Um editor deve cultivar a desmedida

Das crónicas publicadas no Hoje Macau por João Paulo Cotrim, recolhemos alguns parágrafos que assim republicamos.

Sou do Sul, portanto lugar de mesa invariavelmente estendendo-se sob sol-posto em rima com a maltosa feita casa, cal de parede e o sacudir de paisagem, serviço dobrado de sorrisos e vincos fazendo cama para pão e vinho. O cortejo dos dedos pendentes de suas mãos, marcadas pelo fazer, reparo, trazem comida e bebida, as cores, as dores. Alguém levanta a voz, sussurros concorrem com o vento, os talheres debatem-se, há-de alguém amanhar as tensões e as flores dos que, pelo toque, se dizem família. Os amigos, com eles montanhas e rectas. As falas que se partem como pão, dizem. As vozes logo se alevantam sob sopro da alegria, outros mandam calar, que faz parte. Há segredos para conter e revelações de nada para celebrar, corpos ansiosos por correr. Entorna-se um copo, elogia-se a receita, o forno, o gesto. Um dos outros terá que lavar a loiça, recolher os restos, abraçar o que sobra da partilha, uns que chegam e partem, a mesa afinal um peito. Como saber se a refeição abre, vai de meio, ou se finda? Só se ama conhecendo.

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Surge-me estranha, a praça, talvez deprimente no sinuoso como se apresenta, indistinta entre o que deve ser a face e a rabada. Certos bairros parecem ser, de qualquer ponto de vista, traseiras. 

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Desorientação militante. Não posso apoiar candidato maioritário e triste que foi entregando a cidade aos interesses mais venais, a ponto de continuarem a ameaçar uma das minhas colinas (a de Santana). Custa-me que seja socialista a gerir ao sabor das modas sexy. Não alinho na política cultural invisual e incapaz de perceber que nem tudo se constrói sobre nomes. Ergo, portanto, voz titubeante em favor do João Ferreira e de um partido comunista que se abra em curva sinuosa. 

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Sucedem-se os almoços que alimentam dias inteiros. Os que se propõem prolongar agendas, acertar detalhes e definir convites, fazer pontos-de-situação, do mais estranho em dias lassos, ponto-pé-de-cruz em trapos. Também os há em que do inesperado fazem desabrochar ideias, esses cães raivosos que não deixam de me atormentar a apatia com os dentes afiados da possibilidade. 

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A doença atravessa-nos tal fantasma de lenda, arrastando penas e ameaças, para nos deixar bombas no colo, que acariciamos até explodirem.

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Belas massas moventes em tons de branco-cinza roçam os pontiagudos postes que defendem os altos edifícios de ameaças celestes ou procuram apenas e com singeleza metálica captar ondas. Vai chover. Chovendo no molhado: a acumulação de suspensos e irresolvidos, de encargos e tarefas, passou do papel para um qualquer lugar no corpo, um punho entre estômago e coração, rins e virilhas. 

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Fui puto de Legos. Poucos, que a vida de então não dava para mais. Meia dúzia de peças davam me pôr na Lua, abrir velocidades, disparar sobre o Mal, erguer alturas desmedidas, construir castelos e absurdos. Tenho no céu da boca a recordação da aterragem dos primeiros paralelepípedos de pinos e encaixes na minha mão. Agora, não passa um dia em que uma peça, já não de plástico, não me aparece a ferir o pé descalço. Isto e aquilo, mais isto que aquilo, atitudes, um gesto, brutal esquecimento, humilhações, um incumprimento, um mau trabalho, friezas, avisos, pressões, desilusões, a notícia de que afinal. Para que não me esqueça: em certas vidas, as peças teimam em não encaixar. Como se não pertencessem.

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Semeando metáforas à toa, enquanto vou rasgando pele nas silvas o que colho por ora são amoras, páro gastando a vista na leitura da mais enigmática das imagens: recebo em bêbada alegria ecografias, dadas como cartas de jogar, ases de copas pulsando no escuro os nomes, tanta menina e um puto que vem anunciando já coração. Coincidem nas horas, mas contêm tempos diferentes, e nem por instantes apagam a bossa nova que anunciam. Vai de arrastar pé e lançar braços ao céu. Brilham as grávidas de tal modo que os semáforos hesitam na função, Vénus despiu as lantejoulas, só a sábia Lua insiste em ser espelho das muitas fases que se anunciam. Arrastem-se os pés, afinem-se os instrumentos, encham-se os copos. Que sejam curtas as horas, tratem agora de dar a volta para assumir posição. Mil olhos postos e entretidos nos entretons das massas pulsantes de branco e negro, um nó de horizontes a definir as formas deste alguém. Estamos de esperanças, enfim um contra-ciclo de polinização.

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O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.

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Que esconde uma montra? Percorro a página de abertura do sítio (www.abysmo.pt) e vejo como vem sendo parca a colheita, que nunca foi dada a abundâncias. Logo os restos de sangue camponês encontram razão nas vicissitudes do tempo, cargas de água e sol abrasador ou aquele nevoeiro que se abateu sobre o mundo e as vontades. O bom agricultor sabe ler a meteorologia, até a atmosfera da desgraça, pelo que não será apenas por isso. Onde se conservam as sementes adiadas, em que compostagem os apodrecidos? E as sombras, que celeiro bojudo as mantém na boa temperatura? Tanto por enfrentar e as ferramentas ferrugentas, rombas, quebradas…

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Estão elencadas, e não apenas pelos profissionais do contratudismo, as fraquezas dos festivais literários: a vacuidade das ideias distribuídas, a claustrofobia dos temas e editoras dominantes, o espectáculo das vaidades, a promoção da leitura reduzida ao culto do autor, a dislexia entre performance pública e qualidade de escrita, a insistência em um só modelo de conversa pequena perante plateias enormes, etecetera. 

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Vejo agora com o corpo todo que talvez seja desta matéria a despedida, momentos em que não distinguimos o que sobra de noite ou começa de luz, frescura nas mãos antes de cuspidas, os pulmões a encher com o céu do olhar, seis da manhã, talvez antes, contavas-me como no orvalho se colhem as derradeiras lágrimas de felicidade, sete da tarde final, devia ter levado enxada para marulhar as terras ajardinadas do claustro, círculo de tantos silêncios, era de ficar encostado ao cabo esperando pelo teus silêncios encavados (…).

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Cuspo nas mãos, cuspo no céu. Hei-de aprender a dizer foda-se como quem reza. Toquei a madeira do teu féretro feito de veios, talvez raízes, e vociferei que do teu fogo se ergam árvores, mergulhem pássaros, voem copas e se enterrem asas. Sacudo a enxada batendo no chão, soltando terra até casa, marcando com som baço a linha directa ao coração. Volto a bater com a asneira no chão: caralho. Falta-me o ar.

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Computador grávido de décadas resolve despedir-se, sem estrondo, mas com malefício. Afirmamos na conversa mole a dependência, mas não sabemos o modo como estes seres nos prolongam em prótese essencial para qualquer passo até falharem. Há vida além do ecrã, mas não sei já onde. Algures havia backups a velar pelo passado, aquele a que não voltaremos e o outro que nos falta como oxigénio embora respiremos, pelo que a desgraça talvez não seja tão grande agora surge. Algo se perderá, que não há outro modo do dia nascer. Só que o acontecido não se limita a mera alteração na rotina, funciona mesmo como reboot: as máquinas velhas têm manhas a que nos afeiçoámos ou pelo menos domesticámos, os programas em versões vetustas obedecem-nos, sabemos onde está cada botão, cada password, cada rotina. E a culpa assenta no nosso comportamento, que temos demasiado peso no correio, muitas mensagens abertas, muitos programas a funcionar em simultâneo, mais isto e menos aquilo, descuido e desrespeito. De súbito, vemo-nos obrigados a repensar mais esta relação, a começar de novo e o word não se diz da mesma maneira, é preciso recomprar o pacote dos básicos, aceder a dezenas de plataformas, redefinir milhares de palavras-passe, aceitar contratos em que cederemos até o futuro e um rim. Estou a ver a velha Olivetti armada em decorativo objecto sob a camada de pó e suspiro.

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Ainda nos reunimos sob o signo do medo. Coreografamos os primeiros momentos com a dança da hesitação, não sei se mão se cotovelo, se abraço ou aceno. Afasto por instantes a máscara para que me reconheçam ou continuo oculto e falante? Perceberão que estou sério ou sorridente? Se as comissuras falassem…

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Mês morto, mês posto. Neste reino nem distingo o suserano, presto vassalagem apressada e às cegas sem tempo nem para contar as baixas. A vibração do telefone no seu silêncio canta um desespero que rima com a incapacidade para atender. Nisto de desconseguir devo ser dos melhores.

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É só por isso que os projectos valem a pena: há pessoas por detrás das coisas e das obras. Há vida antes da morte. O gesto estético só me interessa se estiver ligado à vida e à carne dos dias. Não é tanto a questão desirmanada da fantasia escapista contra a força de intervenção rápida do neo-realismo. Trata-se de encontrar a força ténue do acto criativo: uma interrogação que pode explicar; um momento que pode iluminar; uma imagem que pode dar a ver; uma ficção que nos pode mudar a vida. Ou não.

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Até o mais escuro dos ateliers me aparece tomado pela luz. Assim com o esboço: mais do que revelar a ideia que desponta, o titubear antes do salto, portanto a potência, contém a mais livre e rude das espontaneidades. Se nos passos há caminho, naquela busca encontra-se logo logo horizonte. Daí que a oficina seja bastante mais do que bainha e bastidor, erro e ferramenta, suor e preguiça. É lugar de muitas subtilezas e espectáculos.

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Passo demasiado tempo à mesa, dizem-me. E logo os olhares comentam a barriga. Talvez passe demasiado tempo à mesa. Contudo, raras são as vezes em que me limito aos prazeres da dita. Não me sento para comer, entro em campo. Os gestores de topo jogam golfe. Os políticos da mediania vão ao futebol. A sociedade frequenta o ténis. Eu jogo-me à mesa. Quantos projectos acontecem de garfo na mão? Quanto de amizade estiquei, ou encolhi, já agora, de copo na mão? Não me interessa muito fazer essas e as outras contas. Mede-se demasiado nesta vida. Um editor deve cultivar a desmedida.

7 Jan 2022

Colhido por nuvens a alta velocidade

Santiago, Óbidos, quinta, 14 Outubro

Embrenhado que andava na celebração de certa ideia de resistência, devo ter achado que o tempo me acompanhava a par e passo, na vez de insistir naquela tão sua corrida inexorável. É de contar ainda com as muitas hesitações em torno da celebração de uma década titubeante, sinuosa, arriscada, exuberante, excessiva. Mas estava decidido, por razões várias, fazer prova de vida nesta edição do Folio. De súbito, os dias viraram semanas e estas quinzenas e a areia revelava que estavam os livros estavam por fazer. Eram só sete e um cd. Para aqui chegar, portanto, foi uma oficina de milagres. Para falhar que não seja por pouco.

Começamos por este lugar sagrado com a exposição a partir do «Diário das Nuvens». O João Francisco [Vilhena] não consegue esconder o seu entusiasmo em torno de uma biblioteca das nuvens que radica em Aristófanes e espalha por séculos e séculos. Chama a atenção para a luz que se projecta no altar, sem outra imagem que uma enorme nuvem, em diálogo com as massas que abandonam com vagar as lombadas e enchem de mais céu o recanto. Este resplendor prolonga-se na obscuridade da capela mínima de São Martinho, com a projecção dos pequenos filmes, cruzamento de vozes e sons do etéreo e da terra. Foi momento de relembrar o Edgar Libório, mestre da luz e do som. Bebíamos já uma Cadáver Esquisito, isto se tivesse chegado. Ainda teremos que apresentar a vida amarrotada de Jean Moulin e as ilustrações para Natália [Correia] e Aurelio [Arturo] de uma mão-cheia de colombianos e portugueses, antes de nos dedicarmos à cerveja literária, que tardou em chegar. Suspensas das vigas da Artes & Letras, do mano Luís [Gomes], estão as ilustrações que acompanham cada um dos seis contos. Alguns cartapácios talvez não tenham apreciado a quebra no sossego imposta pelos amantes do lúpulo. Mas por estes dias, o ponto de encontro para perdidos e desorientados fixou-se aqui.

Casa da Música, Óbidos, sexta, 15 Outubro

O nó teimava em não descer da garganta. Os miúdos que iam interpretando os poemas de «Tens é garganta! – Só se pode ser poema no Outono», acompanhados pelos colegas que compuseram os acompanhamentos musicais, voavam alto. Custa-me não enumerar aqui cada um dos nomes, quando preciso de dizer que foi o Luís Germano, que anda a fazer da sua escola Josefa d’Óbidos laboratório exemplar de promoção da leitura, que o Henrique [Manuel Bento Fialho] fez uma primeira escolha de poemas das nossas edições, depois selecionados pelos jovens leitores, que José [Anjos] animou depois as oficinas à procura da respiração exacta. O CD está bastante bem, mas o palco transfigurou-se em jardim semeado e esta celebração da palavra afirma a escola como lugar vivo.

Santiago, sábado, 16 Outubro

Saltada a Lisboa, digo Setúbal, para a inauguração da «Ilustração Portuguesa», na Festa da Ilustração, com livro incluído. Mais uma corrida, soltando o perfume da tinta e das imagens, e logo me encontro frente à lareira enquanto se entrava Luiz Pacheco adentro, no clube de leitura dedicado aos malditos. «Comunidade» continua um ser vivíssimo. Nunca o corpo foi avaliado, medido, devorado, celebrado assim. Todos conhecem o Pacheco, mas afinal quase nenhum o lê. Apetecia-me uma Cadáver Esquisito, mas os hóspedes dos dias anteriores protegeram-nas com a própria vida.

O Jorge [Silva] deu magnífico ritmo ao pequeno volume que reúne os 80 textos nascidos da provocação fotográfica diária do João Francisco [Vilhena]. Nunca antes me tinha obrigado à prática diária da escrita e o resultado escalda-me as mãos. Apesar de uma ou outra ideia, da volúpia da descrição, dos socos na narrativa, foi sobretudo a palavra que persegui, os ossos do sentido, a transfiguração da oralidade. Fui livre que nem cumulus. A riqueza de formas e subtilezas, a gama do épico ao sussurrado, destas imagens não deixam de interpelar. No ecrã não estavam mal, com a luz a parecer surgir do seu interior. Mas o seu lugar é o papel, tal como parecem ter sido feitas para encher capelas, igrejas, catedrais. São objectos do mistério, onde nos espelhamos de mil modos. Assim os poemas quando cumpridos.

Teatro da Rainha, Caldas, terça, 19 Outubro

Vejo da plateia o círculo de luz projectado sobre o José Luiz [Tavares] no palco do Diga 33. O rigor da sua poesia impressiona sempre, tanta oficina e leitura, muito horizonte e ideia. A que se somam depois os pedaços de vida, as causas, os interesses, paixões e ódios. Há uma fulgurante verdade no que faz. Podia até ser puro artifício, desde que escrevesse o mesmo, mas assim brilha no escuro.

Espaço Ó, Óbidos, quarta, 20 Outubro

Está mais confessional hoje, o Miguel [Martins], no baile de apresentação à sociedade de «Do Outro Lado». Atira episódios intensos, conta bastidores da recolha dos dispersos de tantos anos, que está longe de ser completa, mas seja esta a sua vontade quase sempre da frugalidade e do apuro. De qualquer modo, exemplifica na perfeição o percurso de uma voz que pratica a mais terna das raivas. Ou será o inverso?

Óbidos, sexta, 22 Outubro

Não podia deixar de ser festa, a apresentação de «Micróbios», do Henrique [Manuel Bento Fialho], pelos modos, temas e práticas. O Fernando Mora Ramos fez leitura de abrir apetites, partindo tudo e lançando aos quatro ventos. O autor estava em casa e foi de espadeirar com ironia o alto e o baixo. Que bem sabia agora uma Cadáver Esquisito. Lá iremos, mas antes «O Ângulo Raso», acabado de chegar da gráfica, deu azo a bela sessão em torno de Fernanda Botelho, com intervenções substanciais da Joana [Botelho], da Paula Morão e do José Manuel dos Santos. Agora a cerveja, outra vez. Com livro onde recolhem os seis contos expostos nos corpos das garrafas. Vieram dizer que as sucessivas intervenções acabaram sendo sessão de stand up. Se isto fosse brincadeira.

Óbidos, sábado, 23 Outubro

Estou para ver as reacções a este «Puta de Vida», começando pelo título. (Estou furioso por não ter dado por título próximo do Miguel Esteves Cardoso). Contém uma energia que se comprovou no modo como tocou a plateia durante a leitura a várias vozes de um capítulo fulcral. O tema será a violência, também a conjugal, mas os romances não se medem aos temas.

Aprendo com gozo que o Luís [Cardoso] é animal de palco, não apenas no modo como enfrenta as questões nos debates, mas a ler e a cantar o seu Timor. A noite cresceu nos Bons Malandros, como habitualmente, desta vez regadas a Cadáveres.

24 Nov 2021

Dentro dos momentos

Serpa Pinto, Lisboa, domingo, 3 Outubro

Desde a (provável) primeira exposição de banda desenhada acolhida por museu nacional, dedicada a José Muñoz («Cidade, jazz da solidão»), nos idos de 1994, no Museu Rafael Bordalo Pinheiro/Museu da Cidade, muito terá mudado, mas desconfio que não o bastante para evitar os esgares de excelso desdém ao ver bd nas paredes do MNAC. Mais ainda tratando-se de tira cómica, Bartoon. Talvez se salve por apresentar «O artista do momento: o Homem do Paleolítico». O mano Luís [Afonso], no seu inesgotável labor, uma escrita de subtilezas à base de gestos e olhares, anda esculpindo há décadas as luzes que projecta sobre temas que vão fazendo de nós o que somos, corpos do momento. No caso, reúne-se o comentando à volta das magníficas gravuras a céu aberto de Côa, tendo até acrescentado o dito Homem do Paleolítico à sua galeria de personagens. Digo magníficas em eco do que fui «ouvendo». Apesar de ter passado noite acampado à porta do Museu de Etnologia em greve de fome para que não acabassem debaixo de água, ainda não fui celebrar aquele sagrado, como deve ser, de olhos abertos e corpo inteiro.

(E vão duas recordações em um só parágrafo, continuas envelhecendo, meu velho).
E depois reencontrei o António Faria (vivemos tempos de reencontros, valha-nos isso), que interrompeu as suas paisagens para desenhar esta exposição. E para revelar o verdadeiro rosto do Luís, artista dos muitos momentos, desvelado a partir dos olhos das suas personagens.

Horta Seca (versão n.º 20), Lisboa, sábado, 9 Outubro

A Quinzena [Jean Moulin] fecha com estrondo e dois lançamentos. O do livro-relâmpago, «Jean Moulin Lisboa 1941», onde se acolheu o essencial dos textos e dos vestígios da sua passagem por Lisboa e por nós: o discurso de Malraux, dele fazendo rosto da França, o testemunho literário e (talvez) vivido de Jorge Reis, um belíssimo conto do Fernando [Sobral] a esticar todas as possibilidades ao limite da paisagem, o relatório com as contas da Resistência partida, e muito mais. Umas noitadas valentes, a fazer lembrar outros combates de urgência, corremos atrás do Jorge [Silva] que andou, tal maestro tresloucado, a pôr tudo e todos no andamento certo. Entregámos as 216 páginas a 4/4 cores ao Carlos Vintém na segunda-feira e ao fim do dia seguinte tínhamos 50 exemplares brilhando (demais) nas mãos. (Estes milagres ainda vão acabar com as tuas dúvidas acerca da impressão digital, cota…). Faltou o terno e atento texto do Ferreira Fernandes, que fez a propósito para «A Mensagem» (https://amensagem.pt/2021/10/05/jean-moulin-lisboa-comemoracoes/), mas nem a mais radical tecnologia resolveu o tempo: como incluir texto que ainda não foi escrito?

E depois o outro, aquele para as supostas crianças, quem sabe jovens, inevitáveis adultos, «Jean Moulin, a sombra não apaga a cor» (ed. APCC), traçado a meias com o Tiago [Albuquerque], que acabou por não conseguir estar. Aliás, senti-lhe a falta durante o processo inteiro de criação, que me interessa mais partilhado, dividido, rasgado. O combate entre o possível e o impossível nem sempre se perde, nem sempre se ganha.

O que aconteceu por estes lados, explodindo a partir da Casa da Imprensa, fez-nos acreditar. Descontemos os encontros e reencontros, que os houve e abraçados, além de gestos simples e comoventes, presenças regulares, disponibilidades que reverberam. Aconteceram filmes de sala cheia até altas horas, aqui no Ideal. Centenas de gente a perder-se nas exposições. Debates, acesos, e não apenas entre historiadores de renome. E depois a pedra, momento singelo em dia de comemorar a República, com todos os muitos oradores ironicamente disso se esquecendo. Está no chão do miradouro, a dizer com um olhar penetrante em granito negro do Zimbabué sobre lioz branco que as raízes podem ser horizonte. Afinal, com bem notou FF, se foi aqui que Moulin ganhou a luz, andámos, entre fogo e rasgo, a celebrar Lisboa. Uma certa Lisboa.

Horta Seca, Lisboa, segunda, 11 Outubro

Desmontada e embalada com mil cuidados a exposição Moulin, aguardo o transporte que a levará para Óbidos. Folheio o jornal do Festival Literário e noto gralha na prosa onde tratei de fazer coincidir festival e almoço de verão. Não dá para sacudir. Que venham os dias de outros e dessoutros, de vertigem e cansaço, de saber e sabor, de festa e hipocrisia, de deslumbramento e desfeita.

«Uma vespa. Uma vespa pousa-me no braço, sendo esquerdo pede palmada da mão oposta, dizem. Travo para garantir ao olhar que não é abelha, digna de respeito maior. O dono da casa e da mesa sob latada mediterrânica grita as vezes suficientes até que me aperceba: a bicha tem nome, não merece morte súbita. Uma vespa pode ter nome e nisto percebo o essencial.

Sou do Sul, portanto lugar de mesa invariavelmente estendendo-se sob sol-posto em rima com a maltosa feita casa, cal de parede e o sacudir de paisagem, serviço dobrado de sorrisos e vincos fazendo cama para pão e vinho. O cortejo dos dedos pendentes de suas mãos, marcadas pelo fazer, reparo, trazem comida e bebida, as cores, as dores. Alguém levanta a voz, sussurros concorrem com o vento, os talheres debatem-se, há-de alguém amanhar as tensões e as flores dos que, pelo toque, se dizem família. Os amigos, com eles montanhas e rectas. As falas que se partem como pão, dizem. As vozes logo se alevantam sob sopro da alegria, outros mandam calar, que faz parte. Há segredos para conter e revelações de nada para celebrar, corpos ansiosos por correr. Entorna-se um copo, elogia-se a receita, o forno, o gesto. Um dos outros terá que lavar a loiça, recolher os restos, abraçar o que sobra da partilha, uns que chegam e partem, a mesa afinal um peito. Como saber se a refeição abre, vai de meio, ou se finda? Só se ama conhecendo.

E nisto um festival. Do outro lado da mesa atiram papel amachucado garantido registo de rima imemorial com cantar e de discussão com pensamento e de debate com o marulhar do oceano e os toques de pele com o desejo e uns raios que nos partam. Para que conste, o deejay, antes de o ser ao ar livre, foi na rádio o maestro das convergências. Deixemo-lo ser agora nas noites recolhidas ao cubo. Valha-nos São Programador, padroeiro dos acidentes, esse Cristóvão das curvas!

Ao quarto parágrafo (no original estava terceiro, nunca atinas com números, velha carcaça) partilhemos a clareza possível: sacudo folhas e sobra-me um Folio a perder de vista, almoço de domingo para o que der e vier, pequenas heranças e o horizonte que nem navalha, erga-se em grito flamengo a coreografia de mãos desdobrando paisagens, guardanapos, gritos dissonantes, ideias de passar muralhas e de erguer livrarias no altar, toque enfarinhado da quentura da côdea, a sopa arrefecendo, velhas histórias, uma promessa de fruta. Cá entre nós, mal o outro mal se assome no desvão da frase faz-se fruta tocada. Morra quem se negue.”

27 Out 2021

As circunstâncias e o seu homem

Luís António Verney, Oeiras, sábado, 18 Setembro

De frase impressa nestas páginas nasceu conversa com a Catarina [Sobral] e o Nuno [Saraiva] no «II Encontro de Culturas: Multiculturalismo e Identidades». «Sob a Minha Desatenção, Uma Curiosa Troca de Olhares» fez-se em modo despenteado, sob grande ventania. Estes terrenos, bem o sabemos, contêm qualquer de pantanoso, qualquer passo pode contribuir para nos enterrarmos abraçando bandeiras em confuso vórtice. Não foi o caso, que, interlocutores e moderador, não desafinaremos por aí além. Ou mais ou menos, que para o Nuno o humor deve ter limites, por exemplo, no que diz respeito à fé dos outros. Enquanto isso, não creio que se possa retirar a ofensa da equação. Respiramos um ar dos tempos em que a ofensa virou veneno viral. A Catarina, das nossas autoras mais traduzidas, falou da experiência de leitura e interpretação afinal singelamente comum nas mais variadas culturas. Do outro lado do espelho deu para reflectir, se isso fosse feito a propósito da obra fragmentária e dispersa do ilustrador, na atenção com que Saraiva vem, há que tempos, descobrindo na ponta do lápis Lisboa, e os seus bairros, sobretudo Alfama ou Mouraria, que nunca sei, tornando-o grande especialista em identidades. O pretexto era, relembremos, a bela ideia lançada pelas Bibliotecas de Oeiras de interpretações desenhadas da obra de Neves e Sousa, com o Nuno a meter-se na dança dos corpos femininos e a Catarina a desenvolver pequenas narrativas, desfazendo o humano na paisagem, com cor incluída.

 

Horta Seca, Lisboa, terça, 28 Setembro

Os últimos dias, semanas até, começam e acabam sob o signo de Jean Moulin. Hoje, mal acabado terno reencontro com o Fernando [Alves] à sombra dos microfones da TSF, tive que recuar a séculos passados atravessando loja tradicional em esquina da Baixa para procurar fita que sustentasse os painéis que, do salão nobre da Casa da Imprensa, extravasaram para a rua. Um rosto, não mais que isso, mas com densidade tal que tem hipnotizado os transeuntes sempre incautos da cidade maior. Nas paragens e nas esquinas, no verso de anúncios, por exemplo, ao mais recente 007, perguntam quem terá sido este Jean Moulin que por aqui passou há oitenta anos com o desejo de resistir mais e melhor à noite que se abatia sobre a Europa. Daqui a pouco lutaremos com a corrente de ar para colocar os painéis, rígidos e frágeis, na longa montra que vocifera sobre negro: «Artista boémio, funcionário rigoroso, político eficiente, resistente determinado, herói improvável: o rosto da França».

Ontem começámos com um postal inteiro, na estação dos correios do Camões, dizendo que a mensagem escrita rasgou e continuará a rasgar fronteiras. Dissemos com a pompa dos discursos dos familiares e autoridades, da assinatura de mitos presentes, devidamente carimbado o conjunto. A Quinzena Jean Moulin, ao longe, parecerá um postal, atirado ao ar, lançado ao rio. Agora ansiamos pela chegada do catálogo que reúne, sob a batuta sempre vivaz do Jorge [Silva], as pistas e os vestígios que fomos conseguindo recolher, com a determinação bem-humorada do João [Soares], a infinita e gargalhada paciência da Manuela [Rêgo], além da atenta vigilância do «exilado» no Luxemburgo, José Manuel Saraiva, sólido construtor de histórias da História. A sala enche-se para lá do possível ou do provável para ler e comentar a figura e nisso nos comprazemos. Os primos, que responderam com extrema generosidade aos nossos inquéritos e inquietações, comovem-se. O presidente da associação de amigos de Jean Moulin, Jean-Paul Grasset diz-nos que esta era a primeira vez fora de França que alguém homenageava o resistente. E logo desta maneira. Alguém indica uma figura, talvez secundária, outro deixa-se fascinar por detalhe amoroso na vida aventurosa, aquele sublinha o documento e a sua circunstância, e mil pequenos debates daqui partem. E o rosto brilhando omnipresente. A embaixadora da França, Florence Mangin, visivelmente impressionada, pergunta-me qual seria, entre os nossos, personalidade equivalente. Rabisquei hesitante umas hipóteses, que não nos faltaram resistentes, mas nenhuma me pareceu exacta por incompleta. As circunstâncias que fizeram Jean Moulin foram únicas e essencialmente resultado da experiência francesa, entalada entre o miserável colaboracionismo e «l’attentism», o tristonho esperar de braços cruzados, entre a cobardia generalizada e uns actos soltos de quixotesca coragem. O homem comum tornou-se extraordinário no momento em que disse: não!

 

Horta Seca, Lisboa, quinta, 30 Setembro

O outro lado de Moulin, o menos conhecido até entre os seus conterrâneos, revela-se na abysmo Galeria, que não podia escolher melhor maneira de recomeçar. A atribuladíssima última exposição com as suspensas paisagens geométricas do Simão Palmeirim, acabou sendo premonitória. O trabalho que a fechava atraía-nos para uma voragem de negro. A realidade imitou-a logo a seguir. Está na hora, portanto, de recomeçar, de «Dançar sobre as ruínas». «Como não ler os detalhes de uma vida (intensa) a partir do retrato final no qual se tenta encerrar qualquer biografia? Jean Moulin (1899-1943) foi funcionário público que levou ao limite o seu dever cívico de resistência à catástrofe da guerra, à ocupação do seu país por exército estrangeiro, ao ataque directo e persistente aos seus valores. De um golpe (com vidro) passou de Prefeito a resistente e daí, na sequência do modo como soube erguer forças dispersas, a herói. A certa altura sonhou uma vida distinta, talvez entregue ao desenho, ao comentário político, tão só à arte. Escolheu então, e para ela, um «nom de guerre», ele que acabou tendo tantos nomes: Romanin, as ruínas de um castelo na sua Provença natal. Não abandonou mais o desenho livre e rápido, com que foi tomando nota de lugares e paisagens. Arrumámos o que sobrou dessa vida que poderia ter sido em duas áreas, a da relação com o texto poético, notável em «Armor» e a do desenho de costumes e de humor, afinal celebração da festa, da boémia artística. Isto com uma leveza de traço, a cor líquida e singela, a composição bem orquestrada prenhe de detalhe e movimento. Não será difícil neles encontrar o agridoce perfume da suave melancolia, talvez em resultado da duração. Nenhuma vida se gasta apenas em festa, todas as noites acabam. Mas são os olhos em cada uma das figuras que se mostram ricos em ensinamentos, quando nos olham, quando se entrecruzam, quando se perdem. Anunciariam as ruínas, a morte?»

6 Out 2021

A mão no rosto

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 13 Setembro

Conhecia este texto, que dança nas profundezas, da Inês [Fonseca Santos], fruto da deliciosa prática da partilha – toma que está maduro, ajuda-me a descascá-lo. Desconhecia o quanto de solar dele extraiu o Mantraste – olha como o cubismo nos permite fazer do fragmento corpo inteiro. E depois ao ser impresso o raio do texto ganha outros tons – será rosto maquilhado? «António Variações – Fora de tom» (ed. Pato Lógico/ Imprensa Nacional), esguio de formas, como todos os da colecção Grandes Vidas Portuguesas, está cantarolando pelas estantes, nas minhas mãos.

Os bem-pensantes, que os há sob cada pedra em todos os quadrantes, insistem no erro de que os livros de putos apenas a eles se destinam e dispensam leituras aos entretanto crescidos. Neste pequeno volume, a Inês e o Bruno dizem tanto sobre a vida de cada um, as vidas dos outros, o peso das palavras, o modo como elas nos abrem ou fecham os dias, falam do que somos se o soubermos ser! Sem condescendências, sem medo de se apaixonar pelo tema, brincando invariavelmente às construções, das caras e dos versos. «Não é em linha reta, o humano», mas há geometrias ocultas, linhas de terra. A fortíssima face do António Variações atravessa o livro por completo, faz-se paisagem e cadeira, dança e ternura, microfone e enxada. Perto, tão perto, passeiam-se as mãos, enormes. Notável a subtileza com que o Bruno insere elementos de uma ruralidade identitária que só o Variações soube tornar cosmopolita – raiz e antena. As convenções, se podem ser casa, tendem a tornar-se prisão. António Variações não deixou ainda de rasgar cantando a liberdade.

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 16 Setembro

Andamos nisto, a disparar em todas as direcções assoberbados com estampas e retratos, talvez auto, à velocidade do absurdo. A Festa da Ilustração explode lá para o início do outonal mês e o José Teófilo [Duarte], à queima-roupa, sem apelo nem agravo, pede-me reflexão escrita em torno do labor de misturas da Marta [Madureira]. Travo a fundo as urgências e fecho-me para vaguear nos seus rostos, lado visível de dilectas geometrias: «A colagem tem sido o seu território. O corpo a sua matéria, o seu assunto, a borracha ilimitada com que estica as histórias, ainda que de outros. E nessa estrutura de tronco e membros, a peça principal tornou-se a cabeça. Ou melhor: o rosto.» Amo mãos, a sua dança na atmosfera, a deliciosa relação que estabelecem com a face respectiva. Do gesto nascem caras (algures na página, exemplo virtuoso). Nisto, a colagem a imitar estes dias, feitos disto e aquilo, sobras e princípios sobre uma qualquer folha suja (de calendário). «A Marta desde sempre integrou na sua linguagem fragmentos do mundo, que deixam de lhe pertencer mal pousam sobre a página tornando-se cor, textura, sinal. Uma mola reproduzida tal e qual não prende nada, do mesmo modo que as esferas metálicas se podem tornar olhos de bicho. E até foi fazendo mais, acrescentando dimensões ao plano, ou vestindo de penas e tecidos certos corpos. Um pouco mais de vida em naturezas mortas.»

Horta Seca, Lisboa, sexta, 17 Setembro

Na escala evolutiva, um livro em pdf ou afim, por útil e facilitador que seja, não consegue ainda andar como um livro. O texto, longe dos nossos olhos, combina-se com as imagens, de modos que só a geometria descritiva explicará, e explode em objecto de capa e espada, perdão, página. Dá-se, então, o mistério. Doravante não será mais meu, ou do Tiago [Albuquerque], que o enriqueceu com visões, este «Jean Moulin – A sombra não apaga a cor».

Serão as vidas a terra de onde brotam as histórias? Basta discorrer um percurso para prender leitores a ponto de ignorarem a vida? Esta biografia aventurosa e por um triz banal deu filmes e romances, mas deu sobretudo um rosto, aqui tintado a negro e sombreado de azul. Ecoa ininterrupta a bela frase de Malraux, à beira do Panteão, com o que este contém de abysmo: «Hoje, juventude, pudesses tu invocar este homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele foi o rosto da França.»

Artur Bual, Lisboa, domingo, 19 Setembro

Surge-me estranha, a praça, talvez deprimente no sinuoso como se apresenta, indistinta entre o que deve ser a face e a rabada. Certos bairros parecem ser, de qualquer ponto de vista, traseiras. A minha infância tardia andou por perto, mas não conhecia o lugar que meia dúzia de organizadas cadeiras encheram em momento aprazado, regras sanitárias cumpridas com escrúpulo. O evento, que rima para mim com cimento, cruza depoimentos de gente que é o bairro com poesia solta sobre a habitação. O Henrique [Manuel Bento Fialho], que me acompanha a convite do Nuno [Ramos Almeida], está visivelmente mais confortável com estas circunstâncias de campanha, as palmas ritmadas, as palavras de ordem, o entusiasmo que não sei fingir.

«Já não se fabricam pistolas de brincar./ Os meninos brincam aos contabilistas com pistolas a sério,/ visões demasiado gerais, ou demasiado concretas, de uma realidade com cimento nas frestas.// Do mesmo modo, hão-de acabar com o teatro, o namoro, e todas as reinvenções da realidade.// O Porky Pig há-de acabar em chouriços e estes no cu dalgum político, cheio de sucesso e anacoretismo.»

Desorientação militante. Não posso apoiar candidato maioritário e triste que foi entregando a cidade aos interesses mais venais, a ponto de continuarem a ameaçar uma das minhas colinas (a de Santana). Custa-me que seja socialista a gerir ao sabor das modas sexy. Não alinho na política cultural invisual e incapaz de perceber que nem tudo se constrói sobre nomes. Ergo, portanto, voz titubeante em favor do João Ferreira e de um partido comunista que se abra em curva sinuosa. E na passada li três poemas do Miguel [Martins], incluídos em «São Miguel da Desorientação» (ed. Macondo), por serem exemplos da boa prática da raiva. Herdeiro do desmancho exacto de bom pata negra, o poeta usa diligentemente a frase longa, que espeta da página a marcar as peles que se aproximem. Se ainda houver punk está por perto, mas em jardim. A sua afirmação vigorosa consiste em levantar-se arrastando paisagens com a lentidão de quem tem necessidades a cumprir: dizer-se.

«E, então, sim, poderemos progredir sem estorvos, rumo a uma sociedade cor-de-rosa// governada por antidepressivos de última geração,/ em que comer baratas já não seja uma desgraça/ mas uma oportunidade para nos conectarmos com possibilidades alternativas da nossa história comum.”

29 Set 2021

Carga d’água

Horta Seca, Lisboa, quinta, 2 Setembro

Sucedem-se os almoços que alimentam dias inteiros. Os que se propõem prolongar agendas, acertar detalhes e definir convites, fazer pontos-de-situação, do mais estranho em dias lassos, ponto-pé-de-cruz em trapos. Também os há em que do inesperado fazem desabrochar ideias, esses cães raivosos que não deixam de me atormentar a apatia com os dentes afiados da possibilidade. Deu-se com o Nuno [Miguel Guedes], com o Nuno [Ramos de Almeida], com o André [Letria], com o Carlos [Querido]. Ele são podcasts de intensa sensibilidade, revistas de máxima urgência, livros grávidos de oportunidade, projectos-projéctil, promessas de alta magnitude na escala de Richter.

Outros encontros nascem destinados tão só a retomar melodias de normalidade, cantarolar encontros e lamentações, que as alegrias vão sendo raras. A doença atravessa-nos tal fantasma de lenda, arrastando penas e ameaças, para nos deixar bombas no colo, que acariciamos até explodirem.

Depois sentamo-nos com o Agostinho [Jardim Gonçalves] e a vida parece-nos outra, feita de uma tranquilidade que não aquieta as dúvidas, que não ignora as indignações, invariavelmente atenta ao outro e ao Mundo. Um vivíssimo olhar de riacho a suscitar paisagens, oriundas de riquíssima memória ou projectadas em horizonte cheio de sopro. E sentido.

Parque Eduardo VII, Lisboa, sábado, 4 Setembro

Vão passeando os numerosos cães e os comentários, uma ou outra palavra de incentivo, mas também piropos grosseiros e passagens ao largo para evitar encontros de maus fígados (as máscaras poupam alguns da má cara).

Quase se perdeu o hábito de saudar quem está ali de pé ao serviço, de súbito transparente. Também se atiram dúvidas que tamborilam com o pó ininterrupto sobre as capas da livralhada: conselhos de leitura, acerca de um autor, de planos, mas a pergunta campeã, de longe, tem a ver com preços baixos e ainda mais descontos, com a adesão à mística Hora H. Tantos anos a inundar mercados com ideias acocorados dá nisto: saldos como modo de vida.

Não páram de crescer, assim eucaliptos, as editoras-taxímetro: pague que nós publicamos, resmas de restolho, sem fogo, mas esperando arder, com autores impantes e abandonados, uns em afogadilho, mas outros em celebração de selfiem-família. O negócio das identidades terá sempre por onde crescer: quem serei eu sem autorretrato ao instante, sem assinatura, sem opinião firme e hirta.

Livraria Barata, Lisboa, domingo, 5 Setembro

Ainda não tinha descido à cave da livraria de boas memórias, agora «lugar de cultura» consagrado pela Câmara Municipal, em missão de resgate e salvamento. O pretexto – que acaba por acontecer neste limbo pós-agosto-antes das-aulas-em-cima-da-feira-e-da-bienal-de-guimarães – está forrado com as imagens que resultaram do desafio a seis ilustradores colombianos e outros tantos portugueses para viajarem em tempo de pandemia, levando na bagagem ou usando como meio de transporte poemas de Natália Correia e Aurelio Arturo. A exposição «Para Além das Fronteiras/ Más Allá de Las Fronteras» evita as paredes, suspendendo os trabalhos e agravando a sensação de percurso por bosque de cores e interpretações. O lado português floresce bastante mais lírico e metafórico, enquanto do lado de lá do Atlântico privilegiou-se a figuração e a fidelidade às fulgurações eróticas e noctívagas da poeta: «Ó noite rosa de cabelos negros/ com incêndios nos espinhos./ Bebida na taça dos meus olhos/ como os vinhos.// Ó noite carne escura. Marinheiro/ Viagem de que fantástico veleiro?» Uma ideia da embaixada que assim constrói novos territórios, apadrinhada pelo Jerónimo [Pizarro], ao lado de quem me sento para falar da pujante figura da poeta, e de tradução que ele logo ali exercita, enquanto José Rosero ilustra ao vivo, vasculhando imagens no miolo da palavra. Andámos às voltas de uma ou outra, por exemplo com a chuvosa «cantinela» de Aurelio, que por ela talvez se chegue a «lengalenga». Divertido foi ver a plateia saltitando de uma língua para a outra, vasculhando vocabulário que ora prolonga ora fixa. E mais: colhendo as imagens maduras que cada verso oferece. Não deixa de ser ingrato destacar um ou outro autor, mas, praticando mais a bruteza do que a diplomacia, assinalo o Mantraste (algures na página). Talvez por uma proverbial proximidade à natureza, integrou os versos em luxuriante paisagem que mescla rosto e casa e terra e bonecos (soma de terra e água e fogo) e água e folhas, gotas que nem folhas. (As folhas atravessam que nem lâminas a maior parte dos desenhos, portanto olhares). Expressão em estado puro, assim barro atirado à parede em construção de si.

Santa Bárbara, Lisboa, terça-feira, 7 Setembro

Belas massas moventes em tons de branco-cinza roçam os pontiagudos postes que defendem os altos edifícios de ameaças celestes ou procuram apenas e com singeleza metálica captar ondas. Vai chover. Chovendo no molhado: a acumulação de suspensos e irresolvidos, de encargos e tarefas, passou do papel para um qualquer lugar no corpo, um punho entre estômago e coração, rins e virilhas. Baralho-me com as contas, mas desconfio que esta croniqueta apura um total de duzentas entregas, outras tantas semanas de meteorologia: leitura de meteoros e tempestades, de ventos, rotinas passageiras, borbulhas e feridas na pele do tempo. Devia largar isto e ir, pândego, apanhar a bátega.

As chuvas terão, doravante, o aspecto que lhes roubou Aurelio Arturo: «Ocurre así/ la lluvia/ comienza un pausado silabeo/ en los lindos claros de bosque/ donde el sol trisca y va juntando/ las lentas sílabas y entonces/ suelta la cantinela//  así principian esas lluvias inmemoriales/ de voz quejumbrosa/ que hablan de edades primitivas/ y arrullan generaciones/ y siguen narrando catástrofes/ y glorias/ y poderosas germinaciones/ cataclismos/ dilúvios/ hundimientos de pueblos y razas/ de ciudades/ lluvias que vienen del fondo de milénios/ con sus insidiosas canciones/ su palabra germinal que hechiza y envuelve/ y sus fluidas rejas innumerables/ que pueden ser prisiones/ o arpas/ o liras// pero de pronto/ se vuelven risueñas y esbeltas/ danzan/ pueblan la tierra de hojas grandes/ lujosas/ de flores/ y de una alegría menuda y tierna.”

15 Set 2021

Prova de vida

Horta Seca, Lisboa, quarta, 11 Agosto

Vai alto o Verão e depositámos em lugar de Raúl Brandão o catálogo correspondente à terceira Bienal de Ilustração de Guimarães, com os escolhidos e premiados, além do mais, belo texto de Luís Miguel Cintra dedicado ao discretíssimo trabalho de Cristina Reis, além de rico conjunto de ensaios, resultantes de conferências. (Sim, entregámos um exacto mês antes do evento). Isto logo depois da edição dos «Ilustradores Portugueses na Biblioteca de Viana do Castelo (2014-2021)», selecção e organização do Tiago Manuel de quinze autores contemporâneos, aqui com antologias mínimas e ensaios de enquadramento. Dois sinais da vitalidade de uma disciplina que ainda procura influenciar os modos como vai sendo vista e arrumada. Temos por onde nos alegrar com o hábito feito de festivais e exposições e cursos e outros esmeros e brios. Além do que a prática da ilustração, mais política e radical, mais reflexiva e poética, de projecto e encomenda, pulsa e relumbra. Assombra.

Oculta-se, em tais incumbências, um labor editorial não desprezável e pouco notado. Assim deve ser, aliás. Há mais lugares além do palco, da montra, das primeiras páginas, dos tops de plataformas. A compilação dos elementos díspares que vão compondo o livro, cada escolha em debate com os fazedores de formas, inventores de papel, com os faróis de minudências, enfim, a ordem que resulta da massa informe assenta no gesto criador do editor. Um gesto para sempre inacabado, imperfeito, em movimento. Raros são os encomendadores que entendem as subtilezas e complexidades, as variáveis e o peso das circunstâncias. Pouco mais importa que um prazo. O livro pode até ser produto, mas contém uma transcendência que merece respeito. Aceitemos com bonomia a ignorância. E quem sabe um dia oferecer a bondade de uma explicação. A capa BIG (algures na página), assinada pelo João [Silva], da DDLX, a partir de desenho do André [Letria], serve de oportuna ilustração desse movimento entre verdejantes selvajarias.

Horta Seca, Lisboa, quarta, 25 Agosto

Fui puto de Legos. Poucos, que a vida de então não dava para mais. Meia dúzia de peças davam me pôr na Lua, abrir velocidades, disparar sobre o Mal, erguer alturas desmedidas, construir castelos e absurdos. Tenho no céu da boca a recordação da aterragem dos primeiros paralelepípedos de pinos e encaixes na minha mão. Agora, não passa um dia em que uma peça, já não de plástico, não me aparece a ferir o pé descalço. Isto e aquilo, mais isto que aquilo, atitudes, um gesto, brutal esquecimento, humilhações, um incumprimento, um mau trabalho, friezas, avisos, pressões, desilusões, a notícia de que afinal. Para que não me esqueça: em certas vidas, as peças teimam em não encaixar. Como se não pertencessem.

Eduardo VII, Lisboa, quinta, 26 Agosto

Ei-la que chega, impante, a Feira do Livro. Muito por culpa do comunicado da APEL, que nos atribui estatuto de novedio, o Público (https://www.publico.pt/2021/08/26/culturaipsilon/noticia/feira-prova-vida-editoras-1975265) abre a sua peça connosco e dá azo a um sem número de mensagens, sinceras e fingidas e mais um leque de matizes onde se exercita o humano. Que importância ganham estes detalhes, o de ser a primeira vez que erguemos barraca a solo em evento que nos desgosta e de um jornal apontar lanternas a isso? Pouca. As autoridades alegram-se com a dimensão, atiram números, muitos números, sempre a somar, enchendo bocas e cabeças com o cultural, mas é de comércio que se trata. Vem daí mal ao mundo, que se venda livros? Nem por isso, mas quando toda a estratégia assenta no preço, nos descontos, nos saldos, nos livros do dia, na Hora H, esse convite à especulação, e outras invenções do demónio, acabamos por deixar claro que o interesse não será exactamente a promoção da leitura.

Atraímos passeantes, muitos, muitos, com pipocas e hamburguesas e saladas saudáveis e cerveja artesanal em versão bem-pensante de feira popular. Onde se assinala aqui o movimento emergente das novíssimas pequenas ou nem tanto editoras, nadas e criadas por estes dias de fim do mundo? Por que raio continuam a chamar espaço dos pequenos editores a uma tenda de saldos? Pormenores, de novo, ainda que simbólicos. E nem nos devíamos queixar, pois somos associado silencioso e nada participante, mas não deixamos de reflectir. Enfim, entrámos aos 10 anos de idade, no comunicado e na Feira, graças à crise que baixou a níveis razoáveis o alugar do pavilhão que forrámos com títulos desafiantes.

Diz o fraque e a cartola, façamos montra, cais de vidro, ponto de encontro, partidas e chegadas sem horários, livros-mala-de-viagem, livros-abrigo, livros-navio. Soubera eu como, filmava cada reacção: ao acontecer dos volumes por junto, tantos e tão poucos, as colecções que só se adivinhavam, a riqueza das capas, as que parecem tão antigas quanto as vanguardas, dos ziguezagues e piscadelas de olho ao leitor, sem o estupidificar, convites a entrar no jogo, com «buracos», sem capa, sem letra alguma a não ser na lombada, cores e formatos, volumes irmanados por folha, imagens de um lado e do outro poemas, os que se desdobram, recolhidos em caixa. Leitores das muitas identidades, é entrar, entrar, que temos ainda temas ocultos na voragem, o agreste e o difícil, o melancólico e o resto, imenso e movediço.

Uma década a dizer nas entrelinhas: bons títulos – assim diz o cartão instagramático. Não está acontecendo, mas esta celebração desejava-se menos prova de vida, mais atirada para o renascer do que o soprar das cinzas, mais árvore e, portanto, vergôntea. Quem sabe, se com as chuvas.

1 Set 2021

Tropeçar parado

Foto de João Francisco Vilhena

Horta Seca, sexta, 6 Agosto

 

São que nem moscas, as coincidências. De pouco serve sacudi-las (saudades dos verões em que me perdia a vê-las em nuvem no centro das assoalhadas). No exacto momento do reencontro com o Mário [Gomes], o frigorífico que me acompanha desde o século passado resolve resolver-se, como quem diz, desistir. Ora na sequência de uma das conversas com que atravessamos densas planícies e afastadas geografias, lamentando-me eu de não ter atingido a compreensão leitora com o alemão escolar, impedindo-me, portanto, de mergulhar nos seus romances e outras experiências, o Mário propôs-me primeiríssima e prometedora versão de uma «Elegia do Frigorífico». Cruzando ensaio a mostrar costuras e autobiografia a escondê-las, com mestria e ritmo alucinante, interroga-se sobre «o coração da casa», o mais importante dos electrodomésticos da vida moderna (estou confuso, com tanta treva: moderno é hoje?). Será ficção, mas o real exige-nos que os planos se cruzem. São que nem abelhas, as metáforas.

Úteis e quase sempre amistosas. Ou me engano muito ou estará bem conservada em «no frost» esta do frigorífico enquanto modernidade, extensão da habitação, a técnica que conserva a natureza, elemento unificador, termómetro de muitas saúdes. O texto pensa e transpira, o texto ri e dá prazer. O texto desmultiplica-se em micro-histórias, pequenos cubos refrescantes, sonhos. «(Sonho muitas vezes com textos, mas nunca é fácil reconstituí-los depois de acordar. Se me treinasse em sonhos lúcidos, talvez pudesse escrever livros inteiros plagiando os autores imaginários e menos imaginários que escrevem os livros que leio nos sonhos. Seria o crime perfeito.)» A língua resistirá aos ataques de links e hiperlinks? E que uso dá a arte aos móveis do gelo? De que modo vivemos o que habitamos?

«Argumentos contra o frigorífico há muitos, embora não me venha à cabeça nenhum que seja estritamente de ordem estética. Achar que o frigorífico é um objecto pouco bonito, afirmar que não há drama humano no frigorífico, ou suster que antes do frigorífico também nunca houve nenhuma grande obra de arte em que o protagonista fosse um baú ou um lavatório: nada disso são argumentos estéticos, mas apenas o reflexo de falta de sensibilidade. Objecto estético pode ser tudo. Deve ser tudo. Se não andamos sempre às voltas com as mesmas coisas.»

Dei-me por mim, uma noite destas, a lamentar não me ter despedido devidamente – o que quer que isso pudesse ter sido – do Zanussi antes da chegada deste Samsung, redondo a roçar o sensual e sem precisar de produzir massas de gelo para manter o fresco essencial.

Europa, Lisboa, terça, 17 Agosto

O projecto que me riscou o segundo fechamento, o «Diário das Nuvens» (https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/), se por um lado me obrigou a um exercício nunca antes praticado de escrita diária, acabou sendo álibi para o crime exemplar de adiar as tarefas que, apesar do fim do mundo, floresciam assim ervas daninhas. No final daquelas voltas aos 80 dias, sobravam malas por desfazer e roupa para arejar, pdf para carregar e filmes por terminar, de modo a fazer a ligação ao que se seguiria: livro e exposição. A abertura foi depois fissura na barragem e não pararam mais de fluir afazeres em cima da apatia que se erguia montanha rochosa.

Passaram-se meses sem me atrever a voltar ao assunto, aliás, os meses passaram pelos assuntos todos expondo-os em ferida. Até que. Os braços dos moradores de quintos andares estreitaram-se ali a Campo de Ourique, sem batalha nem milagre. Resolvemos resistir à tentação de redefinir o conjunto, limpando arestas, mas com isso perdendo espontaneidade. Dobra aqui, dobra ali, logo o livro e depois a exposição – com primeira e entusiasmante paragem na Livraria de Santiago, em pleno Fólio – ganharam as formas de origami. Para não variar com o João [Francisco Vilhena], lançou-se sobre a mesa cubo de ideias capazes de quebrarem o quebranto, ainda que os planos não parem de brotar em pantagruélico excesso. São mais os olhos que a barriga.

Tomei balanço e fui, então, saltar de nenúfar em nenúfar a ver até onde me mantinha em andamento e para dedicar, já agora, leituras aos objectos capturados e ao que continham de olhar do artista, pois o propósito foi sempre o de entrar na pele e perspectiva das nuvens (estranho não se terem queixado do atrevimento em horas de «cancel culture»). O telefone vibra em descontrolo, ignoro-o com assustadora facilidade e teimo em fixar-me no retrato #70 (algures na página). Que dizer?

«Continua sem prazo de validade a ideia peregrina de que a fotografia se limita a mostrar a bruta realidade, mais real que o real. Tanto nos dá acesso ao que não descortinávamos, no caso do instante pertencer à própria substância do movimento, aquele entre-gestos de que o olho preguiçoso não carece para interpretar a coreografia. E ainda aquela fixidez marmórea permitirá doravante detectar em autópsia os detalhes que nos abrem acesso de corpo inteiro ao que acontece. Pois finge tão completamente que chega a fingir a realidade que deveras vai sendo. Estes tons outonais de souto a celebrar a luz parecem indicar aquele precioso momento do pôr-do-sol. Um dia de cada vez, outra vez. A luz que tomba esvai-se, não indo no real que se esconde no real. Não deixa de conter artimanhas de começos que sobem da raiz do negro aos azuis, os quais, por sua vez, parecem querer dobrar-se sobre andrajos amarelos que fogem, que se soltam, que se desfazem. Que esconde tal comércio das cores entre si e com a luz?

Depois os confins surgem líquidos, indefinidos, insistindo na imaterialidade do conjunto. Alguma vez a pintura se acaba? Se fosse quadro tinha fronteira. Há metafísica bastante e portanto nenhuma em sacrificar a agitação dos afazeres à réstia sublime do desperdício.”

25 Ago 2021

Abrir corações

Paredes de Coura, quarta, 10 Agosto

Calhou que a primeira saída de Lisboa – e quem diz Lisboa, diz casa – em mais de um ano tenha sido a esta terra no coração do Norte (E do palavrão: pontuar cada frase com um sonoro caralho ajuda a mudar a cor de algumas faces e o alinhamento dos pensamentos de risco ao meio.) Integrado em Ciclo de Polinização, o concerto que fechou o dia da terra esteve na boca e gesto dos «No Precipício Era o Verbo». Não sei se alguma vez se aplicará à polinização, mas estou em crer que exactamente ali, no límpido lugar inicial e a pretexto do «Realizar: Poesia», se fechou um ciclo. O que começou por ser dança entre o contrabaixo do Carlos [Barretto] e as palavras, sobretudo do Zé [Anjos], mas também do António [de Castro Caeiro] e do André [Gago], foi ganhando complexidades, convocou as interpretações do André [da Loba] e tornou-se objecto-livro com cd, que recolhe o mistério de um redondo conceito. Na viagem pusemos a rodar também o disco, que há muito não ouvia. E surpreendi-me com a maturidade sobrante, na evocação de várias infâncias e fragilidades, no prenúncio de dias difíceis, de múltiplas doenças correndo a urbe.

Apraz-me bastante este acompanhamento dos ensaios, a mecânica dos bastidores, a tentativa e erro, a fragilidade de cada recomeço, um estar por dentro, mas perto da porta, talvez à janela. Desta matéria intermitente se faz a carne do editor: está e não está. Sempre na dúvida se traz com ele algum pólen. (Algures na página, foto da Graça [Ezequiel] que acende e apaga as luzes dos poscénios).

Apesar do sólido espectáculo no coração da cidade-campo que é o coração do Norte, ficou claro que está na altura de semear e logo colher novo repertório, fazendo evoluir o conceito, integrando a imagem enquanto instrumento em diálogo, multiplicando, ainda e sempre, as possibilidades. Nestes cinco anos, foram muitos os projectos de palavra dita em palco em diálogo de muitos modos com a música e este verbo em partilha contribuiu sonoramente para abrir precipícios. Há agora que ouvir o pulsar dos caminhos de cada um dos por aqui andam nas cordas (vocais, do contrabaixo, cabos de navio, arames de funâmbulo). Paira por aqui uma alma, talvez penada, que seria pena deixar desvanecer, tal a neblina das madrugadas semeadoras.

Este caloroso lugar rima bem com ideias tocadas assim, pela naturalidade com que cruza cultura com território, o relâmpago com o quotidiano. Não outro lugar onde as culturas várias se polinizem deste modo inspirado. Há sempre novo projecto a fervilhar e oiço agora o da «Orelha», centro que partirá do som para criar educação. Tenho para mim que o Vítor [Paulo Pereira] cultivou a presidência da Câmara como se um carvalho na serra se tratasse. Passam estações e fogos, secas e tempestades, e continua emitindo aqueles magníficos tons vermelho vivo da sua folhagem, mudando ao sabor e saber do dia. E a erguer-se na paisagem, acolhendo quem perto habita. Ou os bichos que passam.

Horta Seca, Lisboa, sexta, 13 Agosto

Cheguei a gostar das sextas-treze, por trazerem à nascença arrepio de uma qualquer possibilidade, um desarrumo no tráfego da rotina. Volto a não gostar desta sexta-treze por vir prenha da morte do Gaspar. Na mania das arrumações perguntamos a raça do animal crendo que tal basta para encerrar a diferença, ficando a saber o que esperar. Um perdigueiro gosta de correr, faz-se família e cheira no ar promessas e vítimas. Dura pouco mais que uma década.

Nada mais falso, a cada bicho a sua personalidade, a cada mão no lombo um distinto comportamento. O Gaspar gastou várias vidas, uma de cada vez que mudou de casa, outras esquecidas nas planícies corridas em mar e terra.

Foi um companheiro que deu assistência cuidada às jam sessions, aos improvisos, às discussões, poemas de imprevisto e aos preparados, que celebrou golos e roubou petiscos, sabia pousar o focinho no joelho e o olhar nos olhos, ladrou aos astros e lambeu os tristes, aconchegou autores adormecidos e calcorreou as noites e as festas.

Alegria da bruta, reservava-ma só para quando nos encontrávamos em contexto doméstico. Na rua, havia mais que fazer, bastava educada mas rasgada saudação com o chicote da cauda. Depois, respeitava melhor quem dele cuidava. Para variar, comigo partilhou as cervejas e as liberdades. Quando os exageros se alinhavam andávamos com menos patas no chão. Fizemos uma praia inteira a grande velocidade em noite memorável quando o mar ardeu em ardências. Perdemo-nos no obscuro. Não era cão, era o Gaspar. Saravá, Gaspar!

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 15 Agosto

Semeando metáforas à toa, enquanto vou rasgando pele nas silvas o que colho por ora são amoras, páro gastando a vista na leitura da mais enigmática das imagens: recebo em bêbada alegria ecografias, dadas como cartas de jogar, ases de copas pulsando no escuro os nomes, tanta menina e um puto que vem anunciando já coração. Coincidem nas horas, mas contêm tempos diferentes, e nem por instantes apagam a bossa nova que anunciam. Vai de arrastar pé e lançar braços ao céu. Brilham as grávidas de tal modo que os semáforos hesitam na função, Vénus despiu as lantejoulas, só a sábia Lua insiste em ser espelho das muitas fases que se anunciam. Arrastem-se os pés, afinem-se os instrumentos, encham-se os copos. Que sejam curtas as horas, tratem agora de dar a volta para assumir posição.

Mil olhos postos e entretidos nos entretons das massas pulsantes de branco e negro, um nó de horizontes a definir as formas deste alguém. Estamos de esperanças, enfim um contra-ciclo de polinização.

18 Ago 2021

Passado a ferro

Algures entre o Carmo e a Trindade, Lisboa, segunda, 2 Agosto

Entra o homem com uma aranha na cabeça no transporte e o sinal civilizado do desejo de um dia bom desdobra-se em conversa acerca da meditação, da tristeza intrínseca do português passado a ferro, isto é, passada a fado, ida à desobediência civil a partir de Thoreau em diálogo com La Boétie, antes de aterrarmos na conversão e no destino final. A conversa vai ecoar, quase o diz, fechando a porta com mais aranhas na cabeça. Sente-se Forte. «Sai de novo para o mundo./ Fechada à chave a humanidade janta./ Livre, vagabundo/ dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.»

Horta Seca, Lisboa, sexta, 6 Agosto

O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.

Em setembro próximo, cumprir-se-á uma década sobre o momento chão em se imprimiu por primeira vez a palavra abysmo na qualidade de marca e nome. Não era ainda editora, antes brincadeira. (Uma vida inteira a brincar com coisas sérias e depois ainda te admiras, digo eu de mim para mim.) Demorou mais do que um ano para o projecto se impor com a lâmina da pergunta: e por que não? Confesso que por estes dias o fio da navalha diz: para quê?

Chegámos a pensar em escrever isso mesmo para dar cobertura ao esforço que significará abrir um pavilhão na Feira do Livro de Lisboa. Preferimos aniversários que abram para o futuro, ainda que lhe oferecendo as costas, como mandam os antigos, por estarem os olhos no percurso feito. A dúvida venenosa cresce, agravada pelo facto de não ser tempo de festa. Como assinalar a data sem nos deixarmos tragar pelo comemorativismo, invariavelmente rotineiro e bacoco?

Ainda esteve em cima da mesa com o Jorge [Silva], uma frase de cada livro em cadáver esquisito, entre o divertido e o simbólico. Afinal, os muros daquela assoalhada no Parque dirão com singeleza e grito tão só alguns dos títulos que foram sendo experimentados neste longo período, muito longe da totalidade, nem mesmo com o esforço da abrangência. Terão que me perdoar os autores, por instantes e ali sem-título, mas o critério foi quase só a sonoridade, o despertar de um espanto, a estranheza. Há dez anos que andamos a dizer, a fazer nas entrelinhas, sem sair da encruzilhada, em carrossel. Mas cada nome possui voz e luz, que por aí circulam, dando sinal de vida discreta, mas pulsante. Mesmo os esgotados não se esgotaram. Resultam de inquietações, experiências, ânsias, gozos. Nenhum se renega, cada qual mantendo a força de um sentido, ainda que esquecido, sumido ou extraviado.

Cada um erguido pelo somatório dos esforços, misto de laboratório e sapataria.
Adiante veremos se o nevoeiro dispersa para mais passos e outra conversa.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 7 Agosto

Espero que as ilustrações do Tiago [Albuquerque], paginadas com sentido do drama e a rasgar a dupla página, salvem este nosso «Jean Moulin: a sombra não apaga a cor», com o qual a Associação para a Promoção Cultural da Criança, do Paulo [Caramujo], se associa à Quinzena Jean Moulin. (Curioso que estes dias tenho sido pontuados pela vida de alguém que não esperou acontecer, que disse não! ao quietismo entrevado…) Tinha tido experiência anterior com constrangimentos prévios ao como contar vida concreta para crianças (abstractas), mas esta foi bastante mais desafiante uma vez que nela moravam como personagens a violência, o medo, em carne viva. A guerra tem, só para quem a não viveu, desconfio, um lado aventuroso e fascinante, que foi para sucessivas gerações alimento de imaginário voando abaixo do radar das culturas instaladas. Mas o quotidiano de um cenário de conflito armado, mais ainda no contexto de então, não se pode ficar pela epiderme de um jogo. Queria contar do que significa um herói, longe de ser super, alguém capaz de ler as circunstâncias e perante elas se afirmar como humano.

Contra o mal absoluto. Apesar do seu próprio medo. E acrescentar a ideia de que uma comunidade ferida pode encontrar consolo, reconhecer-se em um rosto (concreto), parafraseando Malraux, no memorável discurso aquando da «canonização» no Panteão. Muito ficou por contar daqueles efeitos que a Segunda Guerra Mundial infligiu a França, tão profundamente que está ainda longe de ter exorcizado os fantasmas postos então à solta. Mais fácil foi incluir a passagem por Lisboa do mais jovem prefeito ou pormenores saborosos tais a sua paixão pelo desenho e o facto de nunca ter usado uma arma. Acabei fugindo pela metáfora, um verdadeiro porto de abrigo, onde ganhar forças antes de regressar à tempestade. A metáfora é o bom meio de transporte para escapar aos becos sem saída.

O Tiago optou por realismo surpreendente, mais ainda no panorama actual da literatura para a infância e juventude, com um uso cirúrgico das cores, sem se preocupar em seguir de perto o fluir do texto e, sobretudo, sem traduzir para imagens desenhadas – estou certo que seriam mais belas – as visões espalhadas pelo texto. (Algures na página está uma das raras excepções, mas o resultado não podia ser mais poético: alguém que se desmultiplica na sombra). Cada plano oferece o impacto de um cartaz, sem com isso esquecer o chamamento da curiosidade.

A infantilização tombou sobre os nossos dias, donde não se estranha que tenha chegado a esta vigiadíssima «literatura» para as crianças e os jovens. (Aliás, nunca os nossos dias foram tão vigiados e aqui se apresenta bom tema de livro para putos). Não sei se não deveríamos imprimir faixa avisando: «Cuidado! Livro difícil.» «Tant pis!».

Talvez a dificuldade possa ser sexy, agora que tal sabor de boca é exigido a tudo. Contas feitas, estou sem saber se teremos conseguido atrair os leitores, que terão de ser competentes; atraí-los para a figura de Moulin e para o resto. Em caso de dúvida, há muito nas redes onde procurar lanternas.

11 Ago 2021

Fios invisíveis

Biblioteca, Grândola, sexta, 16 Julho

O Luís [Cardoso] lá foi contar ainda uma vez das mulheres da sua vida – a mãe que se desdobrou em mais mãe de onze além dos onze iniciais, a namorada que foi ao encontro das balas assassinas – afirmando assim e sem quebrar o mistério a força das vozes femininas no seu romance-poema, romance-rio. Omnipresentes, quase invisíveis, comme d’habitude. Acabo de saber que quem lhe lança a pergunta, em acto de apresentação, e há muito o lê daquele modo íntimo como só a tradução, a Catherine Dumas assinará recensão para a Colóquio Letras.

Dá-se a reunião bem acompanhada em dia quente, neste espaço novo, que contém rios no coração dos muros, por haver ali uma belamente desarrumada exposição da Ana [Jacinto Nunes], na qual se incluem as ilustrações que abrem aquela «sonata para uma neblina». Esquecendo as salas, exemplo de uma arquitectura fechada sobre si, ignorante de funções e destinos, ali se encontram dezenas de rostos em pose. Gosto do jornal que diz ao que se pode ir, sujando as mãos, com singeleza, sem contar em demasia. A pintura da Ana, para captar a vida, surge sempre irrequieta, como que inacabada, a caminho de outra coisa, o gesto do pincel em busca da forma exacta das suas personagens, esculpidas na cor e respectivos movimento e temperatura, mulheres e animais, abraçando-se, quebrando fronteiras, celebrando nevoeiros. Um jazz no qual o tecido pode ser instrumento. Invariavelmente, os rostos olham-nos, desafiam-nos para diálogo em fluxo, fonte brotando da fronte. Oiço dos vários quadrantes que só somos na mistura com o natural. Nasceste da cor e a ela voltarás. Aqui e ali, as peças de cerâmica sublinham isso mesmo pois abrigam raízes, fazendo nascer do barro cortinas de verde, bambus onde se escondem os ventos, outros verdes esguios que podem bem dar pássaros. «Entre nuvens e papiros», assim se chama a mostra e no nome se (des)arruma o assunto.

 

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 17 Julho

A propósito: a SOS Racismo lançou um «Dicionário da Invisibilidade» contendo, além de belos retratos do André [Carrilho], uns bons milhares de entradas, com proveniências e autorias diversas, para «abrir uma brecha para a discussão e alargamento de horizontes sobre a questão da invisibilidade». Podem discutir-se os critérios, talvez demasiado abrangentes, e em qualquer lista sobra (não digo) ou falta sempre alguém (aqui sim, Natália Correia, exemplo exemplar). De qualquer modo, fica apresentada uma multidão de ladrões de fogo, que nas várias áreas e geografias, se entregaram, se entregam a uma causa, alargando horizontes. Seiscentas e tal páginas que dão bom princípio de conversa. Gosto de encontrar, logo abaixo de Tina Modotti, uma entrada para o Maçarico (1960-2014), nome que vestia o Vitor Ribeiro de nascimento. Era, fica escrito, traficante de sonhos.

 

Paço da Rainha, Lisboa, terça, 27 Julho

No diário fingido, que o são todos, esfregam-se mãos cuspidas para decidir caminhos nesta «rua da estrada»: enfrentar os mortos que nos interrompem os dias ou fugir pelo não. Folgo em ter amigos entre os que escavam obituários nos jornais e entre os que possuem as chaves dos portões de cemitério. Acabaremos todos por sair impressos naquelas páginas, em certo sentido, uma folha vibrante do quotidiano, a outra lençol de amargura na bainha da cidade.

Assim de atraso levo meses, mas que fique escrito que não pode passar sem lágrima o Vasco, o Otelo [Saraiva de Carvalho], o [Roberto] Calasso e o Pedro Tamen, assim por junto e sem sentido. Começando pelo fim, o poeta que foi, sem deixar de o ser, tradutor, editor e até administrador, vai faltar-me como orquídea cuja morte não apagará a culpa. Deixar de regar, de puxar o sol, talvez de soletrar em direcção da suprema elegância merece castigo. Falhei por não o ler mais, apesar do inevitável. Ergo mão que nem pelo gesto atingirá o leitor dos mitos e assim. Calasso contém o movimento das rochas, também no lugar de boas vistas do editor. Celebrando sem parar o movimento líquido do pensamento que se ergue das linhas correndo para o mar. Levantar a mão não arranca raiz. E nisto me encontro no dizer em desenho do Vasco, que compunha corpos explodindo. Dizer pelo nariz é bufar e por aí vai o comentador de ideias despenteadas, a quererem deixar a invisibilidade. Vai onde? Vai de encontro. Lá longe, pá, ergue-se o Otelo. Eu que sou das margens, apesar dos geómetras-vigilantes de algibeira se enganarem nas medições míopes, vou directamente ancorar no destruidor das âncoras. O que nos aproxima de casa não impede o voo. Ele foi quem apontou, por momentos, maneira de fazer do cais uma nuvem. Ou melhor, disse apenas que, para lá do aparente, o impossível estava ali: tomai e comei. Os quatro que partiram agora ajudariam a explicar. Ou a perguntar, que não há melhor maneira. Apontador de mitos, um, a desfazer a lápis no minuto pelo outro, se fosse caso disso, enquanto aquele gizava a logística do golpe e o poeta consertava sapatos e a luz. «Por cave deserta/ entram hábitos e ruídos/ verdes montanhosos, cascata/ um rio de água de Verão.// Estou só eu e o martelo/ e a minha mão opressa/ ou estará não sei que mundo/ com a palavra ou sem ela?// E eis-me então adivinho/ dos mistérios que atravessam/ a janela onde perpassa/ a luz que mal me ilumina/ e é o sal do meu pão.»

 

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 31 Agosto

A Patrícia Mamona voando fecha de boa maneira este dia pontado de intensidades. Resolvi entrar em «Pústula», outro perturbador filme de filmes da Bárbara [Fonte], exposto na Galeria da Casa Molder. Pendurado na parede velha, que a Bárbara pinta com a câmara, dando a ver sucessivos nascimentos, na ligação com a figuração clássica, a da dor sobretudo e à volta do religioso, essa encenação do essencial. A artista desenvolve uma liturgia em torno da natureza, da natureza das coisas. Nos interstícios do que passa e do que fica, do que se fixa e do que mexe, no corpo, na paisagem, na mescla líquida de um e outra. Vem depois o peso e as maneiras de o vencer. O vento que contém os fios que erguem o volúvel, o insustentável. A mulher voa («paralítico» do filme, algures na página e a sair dela). Vai acontecendo o arfar denso da lentidão ao limite, que cose os fragmentos da quase narrativa. Cada livro contendo pinturas faz-se espaço do sagrado. São momentos duros, rasgados e agrestes, beleza em carne viva, imagens fortes que ecoam em nós, por muito tempo e nos vários tempos do desperto e do sonhado. A cada um importa voltar e revoltar, como missal para nos explicar as cicatrizes de cada dia, o tule que se faz fumo, um fio de sangue branco leitoso que se puxa das chagas, dos mamilos antes de correr pelo negro, desperdiçando alimento, talvez vida. A casa é ruína, lugar de repouso das próteses, arrumo das naturezas mortas, o deitado que pode ser morte, raiz, mas também antena procurando céus. As lágrimas que foram areia, são agora fitas, fitas que não escorrem, para sempre brilhando esvoaçantes. E depois, ainda prolongamento de si, um enxoval de vestidos-prisão, a banheira e a água feita roupagem. A vida é crosta na nossa pele. A terra, lá fora, enxovalha. Há que a sentir com o corpo todo. Só com o corpo todo se penetra neste fascinante trabalho de inquietações. Daqui ninguém sai vivo. Da mesma maneira.

4 Ago 2021

Colher e ser colhido

Horta Seca, Lisboa, sexta, 16 Julho

 

Que esconde uma montra? Percorro a página de abertura do sítio (www.abysmo.pt) e vejo como vem sendo parca a colheita, que nunca foi dada a abundâncias. Logo os restos de sangue camponês encontram razão nas vicissitudes do tempo, cargas de água e sol abrasador ou aquele nevoeiro que se abateu sobre o mundo e as vontades. O bom agricultor sabe ler a meteorologia, até a atmosfera da desgraça, pelo que não será apenas por isso. Onde se conservam as sementes adiadas, em que compostagem os apodrecidos? E as sombras, que celeiro bojudo as mantém na boa temperatura? Tanto por enfrentar e as ferramentas ferrugentas, rombas, quebradas…

O conforto de uma côdea surge de volumes como este «Eva – Ilustradoras Portuguesas do Século XX», aliás no seguimento do «Tom», com grafismo que se vai tornando assinatura (algures na página uma capa) e que celebra a letra em entrada para exposições portáteis que andam por aí nas mãos e olhos de quem as agarrar. O Jorge [Silva] continua, aqui e ali a convite de instituições, a fazer do seu hobby uma vocação, de um interesse pessoal autêntico serviço público. Ao contrário de tantos respigadores, ele pensa o que vai recolhendo quando o oferece em livro. (Em mercado drogado em novidades, desaconselham-se indícios que datem a obra. Caiu em desuso a classificação de catálogo, para que o livro não fique preso a uma circunstância.) Neste caso, que esteve patente na Casa da Cerca, em Almada, o ar dos tempos soprou-lhe por tema o feminino. São nove os nomes primeiros (Alice, Mily, Raquel, Guida, Laura, Ofélia, Sarah, Maria e Fernanda), quase todos bastante conhecidos, mas manda o habitual que se conheça mais o nome (vagamente) que a obra (minimamente). Esta sistemática recolha do esquecimento traz consigo invariável motivo de espanto. Para além dos costumes citadinos, os da alta burguesia e os da mítica ruralidade, de uma infância não menos mítica, encontramos representações da mulher que escapam ao lugar-comum e intenso trabalho plástico. Um bálsamo, as expressivas interpretações de Maria Keil para «Folhas Caídas», do Garrett.

Estonteantes, as composições e as poses e os rostos de Guida Ottolini para a capas da revista «Eva». Melancólicas, as formas de Mily Possoz, que vão do minimal ao colorido solar, passando pelo quase cubismo em ponta seca. Postas as lentes de aumentar da actualidade, o Jorge não hesita em sublinhar na contra-capa: «apesar das contingências da sua educação escolar e familiar, e do expectável papel que a sociedade patriarcal lhes reservava, muitas mulheres conseguiram afirmar um percurso ou uma carreira como ilustradoras editoriais, realizar uma obra inspiradora e inspirada nas vanguardas dos movimentos estéticos e pugnar por um papel igualitário na sociedade do seu tempo.»

Tendo a achar, a partir de testemunhos, que muitas vezes se tratou apenas de viver as possibilidades ao máximo. Com o que tal significa sempre ignorar com sobranceria o impossível anunciado, imposto, palpável. Surge até como metáfora esta brincadeira à la Silva com o código de barras. A imposição logística de um pequeno indicador de (quase) identidade, sobretudo, preço e arrumação, transforma-se em pretexto para modular formas. Ao limite.

São Cristovão, Lisboa, terça, 27 Julho

Tem andado um rio entre nós, pelo que há muito me não encontrava com o Paulo [José Miranda], para acerto de agulhas e apanha da notícia madura. Acompanho nestas páginas e às terças o seu excêntrico contributo para a letradura, não apenas com títulos – entre o doce e o estridente –, mas também com – e tal não será para todos – autores que suscitam a busca dos sequiosos leitores. Vale volume, pelo que comecem os trabalhos de apuro e enxertia! Em 2022, arredondam-se datas e soam já projectos pelo que temos de pensar em arredores para o centro que será, para nós e todo sempre, o livro. E a poesia. Passámos pelo futebol e, pour cause, um verde branco, antes de nos atirarmos ao tinto e às mudanças, que serão apenas de geografia. Apenas? Sim, quando os passos são no caminho da conversão, ao encontro de si mesmo, o exacto lugar não interessa por aí além. Mal lhe falei de novidades traduzidas, tomei nota da sua surpresa por publicarmos traduções. Se nem os casa conhecem os cantos às lombadas… Quedámo-nos em princípio muito inicial e prometedor de romance. O Paulo gosta de ler excertos em voz alta e eu de o ouvir. Não que me concentre, antes me faz andar por lugares. Lá foi o olhar subindo e descendo a estreita e geométrica escadaria que se estende entre azuis à nossa frente, Tejo em cima e céu em baixo.

Calcutá, Lisboa, terça, 28 Julho

Estão elencadas, e não apenas pelos profissionais do contratudismo, as fraquezas dos festivais literários: a vacuidade das ideias distribuídas, a claustrofobia dos temas e editoras dominantes, o espectáculo das vaidades, a promoção da leitura reduzida ao culto do autor, a dislexia entre performance pública e qualidade de escrita, a insistência em um só modelo de conversa pequena perante plateias enormes, etecetera. Ah, e o excesso de festa! Cultura não condiz com alegria, coisa de entretenimento. (O que para aí vai, aliás, de confusão entre uma e outro.) Por princípio, não nos negamos aos ditos. Para o melhor e o pior, são encontros. Quando solicitados, participamos muito para além das nossas possibilidades (e da nossa capela). Nem sempre com bons resultados, nem sempre recebendo o devido tratamento.

Anuncia-se o regresso do Folio, sendo caso particular. Antes mesmo dos dias concretos e definidos de Óbidos, tratamos de pôr mesas de tal modo cubistas que não sei como os copos e os pratos e as vozes e o resto de estar à mesa se aguentam. Com a Raquel [Santos] e o José [Pinho], além de ocasionais convidados, pintamos assim festival dadaísta e muito particular de leituras ao ouvido e absurdas encenações imersivas, projecções holográficas de autores queridos e outros, jogos de sociedade a partir das sinopses, combate entre badanas, intervenções relâmpago de poetas patafísicos, disparates épicos de par com ambiciosos centros de experimentação, enfim, ideias, planos, propostas, esboços e delírios. Não podia ser de outro modo, da gigantesca lista riscada nas toalhas de papel apenas se cumprirá à risca uma sensata e mínima parte, mas a discussão, o gargalhado, a criação bruta, o dito e o pensado, faz com que se cumpra logo ali algo de essencial. Para mim, o resto será sobremesa.

28 Jul 2021

O eu algures entre palco e plateia

Palácio Nacional, Queluz, sexta, 2 Julho

 

Caro Raphael,

Sinto-me (incluir imagem de gordo barbudo corado, se a soubesse desenhar a teu modo) por há tanto não te mandar umas linhas. O último ano deixou-me entalado entre estranhos afazeres: fazer o que me mandavam, pensar em fazer, fazer o possível, desfazer o previsto, ansiar por fazer das minhas, fazer por onde com aquele gosto de riscar horizonte, fazer que fazia ou esse tão querido fazer nada (pôr depois desenhos de anafado ora prostrado ora saltitante). Nem tenho para te oferecer a troco deste meu silêncio a descrição detalhada ao mínimo sabor daquelas jantas a que nos sentamos séculos a fio.

Vê tu que o Massimo [Mazzeo], sim, uma das almas daquele «Divino Sospiro», me desafiou para apresentar à sociedade a sua mais recente beldade, o volume 4 dos Cadernos de Queluz (ed. Hollitzer e Parques de Sintra), tendo por título «“Padron mio colendíssimo…” Letters about music and stage in the 18th Century», umas 808 páginas editadas com barroquíssimo gosto e rigor pela Iskrena Yordanova e a Cristina Fernandes. Fiquei como imaginas (colocar grande plano do gordo enrascado), antes de me atirar a este planalto de cheiros a travejamentos e panos, mas também de rumores da pena no papel colhendo ecos das mais dispersas visões. Vi-me, como tu, encolhido a uma bela plateia abraçando palco. Mas seria capaz de me manter aceso na atenção ao mundo ampliado pelo espectáculo (assim tu no desenho que se oferece aos leitores)? E discernível, apesar de camuflado? Como percebeste, pela correspondência se acede, então, aos modos de fazer, aos instrumentos como ao texto, do apelo ao mecenas à notícia de concerto privado, enfim, de pormenores na concreta dramaturgia à política do teatro (há outra?) na tua Europa. (José Camões, exemplo entre tantos possível, conta-nos de precioso espectáculo de marionetas revelado pelo poeta escocês William Julius Mickle no qual se ouviria: «Acomode-se, não tenha medo, que o diabo não é tão feito como o pintam.») Bastidores, portanto. Eis motivo primeiro de encantamento, o martelo e o formão do carpinteiro transfigurados em cartas, esse híbrido de diário e reportagem e registo de viagem e ensaio. Literatura, nalguns casos. E relembrei as nuvens aparecidas há pouco vindas de uma encenação de «Dardanus», do Jean-Philippe Rameau. Cada missiva lida e sublinhada, com jeito de ourives em certos casos, evola-se que nem nuvem atravessando os séculos para testemunhar, a folha de papel tornada de Flandres para melhor espelhar e durar. O indivíduo a encenar, claro, um olhar que agora se revela precioso (a palavra tesouro surge nas várias línguas em que o volume fala em revigorante convívio). E depois há o segredo. O confessional, encenado, pois claro, diz para além do que se viu, do que se vê. Nalguma investigação arde ainda uma brasa que, se soprada, reacende. Este mecanismo produz nuvens.

Percebes, portanto, caro mio, porque precisava te contar, tu que desenhaste sigilos à vista de todos, que consegues confrontar o tédio da família real com os nervos do ponto, deixando que o olhar percorra a sala até te encontrar. Reverberante.

Os afazeres haviam regressado pé-ante-pé e contra soberanas vontades, mas que melhor pretexto para me perder nestas paisagens? Dou por mim (botar versão abstracta do gordo barbudo) a pensar no peso do modo como se faz o que fazemos. Haveria diferença se estes textos, reflexões, retratos fossem publicados em volume frezado na vez de cosido, a preto e branco espelhado pela impressão digital na vez deste offset bicolor, em papel esbranquiçado de tão banal na vez desta quase transparência em creme? O que diz a capa dura e respectivas guardas, os fitilhos de assinalar intensidades? E as notas de rodapé e a cuidada revisão? Esta carpintaria que sustenta o livro enquanto palco implica na marcha do mundo. Quero acreditar que sim, que grãos assim na engrenagem multiplicam, pelo menos, a resistência. E depois há o puro prazer, a celebração da inutilidade, a luxúria. «Sospiro».

Vamos lá marcar a ida ao Tavares, que chegaram aguardentes do Oeste, ou, melhor, makavenka aí encontro onde bem sabes (colocar emoticon, mas desenhado como fez há séculos o Raphael Bordallo Pinheiro).

Escola de escritas, Algures, sábado, 17 Julho

Na véspera insistia em saboroso almoço, no qual se tratou de cansaços interiores e despolíticas externas, além de dedos e anéis, que as comunidades de leitura me parecem cruciais na promoção de leitura, algures entre a suave entrada e o elegante digestivo. Também por implicarem os leitores nas suas leituras. Quantos livros esconde um livro? Este Clama (Clube de Leitura Abençoados Malditos) dificilmente podia ter começado melhor com «Os Meus Oscar Wilde», de André Gide (ed. Sistema Solar), mas que, no fundo, pertence ao tradutor, Aníbal Fernandes. Os dois In Memoriam são enquadrados por pré, inter e pós-fácios, os quais, naquilo que convocam, são moldura pintada a participar na composição e expressividade da grande imagem. A vida, saravah, é a arte do encontro. E talvez a arte não seja menos a vida dos encontros. Estamos perante um triângulo de bons e produtivos malditos, ficando por ora, Pierre Louÿs na plateia assombrada pela encenação brutal de Wilde e Gide. A morte de um suscita no outro o registo definitivo do momento em que a alegria lhe foi revelada, em que começou a viver. Quando o coração antes apenas tomado pelo desejo abria para a luz de outros afectos. Sexo e amor eram dicotomias afastadas, e foi pela escrita que Gide tentou coser tal ferida. Assim como a usou para perseguir a alegria (nota para o futuro: voltar às páginas que busca esse pólo). No segundo e mais breve texto, o amargor insinua-se e a avaliação enegrece, mergulha em cinzas. A realidade cobrou com sangue ao devir em cena de Wilde. Entre um e outro texto, há excertos do processo em tribunal, dolorosa e bem-humorada peça de teatro onde a lei procura no miolo das palavras os sempiternos medos: o sexo desregrado, a corrupção da juventude, a ociosidade, o prazer, a alegria, enfim, o desafio ao deus posto em religião. O livrinho acaba sendo, ele mesmo, introdução a lugares e caminhos dos ditos malditos: a escrita tornada bússola do eu, aquele pensar com o corpo e a partir dele, o esforço para tornar indistinta vida e arte, cabal maneira de viver uma e outra. Vede com Louÿs, também em prefácio a «Afrodite» (ed. Círculo de Leitores), como fazê-lo: «É que a sensualidade é a condição misteriosa, mas necessária e criadora, do desenvolvimento intelectual. Aqueles que nunca sentiram até ao limite, para as amar ou para as maldizer, as exigências da carne, são por isso mesmo incapazes de compreender toda a extensão das exigências do espírito. Assim como a beleza da alma ilumina o rosto, também a virilidade do corpo fecunda o cérebro.”

21 Jul 2021

E esse lado do fim do mundo?

Santa Bárbara, Lisboa, Domingo longo começado no Sábado, 12 e 13 Junho

Na economia do tempo do micro-editor nunca sobra em quantidade para este lavrar das terras férteis. Estou em crer que o Mário [Gomes] se vai tornando na mais saborosa das fraudes literárias. Por exemplo, o Arno Schmidt nas suas mãos parece ter sido escrito em português, tal a limpidez de cascalho no fundo do riacho que por aqui se ouve. Será Arno extensão de Gomes? Anuncia-se, portanto, «A República dos Doutos – Romance-breve das Latitudes dos Cavalos», delirante “reportagem” ao lugar maravilhoso onde as artes e as culturas viveriam sem preocupações outras que a criação, ilha em movimento dividida por um muro, habitada por seres fabulosos e outros mais reconhecíveis.

Estende-se narrativa (para conforto dos carentes da anedota e outros preguiçosos) e explodirá moral (de agradar às tribos sanguinolentas dos malditos e outros mortos-vivos), mas o essencial está no labor da linguagem, com multiplicação ao infinito de planos, a lúdica recomposição das pontuações e outros sinais, e, sobretudo, o fraseado em pizzicato sobre escórias, imagens potentes, lâminas saltitantes, espinhos de rasgar peles. E por nisso falar, surpreendente erotismo para tão apocalíptico cenário. Certas obras inventam o presente. Se «Leviatã|Espelhos negros» podia ser sido livro de cabeceira durante a pandemia, estas «Latitudes dos Cavalos» continuam a ser ferramenta de ver ao longe, o que nos acontece ao perto. Ao calhas:

«Oh, ainda tem 1 hora ou 2 horas : afinal o fim do mundo é bem perto.» : «Pois, para pessoas como você !» (Pelos vistos ele gostou da resposta; passou a mão pelo bloco de barba maciço e deu um salto em frente, orgulhoso).
Nomes como terramotos ! : um sítio por onde passámos chamava-se ‹Tatara-káll› (e os cascos retumbavam ocos, como que a condizer !). –

Na – enfim, poderemos falar duma ‹aldeia› ? : as poucas cabanas de ramos esgalhados (alguns deles desfolhados até pelos mais famintos ou preguiçosos !). / Todos haviam retomado os seus afazeres, em plena paz : centauros barbudos com gadanhas ceifavam os lameiros. (Um deles, todo silhueta, levantou a garrafa, bebendo; (e eu achei por bem beliscar a minha perna : será que tinha adormecido a ler um livro de mitologia grega, Preller=Robert ?)).

Não ! Nunca na vida ! : uma centaura de óculos era certamente uma novidade (e além disso, mais velha : um balde de ferro com água estirava-lhe o braço : as mais velhas seguravam os seios maiores com ambas as mãos ao galopar. – ’ma fábrica de soutiens. Podia ser um negócio bombástico !).

E todos os nomes, como trovoadas, como lados entrelaçados, como aragem de fogo; como nudez da terra, cadinhos esquentados, ouro picado.»

Santa Bárbara, Lisboa, Domingo, 20 Junho

Chegou o carteiro. Podia ter sido, mas não e ainda bem. Imagino em quantas dobras tornaria o estreito fanzine em origami para habitar a caixa de correio… «Cartas ao mundo tal qual o conhecemos» (ed. cod, inc) nasce do primeiro fechamento e bela ideia: o narrador está separado do mundo e escreve-lhe, aproveitando o ensejo para pontosituar esse velho relacionamento. O Carlos [Morais José] escreve e assim pensa. «Estás a acabar como sempre estiveste, meu mundo. Todos albergam o desejo secreto de assistir à tua morte, ao teu fim, à extinção de tudo. Os profetas insistiram com veemência particular na vinda recente de um apocalipse. Mas tu, meu mundo, não acabaste: mais depressa eles acabaram para ti. Meio céu e meio terra, aqui estás, aqui estarás, incriado, sempre tu, pois nunca soubeste o que seria ser outro». A Ana desenha seguindo nervosamente a própria mão na combinação dos corpos (algures na página). Quando o ouriço se fecha, pequena esfera de espinhos, o mundo cessa de existir? Está posta a cama de faquir sobre a qual a reflexão poética encontra conforto para levitar. A doença faz-se solidão, e talvez o seu inverso. Certa melancolia habita estas linhas, talvez farpas: pode o indivíduo ser em pleno no eu sem as amarras e as vagas doidas que habitam o seu entorno, esse que nos cerca, que ora nos esmaga ora nos amplia? Afinal, terá o mundo fechado assim tanto? E para balanço? Não são dadas respostas, mas enumeradas dificuldades, entrechocando-se em dança tal os corpos da Ana. Este detalhar do convívio amoroso com o universo deixa-nos à beira do abysmo de mística profana. Em verdade vos digo, não há outro modo de andar que não sobre tal fio de navalha. Recordo sempre com o título errado de ponto final, quando o poema de Reinaldo Ferreira se chama com exactidão apenas «Ponto»: «Mínimo sou,/ Mas quando ao Nada empresto/ A minha elementar realidade,/ O Nada é só o resto.»

Basílica da Estrela, Lisboa, Quinta, 29 Junho

Vejo agora com o corpo todo que talvez seja desta matéria a despedida, momentos em que não distinguimos o que sobra de noite ou começa de luz, frescura nas mãos antes de cuspidas, os pulmões a encher com o céu do olhar, seis da manhã, talvez antes, contavas-me como no orvalho se colhem as derradeiras lágrimas de felicidade, sete da tarde final, devia ter levado enxada para marulhar as terras ajardinadas do claustro, círculo de tantos silêncios, era de ficar encostado ao cabo esperando pelo teus silêncios encavados, que os cultivavas com gosto, Manuel Luís [Bragança], vinhas tu de um pai e eu ao encontro do escritor, dos que lavram a eito, e encontrámo-nos de esternos no ar em entrechoque, cavername de cada navio seu, mas irmanados nos rumos diversos, logo naufragados à mesa da minha impotência, tonto, que não consegui nada, quando muito celebração, e agora que recomeçávamos vem a puta da velha e retira-te do jogo. Admiro o modo como indicavas a floresta doida de praças e ruas e varandas e janelas que foi sendo o teu pairrequieto, em absoluta liberdade desenvolvendo amores com sabor e perfume de limão ou assim, bandeiras doidas a estrelar na língua e mais além. Asneiras: disse todas em voz alta mal recebi a notícia, não as redigo como sabes que gosto. Não há alívio que valha. Eras para além da linhagem de onde vinhas, mas nela celebravas uma sementeira de desatinos e interpelações. Cuspo nas mãos, cuspo no céu. Hei-de aprender a dizer foda-se como quem reza. Toquei a madeira do teu féretro feito de veios, talvez raízes, e vociferei que do teu fogo se ergam árvores, mergulhem pássaros, voem copas e se enterrem asas. Sacudo a enxada batendo no chão, soltando terra até casa, marcando com som baço a linha directa ao coração. Volto a bater com a asneira no chão: caralho. Falta-me o ar.

7 Jul 2021

Situacionismo

Horta Seca, Lisboa, quinta, 21 Maio

Computador grávido de décadas resolve despedir-se, sem estrondo, mas com malefício. Afirmamos na conversa mole a dependência, mas não sabemos o modo como estes seres nos prolongam em prótese essencial para qualquer passo até falharem. Há vida além do ecrã, mas não sei já onde. Algures havia backups a velar pelo passado, aquele a que não voltaremos e o outro que nos falta como oxigénio embora respiremos, pelo que a desgraça talvez não seja tão grande agora surge. Algo se perderá, que não há outro modo do dia nascer. Só que o acontecido não se limita a mera alteração na rotina, funciona mesmo como reboot: as máquinas velhas têm manhas a que nos afeiçoámos ou pelo menos domesticámos, os programas em versões vetustas obedecem-nos, sabemos onde está cada botão, cada password, cada rotina. E a culpa assenta no nosso comportamento, que temos demasiado peso no correio, muitas mensagens abertas, muitos programas a funcionar em simultâneo, mais isto e menos aquilo, descuido e desrespeito. De súbito, vemo-nos obrigados a repensar mais esta relação, a começar de novo e o word não se diz da mesma maneira, é preciso recomprar o pacote dos básicos, aceder a dezenas de plataformas, redefinir milhares de palavras-passe, aceitar contratos em que cederemos até o futuro e um rim. Estou a ver a velha Olivetti armada em decorativo objecto sob a camada de pó e suspiro.

Rua da Rosa, Lisboa, sexta, 28 Maio

Qualquer cidade tem os seus segredos. Lisboa não sendo como as outras, tem mais e distintos, diz Pessoa em perpétuo desassossego e digo eu que nunca daqui saí. O [José] Pinho tem um radar que descobre lugares, na aparência vagos, mas que acabam cruzamentos concretos de gente e ideias e livros, pontos de encontro e interrogação e exclamação. Descobriu agora prédio assente em memórias e luz e resolveu correr a habitá-lo de possibilidades. Andou a mostrá-lo como quem conta uma história. Pode até nada mais acontecer, mas participar nesta peça de teatro imersivo valeu o dia (de aziaga memória).

Horta Seca, Lisboa, sexta, 11 Junho

Há uns meses foi o telemóvel que resolveu armar-se em situacionista e mandar nas minhas conversas, desatando a fazer chamadas em direcções indesejadas. Deu conversas longas e divertidas e uma delas foi com o António Torrado, que agora parte para parte incerta. A costumeira ignorância arrumou-o na gaveta de escritor para putos, coisa das mais menores, algures entre o conto e a poesia, uma necessidade por causa da didáctica e para entreter e por isso agora em atenta vigilância. Também teve pé em palco, mas isso pouco muda. Ora o António, que foi editor, era escritor a merecer outras sortes, as da leitura, nos mínimos. Se nele entrarmos pelo lado do absurdo logo a viagem se faz compensadora. Mas não, dá menos trabalho e alinhar na celebração pacóvia do que nos chega mastigado do que procurar raízes na terra comum. Uns dias antes, também nos havia deixado a Leonor Riscado, que gastou a vida precisamente na valorização desta disciplina luminosa e obscura. Não consigo deixar de procurar na minha cabeça em incessante crash uma palavra, uma única trocada com cada um e que gostasse que fosse, para sempre, a sua e de mais ninguém. Há palavras que procuram as pessoas certas onde morar.

Livraria Verney, Oeiras, Sábado, 19 Junho

Tem acontecido neste espaço, sob a minha desatenção, uma curiosa troca de olhares. Tendo em depósito a obra de Neves e Sousa, primeiro o Nuno [Saraiva], e neste momento a Catarina Sobral trataram de a ilustrar, ilustrar o desenho, outro modo de o comentar, de o ler, de o tornar seu. A tinta-da-china ganhou cores e o registo rápido de viajante atento ganhou sequência quase narrativa: se um grupo se junta em torno do fotógrafo em Neves e Sousa, a Catarina faz-nos a ver a fotografia possível. O que era transparência nos traços de um passou a expressividade no desenho de outra. Os corpos que se queriam reais passaram a ser formas de um vocabulário pessoal. E o essencial dá-se nesta maravilhosa deslocação dos corpos nas paisagens. E se no preto e branco só a podemos adivinhar, nas massas de cor apresenta-se em todo o seu esplendor, sua excelência, a luxúria. Fico preso a um mangal (na página), veios e folhagens sopradas pelo vento, lugar de híbridos e cruzamentos de estados, onde a terra se faz líquida e o vegetal toca as nuvens. Oculto nas folhagens está o observador indistinto do horizonte, animal que respira e vê.

Livraria Verney, Oeiras, Sábado, 19 Junho

Ainda nos reunimos sob o signo do medo. Coreografamos os primeiros momentos com a dança da hesitação, não sei se mão se cotovelo, se abraço ou aceno. Afasto por instantes a máscara para que me reconheçam ou continuo oculto e falante? Perceberão que estou sério ou sorridente? Se as comissuras falassem… O Luís [Cardoso] invoca os bons espíritos e com eles se dará a sessão de lançamento d’ «O plantador de abóboras», por acaso já bastante lido e comentado. Ana Paula Tavares faz justíssimo enquadramento, a corada Ana [Jacinto Nunes] não se cansa de elogiar as mulheres, personagens da verdade, e a Natália Luiza trará em voz alta a toada desta «sonata para uma neblina».

E o Luís fala como se cantasse e cantou de igual modo, a embrulhar a complexidade de cada gesto no pano da simplicidade. Um pouco como tem dito a cada entrevista: esta história foi-lhe entregue em herança por mulher perdida nas memórias esfumadas de Timor, mas o romance vai muito além dessas montanhas; que queria compor um longo poema de amor, que bem se espraia naquelas páginas, mas não se resume a isso, não sendo pouco. A ternura com que talha as personagens, gente e planta, animal e paisagem; o modo de contar como quem toca, não esconde assuntos como as malhas do Império, a identificação de um país ou essa inescapável desilusão. (Aqui para nós, que nos ninguém nos lê, emociona-me que inclua Sancho Pança nessa galeria de figuras, pois encontro nela muito do que pode ser um editor). Confirmo, a partir de pistas que já vinha recolhendo, em sala que não pode estar mais cheia por causa do vírus do tempo, que o Luís soube construir uma comunidade de leitores, feita sobretudo de mulheres. Sinto-me privilegiado por dela fazer parte.

23 Jun 2021

É assim!

Camões, Lisboa, quinta, 27 Maio

Se perto, com visão por sobre os louros de um poeta e a inclinação de outro, descontando os que passam que há sempre passeantes de verso portátil, inaugura exposição, no caso colectiva, anunciando-se «Diários», é de ir. Aconteceu-me a surpresa de ver as fotos e os desenhos de Carlota Mantero, João Rebolo, Margarida Cunha Belém, Pedro Noronha e Rita Draper Frazão assentes na profunda leveza das palavras da Rita [Taborda Duarte]. Aliás, a relação com a palavra e até com a letra resulta comum, tornando-a matéria de composição. «Toda a escrita, toda a arte, é metamorfose. E cada palavra escrita, impressa, pintada, grafada no papel, assim na página como na tela, é antes de tudo imagem pura. Traz consigo m significado primeiro, inaugural, emprestado pelos sentidos, antes ainda de sabermos o seu sentido.» Que diálogo se poderia inscrever aqui, a imagem no lugar do primeiro toque de realidade no corpo talvez mente! E a palavra na busca de uma fixação que interprete, que arrume, que explique. Esta colectiva no Espaço Camões, de velha editora, agora Sá da Costa Arte, está feita de instantes. A Rita propõe poema para legenda de outra Rita, que busca identidade no modo como as extremidades, as mãos e os pés, afinal o olhar, tocam as coisas. E os dias. «É pelo olhar perdido na solidão do mundo/ perdidão profunda/ que limitamos os corpos à retina que o circunda// Mas é a mão a intensa mão criadora imaginante/ que te devolve hesitante a mim». O outro e o seu olhar hão-de ser sempre espanto?

Na Rua da Emenda, inaugura a This is not a white cube, que põe na sua primeira montra transparente o santomense, René Tavares, e promete mais África nas redondezas. Muitas camadas por aqui se encontram, mas tenho que voltar com outros olhos. O dia estava gasto e o convívio social ainda me é custoso. Temo que vai sendo cada vez mais, que não se limite a este momento. E que o outro e o seu olhar me canse mais do que espante.

Alto bairro, Lisboa, terça, 2 Julho

Alguns encontros chegam vestidos com pretextos de trabalho, leves e coloridos, assim pede o tempo e a moda. A Vanessa vinha toda sorrisos, mas sacudia contos de lâmina na sacola. O Fernando traz razões de sobra. O Francisco chama-me à esplanada para falar de estudo. O Massimo anuncia convite e logo projecto. A Sara passa e rasga-me com um sorriso. O Nuno carrega sempre ideias que dispõe na mesa para debate e prova. Aliás, com o Bruno arrasta-se há muito abstracções que tardam em concretizar-se, mas à mesa nasce invariável outra, por exemplo, revista. A Margarida tem prazos e comentários, além de mundo e histórias. O Zé Carlos, entre caracóis, põe o passado em dia. E nem o calor afasta o João e a Susana da comida de tacho e do estar em partilha. O Miguel veio comprar chapéus e falar de vagas cousas mas esmagou-me com alegria tal que se tornou transparente e revejo agora naqueloutros e mais uns quantos. É assim: certos abraços valem dias, valem vida.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 3 Julho

A gentileza do Andrea [Ragusa] da Valeria [Tocco] não impediu que me sentisse corpo estranho na evocação dos 150 anos das Conferências do Casino, «Uma aurora à qual não se seguiu dia», distribuída por dois ciclos, este agora e aquele que se seguirá em Outubro. Os convidados são ilustríssimos cultores das Letras, especialistas em Antero e outros visionários, apresentando-se este vosso criado na qualidade híbrida de personagem de banda desenhada e leitor difuso. Com as devidas distâncias e dissemelhanças, um pouco à maneira de Rafael Bordalo Pinheiro, que se fez convidado para aquele plural a que não pertencia até o ter desenhado: «nós tivemos uma visão redentora e de endereita» (assim com ligeiríssimo erro). Falo da extraordinária 7.ª Página «d’um Album humorístico, ao correr do lápis», extraordinário todo ele, momento fundador da narrativa gráfica nacional, logo nas primeiras entregas e com extrema inventividade. O jovem comentador começa como que exclamando no modo de hoje, irritante por se querer definitivo: É assim! Isto é, dá-se logo a dizer, pois desenha-se de punhos na mesa, enfrentando o leitor com um Senhores: a que se segue na linha do desenho dois pontos. Adiante colocará cena entre parêntesis e tratará de pôr, em imagem indelével, um historiador crítico a arrastar gigantescos pontos de interrogação e exclamação, objectos pesados e ao mesmo tempo sustentados no ar. Para o jovem artista, em 1870, a narrativa gráfica era óbvia continuação do texto e o seu comentário, entre o professoral e o humorístico, fixou como poucos o momento das Conferências Democráticas, as que, mesmo interrompidas, não mais deixariam de nos atormentar com o retrato da «purulenta e burguesa physionomia do paiz». Questões volúveis e pesadas. Com as devidas distâncias e dissemelhanças, ainda nos podemos rever nas avaliações daqueles oftalmologistas da civilização que se propunham, apesar da ordem, curar a cegueira com a liberdade. Foi com prazer que regressei a tais páginas e momentos, que estão disponíveis em edições da Biblioteca Nacional. Ao subir para est’A Berlinda, Rafael dava enorme impulso à sua viagem vertiginosa de performer (avant la lettre) definindo programa, temas, estilo e personagens, grupo variado em cujo centro brilhará sempre ele mesmo, em auto-retrato de corpo inteiro. Senhores: jogando-se.

São Bento, Lisboa, terça, 8 Julho

Meia dúzia de insistentes assistem, no Centro Cultural de Cabo Verde, ao Jerónimo [Pizarro] explicando do alto do seu farol quanto de brilho e originalidade contém esta Ode Marítima, por si e no contexto (histórico e assim) das múltiplas partidas do mundo, com as suas ondas e vales, gritos e visões, o seu percurso arrastado e veloz por entre viagens que abrem portos e navios no coração dos homens e dos marinheiros. E a saudar a sua partida para a paisagem de outras línguas, no caso a cabo-verdiana, pela mão do José Luiz Tavares, ufano face à vaga de elogios, mas atento à defesa política e afectiva, partir das palavras de José Luís Hopffer Almada, de um activo bilinguismo. Quantas línguas cabem em um corpo? E marés?

16 Jun 2021

Contos da normalidade normal

Camponesa, Lisboa, terça, 11 Maio

 

O tempo tanto arredonda os dias como os arremessa, finge-se planície e nisto ergue vincos, quinas de arranhar epidermes. Em Setembro próximo terão passado uns redondos 80 anos desde que Jean Moulin, futuro herói da Resistência francesa ao nazismo e ao quietismo, calcorreou por estas ruas do Chiado a caminho de Londres para mudar de pele. Era um jovem prefeito acabado de despedir pelo regime infame de Vichy que há uns meses descobria que sua ideia de bem comum implicava o risco da desobediência. Quando em noite de lua apropriada caiu de pára-quedas perto do lugar onde havia nascido era já Rex e tinha missão: atar os fios soltos que erguiam um exército de sombras. O João [Soares] resolveu agregar energicamente um grupo de amigos para evocar aquela figura e percurso, arrastando-nos em frenesi de contactos e leituras e investigações e possibilidades. Seria difícil encontrar melhor corda a que me agarrar para, em esforço, sair das areias movediças em que me encontro, umas vezes até cintura, outras pelo pescoço. O interesse não se encontra tanto nos detalhes narrativos da curta vida de um reservado amante da boa vida, que trocou as artes, que chegou a praticar, por carreira de funcionário público ao serviço de certa ideia de República, herdada do seu pai. A sua biografia cedo se torna portal para regressos à noite escura europeia, e, no caso, de uma França dividida e ocupada, colaboracionista ou posta em espera, escrava de medos e misérias, em absoluto desfocada de si, despida do mítico amor-próprio, entrevado por retóricas suicidárias. Décadas depois de morte envolta em dúvida (traição ou eficácia da máquina do terror?), o país quis-se espelhar-se nele e virou o homem do avesso para extrair herói, em construção exemplar e simbólica que colocou incertas cinzas no Panteão, esse altar sagrado do republicanismo laico órfão de rituais. André Malraux oficiou o momento, coreografado como poucos, em discurso inflamado. «Eis a marcha fúnebre das suas cinzas. Ao lado das de Carnot com os soldados do ano II, das de Victor Hugo com os Miseráveis, das de Jaurès veladas pela Justiça, que venham repousar com o seu longo cortejo de sombras desfiguradas. Hoje, juventude, pudesses tu pensar neste homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele era o rosto da França…» O relato da vida normal ficou para sempre tintado pelo esforço de construção do herói, com a velha ilusão de que cada percurso contém um sentido, o que o destino se encontra escrito em cada entrelinha, em cada gesto. A moralidade deste conto de acordar consciências está, contudo, na ética explosiva do indivíduo comum se erguer ao ponto de dizer não! Jean Moulin foi um de nós, apenas capaz de subir à norma para ver além do nevoeiro das circunstâncias. Ora essa louca capacidade não nasce por geração espontânea, aprende-se.

Cerveteca, Lisboa, quarta, 12 Maio

A agenda está feita toalha sobre a mesa entre garrafas. Ninguém diria que aqui se trabalha, mas assim acontece. O Marko [Rosalline] apresentou um pormenor, fulgurante digo-vos já, que dá unidade ao delírio das cervejas literárias, colocando a pressão no [Nuno] Saraiva que tarda, como habitualmente, em dar imagens às palavras dos contistas. Era ainda ocasião de provar o néctar-de-matar-sedes do João [Brazão], que reúne profundidade e leveza de modo que faz acreditar. Em quê? Na possibilidade, quem sabe do ser. Do sabor do saber. Uma bebida tem tanto de álcool como de esforço e partilha, de criação. Esse o assunto sério deste «Cadáver Esquisito», longamente bebido, desculpem, debatido. Cada sabor que se esconde nesta cerveja tem correspondência na embalagem, no logotipo, em cada conto, no que se vai desenvolvendo. O pensamento anda por aqui armado em canivete suíço, obrigando a revelar razões por detrás de cada gesto, de cada afazer. Saio daqui entusiasmado. E tocado.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 13 Maio

Da primeira vez que li, há umas valentes décadas, este «Fadários», então com outro título, achei-o disperso, algo perdido no que trazia por contar, grávido de todos os «roman noir» e «crime novel» e neo-realistas de pendor surreal lidos à lupa pelo mano José Xavier [Ezequiel]. E soltando como perfume aquele negrume habitual, o melhor amigo do homem lúcido de tão perdido. Ou vice-versa? Agora celebro-lhe esse espalhamento, o sopro com que molda personagens em debandada de si próprios. Se a vida é beco sem saída por que raio nos consumimos em busca de sentidos, proibidos, obrigatórios, para lá dos cinco, antes do significado, além do fado? Ontem como hoje noto nele um levantamento das linguagens, as da língua e do corpo inteiro, que nem halteres ou navalhas, à maneira de Nuno Bragança ou, está claro, de Dinis Machado. E com fulgor que encandeia. Ora o palco só podia ser o Bairro Alto e algumas aortas das bordas, sendo como era o coração profundo de Lisboa. E não havia outra cidade. Nem outras passagens além dos bares. De súbito, sinto o tempo a pesar enquanto converso com a Elisabete [Gomes] por causa das capas, que nesta colecção oscilam entre paisagem e rosto, ainda que em um caso ou outro, a cara se faça lugar. O Bairro foi para mim sinónimo de noite e de conquista, de autonomia e aventura, não este dado adquirido do entretenimento óbvio e da turistagem feroz. Não havia multidões na rua, antes indivíduos espalhados ao comprido no consolo acre da serradura vomitada das tascas e dos bares. A capa deste romance mais negro que a noite escura poderia bem evocar as portas, os riscos de luz, mas não as multidões. Algures na página está hipótese entretanto trocada por outra mais forte (não liguem às gralhas que era esquisso), que faz do balcão o lugar-comum, mas agrada-me por demais o expressionismo destas cabeças perdidas.

2 Jun 2021

Portos interiores

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 1 Maio

Mês morto, mês posto. Neste reino nem distingo o suserano, presto vassalagem apressada e às cegas sem tempo nem para contar as baixas. A vibração do telefone no seu silêncio canta um desespero que rima com a incapacidade para atender. Nisto de desconseguir devo ser dos melhores.

Amigo dos antigos, senhor de brilhante curiosidade e sempre atento às respirações do mundo, descobriu a ligeireza da impressão digital. Tenho algures cartas oriundas da Macau de há trinta anos, lugar de onde o Ricardo [Salomão] mas reenvia agora em formato de livro, ainda que viva e faça viver ali na Costa de Caparica. «Mágica Macau» (ed. Gandaia Edições) contém, diz logo com pressa adolescente na capa, «comoções, emoções e outros sentimemas», essa unidade mínima de sentimento. Mas a meia centena de poemas em prosa vão muito além e colhem frutos de observação madura e acutilante «Dos Sítios», «Das Pessoas» e «Das Outras Coisas», sendo que pessoas, sítios e coisas se encontram e desencontram para além da arrumação. «As árvores crescem com as raízes que caem das folhas que caem no chão onde as árvores crescem.» Macau cresce muito no que de cidade vai caindo no peito dos visitantes. Acontecerá assim em cada ponto do mapa, mas acreditemos ainda no espírito dos lugares, no único que cada soma proporciona. Os portos são cruzamentos de lugares, pessoas e outras coisas e nenhum será igual a outro.

«Nós ficamos a ver, do lado de fora./ Olhamos milénios de gestos, mas só vemos paisagens.» Enganadoramente, não tem a ver nem com magia nem com sentimento. O viajante que saiba ficar aprenderá pelo amor a ler. Ou vice-versa.

Com muita dificuldade se descobrirá, mas este falso e brevíssimo guia da Cidade do Santo Nome de Deus será das mais fulgurantes introduções ao enigma. Macau a única foi apenas pretexto, ponte de papel, pequeno balão iluminado. «Numa rua que é porto interior atrás dos prédios com cais à beira mar. Avenida de carros e camionetas, serralharias e velhas estâncias de madeiras perfumadas jazendo na penumbra funda de armazéns de poeiras suspensas. Cais e mar nas janelas rasgadas das entranhas dos edifícios. Numa rua que é porto interior, os carpinteiros constroem caixões com formas de nenúfar.» Fico sentido que não mo tenhas dado para editar, Ricardo, mas isso é sentimema que se resolve à mesa e com um abraço.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 6 Maio

Morreu o Cândido Ferreira. Conservo uma das mais emocionantes interpretações que me foi dado ver, para mais temperado com acesso aos bastidores, aos ensaios, meu velho fascínio pelo inacabado, pelo imperfeito, pelo espontâneo. O verbo fez-se carne e o tempo parou para que acontecesse teatro, esse cruzamento quântico das coisas.

Foi em «Comunidade», do Luiz Pacheco, com encenação do Antonino Solmer, sendo o chão e céu uma das máquinas de cena do João Brites, cruzamento de barco e gavetão. Mas o Cândido absorveu tudo e da massa fez totalidade. E o espectador siderado. A cada leitura do Pacheco lá me vem, lá me virá sempre o Cândido. Sem querer e por coincidência descobri o parvo texto que escrevi para a ocasião.

«Na tal noite estava marcada viagem no interior da cidade, ao interior do teatro. Inesperadamente vejo-me bater hesitante numa porta grande, fazendo ladrar um cão chamado “actor” e interromper movimentos de personagens em estado de orquestração. O frio tinha-se sentado na plateia. O tabuado era de madeira, assente sobre bancos, esperando uma geografia final de sinais incrustados. Tratava-se de um bastidor. Os gestos estavam incompletos, em construção. O cenário era sugerido pela voz, pelas vozes. Aqui escuro. Além uma máquina. Repete assim. Não, o sapato não. Entras daqui. Há qualquer coisa de ritual, de caboco em obra esboçada. Cheira à pólvora do demiurgo que molda gestos, olhares. Cheira ao hálito dos projectos trazidos aos tombos. São passos em volta.»
Saravá, Cândido.

Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 8 Maio

Lisboa não deu pelo novel festival literário 5 L (de língua, literatura, livros, livrarias, leitura). A cidade ansiava por regressar a si, portanto a espreguiçar-se ao Sol, explodindo em milhentos regressos, peças, concertos, gritos e assim.

Mas não aconteceu comunicação e a que existia era de uma dolorosa infantilidade («Ler é fixe», com a mãozinha armada em roqueanrole, a sério?). Alinhámos por razões de amizade e outras estratégicas, contribuindo com Pessoa em cabo-verdiano para deitar a língua de fora ao Dia da Língua; com o nonsense do mano Luis [Manuel Gaspar] para celebrar aquela ideia de cidade que se esvai entre os dedos, como as ruínas da Solmar; com os muitos recomeços que a Ana [Freitas Reis] injecta no sangue dos seus versos. Não consegui deixar de me sentir estrangeiro, ainda que na mesa das funções. Os gestos de encontro saem-nos desajeitados e hesitantes, não nos foi permitida ainda a festa que deve acontecer em cada arremesso, tudo me surgiu deslassado apesar do esforço e alegria dos autores e dos apresentadores, a Inês [Fonseca Santos] e o João [Soares], e até o vírus deu ar de graça ao projectar-se na Linha de Sombra impedindo a Odi Marítimu de levantar âncora.

Lisboa, terça, 11 Maio

O Sporting ganhou. Não foi apenas o futebol, o futsal, o hóquei em patins, o ténis de mesa: venceu as probabilidades, o dinheiro, a má vontade, a descrença, a batota, o anti-jogo, a arrogância, a piadola, o mau perder, as faltas e as faltas de jeito, os velhos do Restelo e de Alvalade. Contra tudo e contra todos, por saber fazer com inteligência e coração, em cada um dos que vestem a camisola, treinador que pensa e sorri, capitão que corta e marca com peito e alegria, no guarda-redes que defende como quem ataca, no sangue e fresco do meio campo, centro da inteligência e do coração, por saber correr e sofrer nas laterais, por se transcender enquanto equipa dentro e fora de campo, por cruzar inteligência e coração. Por ser o clube de Peyroteo e Yazalde, que jogavam com y (na foto da infância), além dos tantos queridos, aparecidos e desaparecidos. E por ser redonda a bola.

20 Mai 2021

Apagar a Bedeteca de Lisboa

Horta Seca, Lisboa, sexta, 23 Abril

Nunca mais voltei ao Palácio do Contador-mor. De vez em quando chegavam-me notícias dos Olivais. Não me lembro de uma boa, mas a minha memória tem vontade própria. Ou tinham tornado as salas de exposição em armazém, uma necessidade imperiosa. Ou tentavam encerrá-la, incendiando a indignação do Ruben de Carvalho, na Assembleia Municipal. Ou desatavam a distribuir os originais em depósito como se aí viessem os bárbaros. Afinal, os bárbaros estavam bem instalados. Nem decidiam nem saíam de baixo. Tanto que entregaram às autoridades sem esboço de resistência livros atentatórios da moral e dos bons costumes. Uma chamada do José Marmeleira desinquietou-me: a moribunda Bedeteca cumpria por estes dias 25 anos e o Público queria saber das razões para o «desaparecimento» (https://www.publico.pt/2021/05/02/culturaipsilon/noticia/bedeteca-bela-historia-apagou-1960529).

Pensei em pegar em cartaz, newsletter, exposição ou livro e discorrer em direcção ao pôr-do-sol. Pensei em divertir-me desafiando em duelo pequenos e médios funcionários da vida e outros arrotadores de postas de pescada. Pensei em reflectir a fundo sobre a ausência de estratégia cultural em gestão autárquica feita ao sabor de modas. Andando por estes dias a lidar outros fantasmas, por causa de uma ilusão chamada futuro, desapeteceu-me. Mas a conversa perturbou-me a ponto de me fazer espreitar umas fotos e reler uns textos. Hesito em deixar aqui a introdução ao longo relatório que entreguei ou pedaços da carta de despedida, entre recordar o entusiamo dos objectivos ou a emoção do corte com projecto bastamente identitário. Por causa das pessoas, deixo a carta, quase por inteiro.

«Fiquem descansados que outras imagens me atormentaram nos momentos-chave, mas, no caso da banda desenhada, colecciono duas ou três. As primeiras são vinhetas do Tintim, na América e no Tibete. Primeiro a vertigem de atravessar entre dois arranha-céus, num álbum que andou comigo cada segundo de alguns meses da infância. Depois veio o hino à amizade de um nome que, gritado, faz tremer todo o bem-estar pequeno burguês de uma estância de férias. Vertigem e grito perturbador foi o que voltei a encontrar, muitas páginas mais tarde, na prancha de Muñoz e Sampayo, em Viet Blues. Afinal, havia vida e carne e política nos quadradinhos.

É só por isso que os projectos valem a pena: há pessoas por detrás das coisas e das obras. Há vida antes da morte. O gesto estético só me interessa se estiver ligado à vida e à carne dos dias. Não é tanto a questão desirmanada da fantasia escapista contra a força de intervenção rápida do neo-realismo. Trata-se de encontrar a força ténue do acto criativo: uma interrogação que pode explicar; um momento que pode iluminar; uma imagem que pode dar a ver; uma ficção que nos pode mudar a vida. Ou não.

Alguma coisa mudou, entretanto, no horizonte da bd nacional. Começo pelo modo como esse ser viscoso chamado opinião pública olha as histórias aos quadradinhos. Muito preconceito e confusão haverá ainda – o que, segundo os ensinamentos da História, pode ser bastante produtivo –, mas a bd está decididamente na agenda da atenção mediática. A massa crítica aumentou consideravelmente. Mais artigos, mais livros, mais gente a discutir e a fazer.

Mais formação. Há páginas de frenético entretenimento e de arriscada pesquisa pessoal. Um olhar mais próximo diria que aumentou a autoestima dos criadores. Não está ainda consolidado um sistema, mas vão surgindo obras a ritmo razoável, com importantes visões plásticas e experiências narrativas. É óbvio que está tudo por fazer. O projecto da Bedeteca é totalitário. Importa tudo e todos tocar. Até agora falhou, mas o lastro da utopia contamina algumas vontades. Vai ser possível fazer mais, por uma razão simples, se simples fossem as razões: possuímos excelentes criadores e alguns bons investigadores.

Sem vontade política era impossível ter nascido a Bedeteca de Lisboa. Devo um primeiro agradecimento a João Soares e a Tomás Vasques. [Acrescento aqui e agora a Manuela Rêgo e a Maria Calado. De todos conservo a amizade.] É injusto não enumerar em seguida cada um dos nomes que a partir deste impulso inicial ajudaram a construir. Mas porque foram, felizmente, bastantes é impossível escrever aqui os milhares de agradecimentos que desejava. No jardim do Palácio florescem verdadeiros livros de solidariedade, de inútil beleza, de utilidade permanente. Se alguma coisa aprendi terá a ver com as pessoas, humanas e individualizadas. Também com a vida e as várias mortes que ela contém. Ao Júlio, um abraço. Devo mais abraços. Alguns são de uma intimidade que fere, outros são públicos e notórios. Àqueles que tentaram e continuarão a tentar destruir, é-lhes também devida uma palavra. Obstáculos, mesmo os que têm origem na má-fé, podem (quase) sempre transformar-se em oportunidade.

E, se é verdade que meios inquinados como a função pública só oxigenam graças de ao empenho e generosidade de uns quantos (nenúfares), também não é menos verdade que se encontra a torto e a direito a mediocridade, a preguiça mental e o atavismo (pântano). A todos agradeço.

São de ordem política e pessoal as razões que me levam a tomar esta decisão. Politicamente, a equipa que me convidou saiu. Ora eu, não sendo funcionário camarário, e portanto descomprometido com uma ética de instituição, devo demitir-me também. Empenhei-me na campanha eleitoral, na exacta medida das minhas capacidades e desilusões. Achei que havia um projecto de cidade e de cultura que merecia continuação. Lisboa não concordou. A outros a tarefa de dar corpo a outras ideias. Porque esta ideia (de cultura e bd, por exemplo) é política. Pessoalmente, qualquer explicação passa pela palavra cansaço.

É isso: troco de lugar. Quase nada se altera no rumo das coisas, antes lhe dá consistência. A Bedeteca é um ponto luminoso na vida da cidade. Os novos responsáveis pela vida cultural da cidade reconhecem-no e afirmam a vontade em mantê-lo exactamente assim: luxuriante e perturbador, conservador e reflexivo.» [Risos, muitos e desbragados]

12 Mai 2021

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

Teatro da Rainha, Caldas, terça, 20 Abril

As sessões do Diga 33, animadas pelo Henrique Dodecassílabo Fialho, são um refrigério. Um leitor que faz da inteligência uma casa onde recebe os seus convidados, no caso, a Rita [Taborda Duarte], que lhe respondeu da mesma maneira, quer dizer, expondo-se, explicando-se, dizendo-se. Sem merdas, desculpem que o diga, mas apetece. Gente de um lado e de outro, alguma que vinha já derramada de um encontro próximo e à mesa. Aconteceu por ali vida, o que não será dizer pouco. Estando nós para mais a celebrar regressos ao que não voltará a ser normal. Possa a poesia ser o corrimão destas escadas em vórtice. Possa a palavra ser mundo, que dizes, Rita? «O mundo não é feito de pessoas nem de casas nem de coisas/ menos ainda de afectos e sentidos. / O mundo é feito com palavras perfiladas/
como pedras/ sobre pedra/ em cima de outra pedra, ainda.// São de palavras de pedra as paredes do mundo:/direitas e exactas como um fio de prumo. //Se nos tiram a língua,/ as várias línguas que tem a nossa língua:/ esta língua com que te falo,/ a língua com que te beijo,/ esta mesma língua em que te digo esse nome que tu és,/ roubam-nos mais mundo ao nosso mundo.»

Fundição, Oeiras, quinta, 22 Abril

Até o mais escuro dos ateliers me aparece tomado pela luz. Assim com o esboço: mais do que revelar a ideia que desponta, o titubear antes do salto, portanto a potência, contém a mais livre e rude das espontaneidades. Se nos passos há caminho, naquela busca encontra-se logo logo horizonte. Daí que a oficina seja bastante mais do que bainha e bastidor, erro e ferramenta, suor e preguiça. É lugar de muitas subtilezas e espectáculos. «Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,/ Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,/ Olho e contenta-me ver». Com a mais infantil das atenções, entro, vindo do Tejo, no belíssimo atelier do Francisco [Vidal]. Correcção: no bairro do pintor.

A nave, em cujo canto repousam ainda restos das bombas, portanto destruição, que por ali em tempos se fabricavam, divide-se agora em jardim e cozinha, quadra de basquetebol e palco, carpintaria e estúdio propriamente dito. Imagino que possa ainda surgir, por conveniência, loja e laboratório. Por junto e à mão de semear. A arrumação casual das guitarras e das bolas, das serras e dos pincéis, cada detalhe diz do sagrado, da relação com o espiritual.

Sobre a decadência fabril e a fadiga dos materiais instala-se a cor gritante, abrindo vitrais iridescentes, atraindo a visão e pedindo paragem no tempo para que o corpo se permita ir atrás dos olhos. Exposição permanente, ainda mais essa. Encontram-se rostos da revolta e da afirmação, vítimas da violência, forma de os tirar da espuma dos dias para os instalar na memória política. Como ser negro com todas as cores, todas as letras? As grandes telas surgem compostas fragmentos e a pesquisa do Francisco está agora no cruzamento de técnicas mais pobres, a da impressão dos múltiplos, a da fotocópia dos fanzines, com o gesto dito puro da pintura. Talvez a cor não seja bem o tema, mas dividir a experiência assim é fazer logo autópsia do corpus vivo. De que falamos quando as catanas, lâmina e cabo, mão e corte, se alinham de modo fazer superfície que acolhe a imagem? No topo desalinhado, os bicos afiados e dissonantes não deixam de me perturbar, a pintura saindo do enquadramento, como se quotidiano procurasse o seu lugar de origem e nesse movimento nos ferisse. Deve ser por ali que se encontrará a identidade. Com risco e cesura.

Podia bem ter ido apenas pelo lugar, melhor, pelo encontro ali que há muito se adiava, mas havia razão prática: a capa para a «Ode Marítimu», versão em cabo-verdiano da brutal engenharia e celebração dos mares e portos em nós segundo Álvaro & Pessoa, ilimitado (algures na página). E no processo desencadeado me reconcilio com o papel do editor. Ignorante do seu lado cabo-verdiano, acabei despertando um entusiasmo que já partiu nas mais diversas direcções, dando nó na rosa dos ventos. Está a acontecer o reencontro do Francisco com uma das suas línguas. Partiu do texto agora reescrito pelo José Luiz [Tavares] para uma narrativa gráfica que mastiga as paisagens daquelas ilhas por junto a de uma cidade mulata. (Pode ainda dizer-te mulata sem despertar os ogres da correcção automática?) Foi-me dado ainda ver partes do processo, o modo como a feitiçaria faz a ligação entre o concreto do mundo com a prática do desenho. A pintura redefine assim os dias, nada se se pôr à parte. Por aqui não nascem museus.

Na pressa vertiginosa habitual, estava a receber as últimas correcções do poetradutor, que insistia, a cada uma, em explicar-me as razões e as raízes, quês e porquês. Exemplo seja a importância do «n», onde se esconde o eu daquela língua, ainda para mais em sonoridade escorregadia que pede ginástica da língua-orgão, para que possa acontecer a língua-sentido. O José Luiz, não sei se o disse já a propósito de Camões, vai conduzindo a nova língua para mares infindos e abissais. Contra tudo e alguns, os que insistem pouco inocentemente em chamar-lhe crioulo. «Como quase vítima de glotofagia, usuário e estudioso», diz ele, «sei bem o que está subjacente à designação ainda que se não tenha a consciência: O crioulo de Cabo Verde, língua natural dos cabo-verdianos nascidos em Cabo Verde e língua de herança de parte da grande diáspora designa-se cabo-verdiano ou língua cabo-verdiana. Crioulos todos são, como a língua românica de Portugal é um crioulo do latim. Crioulo de Cabo Verde, designa apenas uma família de língua, assim como a língua românica de Portugal também indica uma família de língua.”

5 Mai 2021

Mão Dita e por dizer

Horta Seca, Lisboa, quarta, 14 Abril

Abrimos as janelas de cada dia para nos queixarmos do tempo, assim ele nos fosse exterior. Portanto, tenho as minhas razões de queixa. Cada passo dado, cada gesto emitido, cada esforço, as ideias arrancadas pétala por pétala de uma flor por existir, tudo participa no coro de tragicomédia que traz à cena A Grande Avaliação. Sempre detestei exames, antes de perceber que passamos a vida na navalha da examinação. Talvez o momento e o movimento que atravessamos seja agravadamente mais de balanço por tanto conter de desequilíbrio.

Uma vez mais a pretexto de festival, no caso o 5L que se anuncia para Lisboa nos primeiros dias de Maio, depois da falsa partida de 2020, preparamos outros dois volumes da colecção Mão Dita. Nascida por lembrança e insistência do Luís [Carmelo], que acabou por criar a Nova Mimosa para dar resposta cabal às suas ânsias, pretendia ser versão portátil e laboratorial, ensaio súbito, recolha do volátil da voz alta, chamada para tema e trepidação. O grafismo, muito discutido com a Luísa Barreto sublinharia isso mesmo, com os dois pontos de arame e uma capa de intervenção plástica sem mancha de tipografia, sem guilhotinar as sobras que resultam da dobra dos cadernos.

Testámos logo limites com as 82 páginas do «Tratado», do Luís, que chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, com a erudita abordagem corsária dos grandes textos. «Nunca houve inveja do futuro/ na linguagem das aves […] Nunca houve passado/ na linguagem dos homens». O grande leitor enfrenta espelhos e fantasmas, desdobra paisagens e alinha as invenções. Fôlego assim talvez desminta as premissas, mas um laboratório pode ter correntes de ar…

Mais alinhado com as intenções, Felipe Benítez Reyes fez pequena antologia dos seus poemas que tinham partido ao encontro da sombra de Pessoa. A ela voltamos com a tradução para cabo-verdiano da Ode Marítima, pelo José Luiz Tavares – quem mais teria o atrevimento? –, ele que exilou o mar dos seus versos de ilhéu. «A, tudu kais é un sodadi di pedra!/ I óra ki naviu ta sai di kais/ I dirapenti ta odjadu ma abri un spasu/ Entri kais ku naviu/ Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,/ Un nébua di sintimentu di tristeza». («Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/ Uma névoa de sentimentos de tristeza».)

A dita colecção quis-se ainda hall de entrada. Faça favor, Liliana S. Ribeiro, com as perversas arrumações, da infância, da paixão, das varandas, dos objectos. Entre, Ana Freitas Reis, trazendo forte «Cordão» ligando a universo no qual as palavras possuem carne e portanto física, peso e alcance. Avance sem medos, João Rios, aquele que usa o sarcasmo para descascar os verdetes da História, sem deixar por isso de recolher das marés restos e sujidades do quotidiano. Foi o único a assinar dois títulos e em pleno lançamento do segundo apercebeu-se que havia datas redondas por celebrar. Apesar de faltar mesa às preparações onde nos temos encontrado permitiu com mais facilidade aquilatar da pujança do sopro. Está para mesmo depois do intervalo, esta singela celebração de mais um quarto de século a respigar. «nenhuma idade / é mais sólida/ que as ruínas da casa».

A esta listagem dos novos soma-se agora os velhos, amigo e poema, resgate também de edição perdida há décadas nos dentes da engrenagem. «As Portas de Santo Antão», do mano Luis [Manuel Gaspar], atira-nos para pedaço perdido da alma da minha cidade, bastando para tanto que nos atravessemos neste delírio de atenções, ao lugar, à palavra, às sobras, às ruínas. Seremos bailarinos, acrobatas, nadadores, trolhas, esfaimados e clientes mas sobretudo observadores. Seremos rima e cartaz e tudo e mais alguma coisa. Até Lisboa, a que nunca existiu a não ser entre nós. «Há milhões de criaturas,/ Homens, mulheres e petizes,/ Que dão saltos e pinotes/ E arrebitam os narizes// Numa algazarra medonha, / Procurando a direcção/ Que os leve sem demora/ Às Portas de Santo Antão.»

O Nuno Viegas [algures na página, uma hipótese de capa não escolhida, para não retirar surpresa e para acrescentar valor a este cantinho de licores], que põe humor nas cores, interpretou bem o caos criador. Junta-se a uma galeria que inclui as cores e interpretações de Pedro Proença, José Barrias, Pedro Pousada, Eugénia Mussa e Francisco Vidal.

Em 2018, no voluminho #01, guilhotinado por engano consuetudinário, a Inês [Fonseca Santos], senhora de várias madrugadas – que, aliás, foi assinalando durante o confinamento com leitura diária do céu que lhe assiste –, não se atreveu a vaticinar que acabaríamos todos em uma «Suite sem vista». Bom, suites para os mais bafejados, assoalhadas interiores para a maior parte. A rapariga aguarda que nem cerejeira o desabrochar violento da esperança. Anseia pela colheita, outra além da da solidão, da do tédio. Ia tocando o sangue e Deus, assim como teclas de instrumento. No corpo, como na cama, de olhos abertos. «A rapariga possuía metade da vida./ Estava demasiado velha para a fuga:// regulava a temperatura das palavras/ como quem copia com os dedos// o tom do coro da missa, em si menor.// A rapariga respirava fundo na suite sem vista, recordava:/ a vida inteira, cronométrica, a vida inteira //como quem copia com os dedos o ritmo / da pessoa errada.» A rapariga e nós com ela.

21 Abr 2021

Cadáver esquisito

Cândido dos Reis, Cacilhas, quinta, 8 Abril

 

Do banal em estado puro. Desces a inclinação das Flores cruzando memórias que perpassam. Encolhes os ombros, ias trocar saudações, evocar brincadeira antiga, arrepio dolente, desejo celebrado, mas mandam as regras que não te interpeles a ti próprio nos cruzamentos. Dá-te por contente se continuares a ter tento nos desdobramentos de ti. Pessoa, que deu nome a pharmácia além do mais, não ficaria mal em medicamento. Não avie o genérico, tome de oito em oito horas 7 miligramas de Pessoa, em comprimido ou suspensão oral, vai sentir alívio imediato nas dores das várias cabeças, nas ânsias das mínimas metafísicas, na aspereza prática das articulações dos mega-processos dos quintos dos impérios. Mundos inteiros se erguem e despenham para um se tornar pessoa.

Para os que atravessam o rio nas tormentas do habitual, não deve sobrar sentimento sobre sensação, ponte de romantismo, mas perguntas-te de cada vez por que não o fazes mais e a despropósito. Não custa nada, o bilhete que te muda este chão que pisas tardando em estender-se horizonte, granito polido a que se seguirão as ondas penteadinhas a beijar a quase escotilha antes dos múltiplos pavimentos da outra banda, tantas peles. Puta privilégio, adivinhares nas costas a cidade-fêmea dispersa, com os seios multiplicados a acolher as carícias do rio. E no cais movente onde atracas demoras a erguer o olhar para que o deslumbramento te tome com lentidão máxima.

Sem parar, que não o permite a esparsa correnteza dos cruzadores. As calças sujas da frente contam histórias, a boazona espalha indiferenças com intenção, as rotinas do Gingal estão desde cedo dispostas, abertas à interpretação, a voz a vender ao saco, que fruta?, que vitualha? Abancas na borda acertada de afluente, perpendicular ao Tejo, ilha por entre subidas e descidas, que arrastam olhares e comerciam a matéria dos dias.

Estranhas o xadrez posto nas mesas, singelos monumentos à inteligência e ao jogo . Estranhas o que parece sino descido da torre para badalar nas escadas da igreja que deve ser matriz desta aldeia. Baloiça o negro, mas os teus pesares são mais negros que o dito.

Estás sentado à mesa para acertar detalhes últimos de projecto que tem tudo a ver com torres e cavalos e bispos e peões em movimento desconcertante. Alguém que sabe abrir os segredos de certas substâncias, combinar levezas e amargores, o líquido e a luz, ou seja, um aprendiz de feiticeiro que também sacrifica à leitura resolve fazer a mais perigosa das jogadas: e se? O João [Brazão], sabendo do interesse de alguns autores pelas inesgotáveis matizes da cerveja e do que se esconde no gesto de beber em comunidade, desafia-os para um cruzamento. «Cadáver esquisito», receita surrealista para a criação ilimitada, será doravante também nome de bebida com muito para contar. Cada um dos seis rótulos do volume primeiro terá um conto, iluminado com a ironia do Nuno [Saraiva] e com design abrangente e delirante do Marko [Rosalline], que vai ao ponto de querer documentar o processo completo em busca essência da criação. Foi dos primeiros a surpreender-te com o lume da paixão e logo grande cicerone das tradições e dos sabores. Muito antes dos ventos da moda, o mano Luís [Afonso] fez da saudosa «Vemos, Ouvimos e Lemos» lugar de peregrinação, tal a diversidade de experiências que oferecia, rimando com os livros e o mais. Pertence-lhe a descrição do néctar, a servir em garrafa de 0,75 litros e logo adoptada pelo mestre cervejeiro: «um pouco turva, com tons de âmbar claro e uma espuma cremosa e persistente. Além de um sabor de estilo belga, com notas de especiarias e banana, aroma e amargor do lúpulo, num final seco». O embaixador Afonso [Cruz] transformou a artesanal beberagem em causa, literária e filosófica, dando-lhe mais sabor e profundidade. O explorador das estepes do pensamento, que palmilha por todos os meios existentes e por ele criados, Luís [Carmelo] usa a pequena garrafa como bordão e báculo. Outro que a manobra que nem bússola, também no afã de descobrir continentes, reacender vulcões ou matar a sede é o Valério [Romão]. Quando foste a Curitiba ao encontro do Paulo [José Miranda], entre o aeroporto e a sua casa tiveste curso acelerado com degustação e versos. Aliás, a estada tornou-se afinal viagem ao coração do universo, a que só se acede por estes degraus. O amargor nunca mais se reduziu a amarguras ou amargos de boca. O sexto conto coube-te a ti, que pouco mais sabes que beber. Cada um na sua garrafa e todos em livro, não podia ser outro o modo. A força da coincidência por a morte rainha desta partida, antes ainda de encontrado o nome. Pormenor para futuras conversas. Vai aqui na página um retrato à la minute do caos de onde surgirá o apuro e a vertigem. Diz o João ao Marko, parece que chocaste de frente contra uma parede e entornaste todas as garrafas.

Um almoço é orquestra sentada. Puxa aí o embondeiro aqui para a cantina. Umas horitas para ajustar o pretexto do afazer, a ele voltaremos que nem refrão que se enxota e não pára de picar. Não deixam de desfilar mais uns quantos, desaguando-te no peito profundezas e desabafos: és antena desatinada tendo por base um convés. A terra será morena, a pescaria infrutífera, o amor dorido, o desafinanço irritante e Deus que se atrasa. Atenta no lábio antes do sopro, dos dedos na corda, no que locomove a peça no tabuleiro. Sim, a cadência é de onda.

Já a pisar a volta, no quiosque de afogados e de marinheiros ainda encontras velho conhecido desaparecido em combate com quem riscas mais outro projecto no cabo do revólver, talvez bisnaga vira-bicos. Depois o sol põe-se a desenhar âncoras nas palavras e nos gestos dos que por ali cirandam como piões de destinos desatinados. Trata-se agora de lavrar as pequenas ondas. E subir a rua de regresso. Que «amargosto» trazes da outra banda.

14 Abr 2021

Vil e apagada tristeza

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Abril

Lisboa – que nunca foi de se esplanar ou jardinar e perdeu aquela maneira de se viver cidade nas praças-catedrais que são os grandes cafés – está sentada no meio da rua a celebrar a Primavera do seu descontentamento. Os indicadores postos em gráficos e nas opiniões médicas que governam as nossas vidas de doentes por acontecer mandaram entreabrir. A impaciência empurrou portas, janelas e postigos, afinal forma de abrir no fechado. Dizem que seremos salvos pelo tamanho do intervalo, da interrupção do toque e da conspiração. O mundo parece disco riscado e o mais provável será o regresso à casa de partida que arrisca coincidir com a prisão. Exagero, claro, excepto para os mais velhos, que perderam as migalhas de autonomia e estão arrumadinhos em casas-forte de acrílico. E a da Gadanha anda em azáfama tamanha que arrisca esquecer-se de um ou outro que a chama em tonitruante silêncio deixando de comer. Queima esta coisificação dos nossos queridos velhos.

«Atentava naquele turvamento de palha-de-aço pousado em mãos ambas: curiosas formas têm as nuvens de arder. Tivera sucedido em papel desenhado e o aludido ganharia o desconchavo que as partículas em suspensão assumem quando se dá a ver o pensado. Naqueles espelhos enxertados em céu são sempre múltiplos os estratos, o roçagar das quase esferas expandindo-se em inquieta imperfeição, com rugas e refêgos a cambiarem de lugar, o ténue brincando com o sombrio. Atravessam as configurações das coisas como se fossem atalho. Brotam das paredes e acorrem a colhê-las com a palavra salitre. Se o azul perdura no lápis-lazúli, as nuvens reencarnam nas trufas: assim se deixam alcançar. Está em vias de extinção a arte que reivindicava a sua captura e domesticação, que parece sobreviver tão só na prerrogativa dos zangados. Vil e apagada tristeza, esta do bom tempo estar condenado a ser sem nuvens.»

Por causa do «Diário das Nuvens», tenho tido os dias contados. Com este acabado de passar pelos seus olhos, leitor, faz oitenta que começámos a brincadeira do toma lá nuvem, mete-lhe partículas dentro e vai estendê-las na rede a corar. Tal o cão com o seu invejável afinco atrás da causa, pus-me atrás das palavras. As leves soltam-se, as pesadas estrumam. Muitos destes poemas em prosa brotaram, pétala e espinho, copa e raiz, das tonalidades que cada palavrinha de nada pode conter. Atentemos na palavra coisa: parece nuvem de tanto lhe caber. O desgaste da oralidade, mas também as fendas que suscita, deram uma ajuda neste trabalho oficinal. Ficam por arrumar várias ferramentas como a repetição ou o neologismo metido a martelo. Tenho que lhes pintar a sombra na parede para que conheçam o sítio de repouso. Por falar em genética, a cidade e a casa cruzaram-se nas atenções. Certa canção diz que a casa é onde dói mais. Esta cidade dói-me no peito. Devia dizer como alguém próximo nos diz: não te metas na minha vida, não entres em mim. Já vai tarde. Outras criaturas suscitadas ficam por ora em sossego, por junto com mais obsessões de trazer por casa. A proximidade forçada não significará ossatura de domésticos frankensteins, colagem de avulsos. Valeu pontos também o ensaio, aquilo que se dá quando alguém pega no objecto procurado com energia e inteligência repetidamente treinadas, evita as investidas de cada um para lho roubar ou impedir progressão, e passa o risco. Em outra disciplina cumpre-se na tentativa de atirar projéctil de peso bem medido além da linha, o conjunto circunscrito à secção de uma circunferência por completar. Jamais pensei que a geometria, mais ou menos descritiva, se tornaria companheira. Passei a vida a traçar linhas de terra invariavelmente sujas, portanto dignas de punição.

Falando sério, devo obrigadar o João [Francisco Vilhena], por me ter oferecido este esbelto álibi para o torpor em que me fui deixando cair. Leituras prementes, projectos exaltantes, afazeres solenes, nada brilha no nevoeiro. Para cumprir a regra do jogo, ele mais comprido, que eu cumpridor, interrompemos hoje a cadência jornaleira.

Continuaremos ao sabor de apetites e com mais uns quantos filmes (os quatro já atirados ao ar pulsam em https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/) e manda o inevitável que, além de prolongamento expositivo, pensemos em livro. Para variar, o chão está cheio de ideias, mas na neblina anda-se meneando as mil cautelas como a centopeia. É enorme a tentação, aliás costumeira, de erguer castelos nas nuvens.

Não foi desta que escrevi sobre as perspectivas, os enquadramentos, as sequências significativas e os acentuados agravamentos que o João foi fazendo, mas troquem, na penúltima, escultor por fotógrafo e temos um dia feito.

«Houve tempo. Houve tempo em que os escultures eram errabundos, passageiros até da passagem. A vida por inteiro em estaleiro, palácio agora, catedral na passada, palheiro e serrania, aqui como ali. Pegavam no barro, davam rosto ao medo e partiam. Assim com o mármore e o prazer, o lioz e a alegria, o bronze e a fúria, o ouro e o amor, a água e o espírito. Enfim, a matéria e a mão, puxada da mente. Esculpiam em movimento o que fica, mas sem reduzir fatalmente essas formas à estatuária. Ou desconsiderando os fins últimos: as altitudes se certas na determinação fazem-se portáteis e os bolsos armam-se casa. O atrito estica os homens que andam com as suas dedadas até se tornarem coordenadas condenadas ao enleio. De compridos, cumpriram o seu tempo. Cumpre agora o teu. Perplexo.”

7 Abr 2021

Delirium tremens

Horta Seca, Lisboa, sexta, 26 Março

Diz a velha sentada na borda na cama do hospital sem chegar com os pés ao chão, antena sem ligação à terra: são muitas as frases por que passa um homem. No exacto instante – eu morra já aqui na medicina legal fazendo haiku se não foi assim, pelas alminhas da minha mãe, que tinha pelo menos duas além da da mulher a dias de quem ela gostava bué, pela saúde dos meus filhos que nunca tive e por isso morreram saudáveis – passajou uma mudança de sexo que mal a ouviu logo se engasgou. Não havia intensivista nos arredores pelo que teve de ser o quebra-gelo a descalçar a bota. O voluntarismo não resolveu o problema dado a dita ser alta e de atacadores, ou seja, o tempo passou naquele fascinante manuseio entre cirurgia, fala de surdos e truques com cartas. Anunciava-se a desdita, alguém afina a navalha, ninguém afia a voz. O fado é um drone com baterias de longo alcance. Posto isto, que não nas redes, o sexo em vias de sintonizar identidades ia ficando roxo pascal, tipo vindo de sangue de boi a caminho do amarelo de nódoa negra pisada, não tenho presente o pantone. Era grave. Uma gravidade agravada pelo peso dos protagonistas e por não estar pronto o directo para o programa da tarde, perdeu-se a oportunidade, que rolou redonda em câmara lenta para sarjeta. Em câmara lenta era mais emocionante, em câmara lenta tudo se faz, em mais e melhor.

A velha pigarreava para aclarar a deixa, velha queixa, querida gueixa. Não te esqueças onde vais, um perigo em contexto hospitalar, onde se perde gente à toa. Alguém lhe daria a atenção devida, mas era de morte: os sucedidos não paravam de se suceder com sucessível sucesso. Fugiram protocolos de psiquiatria em debandada psiquiátrica.

Quem o diz em voz alta ou alta voz? No segundo piso, afirmou o tarado dos diálogos de séries de horário nobre e grande público, ou grande pobre em erário púbico. Não me fodas, a plateia não cresce por mais que a regues, respondeu o marado da ontologia. Isso é noutro serviço, insistiu o primeiro, o do segundo piso, em cena típica de parada e resposta, que, cá está, convém dar-se no rés-do-chão das novelas de cordel. Neste entretém, sem contar com os que arrefeciam já o mármore frio, faleceram para lá de muitos. O esquecido sexo que queria apenas meter a mudança de genitais deixava-se ir abaixo.

Entretanto e tão pouco, a velha, ainda e sempre ela, golfava ininterruptos ditados. Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida. Que pode uma mulher trespassada pelos balões de fala fazer? Que pode uma trespassada fazer com a mulher que fala pelos balões? Pode a haste do balão fazer de falo na fala? Quem tem balões para fazer a fala confessar uma mulher? Impasse. A imagem congelava sem apelo nem agravo, que os corredores são longos e o conselho de ética hesitante, em ética hesita-se mais e melhor: sacudida como a folha de cantos redondos do velho raio-xis a despir o esqueleto ou pendurada tal o ícone búlgaro da virgem tão mexicana que os chineses não conseguem refazer em plástico. Não me desminta, interveio logo o imagologista de seta de rato na mão, por causa dos pontos de interrogação no relatório.

O trabalho que dá encontrar umas boas setas de saltear – armou-se agora este que se assassina, perdão, assina, e se espelha, perdão, espalha estas linhas em bom. Tom de tonto. Trabalho obscuro e solitário, mas que alguém tem que fazer, o de montar serifas nas bordas derrapantes das letras para facilitar a literatura de viagens e, quando muito, a escala. De cerveja escaldada tem o gato medo.

Enfermeira ao piso, enfermeira a fazer-se ao piso. A voz off estava mais on que a governação. Voltava a haver razões para tanto. Na secção das partes, em concreto a das próstatas a prazo, havia alegria em demasia, não eram trocos, mas circunstância agravante. Depois das raspadinhas, naquela hora dava-se por iniciado o período fatal dos lançamentos de algálias presas. O vídeo-árbitro não se conseguia entender-se, nem em debate aceso com a escola de Frankfurt, acerca da dosagem certa de urina para se considerar grande penalidade.

O início é sempre a melhor maneira de começar, disse alguém ao expirar. Temos que promover a senhora a Velha e pôr-lhe fim. Vede bem, tanta palavra gasta para maiúscular um vê. Conspiração dos mais gastos pulmões haviam armadilhado a supracitada vítima com subterfúgios de alto gabarito, cultivados por junto nas caixas dos bichos de seda e nas gavetas de metal com gatilho das redacções esfumaçadas do final dos meados do século passado, mal passado, enfim, em sangue. As caveiras são agora ímans de cores folgazonas de pôr nas superfícies alisadas, as das geleiras como as dos gavetões da morgue. Um desrespeito. Diz o despacho que a despachou: a Velha sentada na borda na cama do hospital sem chegar com os pés ao chão, raiz a perder ligação ao céu, A-da-gadanha é morta de morte matada, embebedada, embebida, muito dada, contas feitas, tão só emprestada. Volta a ser grave demais para ser verdade. Portanto, passível de Inquérito, aguardente mais universal que o proverbial canivete, boa até para as varizes se esfregada. Ponto final apocalítico, que a mordedura da moral da história contém raiva: beija as mãos de que se alimenta.

31 Mar 2021