Encontro Magik

[dropcap]U[/dropcap]ma história extraordinária que começou em 1929 e deu origem a artigos vários e a uma atmosfera de espionagem numa Lisboa já “amansada” pelo novíssimo Estado Novo. O início dela está num poeta que manda requisitar dois livros ingleses e promete fazer o horóscopo do autor por lhe parecer estar errado, este interesse serve certamente de isco a tudo o que irá unir dois homens em novelísticas manobras, ou por tédio a uma Lisboa onde nada mais se passava, ou por o outro ser espião inglês, ou, quem sabe, por puro passional, pois que o poeta caiu de amores pela sua mulher , tanto, e de tal forma, que até escreveu o seu único poema erótico. O que é certo é que aquele mês de Setembro de encontros e desencontros, culminando na Boca do Inferno com uma rocambolesca carta de despedida iria levantar celeuma público nos dois países. E claro está, falamos então de Aleister Crowley e Fernando Pessoa!

O repto que Pessoa lança com a averiguação da carta do céu não será apenas uma mera curiosidade pessoal, mas, quem sabe, uma aproximação à edição inglesa, e desde o início desse ano passam então a trocar correspondência com projetos de idas e vindas o que deixa Pessoa um pouco aterrado e que tudo faz para averiguar o tempo mais propício para tal encontro, por outro lado ele era avesso a compromissos, o outro, mundano e desgarrado, não deve ter entendido tanta objeção – e eis que veio e Pessoa foi esperá-lo ao cruzeiro onde tinha ficado ainda, algures, parado, por causa do mau tempo, e o nosso poeta é logo interpelado de forma surpreendente: «olhe lá, porque mandou o nevoeiro lá para cima?» Verdade ou não, é que parece que o encontro foi simpático e para aqueles tão interessados na sexualidade de Pessoa, este encontro, mais não seja, deita por terra muitas teorias acerca dela, diz assim o poema inspirado na tão almejada Dama Escarlate: « Dá a surpresa de ser/ é alta, de um louro escuro/ faz bem só pensar ver/ seu corpo meio maduro/ Seus seios altos parecem (se ela estivesse deitada)/ dois montinhos que amanhecem/ sem ter que haver madrugada/ …apetece como um barco/ tem qualquer coisa de gomo/ ó fome, quando é que eu embarco? Ó fome quando é que eu como?» Só por isto já tinha valido a pena. Alguns ainda dirão: que não, que não…..! Problema deles.

E vamos então viajar com os nossos Magos, um Negro, outro Branco, mas certamente muito competentes para virar a cabeça aos Cinzentos, e sempre lembrando o grande interesse do nosso poeta por literatura policial, aliás, os únicos romances que gostava, só que estes efeitos passavam agora por um protagonista real que se achava a reencarnação de um chinês nascido há três mil anos de seu nome Tu Li Yu, e que nesta reencarnação era apelidado de Besta- isto por causa da mãe que sendo irrascível dizia então que ele era uma besta- como lia muito a Bíblia pensou que fosse a do Apocalipse. Pessoa estava muitos graus de iniciação acima, e a sua mais alta demanda se bem que não o separasse do seu congénere, tinha trilhos mais apertados. É certo que sempre deixou o outro suspenso com a leitura da dita carta que nunca chegou a fazer, mas creio que o ajudou a virar costas a algumas contas que deixou atrás de si, que por pressa de se suicidar, ou porque teve de se “raspar” abruptamente para Berlim, ou fatal homicídio, o pusera a dar entrevistas e depoimentos nos jornais e na polícia.

Suponhamos que ambos se divertiram com o estranho caso em que se falou até de assassinato devido ao universo inglês altamente criminalista, mas o certo é que a Dama Escarlate embarca antes de Crowley com uma mais enigmática cigarreira pertencente a Pessoa (no interrogatório é assim que é descrita) e sabe-se lá o que eles andaram a fazer no insólito mundo que os catapultou para aqui?! Acho que ainda se escreveram para além da “morte” agora com o Mago Negro submetido às vantagens de Pessoa, que lhe traduziu o «Hino a Pã» mais as notícias que saíam no Jornal de Notícias e na revista Girassol. Afinal, o Bem vence sempre se quisermos tirar elucubrações do caso. E já de bem com a sua talvez inusitada e brilhante jogada, o poeta encerra a comunicação e assim se separam para sempre.

Tinha passado o tempo. As vantagens esgotaram-se e creio que o outro se lamentava amargamente com derrocadas financeiras o que para o nosso poeta seria assunto que ele não conseguiria jamais responder – amargurava-se agora ele mesmo de estar com posições tensas no seu próprio horóscopo para se ocupar de outros.-

O Hino a Pã, magistral poema deste fauno, foi enviado para a revista Presença, mas creio que nem isso lhe chegou. As mãos do Mago ficariam vazias de promessas feitas pelo nosso que já muito se tinha esforçado para uma história bem guardada nos Infernos e nos Céus. Era gente singular! Em Lisboa se não olharmos para o bom tempo podemos bem morrer de tédio e os portugueses também não incitam ao despacho do inesperado, e esta Inglaterra de espíritos do outro mundo sempre esteve muito presente na pessoa de Pessoa, que nunca tirando a máscara, se revelou infalível em matéria criminal.

«…..Assim sei que sou quem sou, e terei que o ser separadamente.
A alta lição do escárnio alheio alberga astros em seu futuro».

A propósito desta jornada.

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