras não deixam de fazer estremecer o leitor.» E hoje é o tempo em que devemos lê-lo novamente. Ler contra a mortandade, seja ela qual for. Ler contra a ideologia, as ideologias.

26 Mai 2020

Entrevista | Pedro Lamares, actor

Pedro Lamares teve um percurso que passou por múltiplas formas de expressão artística, até que Pessoa o encaminhou para dizer poesia, o que o levou à representação. Todas estas estradas trouxeram o actor até Macau numa viagem que culmina, sábado às 21h, no palco do Teatro D. Pedro V, onde vai recriar o poema “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos

[dropcap]E[/dropcap]stá em Macau a recitar a “Ode Marítima” de Fernando Pessoa. Como é representar este texto emblemático do Pessoa?
A Ode Marítima é aquilo a que chamamos na gíria teatral “um bife”. É um grande naco, e não é pela quantidade de texto. Aliás, eu não o faço de cor, o espectáculo é uma leitura viva e encenada. É um desafio brutal, acho que é, eventualmente, a coisa mais difícil e mais exigente que já disse. O texto pede uma entrega absoluta, não vale a pena dizer aquilo se não estiver disponível a entrar naquela espiral e encontrar a determinada altura o vórtice e alguma linha de trabalho que não seja um desatino total, que não seja só a loucura. Não há outra forma de fazer este espectáculo, sem ser com entrega total. A “Ode Marítima dá cabo de mim, é porrada emocional. Na semana antes de ter este espectáculo normalmente adoeço, fico sem voz. É uma cena psicossomática. O texto tem uma estrutura perfeita, é completamente pessoano; temos todo o delírio do Álvaro de Campos, visceral, mas tens o cérebro do Pessoa permanentemente a actuar sobre aquilo. O texto é tripartido. O primeiro bloco é a instalação, em que ele se senta no cais de pedra numa manhã de Verão e começa a observar o que vai acontecendo, mas ainda numa zona muito pacífica. A segunda parte é a subida em espiral, o delírio absoluto e depois cai a pique de um momento para o outro. O terceiro momento é todo em baixo é toda a reflexão sobre o que aconteceu ali. A primeira vez que disse a Ode, ao trabalhar o texto em casa, há nove anos, sentei-me à noite na mesa da sala com um whisky, um cinzeiro e um maço de cigarros à frente. Comecei a tentar ler o texto para dentro e aquilo é ilegível. Entra-se nas onomatopeias e é impossível, não estava mesmo a conseguir. Quando ia para aí na quarta página, voltei atrás e resolvi começar a dizer o texto em voz alta. Descomprometidamente. Liguei um cronómetro. Percebi que o texto tem exactamente 60 minutos, divididos em três blocos de 20. Sem ter o texto na cabeça, comecei a dizê-lo e entrei naquela espiral. Aliás, como ele diz no texto “o volante começou a girar dentro de mim”. Quando dei por mim, eram duas da manhã e, de repente, tudo começou a surgir com essa lógica muito evidente.

Representou Fernando Pessoa no filme “ Filme do Desassossego” de João Botelho. Como foi essa experiência?
Morri de medo no início. A minha ligação ao Pessoa vem de muito pequeno. Com treze anos comecei a ler Alberto Caeiro, quando o meu padrasto me ofereceu “O guardador de rebanhos”. Aquilo mudou tudo. Acho que foi isso que me pôs a dizer poesia, foi o dizer poesia que me pôs a estudar teatro. Aquilo condicionou o caminho da minha vida de uma forma definitiva, sem charme e sem romantismos. Fazer o Pessoa no “Filme do Desassossego” era assustador para mim. Além da força que o Pessoa tem na minha vida e, portanto, a responsabilidade natural que isso já me traria, existe todo um imaginário. Toda a gente tem um Pessoa na cabeça, qualquer português tem uma imagem do Pessoa. É um ícone. Corremos o risco de rejeição, como se se tratasse de um corpo estranho. Na altura, tive uma conversa com muito importante com o João Botelho, em que lhe falei desses medos, e ele disse-me: “Não quero fazer um documentário histórico, para isso existe a BBC. Quero fazer um filme, isto é sobre arte. Portanto, tu não vais ser o Fernando Pessoa, vais ser o Sr. Pessoa do ‘Filme do Desassossego’. Constrói”. Aquilo libertou-me completamente, mas não me tirou a responsabilidade.

FOTO: Sofia Margarida Mota

Tem um espectáculo intitulado “A poesia é uma arma carregada de futuro”. É isso que acha da poesia?
Acho, absolutamente. Na arte em geral, e como escolhi a poesia como ferramenta é dessa que vou falar. Não tenho interesse na arte que não desarrume. Não tenho interesse em nenhum movimento artístico que não esteja comprometido com alguma coisa. Uma coisa que é feita só para agradar ou para ser bonita não me interessa como arte. Atenção que eu adoro o belo, sou um esteta. Adoro o belo, adoro pilotar aviões e não há nada mais belo do que estar lá em cima, no cockpit a ver o pôr do sol no Saara. É lindíssimo, mas não é arte. O meu trabalho artístico tem quase sempre um comprometimento, pelo menos com uma ideia de mundo, de pensamento, com uma ideia social que me acompanha. Estas coisas estão juntas. Portanto, o poema do Gabriel Celaya, cujo título dá nome a esse espectáculo, tem exactamente que ver com aquilo em que acredito. Ele diz: “maldigo a arte que é concebida como luxo cultural para os neutrais”.

Estamos a falar da palavra. Acha que a palavra escrita está em vias de extinção nesta era digital?
Se pensarmos em escrita, como caligrafia, tinta e coisas feitas à mão, ou livros em papel, não sei se em vias de extinção, mas em vias de entrar numa zona residual quase museológica acho que sim, dentro do romantismo. Ainda existem máquinas de escrever, e penas e canetas de tinta permanente, mas ninguém as usa. Eu tenho em casa porque sou um romântico e acho bonito, mas não as uso também. Portanto, acho que, mais cedo ou mais tarde, o objecto livro estaria mais ou menos na mesma dimensão. Eu não leio em livro electrónicos porque não me dá jeito. Gosto de sublinhar e de riscar de dobrar folhas, porque sou arcaico. Mas não tenho nada contra. Não acho que isso seja o fim da escrita. Há ameaças muito mais sérias à escrita e ao pensamento crítico que não sei se os distingo um do outro.

Quais?
A banalização e o vício do excesso de estímulo. A lógica digital que começa a trabalhar em nós uma ideia de que se não estivermos a ser permanentemente estimulados e se uma coisa não nos agarrar desde o primeiro momento com imensa informação visual sonora etc., nós desistimos dela. Isso sim, acho que é uma coisa que nos vai afastando daquilo que precisamos para ler e que nos vai pondo mais à superfície. A leitura exige de nós outro tipo de exercício mental, outro tipo de contemplação, de atenção e de paciência, de pensamento, de tempo. É muito mais fácil ver um filme do que ler um livro, e por sua vez é muito mais fácil ver uma série do que ver um filme e por sua vez é muito mais fácil ver um vídeo de cinco minutos do que acompanhar uma temporada de uma série. E por aí vamos. Por isso, depois aparecem fenómenos de escrita como uma fotografia e uma frase inspiradora, algo que não demore mais de 30 segundos a ler. Isso para mim ameaça mais a escrita do que o formato digital em si. Não sou conservador, a escrita pode mudar de forma. Mas acho que estamos num processo social que pode pôr em risco, e aí a escrita e a leitura são só a ponta do iceberg. Isso está a pôr em risco a nossa capacidade de questionamento e isso sim, pode ser gravíssimo.

Quais são os livros da sua vida?
Antes de mais tenho que falar do “Guardador de Rebanhos” do Alberto Caeiro, porque é brutal. Esse estará seguramente entre os livros da minha vida. O “Medo” do Al Berto que foi um livro que literalmente desfiz, a capa já saiu, criou bolhas. O Herberto Hélder, não é um livro, é um autor, mas também tem uma importância brutal. Portanto, se tivesse que escolher um livro diria a “Poesia Completa” porque me reensinou a dizer poesia. Ensinou-me a não trabalhar pela parte racional a não trabalhar só pelo entendimento do texto e pela sua narrativa. Com ele tive de trabalhar com outro lado de mim, com uma sensação de pele e com imagens. Estes três ao nível da poesia terão sido os mais marcantes. Ao nível do romance, coisa bastante óbvias. Marcou-me imenso ler “Os Maias”. A primeira vez que chorei a ler um livro foi a ler “Os Maias”, acabei de o ler e voltei a ler passado um ano. Outro romance que li muitos anos mais tarde e que me marcou imenso, do Sándor Márai, “As velas ardem até ao fim”, é muito duro. Tchekov também me marcou-me muito. O Oscar Wilde também me marcou muito, deixa-me desarrumado. Mas é engraçado que nunca tinha pensado nos livros da minha vida. Acho que o “Ensaio sobre a Cegueira” também seria um dos livros da minha vida. Fala daquilo que pode ser a sociedade em estado de medo ou em estado de crise.

Começou nas artes plásticas, ainda andou pelo jazz e, a determinada altura, entrou numa licenciatura em música sacra.
Chama-se adolescência. Há aquelas pessoas que na adolescência vão fumar charros ou fazer coisas que os pais não deixam. Eu não tive uma educação católica, portanto, acho que o meu gesto de rebelião aos 18 anos foi estudar música sacra. Tive lá um ano e fui-me embora para estudar teatro. A literatura não faz partes das artes está em humanidades. É uma lógica estranha, deve ter sido escrita pelo Kafka. Depois vais para as tais artes e passas anos a estudar história de arte e algumas técnicas de desenho, pintura e escultura e gravura. Mas acabei por estudar teatro, a profissão dos esquizofrénicos. Como queria ser tanta coisa ao mesmo tempo, decidi fazer algo que me pagam para ser uma coisa diferente de cada vez.

Acabou de chegar a Macau. O que gostaria de levar daqui?
Na verdade, gostava de ter três experiências: sentir a cidade na sua memória histórica e no confronto entre passado e presente, sem saudosismos bacocos. Gostava de ver o que restou e como as pessoas vivem; tenho alguma curiosidade de ver a parte dos casinos, uma curiosidade exótica. Quero ver aquelas luzes e sentir-me num filme americano dos anos 90. Depois gostava muito de dar um salto ao continente. Passar a fronteira e ir à China de verdade.

22 Mar 2019

Imprensa Nacional abre ano editorial com todos os poemas que Pessoa publicou em vida

[dropcap]O[/dropcap] volume “Mensagem e Poemas Publicados em Vida”, de Fernando Pessoa, numa edição crítica do filólogo Luiz Fagundes Duarte, abre esta semana o ano editorial da Imprensa Nacional (IN).
Na introdução deste volume, intitulada “O Palácio Abandonado”, Luiz Fagundes Duarte afirma que “Fernando Pessoa era um rapaz planeado. E muito produtivo”, todavia em vida “apenas trouxe a público 129” poemas.

Segundo o catedrático da Universidade Nova de Lisboa, dos 129 poemas que Fernando Pessoa (1888-1935) publicou em vida, 18 “foram republicados uma ou mesmo duas vezes, em datas e contextos diferentes, o que nos dá, em termos absolutos, um total de 111 poemas”, que inclui a “Mensagem”, que só por si reedita 14 poemas publicados anteriormente.

O livro “Mensagem” (1934) totaliza 44 poemas e, inicialmente, estava previsto intitular-se “Portugal”, mas “à derradeira hora [foi] rebaptizado como ‘Mensagem’”.

Quanto ao título da introdução, é uma referência a uma das obras que Pessoa previu publicar, “As Septe Salas do Palácio Abandonado” que, conforme os seus projectos, “contaria entre 186 e, pelo menos, 226 poemas”.

Fernando Pessoa contava 27 anos, quando projectou publicar “As Septe Salas do Palacio Abandonado”, título que o filólogo aponta como “exótico” e que “se revela muito interessante não só pela ideia que o sustenta como pelo pormenor com que foi delineado”: “um ‘palácio poético’ com sete salas, cada uma com a sua designação e com o seu mobiliário”.

Luiz Fagundes Duarte anexa a esta introdução, uma edição interpretativa e articulada da lista de poemas para ‘As Septe Salas’, e da sua distribuição interna “tal como Fernando Pessoa, algures na sua juventude, as pensou, e poderá verificar se os poemas que são referenciados pelo poeta para integrarem o livro no seu conjunto, e cada uma das salas em particular, cabem ou não naquela classificação tipológica”.

Olho aberto

Quanto ao volume que agora se traz a público, parte de um princípio metodológico: “Uma coisa são os textos — neste caso, poemas — que Fernando Pessoa, num dado contexto histórico, social e estético, entendeu publicar com o seu nome, e outra coisa são os que não publicou”, esclarece Fagundes Duarte.

Sendo que “estes últimos têm vindo a ser editados criticamente por outras pessoas, chegou agora a vez dos primeiros — os ‘Poemas Publicados em Vida’, incluindo o livro de poesia mais referenciado de Pessoa, a ‘Mensagem’, bem como os poemas alheios que de outras línguas — o inglês e o espanhol — verteu para português”, serem reunidos num título.

Referindo-se à edição crítica de Pessoa, Fagundes Duarte afirma que, “aparentemente, a tarefa é coisa fácil: bastaria recolher os respetivos testemunhos impressos e organizá los por datas de publicação”, mas “filologia ‘è cosa mentale’”, argumenta, numa referência ao que escreveu sobre a pintura Leonardo Da Vinci.

“O olho do filólogo tem obrigação de ver mais que o do leitor não diferenciado: deve, sempre que para tal tem materiais e utensílios — e neste caso tem nos —, evitar a tentação da imitação (ou seja, limitar se a reproduzir o que já existe) e assumir o dever da interpretação”, argumenta o investigador.

“Em grande parte, os poemas que Pessoa publicou em vida dispõem de originais autógrafos, que podem e devem ser descritos e interpretados pelo filólogo com vista a que o leitor tenha uma noção, o mais possível objectiva, da história genética que de cada um se pode contar”, esclarece Luiz Fagundes Duarte.

14 Fev 2019

Livro | Duarte Drumond Braga desvenda o orientalismo de Fernando Pessoa

O académico Duarte Drumond Braga é o autor de “As Índias espirituais. Fernando Pessoa e o Orientalismo português”, obra que traz à luz do dia o oriente pessoano. Uma manifestação intelectual, difusa, desprovida de espaço, ao contrário do Oriente de Pessanha. O livro tem lançamento previsto ainda antes do Natal, com a chancela da Tinta da China

 

[dropcap]“E[/dropcap] eu vou buscar ao ópio que consola, um Oriente ao oriente do Oriente.” Este verso, que abre “Opiário”, é uma das referências orientais mais explícitas na obra de Fernando Pessoa. Ainda assim, não falta levante à longitude do poeta, apesar do carácter abstracto e mental do Oriente de Pessoa. Este é o epicentro de “As Índias espirituais. Fernando Pessoa e o Orientalismo português”, livro de autoria de Duarte Drumond Braga, que será lançado antes do Natal com a chancela da Tinta da China. A obra, versão simplificada da tese de doutoramento do académico, reflecte uma multiplicidade de orientalismos, obedecendo à pluralidade de vozes do universo pessoano.

“Há momentos em que Pessoa recorre a um imaginário oriental, por exemplo, quando fala da cultura árabe em textos fragmentários. Ele usa isso como argumento para defender um certo espírito peninsular, ibérico”, explica o autor. Noutros momentos, fala da Índia, da novidade e da descoberta que encerra o subcontinente. Nessa acepção, Pessoa revela outro tipo de orientalismo de “tradição mais imperial, colonial portuguesa, algo que também transparece em Álvaro de Campos nalguns poemas como o Opiário”.

Seguindo a linha pessoana, e de acordo com Duarte Drumond Braga, é difícil dar unidade às várias referências orientalistas na obra do poeta, excepto o facto de ser um tema que este descobre em segundo grau e de ter uma condição interior, intelectual, desligada do espaço.

Ao contrário do Oriente de Camilo Pessanha, experimentado pessoalmente na Ásia, o de Pessoa é interiorizado através da literatura. “Ao longo do Livro do Desassossego é dito muitas vezes que a viagem, antes demais, é interior. O acto de viajar, ver paisagens é uma actividade que para este Pessoa é um tanto ao quanto secundária”, teoriza o autor. Duarte Drumond Braga entende que o autor de “Tabacaria” sempre esteve mais interessado na capacidade de criar paisagens, em vez de as percepcionar no exterior. “Mas isto é um dos Pessoas, não é o Pessoa”.

Plano imaginado

“Este orientalismo é sempre muito cerebral, muito irónico, não é uma necessidade literal de um exotismo. Por exemplo, no “Livro do Desassossego” há pequenas passagens sobre a China, em que fala de porcelanas chinesas e da ideia da paisagem perfeita chinesa.” Este tipo de referências são entendidas pelo autor como ironização da forma exótica com que o ocidente via tradicionalmente o oriente. Um dos exemplos que o académico destaca nesta “espécie de paródia de exotismo” é a repetição três vezes da palavra oriente no “Opiário”.

Apesar das visões díspares entre o oriente de Pessanha (decadente e presente) e o de Pessoa (fragmentado e ausente), existiram pontos de contacto entre os dois grandes vultos da poesia portuguesa. Camilo Pessanha foi convidado por Pessoa para colaborar na revista Orpheu, facto comprovado com uma carta enviada para Macau e que espelha o imenso respeito que os modernistas sentiam por Pessanha.

Apesar do contacto, o orientalismo de Pessanha passa muito pela cultura chinesa, “mais na prosa, até nos ensaios, do que propriamente nos poemas”. Por outro lado, “o orientalismo do Pessoa é mais abstracto, mental, não está inscrito num espaço, é mais fragmentado e heterogéneo”, desvenda Duarte Drumond Braga.
Não obstante as diferentes naturezas, o académico encara os poetas como “os dois grandes nomes de uma tradição portuguesa que se vai sempre colhendo coisas à Ásia. Apesar de no Pessoa ser um interesse entre muitos outros e no Camilo Pessanha ser central”.

Duarte Drumond Braga está a fazer um pós-doutoramento na Universidade de Macau e amanhã apresenta na Universidade de São José, às 18h, uma palestra intitulada “Literaturas em rede: a produção literária de língua portuguesa de Goa em contacto”.

14 Nov 2018

Gomes Leal

[dropcap style≠‘circle’]F[/dropcap]ernando Pessoa foi um dos discípulos mais atentos deste precursor do Modernismo Português, e para tanto contribuiu também a prática ocultista que no seu rasto foi analisada por ele como um espelho de sucessões ditadas pela mão de um destino comum. Pessoa interroga-se na sequência da sua própria obra se não seria um seu sucedâneo directo pois que ambos os mapas das respectivas cartas astrais denotavam semelhanças extraordinárias; ambos nascidos em Junho ( Leal, em 1848, quarenta anos antes, precisamente) mas com todos os planetas nas mesmas casas o que para ele era o resultado da evidência de uma missão que não devia ser interrompida. Neste tempo era normal uma associação visceral entre pares, e este em particular pois que fora o das grandes abordagens científicas, psíquicas, esotéricas, numa proporção nunca vista onde todos debatiam apaixonadamente áreas que hoje praticamente desconsideramos ou foram banidas. Gomes Leal era um místico, um poeta Decadentista e Simbolista, mas ao contrário de uma negação que ultimasse o Nada, ele foi ascensional na sua grande permanência a favor da imortalidade da alma. Era o espelho invertido do «Corvo» e foi ele que anunciaria a sua morte.

Impregnado da corrente Romântica, o fantástico fora-lhe no entanto mais íntimo do que a parte lúgubre que a caracterizara em fim de trajecto, e dela pareceu exercitar um puro acto amoroso de conhecimento hermético: esta era a sua participação enquanto sensibilidade autónoma mas atenta ao discurso da sua época, é uma cultura literária muito bem analisada na obra “Le temps des prophètes”, um tempo banhado por uma fascinante intervenção do poder espiritual mas incorporado pela força cívica nas suas mais profundas manifestações. Gomes Leal chegou a ser um homem bastante maltratado pela vida, e para se estar de pé diante de um destino é sem dúvida necessário uma imensa reserva de energia luminosa para não sucumbir (…). Pessoa tudo olhou e analisou com a inteligência de um mago que se curva duas vezes a uma certa dor no rito da própria orientação. Leal chamaria a isto “os sublimes acordes da alma com as coisas”.

No seu conhecido poema que lhe é dedicado está presente o grande obreiro trágico, Saturno. É dele que se fala quando o poema irrompe, é afinal a marca, o distintivo, a grande alavanca que agarra em cada frase toda a semelhança sem contudo desocultar a que lhe está subjacente, Pessoa tem sempre o cuidado de se dirigir a ele através de si, sem mencionar o seu próprio eu, talvez aquilo a que geralmente se enuncie como o tal “eu poético”… –Sangra, sinistro, a alguns o astro baço/ seus três anéis irreversíveis são/ a desgraça, a tristeza/ a solidão…./ oito luas fatais fitam no espaço/ Este poeta, Apolo em seu regaço/ a Saturno entregou/ a plúmbea mão lhe ergueu ao alto o aflito coração.-

Seguindo a trajectória sabemos que a verossimilhança entre os aspectos estava enaltecida e, ao abordar uma, era a outra que interpretava. O astro baço é afinal o regente da acção e sem a corrente que une a sua subliminar leitura cairíamos numa casualística desdita que é o movimento dos desventurados sem causa nem – Lar – comum.

É bom voltar a eles quando todas as perguntas se desfazem e todos os registos avançam para respostas semelhantes na grande escala no espectro das Nações. Quando já levemente caídos de uma fé que julgáramos inabalável, eles nos aparecem, somos de novo nascidos, estamos de novo no local certo para entender a jornada. Creio mesmo que na cena internacional da época, e em linha directa com um Nerval, Edgar Poe, eles – e este em concreto – traz à luz dos resultados uma outra consciência que infelizmente não deixámos que se manifestasse com o devido reconhecimento. É que para lá do peso do astro baço há ainda um aspecto absolutamente redentor, quase enaltecido, uma esperança que afasta a negritude das trevas do fim. Esta metamorfose da anima é muito interessante na composição literária da estrutura nacional: vai-se, sim, em nevoeiro – muito – o fantasma em nós é sempre branco, do negro só a «Mulher de Luto» esse imenso poema que transluz de negritude e subitamente se ilumina de algo a que a natureza e a estrutura do poema não sabe fixar. Em certos instantes vemos o grande amigo de Pessoa a irromper, Aleister Crowley, no panteístico verso vinte e quatro, uma trança de influências surge, em que as magias, Negra e Branca, quase se confundem pela proximidade, quem escutou Crowley, sabe que a arte mágica do verbo é tão poderosa como um relâmpago na face. Depois, toda a temática até ao vale do adeus que afinal era uma brincadeira numa Lisboa cinzenta e paralisada. Leal já não estava, mas falava ainda na voz de Pessoa ao seu interlocutor.

No fundo é comparar os nossos Pãs, fazer-lhes as homenagens, tentar dissertar no meio do deserto uma tese que confunda os princípios, que os transforme e nos devolva inteiros aquilo que é melhorado em cada homem. Pessoa não foi tão arrojado como Leal, aí, o astro baço estava mais sombrio, ele não queria uma certa mistura com esse folguedo beduíno e panteísta dos seus pares: purismos!! Estas obras todas agora dormem: Eros e Psique, buscamos quem dorme e nos sonha tão tranquilos como a um corpo único, salvífico, ressuscitado.

Grata aos Mestres.

 

Depois deixem-se só- Espraio o olhar e cismo:

– Eis-me no antro enfim da bela feiticeira!

– Eis-me neste palácio, este enigma, este

Abismo!

10 Abr 2018

Fernando Pessoa no Museu Rainha Sofia, em Madrid

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ernando Pessoa e os seus contemporâneos protagonizam a exposição “Pessoa. Toda a arte é uma forma de literatura”, que o Museu Nacional Rainha Sofia, em Madrid, vai inaugurar em Fevereiro, segundo o calendário publicado no seu sítio na internet.

Com curadoria de João Fernandes, subdirector do museu, e da historiadora de arte Ana Ara, a mostra vai buscar o título a um verso de Álvaro de Campos, “um dos heterónimos mais vanguardistas de Fernando Pessoa”, e reúne os nomes de Almada Negreiros, Amadeo de Souza Cardoso, Eduardo Viana, Sarah Afonso ou Júlio (Saul Dias), entre outros.

O objectivo da mostra, de acordo com o texto de apresentação do museu, é o de estabelecer uma perspectiva das principais correntes estéticas portuguesas das primeiras décadas do século XX, até 1935, ano da morte de Pessoa, e do modo como a obra do escritor foi determinante para a particularização das expressões portuguesas da época.

“Através da prolífica produção escrita dos seus mais de cem heterónimos, Pessoa criou uma vanguarda própria e converteu-se num intérprete de excepção da crise do sujeito moderno e das duas certezas, transpondo para a sua obra uma ideia múltipla do ‘outro'”, escreve o museu espanhol.

Os movimentos de vanguarda criados por Pessoa – “Paulismo”, a partir da abertura (“Pauis”) das “Impressões de Crepúsculo”, “Interseccionismo” ou “Sensacionismo” – são recordados pelo museu madrileno como elementos de uma estrutura que sustenta “a especificidade da modernidade portuguesa”.

“Esta exposição recorre a esses ‘ismos’ para articular um relato visual” do modernismo português, “reunindo uma seleção de obras de José de Almada Negreiros, Amadeo de Souza Cardoso, Eduardo Viana, Sarah Afonso ou Júlio, entre outros”, numa abordagem das principais correntes estéticas do século XX, até 1935.

“Estas correntes acusaram uma inevitável influência das tendências europeias dominantes, embora tenham tratado também de se distanciarem delas. Diferentes textos de Pessoa dão conta de um lugar específico para estes ‘ismos’ de sua colheita, assim como do seu carácter distintivo, no contexto europeu, com alusões explícitas, por exemplo, às diferenças entre o Futurismo e o Interseccionismo”, escreve o museu, na apresentação da mostra.

Ao mesmo tempo – prossegue o comunicado da instituição – várias obras seleccionadas refletem “um gosto pelo popular” e traduzem “a idiossincrasia portuguesa”, que aparecem “tanto no trabalho dos artistas portugueses que passaram por Paris”, caso de Amadeo de Souza Cardoso, como no trabalho de estrangeiros que passaram por Portugal, como Sonia e Robert Delaunay.

A mostra anunciada pelo museu de arte contemporânea da capital espanhola – que somou mais de 3,6 milhões de visitantes em 2016 – dedica também uma “especial atenção” às publicações desse período, como a pioneira Orpheu, Águia, K4 Quadrado Azul, Portugal Futurista ou Presença, nas quais apareceram textos de Pessoa, e que “funcionaram como caixa-de-ressonância dessas ideias de vanguarda, exercendo uma grande influência estética e ideológica no meio intelectual português, na primeira metade do século XX”.

A exposição “Pessoa. Toda a arte é uma forma de literatura” abre ao público a 7 de Fevereiro de 2018 e encerra a 7 de Maio. Deverá ser acompanhada por iniciativas paralelas, a anunciar pela Embaixada de Portugal, na capital espanhola.

30 Nov 2017

1888

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á anos especiais e números que se repetem como anunciados. Este oito, três vezes repetido, é uma miríade de números, sem dúvida, mas neste ano a trindade poética nasceu como se fora um octogonal propósito: Pessoa, Ungaretti, Eliot, em locais diferentes; um no Egipto, outro no Missouri e outro em Lisboa, com poucos meses de diferença, Fevereiro, Junho, Setembro, sem qualquer intimidade aparente e até mesmo cultural mas, por uma boa casualidade, fundaram o que de melhor existiu em décadas de poesia.

Os tempos estavam despertos, sim, estavam abolitivos neste final de século com os séculos passados, o tempo corria rasurando muito e inventando mais, os dons eram maiores, as estradas mais sinuosas e plenas de incentivo a uma nova vibração na consciência, bem como no refinar de uma certa sensibilidade. Muitos se atiraram para o futuro de forma brilhante e irromperam pelo vinte e um tirando a modernidade ao moderno vício de ser actual. Quando os perscrutamos ficamos indefesos dentro do casulo lânguido do presente e tentamos inventar um ano como que abrangente onde caibam alguns mais latos para a dianteira do mundo e os nossos cálculos flutuam muito, dado que não repetimos tantos números assim, que têm um lado qualquer onde se suspeita estarem registos maiores do que o anos eles mesmos. Ano do Rato para os chineses que nada conheciam destas andanças da trindade.

Se Eliot achava que o poeta em que se tornara não existiria se tivesse ficado nos Estados Unidos, o mesmo se pode dizer de Pessoa: se a um tempo não tivesse ido para a África do Sul, e Ungaretti nascido no Egipto, não fosse ele filho de italianos, de modo que foi-lhes proveitosa esta deriva por portos onde começaram, sem terem de ficar sujeitos a uma pátria só. Eliot vai para Inglaterra mas em Paris tem os seus anos de amor simbolista pelo seu amado Baudelaire, Pessoa não se sabe ao que veio e desagua numa Lisboa sem Baudelaire e caminha tanto que lhe perdemos os passos, Giuseppe também andou por Paris e colaborou com Giovanni Papinni numa revista, depois, e mais musculado que os seus dois congéneres, parte para as fileiras da Primeira Guerra Mundial.

Haroldo de Campos traduz a sua poesia quando dá aulas mais tarde na Universidade de S.Paulo. De facto, nada há de menos belo no seu percurso literário, ao contrário dos seus momentos políticos, se formos a ver, também Eliot se converte ao cristianismo e Pessoa exerce um pensamento que hoje em alguns momentos teríamos que considerar demasiado conservador. Mas, e mesmo assim, as suas modernidades não são basculhadas na imensa inventividade e no registo de viajantes da bela construção.

Em Alexandria nasce-se talvez mais poético, nos Estados Unidos depende da latitude, em Lisboa, assinala-se esse feito, mas tudo bem interligado forma uma mandala de caracteres geográficos espalhados no ano em que de oitovas se fizeram versos. – Ilumino-me de imenso –

um verso de quatro palavras de Ungaretti, a concisão torna a sua poesia uma preciosa fonte de inspiração, e mesmo Eliot não se inibiu de estudar sânscrito e religiões orientais para retirar dela a previsibilidade no poema. Todos um pouco herméticos ou não fosse a capacidade da vertente poética a verdadeira essência da religião e penso que este aspecto não deverá ser neles jamais uma questão formal, mas sim, estrutural, fazendo parte da raiz que abrange estes destinos.

Não há registo que tivessem escrito cartas uns aos outros, ou mesmo se conheciam a existência uns dos outros, possível que sim, mas, dado as buscas incessantes de cada um nas suas tarefas, onde se poderiam ter encontrado? No céu das suas abundâncias e nas vagas lumes dos patamares da época, Pessoa parecia mais enclausurado, até por que o país dele é mais país para ele quando mais se debruça acerca do seu próprio mito. Um mito que fragiliza e enche de neblina a vida dos seus indagadores. Se Eliot se passeia entre o jardim e o deserto indo buscar a profetas as suas escadas e visões dantescas, fá-lo no enquadramento de uma vida social activa mas sempre um pouco esquiva dado que não lhe agradavam as perguntas devolvendo ao indagador a pergunta intacta, já Ungaretti se esforçava para que um maior número de gente falasse o italiano. Eram três homens estranhos.

Os números para um, a síntese para outro, a imponderabilidade tamanha em outro ainda, a correcta forma de organizar um pensamento sem o entulho gigantesco das línguas… que de números, só Pessoa tinha cincos, e Ungaretti devia ser o oito total dado que também nasceu a oito. Depois, consta-se que Eliot apenas se debruçava mais sobre o profeta Elias que tinha uns números que cabiam na sua articulação verbal. Nós somos vigiados pela narrativa dos poetas e se lhes quisermos sentir o pulso temos de não contar e, sobretudo, nunca contar como foi, dado que não deve ter sido fácil a soma de tal missão mas, há anos, como há tempos, e tempos como homens, em que vemos coisas que nos encantam de tal maneira que pensamos serem do mesmo Ovo Cósmico. Que se desova cá em baixo de forma geométrica, não tanto como as enguias, é certo, mas programados como as estrelas e umas à distância de universos embatem umas nas outras. São nossos pares aqueles que de forma concertada e incógnita giram na mesma luz do impacto e nos deixam a pensar nestas coisas. Que coisas há onde o pensamento não é necessário, e o sentir é só para quem lê, e debaixo de zimbros estamos todos sem noção aparente; regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros… E Ungarretti nos diz:

eis que chega o poeta… desta poesia me resta aquele nada de inexaurível segredo…

Sem mais anos que consintam tanta dádiva acrescentamos datas à vida que dura por tempo incerto e onde muitas vezes nos sentimos tão sós, nós que com tantos, em tanto lado, não seguimos estas rotas, gostaríamos de nascer um dia em 1888. Depois seríamos arquitectos de templos octogonais, todos previstos como pistas de aterragem dos senhores dos céus, e já não havia Capelas Imperfeitas por que o tecto das Catedrais dá sempre para o infinito, não se completam, como não se termina um poema.

18 Jul 2017

Destruir a morte à custa da vida

Um pequeno apontamento acerca de Fernando Pessoa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] heteronímia está longe de ser mero artifício literário. Ela é expressão de profunda convicção do que deve ser o humano, daquilo que deve ser a vida humana na sua excelência. A heteronímia é expressão de uma nova weltenschaung (mundivisão), de uma nova visão do ser humano. O que está em causa no processo heteronímico de Pessoa é a excelência humana, a possibilidade de alcançar a excelência humana, isto é, a possibilidade do ser humano ser melhor do que é, de ser melhor do que lhe é imediatamente dado. Excelência essa que não visa uma prática religiosa ou ética, mas estética.

Mas há um Fernando Pessoa heterónimo, que se iguala ou mesmo perde em existência para os outros heterónimos, e há um outro anterior: o que rejeita a vida para poder escrever. Aquele que rejeita a vida para criar o complexo jogo existencial é anterior a toda a criação, como o Criador é anterior à obra criada ou como a existência de algo antes do Big Bang. Por conseguinte, o privilégio deste Pessoa-criador é mais do que o do registo civil, é o privilégio do criador em relação à sua obra. Privilégio esse que lhe confere, entre outros, o privilégio da consciência da obra e dos esforços necessários para realizá-la; neste caso, a abdicação de vida, como ele tantas vezes escreve. E é precisamente nesta consciência de realização da obra, da sua obra, que a heteronímia não tem uma raiz ontológica, e sim estética. Pois tudo é jogo, nada mais do que jogo. Tudo é lúdico. Existir é brincar às existências. A ontologia aparecerá nos vários heterónimos que ele projecta, nos vários heterónimos que ele é, mas não na totalidade da obra, não na concepção da obra.

Por outro lado, não se pense que esta consciência da existência como uma impossibilidade de escapar do lúdico traz em si uma facilidade para a existência, que não traz em si mesma um terrível drama. Haverá dor maior do que ter consciência de não haver verdade, de não haver existência para além do jogo, do lúdico, e ver isso com uma claridade tão grande que se recusa a vida?

Fernando Pessoa deixou sempre claro ao longo dos seus textos o primado da escrita sobre a vida. A vida não interessa a ninguém. A vida só pode interessar aos animais ou à parte animal que nos habita, a parte animal que somos, nunca ao espírito, à parte espiritual que somos. Tanto no Livro do Desassossego, § 149, quanto em Reflexões Pessoais (374-5) Pessoa refere uma frase do biologista Haeckel (entre o macaco e o homem normal há menos diferença do que entre o homem normal e um homem de génio) para dissertar acerca desta distinção que lhe parece evidente e fundamental, isto é, viver segundo a carne, a mundanidade ou segundo o espírito. O que está aqui em causa, neste projecto de Pessoa, é, literalmente, à imagem da metafísica ou ontologia cristã: ganhar a vida perdendo-a. Ganha-se a vida se fizermos dela uma coisa maior do que ela é, se lhe encontrarmos um sentido que valha a pena ser seguido, fazer da vida algo que valha a pena.

Por outro lado, ganhar a vida perdendo-a, já é muito diferente. Ganhar a vida perdendo-a, é um ponto de vista do entendimento ontológico ou metafísico cristão. E, embora Fernando Pessoa não fosse cristão, não acreditasse em Cristo, o seu entendimento ontológico ou metafísico da vida aproxima-se do entendimento ontológico cristão. O que é que aproxima e afasta Fernando Pessoa, e seu projecto de existir, da ontologia cristã? Imediatamente devemos responder: o para além da vida. A saber, ganhar a vida, perdendo-a, em sentido cristão, implica estar certo de haver uma vida depois da morte, uma vida em Deus para além desta vida terrena. Para Fernando Pessoa, a vida terrena esgota-se e tudo se esgota. O para além da vida, em Pessoa, é na vida. Perder a vida é perder tudo o que se tem em troca de nada. Fernando Pessoa, embora também rejeite a vida terrena, não espera alcançar Deus. Pessoa não abdica da sua vida para Deus, nem sequer para si mesmo, mas para o seu jogo. E, neste sentido, bem podemos falar de um cristianismo pagão. Fernando Pessoa, embora não numa linguagem filosófica, compreendia a falência da metafísica, isto é, da ontologia tradicional metafísica.

Fernando Pessoa compreendia que a metafísica não dava conta do mistério. No fundo, podemos agora dizê-lo, a metafísica deixava escapar o jogo. Era deste modo que Pessoa compreendia a metafísica. Veja-se algumas passagens: “A metafísica – caixa para conter o Infinito (…)”; “Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir.” Chega mesmo a pôr em causa, através de uma inversão completa, a posição socrática do conhecimento: “Conhecer-se é errar (…). Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” Há uma total desconfiança por parte de Fernando Pessoa em relação à metafísica e à possibilidade do conhecimento dos fundamentos, daquilo que faz do humano o humano, daquilo que faz do mundo o mundo, daquilo que faz do universo o universo. Uma coisa ele sabe: ele desconhece-se. Do centro deste desconhecer-se, Fernando Pessoa irá traçar uma poderosa e profunda forma de pensar que será projectada na sua própria vida. Fernando Pessoa vive o que pensa. Não há propriamente uma redução da vida ao pensar, mas há uma formalização dessa relação. A vida é uma arca vazia, que foi feita para encher de coisas.

O conceito central e fundante de todo o pensamento de Fernando Pessoa é o conceito de vida. Vida é aquilo que nos é dado, aquilo que partilhamos com tudo o que há, com tudo o que existe. Por conseguinte, também a pedra tem vida. Vida é estar no universo. Mas este estar é sempre dependente de uma consciência. A frase com que termina as suas Reflexões Pessoais é: “Vida é consciência.” Vida é existir para uma consciência. Ao tornar-se um dado da consciência a pedra torna-se vida, pertence à vida, assim como os sapatos que calço ou o meu vizinho do lado. Assim a vida não nos pertence. Só somos vida para um outro. A vida é nos dada, ao nascer, e depois continuamente dada pela consciência de um outro. “Assim é a vida, mas eu não concordo.” A partir daqui, a vida assume-se claramente como inimigo, adversário ou algo incómodo. A vida é aquilo que nos mata, aquilo que nos reduz, que nos impede de sermos nós próprios. “Nunca saímos do cárcere de viver, nem com a morte que é a vida individual das muitas de que a nossa unidade ficticiamente se forma.” A vida é uma servidão. Todo o projecto de Fernando Pessoa é uma guerra contra a vida, contra a servidão e a impossibilidade de, nela, sermos nós próprios. Como pode isso ser possível? Como pode Fernando Pessoa dizer estas frases: “Que tenho eu com a vida?” ou “Que coisa reles e baixa que é a vida!” Como pode ele escapar da vida? Como se pode escapar da vida? Para Pessoa, faz sentido dizer que ele não quer ganhar a vida, ele quer ganhar à vida. Ele quer aumentar-se, quer tornar-se maior do que é, quer tornar-se à sua medida. Tornar-se à medida do humano que se pode ser para além da menoridade da vida. Esta noção de aumentar-se aparece em Reflexões Pessoais (embora seja desenvolvida de múltiplas formas em Livro do Desassossego): “2. Aumentar é aumentar-se. // 3. Invadir a individualidade alheia é. Além de contrário ao princípio fundamental [1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria individualidade.], contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. ) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, da energia deles. O verdadeiro Mestre é um mestre de não o acompanharem.) // 4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.” Pessoa perde a vida, não para ganhar Deus ou a si mesmo, mas para ganhar os outros. Aumentar-se é aumentar o número de si mesmo, desdobrar-se em muitos, fazer de si mais do que é, alargar o espaço e o tempo do que é. Veja-se a nota do filósofo António C. Caeiro à sua tradução das Píticas de Píndaro: “Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, um identificação e um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era, é-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si, desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.” Por conseguinte, não se pense apressadamente que este aumentar-se está na origem da heteronímia, pois seria errado pensar assim. A heteronímia é a expressão do si mesmo, da individualidade de Pessoa; o aumentar-se é o sinal da individualidade nos outros, isto é, o reflexo da sua própria individualidade no mundo. Posso expressar-me sem que haja sinal disso, mas o sinal da minha expressão é o reflexo que o mundo dá da minha individualidade. Fernando Pessoa dá a vida em troca do mundo. Escreve ele numa das páginas dos seus diários: “Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. // Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. // Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.”

A vitória é aumentar-se. Multiplicar-se pelo tempo futuro. Esta multiplicação é, simultaneamente, superar as condições que esmagam o humano. Se me entregar à vida e aos seus prazeres, jamais serei lembrado, jamais conseguirei um lugar para ser. “O prazer é para os cães (…)”, escreve Pessoa enquanto Barão de Teive. Que devemos então fazer? “Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem. // É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.” Há nesta redução das necessidades, de algum modo, um projecto de âmbito estóico. Não podemos esquecer que os estóicos e os santos sempre atraíram Fernando Pessoa. Sempre lhe atraíram as formas mais radicais do humano, de ser humano. Por outro lado, o seu livro, atribuído ao semi-heterónimo Barão de Teive, denomina-se a educação do estóico. Mas mais do que um projecto estóico, trata-se de um projecto de lucidez humana, um projecto de aproveitamento máximo dos recursos de uma possibilidade de excelência humana. Não no sentido do humanismo, mas no sentido do humano, no sentido do jogo. A redução das necessidades não tem como fundo a contenção do sofrimento e da alegria, mas a contenção do outro, isto é, a amplificação da possibilidade máxima de se estar a só consigo mesmo. Porque o outro nos escraviza. O humano ou é só, ou é um escravo. Escreve em O Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. (…) Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite (…).” E que limite é este, que aqui se fala e que devemos alcançar, se não é um limite de estóico? A resposta é-nos dada no mesmo livro, em menos de vinte páginas adiante: “Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde não se está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo (…) durar depois de não existir.” Chegamos por fim ao centro do vulcão. Aquilo que verdadeiramente importa é destruir a morte. Derrotar a morte e a realidade do mundo, os dois opressores do humano. A morte, porque nos faz desaparecer para sempre; a realidade do mundo que nos limita, nos sufoca enquanto existimos. O que esta em causa, tal como vimos para Píndaro, é a vitória. A vitória aqui não é vencer na vida, mas uma vitória mais radical: vencer da vida. Esta vitória sobre a vida é simultaneamente a vitória sobre a morte e sobre a realidade do mundo. Para se ser mais vivo depois de morto do que quando se está vivo é fundamental e necessário vencer a vida em vida. Vencer a vida no seu próprio terreno.

Há como que uma estética da abstenção, uma estética que abstém-se de tudo o que não seja a própria arte a ser feita. Não é a arte pela arte, é a vida pela arte. Viver é criar. Outras frases fortes: “Viver é não pensar.; e Viver é ser outro.” Viver é ser outro, porque aquilo que somos é seres que criam, seres criadores, e na vida deixamos de ser o que somos. A vida mata-nos mais do que a morte. Mais do que viver, é necessário criar. É preciso dar a vida pela arte.

27 Jun 2017

Jerónimo Pizarro: “Pessoa convida pessoas”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s hoje reconhecido como uma das autoridades mundiais sobre Fernando Pessoa. Se tivermos em conta as últimas edições e organizações da obra de Pessoa, tens organizado a obra do poeta de modo diferente, principalmente em relação a O Livro do Desassossego. Como aconteceu isso e em que difere a tua organização, das outras organizações? Tens também apresentado novas edições. A arca de Pessoa não tem fundo?

Na Tinta-da-china, no geral, as edições são todas diferentes. Caeiro está revisto como nunca, e completo; Reis está com uma organização mais inteligível, e completo; Campos é um volume enorme, e está completo. O Livro é diferente, porque só podia ser diferente (há tantos e haverá tantos!…). Mas o que mais destaco da edição da INCM que migrou para a Tinta-da-china é que permite ler o Livro pela ordem conjectural da sua escrita e que permite descobrir que Pessoa, tardiamente, descobriu Lisboa. Lisboa é uma descoberta poética, tal como a Rua dos Douradores, e isso não aconteceu na fase da «Floresta do Alheamento», mas depois. Num artigo recente digo que o «Narciso cego» da primeira fase – e este paradoxo de um Narciso que não se vê como uma realidade exterior foi belamente analisado por Eduardo Lourenço – foi iluminado, por volta de 1929, pela luz de Lisboa. Lisboa não estava no mundo dos sonhos iniciais, mas sim no Pessoa que queria voltar a escrever, já no fim da vida, como o Padre António Vieira, mas sem esquecer Verlaine…  Se a arca (ou arcas) não tem (ou têm) fundo? Eu acho que só o terão quando exista uma autêntica consciência patrimonial em Portugal. E isso, como se diz, não está previsto para breve. Desapareceu o projecto nacional de editar Pessoa e o Estado não está a tentar reunir os dispersos. Cada vez sinto mais que a auto-profecia de Pessoa estava certa: ele disse que só seria descoberto em 2198. Talvez nessa altura existam as suas Obras completas e uma maior consciência da sua grandeza.

Fernando Pessoa é sem dúvida o autor português com maior visibilidade no estrangeiro, apesar de ser poeta?

É, mas o seu cartão de visita é o Livro do Desassossego. Também alguns poemas, mas era o mínimo. Poemas como «Tabacaria» não se escrevem todos os dias e mesmo os não leitores de poesia ficam abalados… «Tabacaria» é quase um hino negro, encantatório da nossa modernidade. E Pessoa escreveu sobre os temas todos e interessou-se pelas áreas todas do conhecimento. Até foi inventor, astrólogo, charadista, autor de dicionários, publicista… Em princípio, qualquer pessoa encontra em Pessoa um aspecto que lhe é afim. Pessoa convida pessoas. 

És também o responsável por uma editora na Universidade dos Andes, na Colômbia. Gostava que falasses desse projecto, que tem traduzido e publicado autores portugueses e brasileiros.

Sou o coordenador de várias colecções em que se publicam, traduzidos para o espanhol, autores que escrevem em português. Eu fui aluno de Gonzalo Aguilar, que é um dos três responsáveis da colecção Vereda Brasil, e queria criar novas veredas. Surgiram então Lusitánia (Tragaluz Editores), Outras Letras (Taller de Edición Rocca) e Labirinto (Ediciones Uniandes). A última é a da minha Universidade. O importante é ter um leque significativo de autores de língua portuguesa para que os Estudos Portugueses possam crescer na América Latina. Eu não podia, por exemplo, dar a conhecer bem José de Almada Negreiros, sem o traduzir, nem convidar para um festival literário José Tolentino Mendonça, sem o editar. Hoje há mais ferramentas para ensinar língua e cultura portuguesas, e isso contribui para que o número de alunos interessados pelo português cresça. Eu apenas gostava de ter o tempo todo para ainda ver publicados muitas mais dezenas de autores, quer dos que convém resgatar, como Camões e Vieira, quer dos que convém descobrir, e a lista é enorme. Em Portugal existem esses milagres que são os apoios da DGLAB e do Instituto Camões, e eu tento não deixar passar um ano sem propor uma série de obras à direcção e ao instituto. E gosto de traduzir. Este Verão espero traduzir o Ricardo Araújo Pereira, mas se eu tivesse sete vidas traduzia sete autores. Como as não tenho, desdobro-me, e estou sempre à procura de bons tradutores. Ana Lucía de Bastos foi a última, e fez uma belíssima tradução da revista Orpheu toda para o espanhol, e não só.

7 Abr 2017

W. B. Yeats versus Fernando Pessoa

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ia 13 de Junho assinala o nascimento de dois poetas que marcaram o seu tempo e a modernidade da sua época: Yeats e Pessoa. O primeiro nasceu em 1865, o segundo em 1888; vinte e três anos de diferença na segunda metade de um século absolutamente prodigioso em gentes; um, irlandês protestante, outro, português com grande influência inglesa. Evidentemente que estamos na presença de dois co-aniversariantes lendários e com muitíssimas afinidades, não tanto na obra mas na maneira como a perspectivaram.
Yeats era um protestante de minoria, dado que era irlandês; Pessoa um judeu de origem beirã, outra minoria, ambos grandes esotéricos, fazendo parte, Yeats, da « Dublin Hermetic Society» e da rosacruciana «Hermetic Order Of Golden Dawn». Nestes temas se debruçou também até à saciedade Pessoa. Ambos politicamente conservadores tendo deixado testemunho nos ensaios de pensamento social. Este conservadorismo tem muito pouco de político, entenda-se, e nada de retrógrado no sentido documental. Têm da poesia uma concepção clara e leve, tanto, que o branco abunda em Yeats, a matéria de asa e de ave, e Pessoa, uma profunda harmonia transparente num descarnamento tão belo, que só quem está povoado de espírito pode assim manifestar-se. São por vezes um pouco magos quando apresentam os seus brancos fantasmas – pois que todos eles são brancos – e quase sempre essa figura demiúrgica do sábio nos avassala em várias destas leituras, tendo ficado a dever o segundo à influência anglo-saxónica nestas lides que o ligam ao outro. No nosso imaginário existe sempre um povo vestido de branco com transposições de Magos Merlin, Genevièves e cavaleiros…
E foi Afonso III quem nos legou em parte a matéria da Bretanha, até pela unificação do seu reinado. Com ela vieram os nevoeiros e também o leito do rio imaginário até Sebastião, embora muitos afirmem que é de origem messiânica, certo é que a luz se coou enquanto matéria onírica. Pessoa irá fazer dele um anátema – Portugal, hoje és nevoeiro. É a Hora ; Yeats, remete-nos para as “Aves Brancas voando sobre a espuma do mar”. Mais inefável que a imagem dos poetas não há, lembrar contudo que a Terra já fora algures um fino invólucro de gases e que essa memória pode ainda estar inscrita, também, em raros deles.” Encoberto” talvez, por uma matéria gasosa cuja finitude é igual a outra qualquer matéria.
Se para muitos o hermetismo Pessoano é quase severamente desconhecido, mesmo literalmente, certo é que o de Yeats não o é menos, e para tanto vamos a outra faceta que uniu também os dois homens: a escrita automática. Foi nela que eles permaneceram algum tempo como revelação conotados ao escritor desconhecido de si mesmos. Yeats desenvolve um sistema de símbolos geométricos apontando o que as “vozes” lhe ditavam e Pessoa descobre-a naquele 8 de Março depois de chegar a casa onde de um folego escreve então trinta e tal poemas. Os símbolos de Yeats dão lugar aos símbolos zodiacais de Pessoa e de tal ordem o paralelismo é grande que aqui, e sobretudo aqui, eles separam-se do resto das coisas vãs. Perscrutando, sabemos das suas ausências no meio de todos, pois que tinham estabelecido linguagens apuradíssimas com elementos onde alguma solidão impera. O mundo, e muito bem, não está para grandes desvios ou mesmo perda de tempo com o incognoscível. Daí ser tudo muito interessante, mas se há mais poetas para que complicar o que é simples? Não. Não há nada mais poetas, estes são-no, excepcionalmente, e por outro lado nada é simples, dado que nada das outras gentes assim catalogadas têm ou terão alguma coisa a ver com isto. Nesse lixo transversal que envergonhará certamente no além os seus nomes, o adjectivar quer dizer ainda alguma coisa.
A treze, sim, e sem Pastorinhos, que muito me admiro do silêncio de Pessoa perante tal fenómeno… talvez o ultrapassasse, um poeta é já uma aparição, um fenómeno no cimo da árvore da vida rodeado de meninos, dado que o melhor do mundo são as crianças, não será? Mas, e pensando no impacto social, não me espantaria se ainda pudesse aparecer qualquer coisa neste sentido, Pessoa, como sabem, está sempre a acontecer, a escrever, a dizer, o facto de ter morrido nada interessa, os poetas não morrem e mais outras verdades simples e muita frase errada tentado passar-se por ele.
Em «Uma Visão», Yeats cria uma chave interpretativa na forma de um sistema de símbolos e diagramas para a sua poesia, combinando também sistemas astrológicos, mas sobretudo ocultistas, sim, são tabelas inteiras com as fases da Lua, e com passagens iniciáticas por fases numéricas. Pessoa escreve versos na base do conhecimento da sua carta astral, sobretudo a posição de Saturno, e quando nos aparece a expressão súbita do “astro baço” ou os três anéis nós sabemos que pensa em Gomes Leal, nascido neste dia e à mesma hora e que Saturno está presente como uma lâmina e que ele não sai de um certo saturnismo.
Para tanto é preciso ir conhecê-los aos fundos abismos e estar com eles como se fôramos irmãos. Nada sei do Saturno de Yeats, mas parece-me bem mais feliz, ele, que viajou, casou, andou, proclamou, mas sempre com a alma branca de um fantasma celta, tão nórdico, como sefardita era a sombra de Pessoa, e nesta via mágica, neste deambular de sonhos, dado que vivemos por ele, há um dia que os une na encruzilhada de um desígnio. Pensei neles com carinho, como se faz com as sombras, indelevelmente e sem enunciar, não fosse trocar alguma pergunta que só um pudesse dar, afinal o dia é aziago.. E se o é, há azares muito bons, e males que felizmente perduram.
A nona sinfonia não é mais que uma fase da Lua, a virgindade renova-se com ela. E de sinfonia a novena, vai o olhar dos poetas caminhando. «Já chegou a tua hora, já sopram os teus ventos, Longínqua, tão secreta e inviolada Rosa?».

20 Jun 2016