Dar nós no horizonte

CCB, Lisboa, 3 Novembro

 

[dropcap]O[/dropcap] novo poiso do Obra Aberta, a sala Ribeiro da Fonte, deixa que o olhar parta rio afora, acompanhando as ondas que a conversa lança, do lado de cá do vidro. Desta, convocados estavam o Pedro Mexia e o João Paulo [Esteves da Silva], que levou obras de e sobre Pessoa, com passagem por Mário Cesariny mai-lo seu Virgem Negra, que desconsidera como escarninho menor. Oiça quem possa, no útil podcast, que o Pedro, do seu lugar de grande leitor, também acrescenta sempre perspectiva. Serve o intróito para registar a metáfora que por ali se instalou e nos acompanhou na breve viagem sob chuva, ali do quase-foz até ao quase-centro. Pessoa enquanto buraco negro que suga a energia que o rodeia, que apaga as estrelas que se avizinhem. E confidenciou que, em certas Quintas de Leitura, orquestradas pelo João [Gesta] em torno dos Poetas do Desassossego, e enquanto acompanhava ao piano inúmeros poetas fortes, mal se agigantou o Lisbon Revisited, logo o resto se apagou ou, pelo menos, acinzentou. Estranha quântica, esta. O João Paulo contou que só agora e a medo foi regressando ao poeta múltiplo, após fase antiga em que (quase) nada mais leu, deixando contaminar as suas múltiplas expressões. Pranto-me quedo a ouvir os seus álbuns (sem palavras), em busca do que de pessoano possam conter. E perco-me com facilidade nestas paisagens que nunca por nunca se fazem agrestes, mesmo nas asperezas de certos nós, de ritmos incertos, cadências a desfazerem-se, a multiplicarem-se. «Ó macio Tejo ancestral e mudo,/ Pequena verdade onde o céu se reflecte!/ Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!/ Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta./ Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…/ E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!» Apesar da extrema solidão, não estamos sós da mesma maneira, isto conservo das conversas sobre a toalha da timidez que vou tendo e de raspão com o João Paulo. Vejo na sua recolha poética mais recente, «O Coração de Adão» (ed. Douda Correria), a unidade ser sacrificada em prol da variedade jazzística habitual, do encontro bruto com o quotidiano, do esforço para capturar o espiritual, da investigação incessante da palavra e de composição da métrica. A estafada e tão desperdiçada, por estes dias, expressão «Ser do Contra», ergue-se título de poema, no interior do qual lavro trilho. «Compara-se a vida/ a um caminho;/ percebo a ideia./ Mas, por algum motivo, recuso,/ sinto o contrário, sinto/ a vida como um não caminho;/ antes um fundo latejante,/ de frequência altíssima/ a tender para o infinito/ sobre o qual os caminhos se abrem/ com passos de morte.»

Horta Seca, Lisboa, 6 Novembro

A surpresa ganha forma de um anel e nunca assim tinha visto um arco-íris feito jóia, como deviam ser todas. Há uns três anos, uma amiga anunciava-me a paixão pela joalharia e logo se atreveu a medir-me os dedos com papel. O papel impresso enquanto medição dos passos e do horizonte parece ser território comum, agradou-me o momento no reboliço de feira literária e esqueci-me. Acontece-me bastas vezes o esquecimento, forma sagaz de sobreviver. Voltou agora mesmo com singelo embrulho que acamava um anel.

E estas linhas pertencem ao espanto: o objecto mudou-me a mão e portanto o mundo. Vários círculos de tonalidades prateadas, cavalgando-se em redondo e plano, com espessuras dissonantes a desassossegarem-se no fecho, marcam-me doravante o médio da mão direita. Diz a Ana [Castro] que partiu do ípsilon e do que nele encontrou de profundidade, escuridão, mistério, e ofereceu-se na mesma frase para limar arestas. Desnecessárias. A peça aconchegou-se que nem ser vivo e marca-me os dias com presença inusitada. Pego no copo com a mão direita e logo vejo o entrançado a comunicar-me uma força que vou perdendo. Tamborilo na mesa a melodia e um certo toque assinala mais do que a carne muda. Dou por mim a rodá-lo com os dedos da mão esquerda enquanto penso, a modos que sintonizando. E se fecho as mãos em apoio de cabeça há um perfume acre que me atinge. Dois pontos vizinhos no círculo interior que toca a pele estabelecem meridianos com ligações sensíveis às veias, as que nos irrigam mesmo em tempo de deserto.

Trago as páginas aos olhos com estes dedos, pousado o livro na mão esquerda. Como afectará a leitura as sombras que do anel se emanam? Depois, e por exemplo, a mão entrando no bolso pede mais cuidado, sinal de que possuo saliência extra. Poderia continuar, fascinado por nunca me ter ocorrido que o metal trabalhado nos poderia afectar assim. E conter retrato (sinuoso).

Aeroporto, Pisa, 7 Novembro

Detesto viajar. Melhor, detesto o absurdo vazio de tempo e espaço em que transfiguraram os hiatos entre cada lugar. À chegada ao aeroporto de Lisboa, notícia agreste quase me faz ficar. Arrisco impotente, deixando para trás parte de mim. Não quero enumerar as muitas peripécias antes e durante o voo em lata de sardinhas confirmando esta minha sensação de que sou árvore da qual são voarão sementes. Que brilhe, então, o momento quando atravessando como qualquer passageiro frio e chuva chego à Toscânia e sou travado pela farda: de onde vem?, para quê?, quanto dinheiro traz? Hesitei em beijá-la na boca para saber o gosto da guarda e do castigo, mas fiquei-me cobardemente. Há sempre uma fronteira para malfeitores como este vosso criado, nem que seja de giz.

Palazzo dei Congressi, Pisa, 8 Novembro

O beijo na face, por aqui, começa-se da esquerda para a direita. Diverte-me, o embaraço com que começam os encontros desencontrados.

Ergo o capacete colonial saudando a Valeria Tocco, que isto de feiras e festivais tem o seu quê de selva e areias movediças, versão Salgari, no caso. (Eis um que, sem sair do sítio, tanto fez viajar). Logo se perfilam Marco Bucaioni e Riccardo Grego na qualidade de editores de risco, a domar demónios em nome de uma paixão exaltante pela língua portuguesa que se ergue como praça medieval. Do lado de lá edificam-se os tradutores, Vincenzo Barca, Roberto Francavilla, ou a Francesca Leotta, e de par, oriundos de uma academia com invejável dinâmica, pontuam a Valeria, o Andrea Ragusa ou o Giorgio De Marchis. E os lados não se tocam apenas, sobrepõem-se, misturam-se, festejam-se. Na companhia do gentilíssimo Almeida Faria e do não menos afável Luís Cardoso entrámos ecossistema adentro. O chão que se pisou foi sempre o da avassaladora paixão pelo português, que merecia política de língua capaz de a amplificar. Vi salas cheias a sofrer explicação meticulosa sobre acessos institucionais, a beber cada palavra dos escritores que se entregaram com sabedoria. Quase me comovi com os tradutores do Valério [Romão] a partilhar dificuldades, a revelarem-se evangelistas da prosa de um «mondo disperato». Ouvi discutir equivalências de sericaia para evocar planícies do sul. E estou preparado para testemunhar que os apoios oficiais são seiva essencial nesta floresta. Percebi ainda a falta de exploradores da dimensão de um Antonio Tabucchi, apesar dos herdeiros.

Palazzo dei Congressi, Pisa, 9 Novembro

A última sessão, repetindo protagonistas, mas orientados pelo Giorgio, tinha a intenção de pintar futuros para a literatura portuguesa. Preferia um qualquer lirismo, beato que fosse, ao tecnicismo tristonho acerca do mercado, da ausência de curiosidade, da morte dos embaixadores em que nos deixámos cair. Até que o moderador trouxe, com a ajuda sempre fértil de Bruno Munari, a metáfora perfeita para o assunto da edição, dos livros, da literatura: «una poltrona scomoda» (imagem na página).

17 Nov 2019

Fica para outra vez, agora não tenho tempo

Horta Seca, Lisboa, 28 Outubro

[dropcap]R[/dropcap]ecebo de boas mãos, com costumeiros valor e estima, o cuidado e volumoso «Tutti Frutti» (ed. Turbina), onde se recolhem as pranchas diárias do Marco [Mendes] para o Jornal de Notícias, espaço de respiração tão atípico quanto necessário se os nossos jornais ainda respirassem. Acabou abruptamente, e ao que parece não muito bem, esta coluna que se afirmava sinal de resiliência sob inúmeros pontos de vista, do estético ao político. O pressuposto era mais da diarística do que do comentário à actualidade, ainda que esta se impusesse com contornos de protagonista, motivando pranchas de grande intensidade. Conserva-se, para memória futura, um fragmento do quotidiano, não apenas nessa cronologia das catástrofes que marcaram à navalha a segunda metade de 2018, mas nas minudências do dia-a-dia de uma geração e de uma cidade, de um pintor e de um professor, de uma família (alargada). Com humor ou um esgar de nojo, com ternura e desprendimento. O estilo, sendo figurativo, espraia-se por modulações de expressionismo que sublinha bem o carácter poético de muitos momentos, tantas vezes dispensando palavras: uma cidade que amanhece, a mesma a entardecer, ressumando nos gestos banais de quem a habita. Surpreende a atenção ao mar, em ondas sucessivas, apenas visuais, reflexivas ou como pano de fundo para o horror. Muito natural, a atenção à pintura e ao processo criativo, ampliando minúcias, convocando reflexões, jogando sempre, que a ironia está omnipresente. Veja-se a prancha de 10 de Outubro de 2018 com «lição» sobre o tempo, esse vazio entre quadrados que na banda desenhada se torna um absoluto. Não apenas pela sugestão de movimento entre instantes, mas por nos permitir imaginar possibilidades. Estas micronarrativas não se limitam a contar do real, mexeram com ele, sobretudo em papel de jornal, estou certo. De igual modo, o Marco que começou a desenhar este «Diário Rasgado» acabou outro. Assim o explicam os auto-retratos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Outubro

A escuridão monta agora mais cedo pela tarde, e a chuva agrava a sensação de que a noite invadiu gentes e lugares agravada por ser segunda-feira. A esfuziante alegria criativa do Pedro [Proença] abre rasgos solares no ambiente taciturno. As suas explicações em torno da criatura Sandralexandra, senhora que inventa paisagens no cruzamento postal de palavras e ícones da viagem, brilham no escuro. E o Pedro gargalha, conta do nascimento, do percurso, destaca pedaços, descobre poemas antigos que dá a ler. Fervilha o pensamento, como se cozinhasse em lume branco. E logo passamos aos mitos, sem levantar a mão da folha, unificando cada momento com a linha de um irrequieto ecocardiograma. O passo atrás para ver melhor, logo se torna tese sobre o uno e múltiplo. (Continua).

Barraca, Lisboa, 31 Outubro

O ritual do lançamento da edição centésima, este «As Orelhas de Karenin», do duo dinâmico, Rita [Taborda Duarte] e Pedro [Proença], talvez merecesse festa mais rija. As circunstâncias impuseram estados de espírito, digamos, alternativos, mas cumpriu-se a função, em ampla companhia e boa disposição, com leituras (comentadas) da Inês [Fonseca Santos], com o comentário (lido) do Paulo [José Miranda], os sublinhados da autora e as torrenciais interpretações do artista, tudo em álacre comunhão. Deixo-me levar pelos pormenores, o do logótipo desta edição, entre copo-vulva e orelha-vórtice, noto que as orelhas do livro ficaram acanhadas e levantam ligeiramente a capa, dando a ver o dito (mise en) abysmo. E quedo-me, meditabundo, na ficha técnica onde brilha incandescente o #100.

Uso parágrafo para o salto. Constato que, sem plano além do horizonte movediço de cada dia, temos quase metade de lombadas sacrificadas à poesia. Excluamos, por agora, as que se dedicam a pensá-la, sem por nunca a abandonar. Resistimos o que pudemos à ideia seca, gasta pelo sol das novas experiências de leitura, de colecção, mas acabei cedendo no caso das traduções, para já marcadas pela língua castelhana, sem descurar atenção que nem seta aos clássicos, tão contemporâneos um (Píndaro) como outro (Trakl). E na portátil «Mão Dita», que acolhe canções, esboços, breviários e alguns que nem tanto (veja-se «Tratado», de Luís Carmelo). Aliás, nada parece estável por estas bandas. O «Anastasis», do Carlos [Morais José], apesar de versejar, cuida de viagens ao âmago, e portanto foi para o devido agrupamento. A pensar em classicismos, temos três volumes de antologias, duas ensaísticas, outra testamental. Falo de Helder Macedo e Levi Condinho, além do José Manuel Simões. E acolhemos Antero [de Quental], com a Poesia Completa tratada com o se jardim fosse, com saber e sabor, pelo Luiz [Fagundes Duarte]. Excepção e regra.

Aplica-se aos que combinam a leitura e a música com a voz dizendo, e falo dos projectos, «No Precipício Era o Verbo» e «Lisbon Poetry Orchestra», em torno dos quais se anunciam novas tempestades, sem saber se o formato se manterá, tal o alento gráfico do André [da Loba] e do Daniel Moreira. Noto, por via do trabalho com outros operários do livro, que alguns autores se foram arrumando em formato muito seu, mais ou menos ilustrado, mexendo no objecto ou apenas procurando a relação mais duradoura com a imagem. Não gosto assim tanto dos livros penteados na estante, mas se obrigasse a biblioteconomia a uma qualquer ginástica, imagino lado a lado as edições da Inês [Fonseca Santos], do Paulo [José Miranda], do José [Anjos], do José Luiz [Tavares], até o inclassificável José-Emílio Nelson, cada um com a sua altura e respectiva largura.

Em tempos, há dias, fui amargamente criticado por dar demasiada atenção ao cadinho em que mergulhava texto, ilustração, objecto, quando a ânsia de qualquer autor exige constância, leia-se, imediata publicação. Contudo, ainda são estes os processos do editor em contramão, atire quem possa desde já os telhados de vidro do futuro. Mas sendo fácil, facilitei, que também preciso, pelo que estacionei em redondo no rectângulo onde se acumularão os mais urgentes, por aflições e quejandos. Sobram os soltos da luxúria, o «NÆvus», do Rui Baião, quando este acreditava que a editora seria a dos seus desejos, uma antologia doida a fazer correr de par poetas e ilustradores, outro livrinho a citar Celan no corte e a arder no esplendor da Bárbara Fonte ou o primevo «Má Raça», nado e criado para os desenhos nocturnos do Alex Gozblau. Cem não representam grande coisa, grãos de areia no sorvedouro do ó do abysmo, a escorrer no funil do ípsilon, mas para cada um deles guardo o que contar, o que fez dele diferente, insubstituível, vivo. Fica para outra vez, agora não tenho tempo.

Santa Bárbara, 1 Novembro

Dia da Santa Saudade do México. Nunca a vanguarda mergulhou raízes tão fundas na tradição, mas isso pouco importa. Eis a banda sonora da minha tristeza, alegria tanta do passado: https://youtu.be/EM008zcvKg0

6 Nov 2019

Navegar em contramão

Horta Seca, Lisboa, 14 Outubro

[dropcap]M[/dropcap]orre Bloom e nada? Pergunta-me com insistência o Walter, aquele com quem dialogo ao espelho a qualquer hora do dia ou da noite. Volto a dizer-lhe que não sei ainda o que escrever a propósito. Necessito reler com outra tranquilidade os textos fundamentais, reler as leituras, mais do que os dislates ideológicos e além das pretensões didácticas. Careço de o enfrentar na qualidade de autor, por exemplo enquanto ensaísta shakespeariano na vez da ligeireza de polemista e/ou figura mediática. Há que saber distinguir para sedimentar. Vou ali, já venho, Walter Ego.

Espaço Ó, Óbidos, 19 Outubro

Falhámos redondamente outro lançamento, o de este «As Leis da Guerra», de Sun Bin, muito apropriado para tratar dos medos. Há que fazer autópsia das razões: voluntarismo exagerado?, desorganização militante?, calor demasiado para época?, empedrado molhado? A realidade, por vezes, vence-nos. Ilusão saborosa, a de pensar o inverso.

Regressámos a Óbidos, ainda assim, para acompanhar os «No Precipício Era o Verbo» (foto da organização algures na página), chamados à «Boémia» pela encantadora Suzana [Nobre], e acompanhados na convocatória pela impagável diligência do Luís Ferreira. Nenhum concerto acontece igual, mas este anunciava um pouco mais de Georg Trakl, além de uma ou outra surpresa, que saltava do percurso e de solicitações, por exemplo, em torno dos redondos Sophia ou Sena. Explodiu mais que isso, entendimentos em várias direcções, entre os instrumentistas no palco, com a plateia, das partes a dizer mais que o todo. Poesia, talvez tenha sido isso. Prolongada noite e pão adentro.

Regresso com a ideia de que esta edição do Fólio terá sido bastante boa, pela riqueza e diversidade. Está feito um belo jardim, este festival.

Santa Bárbara, Lisboa, 23 Outubro

Desembrulho um rebuçado, desperto com a mistura de ruído e perfume a curiosidade do gato, Lucca, que me vigiará com redobrada atenção enquanto me atiro à história dos reputadíssimos Dr. Bayard, nas bocas do mundo há 70 anos. «Um Milhão de Rebuçados», didascália de Inês [Fonseca Santos] para as imagens da Marta Monteiro, comemora isso mesmo em versão doce da Pato Lógico. O texto faz, portanto, de rodapé para uma sequência de imagens, com relações subtis entre ambos, como é do meu agrado delicodoce e pequenoburguês. Escusado será dizer, com estes actores, que a edição é cuidada. Além do cariz explicativo, as autoras conseguem soltar o cheiro de várias histórias, ainda que próximas de uma realidade palpável. Ou mesmo por isso.

Prova de que poucos leitores, por cá, o são a sério está no preconceito à volta dos géneros. Não esqueço que responsáveis políticos da área da leitura, do livro, da educação afirmaram que não liam livros para a infância e juventude. Ora o meu re-vizinho da Economia não perderia o seu tempo, digo eu, se lesse este exemplo de alguém capaz de fazer do pouco um projecto e dele uma «marca» e das oportunidades uma empresa, no velho sentido. Ou seja, em modernês, empreendedorismo. Este assunto não se aflora aqui, apenas a história de alguém concreto a aproveitar o que a vida lhe foi trazendo, cruzando com curiosidade e vontade até alcançar resultados, o resultado. Doce e perfumado. O bonito está em tratar uma ideia assim como flor.

Umas frágeis, outras capazes de alimentar infâncias. Depois há máquinas, do lado da Marta, e o perseguir as estórias nos sabores, no lado da querida Inês. E mais e mais, que livro, acontecendo, contém infindáveis rebuçados. Só me pergunto, sem resposta para o sonolento olhar do Lucca, se valeria a pena ter a tinta o cheiro dos Dr. Bayard. Ou se não haverá edição especial com os ditos por junto.

Desembrulho a dedicatória e constato ser um doce. Não solto lágrima para não produzir o melaço grandeburguês. Contrasto apenas com a de amigo e autor que há pouco me pôs em folha de rosto que me devota amizade e admiração, ou seja, o que manda o triste protocolo. Farei de conta que será ironia e descasco um Dr. Bayard.

Gulbenkian, Lisboa, 24 Outubro

Em versão lado M, de madrugadora, os «Precipício» abrem a Conferência do Plano Nacional de Leitura para duas ou três salas a abarrotar. «O Elogio da leitura», este o mote, em três temas|poemas apenas, que nem assim impedem telemóveis de tocar, de menssajar, de responder a necessidades burocráticas. A poesia não consegue uns 15 minutos de silêncio, de atenção? Raio de «Presente-Futuro»!

CCB, Lisboa, 25 Outubro

Derrotado, como ando por estes dias, empurrei-me até ao concerto em que o talentosíssimo Benjamim dava a ouvir canções do novo álbum. Em boa hora. Grande luxúria instrumental, em ambiente caloroso, descontraído, com criadores a transpirar puro gozo, a explorar possibilidades, a desfiar letras que põem carne no esqueleto dos dias. Antes de entrarem em estúdio, deram-nos o privilégio de experimentar magnífico ensaio geral, espreitar corações e ideias, aceder a paisagens sonoras que não sabia estarem ao alcance. Alimento fascínio por bastidores e reconfortei-me a entrar inadvertidamente nesta viagem, nesta paragem que foi chegada e mais partida ainda, que trouxe sobras e propôs rumos. Diz o Benjamim que «em Agosto de 2015 demos volta a Portugal, 33 concertos de seguida na loucura do asfalto e com o apetite dos 29 anos. Queimámos gasóleo a preços de primeiro mundo e passámos o resto do ano, e boa parte do próximo, na estrada.

Ultrapassámos rapidamente a fronteira dos 100 concertos, tocámos em coretos, casas, barcos, festivais, casas de cante, teatros, auditórios, herdades chiques, associações culturais, comícios partidários, comícios apartidários, na rua e em qualquer sítio onde uma pessoa consiga inventar um palco. Por vezes com resultados desastrosos, tocámos ao sol para mil pessoas e à chuva para duas.» Nesta sexta, fez sol e pensamento no pequeno auditório. Está a chegar-se a algum lado na música feita aqui e agora.

Mercado Santa Clara, Lisboa, 26 Outubro

Segunda edição desta Feira Gráfica, a confirmar vitalidades. Mais o que a tendência experimental, noto uma natural afirmação do fazer e do dizer, de criar publicações e lançar opiniões, políticas, pois então.

Mais de setenta projectos, editoras, enfim, indivíduos a mostrar uma vontade de engendrar a diferença. E a encontrar interlocutores.

Do nosso lado, tínhamos previsto lançar «O Menino das Lágrimas», da Mariana a Miserável, mas falhámos redondamente. Insisto, isto de navegar em contramão tem os seus riscos. E este disco soa riscado. Na vez, o Jorge [Silva] falou dos livros sobre ilustradores que a Arranha-céus tem editado. E encheu de cor o velho mercado de ferro e vidro.

30 Out 2019

Do dito e do por dizer

Casa da Música, Óbidos, 12 Outubro

[dropcap]N[/dropcap]ão consigo desembaraçar-me, aquele mínimo que seja, da âncora dos afazeres para voar baixinho deleitando-me nos interstícios dos encontros que um festival pode fazer acontecer. Ou estou preocupado ou já me cansei. Este dia pedia-me dúplice, capaz de subir a Norte sem sair do Oeste. Corro para, em sala cheia, saber com que linhas se cosem o Mathias Énard e o Valério [Romão] mais as coordenadas dos Orientes anunciados no tema, mas a conversa com a Ana [Sousa Dias] deve ter começado antes e o que oiço são minudências, pontas soltas.

Artes e Letras, Óbidos, 12 Outubro

Apesar do cansaço, o Luís [Gomes] acolhe-nos com o sorriso de sempre, com as lombadas frágeis a servir de encosto, enquanto o Valério [Romão] lê fragmentos de «O da Joana», sobre o planante fundo do Henrique [Manuel Bento Fialho] na guitarra e do Miguel Costa em instrumento chamado computador. Celebrava-se a reedição, e também do ansiado «Da Família», mas este falhámos, por dificuldades de produção, pontas soltas, detalhes.

Antes, o Henrique havia entregado em mão o convite para pernoitar na sua «Estalagem» (ed. Medula), onde descubro, por entre os brilhos da impressão digital, este «Oração», que começa assim a explicar-me os dias: «Senhor, perdoa-me as faltas, andar/ aos encontrões distraído com fainas/ dispendiosas, sem sossego para preces/ nem inquietações, bolsos cheios de asma». O poema faz-se cruzamento do dia a dia com a carne da consciência. Desperta-me o modo dos versos se contornarem na quebra, a queda feita esquina de rua interminável e o poema um só trilho, corda de guitarra.

Tenda dos Editores e Livreiros, Óbidos, 13 Outubro

Temia pela hora matinal, mas a sala compôs-se, com chuva e sol e sinos e tudo. O Paulo [José Miranda] ignorou com elegância o que lhe atirava para o fazer falar e tratou de dizer, sem espinhas, o essencial sobre a criação. «Um Prego no Coração» investiga a ideia de obra acabada, no caso em Cesário Verde, erguida para despertar incessantes leituras, até de críticos, com afecto e agudeza. «Natureza Morta», que lhe valeu o primeiro Prémio José Saramago há uns redondos vinte anos, permite espreitar no jardim de inverno do espírito em acção, com recuos e maturações, desperdício e momento. Em fundo, «ouvimos» João Domingos Bomtempo.

Finalmente, «Vício», que nos permite o convívio com os cruéis demónios do abandono, da desistência. Corre límpida a frase, de par com o pensamento, para alimentar raiz, ramo e copa destas figuras frondosas. Como deve ser, a biografia faz-se aqui pretexto, linha para horizonte maior, movediço, aqui e ali perturbador. Manda o protocolo que se libertem pela voz umas passagens e o Paulo acedeu a fazê-lo, tanto mais que há muito não regressava a estes textos.

Difícil foi depois pará-lo, tal o gozo que ia extraindo e oferecendo. Ninguém arredou pé.
Com o fim da tarde não chegou apenas o vento frio, mas a conversa das que nos ajuda invariavelmente a definir perfis, os nossos e o dos outros, à maneira do medo a indicar-nos os contornos do mundo. O espaço Ó, como o próprio nome indica, fez-se centro de encontros, sem muralhas nem ameias. No instante que encaixa na data foi com o Paulo e a Inês [Fonseca Santos], mas outros houve. Noite dentro, manhã abaixo.

Horta Seca, Lisboa, 14 Outubro

São como jardins, as telas de Manuel Amado (1938-2019). Entramos para ficar, a ver o restolhar, a ouvir o tempo que passa, apenas deixam que aconteça uma dança de luz e silêncio. O rigor absoluto da geometria pulsa de humano, na aparência, ausente. Tudo respira nestes enigmas, que tanto podem ser narrativos suscitando uma miríade de acontecimentos, como paisagem contemplativa na qual a respiração nos permite o encontro connosco. A cidade revela-se nos interstícios, nas dobras, quando o exterior se assoma ao dentro. A luz é-nos indispensável, mas precisamos tanto de silêncio…

Santa Bárbara, Lisboa, 15 Outubro

O labirinto à beira-rio chamava-me, mas não consegui meter pés ao caminho e arriscar a festa, que me apetecia muito. E apetecia nada. Lisboa inteira esteve por lá a empurrar a noite dançando. Nunca uma manhã me custou assim.

Ogiva, Óbidos, 16 Outubro

Esta PIM!, Mostra de Ilustração Para Imaginar o Mundo, faz isso mesmo, sob arguta orquestração da Mafalda [Milhões]. Na bela galeria Ogiva, que me parece ora gruta, ora miolo de esfera, acontecem suaves firmamentos. Somos recebidos pelas máquinas de gritar ou sussurrar sons de dentro e de fora, nada a temer, que estamos escoltados pelos figurões de tinta e cerâmica da Marta [Madureira], abraços estendidos ao tamanho da parede. A casa, ainda que contendo universos, pode bem ser protectora. Este jogo entre interior e fora, ameaça e acolhimento, espalha-se pelas paredes de cada andar, convertendo o conjunto em movente organismo. Um bicho que ora desafia, ora oferece serenidade. As ilustrações domesticam bem o mundo, ainda que este não deixe de nos morder.

Tenda dos Editores e Livreiros, Óbidos, 16 Outubro

Desconsegui e o José [Pinho] relembra-o com verve e humor na dedicatória: «gratidão especial por não ter querido escrever». Ele sabe que não dependeu do querer. Por vezes, a realidade vence-nos, apesar do Zé teimosamente o desmentir. Descobri que reencarna o coyote dos desenhos animados, aquele que se locomove a tão altas velocidades que atravessa o vazio que une montanhas. Não lhe digam, tão só, onde está. Este saboroso «20 anos a Ler Devagar» pára no ar para fazer um impossível e importante ponto da situação. Impossível por que tal não se aplica a seres vivos. Importante para que não se esqueça o quanto se deve a este lugar de altos andamentos. A cidade, com tantos pontos tocados, o panorama literário, a desembocar nos festivais de Óbidos, enfim, esse monstro chamado cultura, nada ficou como dantes. Para se entender a fundo o sentido da palavra empresa havia que abysmar-se nesta experiência, com o que trouxe de idealismo e leitura prática da realidade, de puro gozo e busca de sentido. Nesta reserva natural não há muitos coyotes visionários.

Horta Seca, Lisboa, 18 Outubro

Enquanto o Sporting moribundeia, morre-nos o Jordão [1952-2019]. Está dito e redito: era um fora de série. Na minha infância, o futebol não me incendiava por aí além, mas o Jordão vinha de outro mundo. Fazia sonhar, claro. Ainda que o rosto o desmentisse, o corpo continha uma alegria que se soltava de modo exaltante. Pressentíamos o quanto de alma um jogador consegue ser além das jogadas e dos golos? Depois do futebol, o desaparecimento. Acrescento mais cinzento à minha tristeza por só agora ter percebido que pintava. A vida sabe fintar-nos e alguns golos sabem a verdade. Jordão sabia do que falava. «A estética do futebol marcou-me e ajudou a definir-me o caráter. Em certos movimentos que fazia dentro do campo é possível ver coreografias, traços que provavelmente também se manifestam naturalmente no pincel. São duas linguagens muito diferentes, no entanto, é possível encontrar semelhanças. Mas o que o futebol não tem é o silêncio que preciso para mostrar a verdade que, enquanto jogador, ocultei. Talvez falte mais silêncio ao futebol.”

23 Out 2019

Dói-me o medo

CCB, Lisboa, 6 Outubro

 

[dropcap]P[/dropcap]ara alguns, o Verão interrompe o rolar dos dias, pedras lisas em fundo de rio. Há até quem viva mais por não haver nuvens e o mar lhe beijar os pés e os olhos. E muitos mundos se descobrem nos quais as estações se revelam indiferentes, nada nelas se apanha, são apenas mais paisagem a passar.

Em pleno dia de eleições, o Obra Aberta regressou com local e horário para a gravação ao vivo no Centro Cultural de Belém. Trocámos as lombadas da sala de leitura pelo horizonte azul da sala Ribeiro da Fonte e o fim da tarde, de quinta, pelo fim da manhã, de domingo. E começámos com Paulo José Miranda que descobriu, a julgar pela sua biografia na badana da biografia «A Morte Não é Prioritária», que o seu destino outro não era que contar-nos a vida de Manoel de Oliveira. Certo é que o faz muito bem.

Veio de par com Benjamim, que já foi Walter, e se revelou um leitor atento dos meandros da música. Afinal, um manual, por mais técnico, pode ajudar-nos a desdobrar esferas, a viver nas superfícies movediças do viver. Andei dias a ouvir «Madrugada», do seu mais recente «1986».

«Por cada hora que acabar/ Tenho outra guerra para travar/ Eu tenho a casa a arder/ E só vou chegar de madrugada// Eu olho-me ao espelho porque às vezes espero/Pelo meu regresso à estaca zero/ Eu nunca me encontrei no endereço errado/ É que é melhor falhar do que passar ao lado».

Casa José Saramago, Óbidos, 10 Outubro

Não vos conto das corridas travadas para conseguirmos chegar ao momento em nos sentamos perante ilustre plateia para anunciar dose dupla do José Luiz [Tavares]. Comecemos por esta coincidência rara, e para mim prazenteira, de duas editoras se juntarem para celebrar um mesmo autor. «Instruções Para Uso Posterior ao Naufrágio», sob o signo da viagem ao coração do poema, mereceu por parte da Imprensa Nacional, de Duarte Azinheira, o prémio Vasco Graça Moura, o qual gostaria, estou em crer, de ser evocado por junto com «Ku Ki Vos/Com Que Voz», título que reúne sessenta e cinco sonetos de Camões atirados pelo poeta caboverdeano às ondas da sua língua materna. O tom de verde sujo da capa, no formato próxima de uma das edições mais manejadas de «Os Lusíadas», introduz o notável tour de force, que inclui até a proposta de variantes, sempre em busca da palavra exacta, tantas vezes com ternura. E quem o demonstrou sabe melhor, pois a professora Dulce Pereira sabe bem dos modos, nem sempre suaves, como as línguas se entretecem.

Avisa o Zé Luiz no prefácio, e só posso sublinhar. «Nalguns passos terei traído miseravelmente o grande Camões, mas a língua cabo-verdiana terá ganho um incontornável monumento literário, fecundo solo onde amanhã poderão enraizar-se os poetas cultos e eruditos, e todos aqueles que apostam num porvir de poética resplandecência para a nossa sagrada e maltratada língua materna, por vezes rebaixada por alguns nostálgicos filhos dos sobrados que soçobraram (ainda que em pose professoral, ou de tardios, rasos escribas, alcandorados aos pináculos de patuscas academias, em perseguição da glória no céu chão da literatura), quando não mesmo funestos peões, padecentes de mal disfarçada síndrome de orfandade identitária, ou de derrotadas visões luso-tropicalistas, ou ainda de caducos e reincidentes propósitos adjacentistas. Sirva este trabalho (ambicioso enquanto ideia, se não pelo resultado) como pretexto de um fito bem maior: a construção duma comunidade de povos, línguas e culturas, ao abrigo de tentações hegemónicas, tutelares ou neo-imperiais, ainda que urdidas sob os véus da «política da língua».

E temos doravante, por sugestão feliz do Jorge [Silva], mestre do desenho da página, um logótipo em caboverdeano, abrindo o círculo às profundezas ao céu: abysmu.

Tenda dos Editores, Óbidos, 11 Outubro

Mais uma corrida, mais uma viagem, os pequenos nadas a rolarem nas margens do rio e «As Orelhas de Karenin» chegam imediatamente antes de subirmos ao palco para apresentar o volume #100 da abysmo (mise en). Apurem os ouvidos para entender ao que vem este tufão, um vórtice que se ergue a partir dos restos do corpus da tradição, dos corpos femininos, dos rostos dos mitos, das cicatrizes do quotidiano, do fogo que nos faz arder a cada instante. São, afinal, vários livros que se aqui se apresentam, a começar pro aquele que os desenhos do Pedro [Proença] suscitaram no devir da Rita [Taborda Duarte]. Cada livro espreme-se em resumo, para o carrocel ganhar balanço, e armar a teia que parte ao encontro dos que acreditam ser o mundo feito de palavras. Os resumos estão em papel diferente, para tornar mais luminosa a ruptura do que sobra, o que pode perdurar dos poemas anteriores, o que fica do que passa. Mas será tanto assim? Deixamos cedo de saber quem desafia quem, se os desenhos respondem ou interpelam. O Pedro transfigurou-se em máquina de recriar corpos, de recombinar as figuras dos mitos fundadores e o seu traço ganha a ligeireza de uma escrita. Os desenhos são agora texto e as palavras a imensa escultura, que pode ser casa e intimidade ou paisagem e urbe. Não se deixem enganar, este livro está feito uma máquina criativa, que precisa apenas dos nossos olhos leitores para se pôr em movimento.

Tenda dos Editores, Óbidos, 12 Outubro

«O Tempo e o Medo», com piscadela de olho à revista completamente esquecida, até na programação, fez-se tema desta edição do Fólio. Na linha do «Nuvens», tratámos de compor com o Carlos [Morais José] jornalinho de campanha, suplemento h deste jornal que se faz girândola, que enfrentasse o medo de enfrentar os medos e assim fosse pretexto para esta mesa, na qual pontuaram a Ana Teresa Sanganha e a Patrícia Câmara, do lado psi das ciências, do António Eloy, com os quatro cavaleiros do Apocalipse, ecológico e outros, e o David Soares, escritor e tradutor, com abundante trabalho nestas áreas recônditas da literatura. O conjunto seria orquestrado pelo Carlos, cuja tese de doutoramento rondava que nem lobos este mesmo assunto. Uma hora foi pouco para perseguir a fronteira com que o medo nos separa das coisas e do outro, do escuro e do mundo. Leva por título, «Quem Tem Cu». «É na sôfrega e imobilizadora força do medo que o humano, mais humano, revela a sua humanidade», escrevem a Ana Teresa e a Patrícia. «Fiel depositário da perda, o medo é o limite que nos limita, contidamente, pelo seu arguto controlo.

No grito, confunde-se com o pânico, mas, no sussurro, é angústia acutilante ou sistema de alerta contra predadores.»

O jornal, com a inestimável colaboração da Ler Devagar, surgiu de um dia para outro, sim, literalmente, e volta a juntar em um arrepio a reflexão, a poesia, a ficção e a pintura. Ontem era o caos informe, hoje uma existência esvoaçante me papel de jornal. De tanto desejar pelos fechos de redacção, transformei os meus dias em maratona de linhas mortas. Cícero, citado pelo Fernando [Sobral], dizia no seu escultórico latim, «nem esperança, nem medo». O Henrique [Fialho], no final do seu conto, escreve para mim: «Diagnóstico: dói-me o medo».

Óbidos, 13 Outubro

Múltiplas são as perspectivas com entrever um festival, quer dizer, encontros sociais, pequeno teatro de vaidades e outras extravagâncias. Diverte tanto que até magoa a dança com que certas criaturas vão dispondo os corpos, quando os conseguem os passos que a coreografia exige, para que os olhos não se cruzem. E, portanto, não se obriguem ao encontro breve e constrangido, a fingir alegrias de pechisbeque. Bendita hipocrisia, essa cola do bem-estar social.

17 Out 2019

Às vezes, a Lua

Horta Seca, Lisboa, 24 Setembro

 

[dropcap]Q[/dropcap]ue raio aconteceu? Uns fiscais da ASAE entraram pela Biblioteca dos Olivais, que ainda abriga os restos mortais da Bedeteca de Lisboa, para confiscar «As Gémeas Marotas», paródia à celebérrima Miffy, de Dick Bruna. A sinistra figura, Gonçalo Portocarrero de Almada, vangloria-se no facebook de ser o denunciante de tão infame crime à editora original, a holandesa Mercis, que reagiu com veemência: «foram ultrapassados os limites aceitáveis para uma paródia e ficaram preocupados com a possibilidade desse livro cair nas mãos de crianças, uma vez que estas o podem considerar um original de Dick Bruna, por não conseguirem discernir entre uma paródia e um original.» Atalhando, conseguiram a colaboração das autoridades portuguesas para começar investigação que teve aqui o seu momento mais visível, com a entrada em espaço público, lugar supostamente protegido de preservação da memória, toda a memória, para retirar o livrinho das mãos das pobres crianças. E com requintes ridículos, pois, ao que parece, os agentes de autoridade foram de luvas e grande aparato de segurança, como se se tratasse de ameaça sanitária ou securitária. Terão expurgado também a Biblioteca Nacional? E a sanha vai continuar pelo país todo? Imaginemos que um qualquer imã se sente ofendido com o «Genesis», de Robert Crumb, e pede às autoridades para tratar de os recolher das bibliotecas. Poderá tal acontecer perante a nossa indiferença? Os argumentos que justificam a censura são os mesmos há séculos e séculos: a protecção dos pobres inocentes contra o vício e a violência. Vale a pena ler alguns dos inúmeros relatórios dos censores que nos querem protegem para perceber por onde anda o vício, a violência e a estupidez. A obra em questão, como tantas vezes acontece, não justifica que se ergam bandeiras ao seu redor, mas se a paródia basta para justificar este acto infame, então há que reagir. E preparamo-nos para o pior. As bibliotecas sempre se ergueram belos castelos contra a insanidade. E sempre contiveram infernos.

Horta Seca, Lisboa, 25 Setembro

Coincidindo com a edição francesa, nas Editions Chandeigne, de «Les Eaux de Joana», com fortuna crítica assinalável, chega-nos a segunda edição de «O da Joana», do Valério [Romão]. Continua, para mim, o mais violento da trilogia, com um extraordinário arranque, o primeiro de muitos fôlegos a serem-nos retirados ao longo da leitura. Acompanhar pela mão um livro faz-se disto, de constatar que a sua vida pode ser mais lenta que a de outros, que não funcionará a contaminação entusiasta, mas um lento semear de leituras que se desmultiplicam, que se partilham, por vezes também de silêncios. Foi sendo testemunha de reacções curiosas, de psiquiatras e analistas, entusiasmados com o retrato de um sem número de actos médicos e da profundidade psicológica das personagens, ou de leitoras pesarosas a oferecerem o pequeno volume por junto com um sem número de avisos à navegação, de cautelas carinhosas. Aliás, também entre nós a crítica foi generosa, ainda que lançando avisos às mulheres, logo eleitas como óbvias destinatárias. Esquecendo quase sempre o mais notável, o tour de force que acaba por ser um homem-escritor meter-se na pele de uma mulher. E de uma mulher a perder-se no labirinto do feminino.

Horta Seca, Lisboa, 26 Setembro

Como interpretar este enorme pedregulho que nos atiraram à vidraça e que só a portada de madeira, embora ferida, evitou que entrasse galeria adentro. O estrondo despertou a vizinhança, mas nada aconteceu, nem identificação do magro meliante, nem travão ao gesto. Não terá, estou certo, significado por aí além. Na rua seca, de tão calma, o velho compincha absurdo passou e abusou.

Horta Seca, Lisboa, 28 Setembro

Em gesto raro por tão madrugador, o Jorge [Silva], companheiro de tantas aventuras, será homenageado este ano, no âmbito da Bienal de Ilustração de Guimarães. Calhou-me em sorte mais um texto sobre o seu trabalho, que me interpela e desafia há muito. Este sabor a avaliação de uma vida, do qual tentei fugir, complicou-me os ritmos e, por pouco, não atrasávamos o catálogo além de todos os limites. Partilhamos uma relação estranha com prazos, afinal. (Algures na página, temos uma velha ilustração sua para artigo no jornal «Combate»). São sete as vidas que em exposição, de colecionador a ilustrador, de designer a director de arte, mas surpreendeu-me o óbvio: pertence-lhe o desenho da minha cidade.

«Para afiançar da sua importância no esculpir do perfil da capital nas décadas que a fizeram, com vantagens e desvantagens, atravessar séculos de modo a regressar à luz e ao lugar no tempo que lhe pertenciam, podia aduzir outros casos de fauna e flora, mas chegam-me estas duas publicações, uma campanha e o supremo símbolo. A Lx Metrópole foi revista de grande formato, suscitada pelo Parque das Nações, e dirigida por José Sarmento Matos, e que revelou a urbe de modo único, desafiador, com ideias a estoirar a cada página, gigantesca atenção ao detalhe, viagens certeiras ao passado. Lisboa nunca se tinha visto assim ao espelho. E o espelho era uma página definida com lâminas. A campanha criada a pretexto dos 100 anos do Museu da Cidade (2010), alguns anos mais tarde, aconteceu com extrema fulgurância, com dezenas de grandes cartazes a assinalar carismáticos lugares da cidade. «Lisboa tem histórias» incluía dinâmico retrato, assinado por João Fazenda, e a apresentação da personagem histórica que, ao longo dos séculos, havia erguido a cidade, por função ou apenas sendo. Um conceito simples fazia da cidade museu vivo. Entretanto, já a Agenda Cultural, com edição mensal, dizia em voz alta que o lugar fervilhava.

A pequena e longeva publicação não se limitava à listagem do sem-número de eventos que tatuavam a pele da cidade. Cada vez mais se fez revista, produzindo matéria, alinhando temas, promovendo olhares, apresentando os agentes da mudança ou da constância. A arrumação pode ser dinâmica e será sempre uma interpretação do mundo. E o ponto final teria de ser a sardinha.

«Bicho mudo e quedo», assim a chamou Silva, empurrou o santo e o menino, destronou a esquecida alface, e tornou-se em meia dúzia de anos o signo universal de Lisboa. A pretexto das Festas da Cidade, começou por deitar-se em scanner na vez de assador, em versão quase abstracta, de cores básicas e berrantes, para depois passar pela mão de ilustradores de renome, sempre obedecendo a uma ideia, até acabar em concurso aberto a quem queira nela inscrever uma marca. O resultado foi de tal ordem que a colecção das sardinhas revela o mais notável vocabulário alguma vez feito sobre uma cidade. A forma, que brilha por si, soube conter milhares de visões e experiências. Formas universais, capazes de transportar conceitos e produzir pela imagem sensações, pensamentos: a que mais deve aspirar um criador que usa as mãos?»

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

Não páro de folhear, de me envolver, no convite para a festa da maioridade do Lux. O [Pedro] Fradique desafiou o André da Loba a conversar com Bruno Munari e o resultado vibra nesta peça única e delirante, celebração da cor e da dança, do encontro e da festa. Ambos acharam que as palavras acrescentariam e fui atrás. Nada me poderia dar mais gozo, puro gozo. Por milhentas razões. «Cada um desembaraça seus nós, faz do chapéu navio, para o mais longe do possível.

Desfaz-te do cais comigo, troca de corpo e faz de antena, raízes na madrugada abrindo a cada gesto teu, copa depositada pelos olhos no colo do céu. Leva-me a casa. A saída descobre-se pelo sorriso, maneira de tocar o rio. Às vezes, a Lua.”

9 Out 2019

O cantar da cigarra

Horta Seca, Lisboa, 17 Setembro

 

[dropcap]E[/dropcap]m uma outra vida, mais por imposição do que gosto, dei-me por dono de vários grilos, de que recordo o contraste dos corpos negros com as várias cores de plástico berrante nas pequenas gaiolas, a que se acrescentava o verde da alface. O cativeiro mantinha e talvez agravasse aquele ralar minimal repetitivo do bicho. A prática era comum na grande cidade, talvez para manter próxima a ruralidade de que se fugia. Na dureza do quotidiano riscava-se um ponto de lirismo. Coisa de pobre, está bem de ver, suscitando noites de verão e, ao mesmo tempo, o reco-reco das engrenagens do fadário. Por acasos do dito, as minhas noites têm sido brancas mais por via da arte de perder o controlo do que pela sanha do trabalho e seu rebanho de linhas mortas. Deu-se um desvio na indisciplinada regra com desafio forma de homenagem à noite e ao lugar que a soube ampliar ao cubo, um coração que não apenas mudou a cidade tal a conhecemos, mas se fez ele próprio cidade, fábrica de cores na paisagem cinza. Assisti ao lavrar das imagens e atirei-lhes texto para fogueira. Tive por companheiro, hesito, um cigarro, um cigarra, enfim, uma cigarra-macho. A rua foi mais horta por estes dias e o canto iluminava o quase silêncio das horas mortas. Desliguei ventoinha e banda sonora de modo a aproveitar, comovido, a ajuda do baixo contínuo. Possuía uma qualidade de lamento atirado ao vazio, de irremediável desconsolo, temperado por brutal energia, quem sabe se não a alegria do dever cumprindo-se, e nisso se esgotando. Cabia aqui, coisa de pobre, a evocação de detalhes do processamento da vida nestas peles, a longa incubação no subsolo e a vida nas árvores ou abandono da carapaça por troca de exosqueleto, mas não me apetece mais tanger esta lira.

Horta Seca, Lisboa, 18 Setembro

Nada de novo, pelo que insisto em busca de ritmo. Não se pode excluir nenhum pormenor do objecto-livro. Exemplo breve: a impressão digital, que torna tudo mais ágil e barato, coloca um acetinado de barata no corpo da letra. Ninguém liga, bem sei, começando pelo autor, que se fica por certo detalhe da capa e outro da lombada. Irrita-me muito, para além da durabilidade. (Que interessa hoje o futuro? Matámo-lo logo a seguir a Deus, se nos relacionamos com as ideias em modo de fuzilamento?) Outro tanto se aplica às exposições, afilhadas mais queridas do padrinho espectáculo. A escolha e arrumação no espaço das peças a mostrar obedece a lógica nem sempre óbvia, nem sempre dita, mas que impõe leituras. Talvez o Simão [Palmeirim] saiba o título da exposição que acolheremos em breve, mas não o partilhou ainda. Depois de almoço conversado onde fomos a tantos lugares, por exemplo, à geometria de Almada, viemos ver como arrumar nas salas o seu trabalho de joalharia. Que caia aqui um raio se não me apercebo neste exacto instante que, além da multiplicação dos espaços, o artista tratou de apanhar, pela cor, a melodia do silêncio! Tratava-se portanto de escolher, não apenas o que entra, mas o modo como. Se nos dispomos ao convívio da inteligência, a criação brota que nem infestante na horta (seca) ou ruído no bairro. Descobrimos orientações oblíquas que farão da mostra uma floresta de subtilezas. Maldito acaso, sempre ele, mas voltou, pois seguiu-se a montagem da mais próxima. Não se perdeu o gozo, mais íntimo, esgotados que foram pouco mais de meia dúzia de anos a pendurar, a pendurar-me. Conheço estas paredes com as minhas mãos, sei onde me são fáceis ou resistem, em que ponto estão feridas ou particularidades, piscadelas de olho ou osso, onde tocou martelo ou acariciou pelo do pincel. Que pensará o prego invisível, chamado pela força, a segurar o que todos admirarão? Estúpido, o prego não pensa. Apesar de ter cabeça.

Horta Seca, Lisboa, 19 Setembro

O Cláudio [Garrudo] soprou-me a notícia ao telefone e não deu ainda para esmiuçar porquês, mas a estética iniciativa «Bairro das Artes», cuja equipa liderou com a Ana [Matos], finda-se ao cumprir a década. Em outras paisagens, uma vez o essencial feito, alguém continuaria, pelo menos, a mera articulação de começos. Temo o óbvio. Participamos atabalhoadamente há cinco anos, daí o testemunho, para dizer o mínimo, da simpatia, da eficiência, da generosidade, ferramentas simples mas raras, com que tudo foi sendo feito. A carência de intendência partilhada, sobretudo na dita sociedade civil, é tal que mais não digo: pela lição, bem-haja!

Este ano, a reentrada na atmosfera faz-se com o hiperactivo Pedro [Proença], fonte torrencial de criação e pensamento. «Cartas, Orelhas, Postais e Outras Coisas Mais» (imagem algures na página) reúne prolongamentos das ilustrações, em torno de figuras da mitologia mais ou menos reinventadas, para ou a partir do novíssimo volume da Rita [Taborda Duarte], «As Orelhas de Karenin», no prelo. Além dos postais-colagem de Sandralexandra enviados do mundo inteiro e arredores à sua amante, de que publicaremos também as intrigantes «Cartas de Amor». Cada conversa com o Pedro, preparatória ou dilatória, dá-me tempo a ganhar contra calendários e agendas, atrasos e desatinos. Todo ele se agiganta agitação, pouco depois reflectida em desenhos que fazem do humano corrida apressada em busca de gozo e sentido.

Horta Seca, Lisboa, 20 Setembro

Duvido que alguma vez atinja o nirvana portátil de tocar livro por mim produzido no qual não encontre defeito. São nadas, que uma vez detectados se tornam permanentes assombrações.

Espreito a prova do ensaio do Andrea [Ragusa], que começa belo logo no título, «Como Exilados de um Céu Distante – Antero de Quintal e Giacomo Leopardi», para encontrar redundâncias e erros, todos gráficos e de simpatia, motivados pelo desembestamento da fabricação. E sofro. Em nada belisca o conjunto, a pedir o absoluto essencial, e que tanto falha, afinal: a leitura. O Andrea deu-se ao raro trabalho de ajardinar a tese, com aparatos e bordejamentos, até dela fazer bomba capaz de travar as alterações climáticas. Ou tão só de mudar o mundo.

Horta Seca, Lisboa, 21 Setembro

Lamento se me repito, ignorando o ritmo. Em outra vida, em lugar chamado «Ler», tive crónica-tese onde procurava confirmar que alguns livros só nos tocam se lidos em coincidência. «Um Homem Sorri à Morte com Meia Cara», de José Rodrigues Miguéis (ed. Estúdios Cor), cai-me nas mãos por generosidade do mano Bernardo [Trindade] para me iluminar, qual lanterna, os longos dias passados, para atrás e para a frente, por entre doentes. Muito possui para sublinhar, esta tocante noveleta autobiográfica, mas interessa-me sobremaneira as partes da viagem ao que pensa o paciente, nem sempre com paciência.

«[…] O próprio sofrimento, quando nos vemos a braços com ele, é uma questão pessoal que cada um procura resolver por si, a sós consigo, num tête-à-tête que pode parecer trágico a quem o vê de fora, mas é para o doente um jogo empolgante e decisivo.

Esta solidão do homem consigo mesmo, com o seu combate e o seu destino, este ensimesmamento, este (ouso escrevê-lo?) egotismo, é uma das coisas mais pasmosas e, a um tempo, mais consoladoras que a doença nos oferece. Cortam-se as relações com o mundo, e todos os factores da vida que não digam respeito à salvação são desprezados. Como entramos na vida, na solidão e obstinação dum esforço pessoal, assim lutamos para mantê-la ou afrontar o fim.”

25 Set 2019

Volúpia de grafite

Galeria do 11, Setúbal, 31 Agosto

 

[dropcap]P[/dropcap]or razões de mera logística, acabei perdendo um daqueles momentos de fruição, o lançamento de obra aparelhada em magnífico cenário, novo e maduro fruto da paixão do Jorge [Silva]: «M. Lapa – Ilustração». Para já, vai deslumbrando, e com isso apaga, nem que seja por instantes, a longa travessia da instável ponte dos orçamentos apertados, das burocracias ameaçadoras, dos perigos constantes, como se dançássemos na ponte bamba sobre desfiladeiro vertiginoso em plena selva, na ilustração expressionista de Lapa, pejada de animais selvagens do mais variado tipo. O grande gozo está na partilha, no desocultar, afastando pesada cortina, do trabalho prolongado e discreto, daqueles que foram fazendo chão, cenário sem importância do que por nós passa. Não me custa, gordo-burguês que aprendi a ser, afastar as questões ideológicas, para desfrutar apenas das imagens. Há muito folheio as páginas da revista «Atlântico», em qualquer afã instrumental, ou apenas para me deixar levar na cadência gráfica da tipografia e do desenho, arremedo da arte antiga da iluminura a seduzir olhar e gesto, o do manuscrito e o dos que queiram entender a disposição da linha, a sempiterna enigmática ocupação da folha. Tenho para mim que um dos momentos de maior fulgor da civilização encontra-se na definição da página como horizonte maior da leitura, terreno de saber e imaginação. Não páram de se suceder os deslumbramentos, alguns menos óbvios, tal os esboços.

Tenho que me controlar para regressar a este texto, desobedecendo ao apetite de continuar a folhear. O inacabado abre uma janela para o processo, para o pensamento em acção, como papel e o lápis ou o marcador, enfim, os materiais, também eles a dizer do gosto, do equilíbrio e do seu contrário. Aprecio o incerto, como fresquidão da cerveja na garganta, pelo que me perco com facilidade nos bastidores do inacabado. Com a inteligente simplicidade que colocou na arrumação de mais este volume, o Jorge alimentou este meu vício com secção ocupada com indicações de futuras paginações de vários livros e revistas, como a Prelo, da Imprensa Nacional Casa da Moeda, mas denunciando nesse caso um interesse pela fotomecânica que afecta a costela romântica do desenho, aquela a sujo de grafite.

Bela, Lisboa, 3 Setembro

Na pauta do verso dito nas colinas da cidade, as «Primas Terças», do mano André [Gago], soam a veterania. [Georg] Trakl foi a floresta escolhida para se erguer na noite, ventosa como convém aos expressionismos chiaroscuro. A celebração de Baco começou antes, no Santa Clara Mix Café, do Jacinto [Gameiro] e da Cila, anfitriões de rara qualidade, que resolveram assentar arraiais ali na beira-panteão. A incorrecção política será castigada, mais tarde ou mais cedo, pelos polícias do gosto, mas interessa sobretudo o bem servir e melhor acolher. Para a função estavam convocados o Carlos [Barretto], que rasgou paisagens no espaço acanhado, o [José] Anjos, na voz cava, e, além do anfitrião-orquestrador, o tradutor e ressuscitador-mor das línguas-mortas, António [de Castro Caeiro]. Brilharam intensidades, em certos casos, no extremo da comoção. Com ponta de estranheza, o poeta aconchegou-se aos meus dias. «Sobre o canto negro, precipitam-se,/ À tarde, os corvos com um forte grasnar./ As suas sombras tocam, ao de leve, nas corças,/ E, às vezes, são vistos a descansar de mau humor.// Oh! como eles perturbam o castanho sossego,/ No qual um campo se exalta / Como uma mulher que um grave pressentimento enfeitiça,/ E, às vezes, podem ouvir-se crocitar.// Por causa de uma carcaça cujo cheiro algures sentiram./ E, de repente, dirigem o voo para norte/ E desaparecem como um cortejo fúnebre/ Na atmosfera que estremece de volúpia.»

Horta Seca, Lisboa, 10 Setembro

A visão de Robert Frank (1924-2019) não acenderá mais nenhuma câmara. As redes encheram-se das suas imagens, das poucas que resistem ferozmente ao desgaste da incessante multiplicação de imagens. Até ao zero absoluto, o do banal indistinto em nos vemos mergulhados. Milhares de imagens serão ainda mais traficadas por estes dias, meia dúzia de bytes, que não valem uma ampliação sem distorção, mas pouco afectando o seu carácter esmagador que nem cavalo erguido sobre as patas traseiras. Cavalgando as regras, todas e cada uma, as imagens de Frank são momentos de real, abrem a cortina para o teatro que aconteceu naquele exacto lugar, com aquelas pessoas de nome próprio, em conjunto crescendo por inteiro e excessivo, carnal e bruto, etéreo e luminoso, enfim, humano. Era um raptor de histórias. Não sabíamos do tecido do humano até lhe vermos as fotografias. E por isso colecciono para os dias de Inverno e Setembro os seus auto-retratos, mesmo aqueles nos quais inclui outros, por exemplo o da companheira, suprema ternura. Que tem isto a ver com a frieza da banalidade omnipresente nas selfies destes dias? Nele, o humano ergue-se e desafia a escultura: vês que esta ruga não se fez monumento?, sentes o sangue nesta mão?, percebes que existo por causa destes olhos? Somos mais quando somos capazes de ir ao teatro vermo-nos nos outros, corvos saltitantes nos pastos da dor e da alegria. Não sabíamos quem éramos, que corpo tínhamos, de que alma viemos ou iremos, até entrarmos nas fotos de Robert Frank.

Horta Seca, Lisboa, 10 Setembro

Deixam de ser, para o nosso sempre, íntimo e talvez intransmissível, dias iguais. O calendário de Setembro está picado pelos corvos, umas vezes poisam na pedra do mau humor, noutros grasnam ao desafio pontuando os céus. Há uma estranheza de verso na circunstância de assinalarem tantos e tão queridos. O negro dos corvos brilha de tão definitivo e não sei bem como o interpretar.

Horta Seca, Lisboa, 16 Setembro

Sabemo-lo, coisa crónica na dita, refrão acompanhado à guitarra pela morte: as segundas-feiras são um concentrado de ansiedade, um nó cego de urgências e desatinos. No meio de mais esta fruste tentativa de, através da palavra, encontrar sentido no que faço – na bisga, sempre na bisga – vejo-me entalado entre inventar tentativa para dar cor à palidez da presença no pavilhão 61, da Feira do Livro do Porto, e rever em definitivo a nossa participação no Fólio deste ano, em torno de «O Tempo e o Medo», e no qual o Hoje Macau deixará também a sua marca. Isto para dizer o mínimo do «instantece» agora mesmo. Já agora, o programa promete, sobretudo nas entrelinhas do que se escreve com holofotes.

18 Set 2019

Um explorador cansado

Cisterna, Lisboa, 20 Agosto

[dropcap]O[/dropcap]rganizado como poucos, a dois dias da inauguração, o António [Gonçalves] faz visita guiada à sua «Carnis Color», privilégio dos que se insinuam entre nos interstícios do afecto e da função: ele explicava as suas razões, eu tratava de beber os detalhes de quem pensa e executa, processos que se misturam um no outro de forma tão íntima que nem carne e pele. Irrompe logo aqui exemplo óbvio: nada sofre de acaso nesta pintura e óbvio se torna que esta carne tem por esqueleto a moldura. Não se trata de mero enquadramento, um modo de dizer fragmento, pedaço, fecho do olhar em limite imposto. A escolha da madeira, tomado o perfume, o peso e o corte, biselado, de esguelha, encastrado, em redondo, a oferecer a leveza do papel, obedece a escolhas com vista à revelação do mistério que cada corpo contém. E toda a massa corporal sem estrutura se faz amorfa. Daí propor como ilustração (algures na página) reverso de moldura, crispada de detalhes, sombra do rosto brilhante e ardente. Aliás, também a montagem se entrega em grande inteligência, propondo subtil retrospectiva, aconchegando-se ao espaço em caminho de espanto e surpresa que desemboca no grand finale de catedral, passe a rima. Perturba muito este caminho através do sujo e perecível, sangue e tecido, uma investigação de autópsia, que se faz de forma pensada, quase toda mental frieza, limpa de impurezas e impulsos, tratada com luvas e bisturi. Para nos devolver a cada momento o pulsar sagrado, do âmbito do religioso, que toca os mecanismos do mundo, que parece dizer como somos por dentro, subtil festival de cores, alimentado pelo gás do pequeno nada de vida que nos faz seres, que dá corpo ao ser. O António mostra que sob as nossas carnes lavra um fogo, ou até que as nossas carnes, se vivas, ardem em contínuo. Mesmo para além do encontro com as correspondências no mapa do desejo. Talvez sejam partes, o que vemos em combustão, mas não deixamos de sentir a soma ardente. Nada é sem corpo, se até a sombra os duplica. Tiro-te o chapéu, António.

Convento do Espírito Santo, Loulé, 22 Agosto

Por coincidência, a caminho de uns dias de sono e leitura, paro para acompanhar a apresentação do volumoso volume «O homem que só quer ser Tóssan», caixa com três volumes, dois para versão escrita e outro, bem maior para a parte desenhada da obra, qualquer que fosse o instrumento. Tropeço sempre na palavra delícia a propósito de figuras deste jaez e mal conhecidas, mas, contas feitas, tão capazes de compor vida assente no bem-fazer, no bem dispor. O testemunho emocionado de Vitor Aleixo, Presidente da Câmara de Loulé, mentor maior deste projecto, que inclui ainda a mais compreensiva exposição (entretanto prolongada), sublinha isso mesmo, a boa disposição como modo de se relacionar com os outros, o desenho a criar mundos, o riso a interpretar o real. O Jorge [Silva] foi reunindo com devida paciência o essencial dos argumentos para dizer da qualidade de outro artista esquecido, e não apenas das artes gráficas. Tóssan acabou sendo performer, dá agora para perceber, capaz de encenação e texto para ser dito, de cenário e presença, devedor do teatro e da composição no branco, fosse a página um dia. Li um texto mais melancólico, a querer afirmar que o humor nos abre que nem bisturi, que nos sabe interpretar, e que por vezes contém uma melancolia pungente. Agora que escrevo, surgiu-me outro verso côncavo ou talvez converso, dos que mergulham no caleidoscópio da palavra, uma só, e que diz tanto de hoje, assumamos nós o papel que nos convenha, de espectador ou arrumadeira. «Um espectador/ com o foco na cara,/ outros com cara/ e sem focos/ ainda outros/ com as mãos nas caras/ e a arrumadeira/ de foco na mão/ ou com a mão no foco./ Um outro à procura do foco,/ outros sem o foco à procura./ A arrumadeira apaga/ o foco/ e o foco sem saber/ o que procura às escuras.»

Praia Verde, Castro Marim, 25 Agosto

Estava tentando, por todos os meios, afastar-me do mundo, mas, estúpido, pego no smartphone e logo irrompe a notícia. Fernanda Young (1970-2019) morre de falta de ar, de um falhanço da ferramenta que nos permite comunicar com o fôlego do mundo. Estava condenada à rapidez, a mesma dos diálogos da série «Os Normais», a mesma vertigem da sua prosa, a mesma ânsia criativa do verso e de tudo o resto. Conheci a Fernanda, mas não cheguei a conhecer a Fernanda. Almocei com ela uma única vez, pro intermédio de irmã querida, e fiquei fascinado. Era um vulcão de intensidade e potência criativa. Encheu-me de romances, novelas e o mais, ideias até. Além da Playboy onde se mostrou inteira, a fenda sentada sobre volumes de Bukowski ou Araki, mas o rosto sempre em sábia mistura de melancolia e mistério – uma névoa? – longe da alegria que experimentei. Que outra possível autora terei capaz de se apresentar de nudez e fulgor? Vou aprendendo que este caminho se faz de bastos falhanços e neles tenho que incluir o não ter editado Fernanda Young, por exemplo, de «As Pessoas dos Livros». Ela era mais, muito de carne e osso. E sopro. O seu último post, na véspera da morte, nosso lugar-comum, falava dessa incombustível ânsia: «Onde queres descanso, sou desejo.»

Jardins Palácio de Cristal, Porto, 5 Setembro

Subo ao Porto para a montagem do pavilhão que partilhamos com a Ler Devagar. Estamos no lugar 62, em ponta extrema onde ninguém irá, nem para dar de comer aos patos do lago, esses bem-dispostos, obrigado. Agrava-se tudo com as obras da semi-esfera, que soltam ruído em contínuo e nuvens de pó a cada dez minutos. Se pensarmos que o interessante neste modelo a Norte ia sendo a programação, e que esta nos ignora, ou quase, o resultado acaba sendo bastante simples: que raio andamos nós a fazer em Feiras onde pouco mais se quer saber além de preços (baixos, baixinhos, baixíssimos, anões)?

Jardins do Palácio Pimenta, Lisboa, 8 Setembro

No âmbito do festival que tenta prolongar o Verão, «Lisboa na Rua», o mano Nuno [Miguel Guedes] concebeu um ciclo de leituras conversadas tendo por bússola as comemorações da circum-navegação de Fernão Magalhães: «Viagem em Busca do Espanto», assim o feliz título. Estava escalado para o Oriente, mas um homónimo baldou-se e comecei pela «Partida», isto é, pela mítica Ibéria, tendo por companheiros a Paula [Cortes], o [José] Anjos e o Tiago Inuit na irrequieta e eléctrica guitarra. Agradabilíssimo, este fim de tarde, para o qual convoquei Lorca e Luis García Montero, Al Mutamid, Al-Thurthusi e Felipe Benitez Reyes, além de Bernardo Atxga, de quem traduzi esta canção dedicada a «um explorador cansado».

«Que outra coisa podia ver um explorador cansado/ Dentro dos limites de um metro quadrado de tristeza,/ A não ser Caminhos que os limoeiros acompanham, a não ser/ Colinas/ e ondulados Campos nos quais o vinho se pressente já;// Que poderia ver a não ser Ilhas de Cristal, Cidades/ Prateadas, áureas, Amanheceres, Barcos Ruivos/ que tripulações enlouquecidas levam sem rumo;// Serpentes gigantes, tigres, poderia ver também/ Baleias brancas submergindo em oceano cálido;/ Poderia ver duas mulheres de vestidos alaranjados/ Sentadas junto a uma parede incendiada pelo sol;// Poderia ver todos aqueles dias irrecuperáveis/ Pousando como um bando de pássaros imaginários.”

11 Set 2019

Saberei esperar?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

 

[dropcap]E[/dropcap]scavações arqueológicas nos arredores de Londres extraíram-nos do passado. Com cerca de 132 mm e datado de 70 A.C., o “stylus”, já por si raro, torna-se extraordinário por conter inscrição bem-humorada, que liga Londres a Roma, a Cidade. Na tradução do especialista, Roger Tomlin: «Vim da Cidade. Trago-te um presente de boas-vindas com uma ponta afiada na esperança de que te lembres de mim. Pergunto, assim me permita o destino, se posso (dar) de forma tão generosa como longo é o caminho e os meus bolsos vazios». Uma recordação, portanto, que, apesar de pobre, atravessou os séculos e os destinos para dizer que os bolsos vazios não travam caminho. Deve ser mania, mas leio nestes vestígios a vocação do editor. A ruína, nos seus vários sentidos, estendem-se enquanto horizonte. Que marca e que pele sobrará?

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Nem foram os primeiros élepês do Zeca que tive, mas aqueles últimos ficaram-me gravados. Aliás, comecei por beber canções, servidas pela irmandade que me governou («Venham Mais Cinco», lembras-te Paulo [Caldinho Gomes]?). Tocando as correntes subterrâneas, dou comigo a tentar perceber quês e porquês, a pretexto de aniversário. A luxúria das paisagens sonoras, por exemplo. São bastante distintos, mas estes «Como Se Fora Seu Filho» e «Galinhas do Mato» andam de par nos confins do recordativo. Nada se perde do Zeca anterior, com o constante mergulho nas raízes, qualquer que fosse a terra, de aquém ou além-mar, de litoral ou interior. Mas acontecem curto-circuitos com outros géneros, do jazz a tropicalismos de vários tons. Também na lírica se manteve a leitura da história e a sabedoria panteísta, a ironia cortante e a aspiração política. Ou dançando tudo, como quando, em «Papuça», o verso «a revolução é para já» solta os ritmos da dança. «Utopia» tornou-se um clássico instantâneo, de simplicidade e pureza. O que então me espantou foi a pujança do surrealismo, os nexos poéticos estabelecido pelo absurdo, rasgando fendas no quotidiplano. «Era Um Redondo Vocábulo», uma das minhas eleitas, comprova que esse modo de ler mundos era omnipresente, mas brilhou por aqui e para mim com outras intensidades. Apesar de episódico fulgor, andamos pela obscuridade, lugar de conforto por estes dias feitos noite. Por isso se vai chegando a mim, que nem companheira-gerúndio, esta «Canção da Paciência»: «Muitos sóis e luas irão nascer/ Mais ondas na praia rebentar/ Já não tem sentido ter ou não ter/ Vivo com o meu ódio a mendigar// Tenho muitos anos para sofrer/ Mais do que uma vida para andar/ Beba o fel amargo até morrer/ Já não tenho pena sei esperar // (…) As águas do rio são de correr/ Cada vez mais perto sem parar/ Sou como o morcego vejo sem ver/ Sou como o sossego sei esperar». Saberei?

Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto

Que raio! Cinco anos depois, as perguntas continuam a nascer em jardim, mais ou menos cultivado, com o lado agreste das daninhas também a merecer o (celebrado) cuidado da desatenção. Dóris, queria dar-te uma satisfação, mas a intenção não se aplica e explicação já cabe no saco das respostas. Bem sei que tenho que editar o teu volume de contos, ao menos isso, a que deste o belo título de «As Perguntas». Cinco anos depois, tudo se meteu à frente, pudores e desatinos com dinheiro, a orgânica desorganização, a tusa pelo novo, a crença no impossível. Dóris, venho apenas dizer-te que não desisti. Não leves a mal as gralhas que deixámos escapar, também esse projecto de casar atenções e leituras ficou adiado. Somos óptimos a procrastinar, bem sabes. Não deixámos, garanto, de semear perguntas, um pouco por todo lado, mesmo onde não é suposto crescerem. Fui reler o teu prólogo, e encontrei lascas de pensamento que me apeteceu discutir. Posso adiar a conversa por instantes, tu interpelaste de tão estranho modo com esse teu gesto? Dizes tu: «insistimos, e esta nossa insistência conduz-nos para longe de nós. Existimos aqui, mas sempre em fuga, como se não quiséramos ser na aleatoriedade de ter nascido. Sempre a perguntar, sempre a ousar responder, entretendo, assim, o medo de existir. Porque existir é ser entre um ponto e outro ponto, linha do horizonte sem lado de lá para onde deixar de ser visto e lado de cá que nos possa ver. Somos, para nós, um horizonte invisível, segmento de recta cuja medida desconhecemos. Temos medo de existir pela consciência da morte que há em nós. Só conhecemos o finito e tememos, não por ele, mas dele. A nossa condição não opera o incomensurável, não se sintoniza com o infinito, mesmo que o saibamos. O universo contém mas não é contido. Estamos fracos perante o insondável, alienados que somos pela matéria. Mais ainda quando dizemos deus. Por isso perguntamos. Solicitamos respostas para o que sabemos ser apenas um entretenimento do pensamento. Ocupamo-lo. Por vezes, inconsequentes, damos respostas. É apenas um jogo de alternâncias: respondemos para a seguir poder perguntar de novo, mais. Julgamos interrogar tudo. Mas o tudo não está ao nosso alcance.»

Horta Seca, Lisboa, 14 Agosto

O humano escolheu para principal actividade a construção de ideias feitas. Ou melhor, com extremo detalhe confunde casa e lugar-comum, mas disperso logo a abrir. Queria apenas dizer que géneros literários como a banda desenhada, a novela ou o romance gráfico são oceanos de enorme biodiversidade. Max, autor atípico e de grande valor, produziu «Vapor» (folha de rosto algures na página, ed. Levoir), perdoe-se a rima, e que só agora me foi dado ler, não por caso. Nicodemos, figura mística, muda-se para o deserto para fugir das distracções e procurar em si o que pudesse conter de humano. Preto e branco, massa e traço, sombra e corpo, humor e delírio, pensamento e desenho, perguntas e interrogações. Eis a matéria para que o nosso mundo se deixe pensar, se deixe representar. O diálogo de Nicodemos com a sua sombra merecia constar de antologia acerca do nosso lugar no mundo, de cada um em si. O mesmo esforço foi feito, óbvio, em cinema e teatro e romance e poesia, mas consegue aqui algo distinto, muito distinto, de tão profundamente simples: traço sobre a página, dedo na areia, olho no céu.

Costa da Caparica, Almada, 15 Agosto

Uma das mais novas lá da rua Castelo fez cinquenta. Ia escrever que fui ao passado, mas não voltamos nunca ao que não existe. Recriamos, mapas, por exemplo. Trocámos memórias, mas somos pequenos na maior parte delas. Encolhemos, tal o velho quarto. São de somenos, detalhes de distúrbio e desafio. Toque e fuga de campainhas. Soltou-se que nem perfume leve reflexões acerca de tais encontros, o percurso feito, o lugar onde chegámos, apenas patamar.
Para o Pedro [Brito] realizar, orquestrado pelo Humberto [Santana], e muito musicado pelo João [Lucas], compus um «Fado do Homem Crescido», no qual o António Zambujo cantou, a propósito: «Soube logo pela manhã que seria tal e qual/ Mas acreditei porque fomos um bando./ Devia estar de costas, não vi chegar o mal/ Parecia navalha a rasgar, era só tempo passando.»
O sol lá se repetiu pondo laranja no oceano enquanto velho pai exalava orgulho, distribuía afectos e dava a mão de modo só seu.

21 Ago 2019

Boca de Incêncio

Santa Bárbara, Lisboa, 10 Agosto

 

[dropcap]T[/dropcap]ropeço em velho texto que se aplica e auto-confirma. «A única verdade que vos posso contar é a de não estar preso a esta ou aquela mentira. Cultivo tantas, como em jardim botânico de espécies em vias de propagação. A mentira é uma infestante. Arde nos interiores, dá cor aos litorais, esconde no seu bojo líquido as areias e as dunas. As mentiras têm desertos nos bolsos. Só se descobre uma notícia se ela se confessar. Gosto muito das minhas mentiras.

Algumas alimentam-se de moscas e obrigam-me a sair pela manhã para terem o que comer. Outras enchem-se com o ar verdadeiro das noites longas. Outras ainda sanguessugam imagens de televisão: anúncios, documentários e programas de culinária. Todas me escravizam com o trabalho de lhes oxigenar o sangue. Ando há tempos a roçar o abismo. Confesso que me protejo do mundo com a música que não sei tocar. Bebo demais e sei de menos. Não faço o suficiente para dizer que tenho uma vocação. Não escrevo diários e não me exponho, a não ser no disparate. Manipulo como animal de feira o lugar-comum. Sento-me nas frases como se estivesse cansado. E estou cansado nas coisas como se estivesse doente. Acham que sou engraçado e sei.

Sou um ignorante melancólico. Acham que me disponho aos outros e faço. Afinal cultivo o meu umbigo em uma preguiça infindável.»

Horta Seca, Lisboa, 11 Agosto

Cultivei, em tempos, no Expresso, uma leira de prosa onde procurava colher as palavras que actualidade atirava ao ar, ilustrada pelo mano Tiago [Manuel] (que ilustra algures a página com uma inédita destinada a «assessor de imprensa»). O nevoeiro pôs-me a folhear as páginas do dicionário perdido, para me garantir ao ouvido que o passado custa a deixar o ouvido. Arranquei umas da letra p, de pequeno possível.

«Pandemónio – Milton criou a palavra para dar nome à morada apalaçada de Satã, em Paraíso Perdido. Significa agora uma mistura confusa de pessoas ou coisas. À primeira vista, assemelha-se bastante ao nosso quotidiano. Também se aplica à uma associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias. Moraremos no condomínio aberto do demónio tendo por vizinhos um gang, duas claques e três máfias?

«Pantanas – No singular é lamaçal, atascadeiro, um grande pântano. Mas ouvir, a propósito da vida ou do orçamento, das eleições e do país, que «isto está de pantanas» deve-se ao facto de estamos perdidos ou com o negócio a correr mal. Também pode ser, singularmente, um salto lateral em que as mãos tocam no chão enquanto o corpo executa meia-volta.

«Papagaio de pirata – Segundo a oralidade brasileira, dona e senhora de belas imagens, classifica o assessor político ou de imprensa que surge amiúde no enquadramento televisivo de um político (eleito ou em campanha), em geral logo atrás por sobre o ombro. Não confundir com emplastro.

«Percepcionar – O mundo anda perigoso, por isso nos gritam a cada minuto esta exigência de percepcionar as ameaças. Não chega o uso dos sentidos para as perceber ou uma qualquer capacidade para as compreender, temos que as percepcionar. Como a percepção também inclui nos seus sentidos o efeito mental de representar os objectos, muito provavelmente paira por aqui um aviso acerca de obstáculos no caminho. Ou serão buracos?

«Pindérico – No entendimento burlesco das coisas é alguém magnífico e excelente, de altíssima qualidade. Mas afinal resume-se a indivíduo pobre, mal vestido, sujo e magro, ainda que teime em fazer figura. Quantas candidaturas políticas, programas de televisão, romances e figuras públicas nos surgem assim, sonsos e ensossos?

«Player – «Este player pode play discos», ou seja, este jogador pode jogar discos. In Manual de Instruções de DVD.

«Poder – «Desligue o poder quando a unidade não é usada». E não se esqueça: «gire em torno do poder», que é como quem diz, em inglês, turn on the power. in Manual de Instruções do mesmo DVD.

«Populares – Eles acodem aos eventos no plural e logo deixam de ser povo, gente comum, pessoas simples, para se transfigurarem em anónimos ferozes, turbamulta de um só rosto brutal, cuspindo insultos. Nalguns casos trazem ao palco a ignorância em estado natural e, portanto, totalitário. Noutros desejam a violência cobarde, uma justiça feita pelas mesmas mãos que poderiam ter corajosa e solitariamente evitado a desgraça. Mais do que figurantes, são actores do circo mediático. E representam-nos bem.

«Praga – O homem vermelho de raiva soergueu-se na janela do automóvel em andamento e gritou: «Que tenhas um acidente!» Era uma praga, uma velha imprecação desejando males, no caso, a outro condutor mais lento, mais azelha ou apenas mais respeitador. As estatísticas mostram que, devido à velocidade ou à mentalidade, a morte nas estradas é um desastre, um flagelo, enfim, uma maldição das antigas. Não virão todas do Egipto, não serão ervas daninhas ou uma multidão de gafanhotos, mas elas andam por aí: são as lojas dos chineses, para uns, para outros a delinquência juvenil; para estes o futebol, para aqueles as seitas religiosas. Traz consigo o cheiro de outros tempos, este pedido com instância, esta súplica a uma entidade superior para que faça mal a alguém em nosso nome. Rogar uma praga é requerer um serviço com ponto de exclamação, reencaminhar em direcção concreta um mal que anda por aí à solta, indicar ao outro o caminho do inferno. A mais comum e prática talvez seja o básico «vai para o diabo!» Mas, além de o gritar, é preciso acreditar. Os irlandeses, povo de mar e literatura, não se limitavam a atirar frases do tipo «que tenhas uma morte horrível!» ou «que o diabo te asfixie!». Apanhadas as pedras que eram empilhadas em forma de fogueira, ajoelhavam-se e tratavam de inventar sofrimentos, terminando o ritual dizendo «até que estas pedras peguem fogo». Cada qual com sua praga, as pedras eram atiradas para longe. Imagino o sucesso que seria a venda de calhaus com maldição incluída… À falta disso, podemos sempre contar com o fogo das palavras. Roga-se apenas alguma criatividade. Na tradição judaica há imprecações sugestivas: «Que te caiam os dentes todos menos um, e que esse te doa!» De Espanha, vem boa imagem: «Que engulas um pavão e que todas as penas se transformem em lâminas de barbear!»

«Prestação – Na televisão, que é afinal a superfície do nosso mundo, os sumo-sacerdotes da opinião pública avaliam continuamente a prestação dos gestores públicos e semi-públicos, assessores e magistrados, políticos e eleitos, dos governadores e governantes, enfim, daqueles que deveriam estar obrigados a fornecer-nos explicações. As prestações dos avaliados como dos avaliadores raramente são prestáveis pelo que não saldam o crédito que lhes damos. A culpa é nossa.

«Pum! – Segundo o Morais, dicionário que merece tratamento por tu, é a voz para queda, explosão ou disparo de um tiro. Por detrás da onomatopeia nem por isso violenta para queda, explosão ou disparo, esconde-se ainda o traque, como todos sabemos, ventosidade anal acompanhada de ruído. Embora não encontre registo, nem no Novo Dicionário de Calão, do Afonso Praça, sei que em paragens a norte, se usa apenas «pu», o que lhe retira alguma percussão. Mais colorido é o uso infantil de «pusete». A geografia mexe muito com as palavras. Por exemplo, em francês, este som diz-se «prout», mas deve soltar-se de igual modo. Discreto.

«Punho – «Sonho com uma língua cujas palavras, como punhos, quebrassem queixos…» Cioran, Cahiers 1957-1972, Gallimard.

14 Ago 2019

Náufrago na hora

Djairsound, Lisboa, 25 Julho

 

[dropcap]N[/dropcap]a certeza de que tudo fui,/ sou eu mesmo o poço e a cisterna/ onde me banho e a idade flui/antecipando pó e poterna.// Mas seria tão bom como já foi/ ter sete anos e não este ar de boi, pesados cornos de lucidez intacta, tal pedra que o pensamento impacta.»

Encerra com estas duas quadras a «Canção da Lúcida Idade», apenas uma das muitas, junto com outros tantos fados, que dão volume a este «Arder a Vida Inteira», do José Luiz [Tavares].

Recordo-me de as ver nascer em caderno pautado, a letra redonda e a lavrar sulcos de tão vincada, com a folha a mostrar o desgaste de uma mão que se roça inteira, pois o canhoto torna destarte antena a caneta, orientada aos nortes ou às alturas. Bebericando a sua preta, garantia-me que era intervalo no que vinha erguendo. Queria experimentar com respiração mais sôfrega, procurando aqueles temas fadistas, usando a popular quadra, aspirando a cantares. Sendo do rigor, o Zé Luiz nem descansou até haver composto boa dezena de poemas, afinal camonianos, a navegar pela cidade, pelo destino, pela morte e pelo amor, combo em variantes que sobem ao fescenino. E não pôde deixar fora o seu característico trabalho de linguagem, nas associações improváveis ou no léxico desenterrado que nem tesouro. E os versos tanto abrasam como sopram as cinzas do que vamos sendo. Coincidências, tal a do encontro com o mano Bruno [Portela], que assina a enigmática fotografia da capa [algures na página]. Afirma-se, assim, estilo a perseguir no futuro, resultante da relação do poeta com aquela arte de capturar fragmentos de real.

Natural, portanto, que a celebração fosse desalinhada e em casa onde a mistura de comida e dança e bebida e canção obedece ao batuque. As mesas estavam prontas para a janta, o convite bem comportado anunciava o bom-leitor Patrak, também chamado de Luís Carlos Patraquim, a apresentar particularidades em torno da fogueira sem nunca se queimar, mas talvez tenha sido esse o único momento previsto a acontecer tal e qual. Enfim, para além das maravilhosas mornas da Maria Alice, que fizeram tremer as fundações de Santos às Janelas Verdes. Logo antes e a pés juntos atreveu-se o Aurelino [Costa] a entrar em noite, que seria tanto dele, com leitura ouvida em África. Aurelino sabe domesticar o mar dos convívios e atirar-se da onda mais alta. Aconteceu mais para o fim da noite, com o Djair, dono da casa, ao leme de uma precursão capaz de acordar os deuses. Detalhes, dirão, junto com outros abrilhantando a noite, mas escapam a essa classificação a leitura do Valério [Romão] e o bailado surpreendente, e de risco por improvisado, de Mano Preto. Se a isto somarmos as palavras abysmadas do Zé Luiz – chamou-me «seu editor» –, dou a noite por ganha. De «Canção da Danação II»: «noites de sismos bang bang/outro rosto por mim descora/ rudes tenazes pulso de sangue/ fazem-me náufrago na hora».

Calcutá, Lisboa, 25 Julho

No intervalo de contas por acertar, no sentido dos ponteiros do relógio, de cobrança a contra-cobrança, e com puxão de orelhas a começar o dia, concedo-me a tusa dos projectos. Por que raio, pergunto-me têm tanto a ver com bairro-alto? Começou antes, mas desembocou à mesa da noite com o José Xavier [Ezequiel] a tentar arrancar-me uma data para as suas lombadas e o Paulo [José Miranda] a anunciar mais poesia, ainda que o convidado fosse o José Ricardo [Nunes], em tarefa de hortelão, a ajeitar courelas, arrancando ervas daninhas, ou a regá-las, metáforas que nem soas apropriadas, antes fosse de carácter aeroespacial, metesse planetas e outras figuras do espaço distante por desbravar, i.e., por trazer próximo. Devia ter distribuído antes aos convivas, incluindo os que se ajuntaram brevemente, o Hiren [Tambacal], anfitrião-mor, e o Bernardo [Trindade], o seu «Clássico» (ed. Companhia das Ilhas). Nem por isso se deixaram de trocar leituras em voz alta, recordações do Bairro, opiniões políticas, duas ou três alegrias, além das tristezas. O Zé Ricardo é dos poetas mais fingidores que me foi dado nascer com. Sob a ameaça do nada, ludibria: nem os versos nos salvam e a literatura enfarta, mas com amigos algo muda. «Estão as quatro mesas cheias na Casa Antero/ e eu de pé ao balcão no canto/ mais escuro, a beber Memória/ enquanto espero pelos meus amigos./ Espero e escrevo que espero e escrevo./ E rapidamente me farto de tanta literatura, anseio/ é por conversa.

Sozinho,/ neste canto escuro, escrevo e espero/ que algo se interrompa em mim,/ que as palavras percam de vez/ o pouco sentido que lhes resta.» Decidamos, entre nós e sempre no escuro, que palavras aprisionam o sentido.

Campos Trindade, Lisboa, 25 Julho

Estranhamente, ou nem por isso, almejar a Lua vem significando tocar desejos nas suas múltiplas dimensões, nas várias esquinas de luz e concreto. Somos ora astronautas, ora satélites de estranho sistema solar. Este propósito que me é trazido esta tarde parece ser de puro gozo, nascido de memórias todas atiradas ao futuro, coisa de beira-rio hoje e bairro-alto ontem, gesta da noite sempiterna, quando a ternura se sabe esconder no tempo.

Estranhamente, ou nem tanto, o mano mais novo, Bernardo [Trindade], põe-me nas mãos o N.º 2, Tomo 1.º, de finais 1800, da «Revista Illustrada», do Luiz Antonio Gonsalves de Freitas. No amarelo do tempo a lamber o papel inscreve-se poema do dilecto Gomes Leal, ferroada intitulada «A Lua Morta». E troca-me, dramatica e simbolicamente, as voltas. Assente em premissa científica, anuncia morto esse espelho dos nossos quereres, vontades e sentires. «Ha milhões d’annos já que esse alvejante rastro,/ que ella espalha nos céos e sobre o mar profundo,/ não é mais que o lençol do cadaver d’um astro,/ do espectro d’um planeta e o phantasma d’um mundo.// Ha milhões d’annos já que, em torno á nossa esphera,/ o morto globo gyra, errante, solitario,/como o vulcão d’um astro extincto e sem cratéra, / — Frio espectro de luz que arrasta do seu sudário!»

E seguem-se em cadência repetitiva evocações de catástrofes, um despropósito de descrições fúnebres e funestas, ainda que no inverso da nossa Terra, desembocando em diagnóstico fatal: eis «sombra vã», «cidade morta». Para quê, então, dirigir-lhe as mãos erguidas, em choro ou ternura?

«E, no entanto, alma humana ! eterna atormentada!/ tu quizéras vêr perto a morta nau errante,/
quizéras abordar á extranha nau geláda,/ com seu porão sem voz, seus mastros de brilhante.// […] «Tu quizéras sarar as affliccções internas,/ n’essa imóvel região sem ar, nem movimento,/ n’esses bosques sem voz e noutes sempiternas,/ — onde não sopra nem um ai, nem folha, mar, nem vento !…// «Tu quizéras, emfim, da Vida soluçante/ ver quebrar-se o rumor n’esse silencio enorme.»

No «silêncio enorme», na «região sem ar», na «nau gelada», queremos que aí desague o rumor da Vida soluçante. Em vão. E o poeta não anuncia conforto, antes anuncia os pedaços de «noute eterna» que já habitam os nossos dias. Os astros estão condenados. «Descança, Homem, porém ! — Como uma vil lanterna,/ morrendo, um dia, o sol regelerá no Oriente./ E n’esse cataclysmo e horror de noute eterna,/— as boccas se abrirão n’um só grito pungente.»

Calcutá, Lisboa, 1 Agosto

A maré de lágrimas paralisa-me na cadeira, quando os elementos pediam a brisa do abraço. O futuro adivinha-se enregelado. Fiz-me sensato, racional, pesando as palavras de modo a evitar do campo minado das emoções. Mas chegará para estabelecer um plano sobre o qual assentar passos, percursos, consolos? Valeu-me, madrugada dentro, longa conversa lunar, das que ajudam a sarar aflições. Assim do nada.

7 Ago 2019

Esta que te escrevo

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

[dropcap]N[/dropcap]ão é gralha, esta data a abrir. Este exercício diarístio mistura-me os tempos ao modo de saudoso whisky sour, agitado sabiamente pelo Bruno [Abreu], no defunto Baliza.

Estou aqui a batalhar com as frases, a resistir que nem o ferro das vigas de colunas por encher das casas em construção. O betão do pensamento escorre atropelando tudo antes do erguer de paredes. Os dias recentes fazem do passado e do futuro animais obedientes, festas e pouca disciplina, desobedientes ao que por eles sinto. E sinto muito. Atrasos chegam de par com os projectos, âncoras lúgubres e caprichosos papagaios de papel. Para que o previsto aconteça, tenho que mastigar muito do tardamento, devo desatar nós. Dobrando curva do óbvio, uns são mais rijos que outros: como fazer chegar os livros aos seus leitores? As soluções de hoje não contêm amanhã.

Horta Seca, Lisboa, 22 Julho

Gosto muito de cartas. Pela parvoeira dos afazeres, de tanto desresponder, deixei de as receber. O meu mano Tiago [Manuel] continua dos poucos, senão o único, a praticar essa disciplina de samurai. E cada uma das que envia inclui lâmina desenhada e o mais que lhe aprouver. Retribuo de outras maneiras, todas frustres perante o gesto magnânimo de aplicar mão e tinta sobre branco a pensar naquela pessoa e não outra. Namorei muito por via postal e não conheço melhores preliminares, afinal, transfigurados em interliminares, pensando no sexo enquanto foz e cais de longas viagens ao encontro do ser, o próprio perdido ali ou em busca de mais além no outro. Disperso.

Por tanto gostar de cartas, temo que estas passem despercebidas, devolvidas ao remetente, sem as cores e os passos de Elvis. «Moléstias, Embustes e Pontinhos Amantes» (ed. Arranha-céus e capa algures na página) nasceu dos tratos de polé que Rita Marquilhas, Catarina Magro, Fernanda Pratas, liderando vasta equipa, deram à «Escrita Quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX». Trocadilho desajeitadamente com a «pluralidade de juízos – episcopais, inquisitoriais, reais, locais, corporativos, militares – [que] vigiaram o comportamento dos indivíduos de acordo com certos princípios legais e morais» e de onde foram retiradas para nosso deleite estas cartas. Gozo com os aflitos e seus medos, mas em que em melhor matéria mergulha a literatura suas garras criadoras? Este complexo volume (caixa que inclui 100 cartas, embrulhadas em fita lacrada a simular o selo da intimidade de outrora, sem contar com cartaz e livro de instruções) transfigura-se em máquina produtora de experiências. E roubo ainda ao prefácio, para que se perceba mais avante: «Quem as conseguiria inventar? Falam-nos de ladrões todos corteses, de padres nada católicos, de mulheres, numerosas mulheres, ora queixosas ora batalhadoras, mas sempre eloquentes. Há presos em fuga, amores, desamores, vinganças e maledicências. Há várias doenças, descritas quase com prazer, e também muitas viagens. Pelo espaço de duas publicações, uma portuguesa e uma espanhola, distribuímos este amplo fresco, ilustrado por Nuno Saraiva. São retratos de pessoas que viveram há 200, 300, 400 ou 500 anos e usaram um dos mais antigos formatos que o texto escrito pode receber: o da carta.» Enormes figuras, plenas de vulgaridade, aqui se apresentam, com enquadramento de primeira água, em português da época transcrito para a actualidade e ilustrado, com a malandragem adequada, pelo Nuno, e assim facilitando o acesso ao que se queira, da básica narrativa à evolução da letra manuscrita entre a época quinhentista e a oitocentista, das oscilações da língua às mudanças sociais nos donos da capacidade de ler e escrever. E mais, gesto política de aguda actualidade, que só a memória nos resgatará: «o resgate da vulgaridade, como concordam os estudiosos da sociedade, tem de estar presente nas interrogações que dirigimos à história, sob pena de, entre outras mistificações, perdermos o rasto de muitos dos nossos tabus.»

«Moléstias» talvez tenha sido, até agora, o mais atrapalhado dos nossos títulos, pela dificuldade em gerir cada dos múltiplos aspectos que o fazem único, do alcance do esforço posto no enquadramento e na transcrição, pela quantidade das ilustrações, pelo desenho da caixa, pelos desafios técnicos da fita fechada com lacre a simular a experiência original, e mais isto ou aquilo.

Mas sobretudo, por termos sido, por uma vez, incapazes de comunicar com o designer, resguardado sob pseudónimo de Melting Spot. Acontece, mas, à excepção da ausência, por vez primeira, do volume na data aprazada de lançamento, não se nota nódoa no essencial.

Casa dos Bicos, Lisboa, 23 Julho

Era suposto orientar debate, mas temo ter deitado conversa fora. O pretexto era a edição de «O Rasto de García Lorca» (ed. Levoir para o Público, colecção Novela Gráfica), com desenho e argumento de Carlos Hernández, e El Torres a «limpar, brilhar e dar esplendor». Juntámo-nos à mesa, Sílvia Reig, a editora, José de Freitas, coordenador editorial, e Pedro Rapoula, que comoveu a sala com leituras de alguns poemas menos conhecidos, mas ferozes na celebração da alegria e do amor. Pilar del Rio deu início ao assunto, do mesmo modo que o faz no volume, de par com Mercedes de Pablos, falando da ferida-Lorca a partir deste «caleidoscópio de 12 faces-cenas». Hernández recolhe vestígios de modo a compor o rosto fugidio do símbolo, a partir de fragmentos do homem. Ainda hoje a figura do poeta se faz incómoda, recusando Granada as tradicionais homenagens aos que se erguem identidade. No rasto do rosto final, conversa do autor com seu pai, fica claro que o presente não quer que regresse do passado este fantasma. Que força tão temível possui esta figura? O carisma que transgredia as arrumações, burgueses e camponeses, operários e actores? A homossexualidade a perturbar o modo como nos vemos e nos relacionamos? Um gesto que fazia do teatro, da poesia, da cultura, ferramentas de múltiplas possibilidades? Não traz respostas, esta bd, mas ajuda no labirinto de ruínas. «Sem encontrar-se. / Viajante pelo seu próprio torso branco. /Assim ia o ar. // (…) As nuvens, em manada,  / ficaram adormecidas contemplando / o duelo das rochas contra a aurora. // Vêm as ervas, filho; / já soam suas espadas de saliva / pelo céu vazio.
//Prepara teu esqueleto; /é preciso ir buscar depressa, amor, depressa, / nosso perfil sem sonho.»

Temos que voltar à escrita de cartas, como afinal este «Rasto…» acaba sendo, ao pai do artista e à cidade de ambos. Os tempos exigem-nos. Na sua última carta, responde à do seu namorado, Juan Ramírez de Lucas: «En tu carta hay cosas que no debes, que no puedes pensar. Tú vales mucho y tienes que tener tu recompensa. Piensa en lo que puedas hacer y comunícamelo enseguida para ayudarte en lo que sea, pero obra con gran cautela. Estoy muy preocupado pero como te conozco sé que vencerás todas las dificultades porque te sobra energía, gracia y alegría, como decimos los flamencos, para parar un tren». Energia, graça e alegria, receita para parar comboios.

31 Jul 2019

O peso da leveza

Mymosa, Lisboa, 8 Julho

[dropcap]O[/dropcap] filho-da-puta (mesmo quando ainda o não sabe), vive de um modo geral preocupado, vive tanto mais preocupado quanto mais filho-da-puta é, vive preocupado com as suas ocupações e com a despreocupação dos outros, vive em permanente inquietação, mesmo quando aparenta calma, tudo o que é novo o perturba, é para ele causa de tormentos e temores.

Mas quanto mais teme e se atormenta, maior é a sua necessidade de continuar a fazer, de fazer cada vez mais, ou então de continuar a não deixar fazer, de deixar fazer cada vez menos. E quanto mais faz, ou quanto menos deixa fazer, maior é o seu receio: o receio de não poder continuar indefinidamente a fazer o que faz ou então a não deixar fazer o que não deixa fazer, receio do futuro e do presente e quase sempre até do passado. (…) O filho-da-puta sente que devia estar permanentemente desperto, atento, sempre a zelar pelos seus lugares e pela sua mais-valia, sempre atento à despreocupação dos outros e ao seu significado; o filho-da-puta sente que é um perigo «perder tempo» a dormir, «perder tempo» a defecar, e é por isso que o filho-da-puta dorme mal, é por isso que retém as fezes; e é por isso que o lugar das fezes do filho-da-puta é dentro do filho-da-puta e não fora do filho-da-puta.» Descobri há dias (no Bernardo [Trindade], pois claro) uma terceira edição do sempre actual «Discurso sobre o Filho-da-puta», do Alberto Pimenta (enriquecido com o recorte da recensão do Francisco [Belard], no Expresso dos idos 1981). Coincidência, logo leu o gordo. No molde esculpido a canivete encaixam com facilidade certos vigilantes que agora se multiplicam como varejeiras. Devemos ser o país com mais malditos por metro quadrado. O mais triste do fenómeno está na leviandade com que vai sendo encarado. Na vez de distâncias higiénicas, muitos acham «giro por ser do contra» e, portanto, não o contrariam, dão-lhe trela. O que podia ser polémica, acaba em pirotecnia no lodo, que não há azul nem alto para o filho-da-puta. Em nome da amizade, ainda gasto tempo em explicações, mas acabo constatando a inutilidade. Quando o cão raivoso morder quem agora o acaricia, talvez se retire alguma lição. Temo que não.

Horta Seca, Lisboa, 10 Julho

Espelho e traço. O rosto como tema, como chão, como horizonte. Busca incessante do que somos no que parecemos, mas saberemos quem foi o pintor Gaëtan (1944-2019)? Reflexo na imagem movediça, muitos retratos, como se de herói tranquilo se tratasse, com sinais que transcendiam, que atravessavam o banal, as rugas na testa, os olhos, os cabelos esparsos. Para que coordenada era a fuga desta arte maior (algures na página)? Saravá, Gaëtan.

Horta Seca, Lisboa, 17 Julho

Merecia, mas não conheço ainda nome para esta formação que nos brindou com concerto de Natal em pleno Verão. Os manos [José] Anjos e [Carlos] Barretto convidaram a Paula Cortes e o Vitor Alves da Silva para encherem de palavras certas melodias. Fim de tarde agradabilíssimo, com a sala a respirar as intensidades do que foi sendo atirado para o ar. Até a conversa habitual de rua perturbava, mas não muito. Acontecia cidade, dentro e fora. Estamos em nova fase deste movimento de leituras poéticas em voz alta, com cuidados crescentes, com a dicção e os ritmos, com reportórios a definirem-se, com o improviso a ceder o passo ao pensamento e preparação. Alguma coisa acontece no meu coração, quando cruzo a avenida da voz que diz palavra e estas melodias paisagísticas.

CCB, Lisboa, 18 Julho

Última edição, da temporada e neste formato, de Obra Aberta. Acolhemos conversa entre o cineasta e realizador, Fernando Vendrell, e o pensador e professor, José Pedro Serra. A conversa pegou quando o José Pedro explicou a enorme disseminação do trágico pelos nossos palcos com a morte de Deus. Desde que foi decretada, pelo menos o dos católicos, o homem tateia caminhos em extrema solidão. E procura heróis. Mas, diz aquele grande leitor dos gregos, o problema está em assistirmos a estas peças como se de entretenimento se tratasse. Saímos incólumes do desafio que a tragédia nos lança, o da transcendência. Temos a obrigação de sermos mais, a cada momento. De sermos épicos.

Escola Politécnica, Lisboa, 19 Julho

«Crónicas – Política e Cultura» (ed. Imprensa Nacional)

Tenho dito: justifica-se ainda o lançamento? Neste caso, menos ainda, pois o prefácio do António [Mega Ferreira] já enquadra o essencial, coadjuvado pela organizadora Margarida [Lages], que organiza primorosamente este pequeno e valioso volume da «Biblioteca Eduardo Prado Coelho», dedicado às «Crónicas – Política e Cultura». Quis praticar uma graça, a partir de coincidência.

Chegar atrasado por ter andado à procura da magnífica edição de «O Homem da Viola Azul», ilustrada por David Hockney (oferta do Bernardo, quem mais?), que me tem feito companhia por estes dias cinza cor-de-burro-quando-foge, e cujo poema de Wallace Stevens é citado logo no primeiro e desafiante texto que abre assim: «Sentado em frente do mar, levanto os olhos para continuar a ler. As palavras rompem como palavras de água. O mundo faz-se gota a gota, no infinito de um oceano em que os barcos traçam caminhos, sulcos, traços marítimos e inscrições de alto mar. Estranha emoção a de ficar transparente às palavras que reforçam a minha transparência. Toda a leitura nos faz crianças, e nos constrói na energia da areia.»

Os primeiros textos espraiam-se pela leitura, com momentos de grande fulgor: «ler, no verdadeiro sentido do termo, na acepção da apaixonada que temos de lhe dar, só pode ser uma actividade desmedida, insensata e irracional, feita de rituais, cerimónias íntimas, gestos destinados, cumplicidades incendiárias».

Que poderia, pois, acrescentar eu sobre alguém que sabia com exactidão o que colocar de bagagem em cada a crónica para poder voar, para nos fazer partir? Ele mesmo explica que teve por coração a literatura, na sua relação com todas as artes, com a cultura e desta com a política, lugar primordial da utopia. Improvisei e atrapalhei-me, mas tinha que ser este o jogo, com pitada q.b. de sedução. Eduardo foi um dos últimos intelectuais com peso na esfera pública, esbanjando verve e atenção aos mais variados temas, da lingerie ao telemóvel, da identidade à Europa. E os seus textos mantêm vibrante actualidade e colorido. «A cor como um pensamento que cresce», diz Stevens e o Eduardo continua dizendo que não falamos aqui de ideias, mas de «uma realidade sempre inesperada em que se vai até ao caos para criar o cosmos e o percurso exige uma reflexão obstinada». Eduardo Prado Coelho era dono de uma reflexão obstinada, sempre em permuta universal.

Horta Seca, Lisboa, 21 Julho

A recordação-reconstrução constrói nestes tons a noite da António Enes, portanto foi. A família em frente à televisão-armário, todos a preto e branco e pouco nítidos. Até o Sidónio da parede abriu os olhos e deixou os bigodes encaracolar mais perante o feito do astronauta entre passinhos de homem e passos de humanidade na Lua. Ao puto teria sido permitido ficar às quatro da matina a ver o lento bailado? Pouco importa, tantas vezes as viu, de milhentas maneiras, na ficção de Verne, no fotograma zarolho de Méliès, na linha clara de um Tintin a pescar Haddock no negro vazio, e nas fotografias, uma após outra, forrando as paredes da adolescência, as do satélite brilhando em suas fases, mas sobretudo a da pegada, cujo postal juntava a um outro de pé solto de estátua grega. O par fazia de tal modo sentido que insistiu até muito tarde que por ali andava vocação: saltitar na Lua. Estava enganado. A aterragem falhou, Houston, ligar sistemas de suporte de vida.

24 Jul 2019

Geometria descrita

Monumental, Lisboa, 6 Julho

 

[dropcap]É[/dropcap]ramos poucos a celebrar o Levi [Condinho] no lançamento alfacinha do seu, por interpostos Miguel Martins e António Cabrita, «Pequeno Roteiro Cego». Ainda assim, chegámos para reconhecer as figurações fulgurantes do seu espírito. Torna-se fácil, ao falar dos seus versos, resvalar para a personalidade, tal o carisma. Sem evitar cair na saborosa armadilha, esqueci detalhe que se me fez caro, a presença nos poemas de um deus doméstico, mas indomesticável, parceiro de conversas, objecto de desafio, afinal, suprema melodia identitária. De assinalar, a celebração da amizade do Miguel com o autor, as interpretações do [José] Anjos e os Favola da Medusa a repercutir improvisos. Seguiu-se jantar na Coutada, recheado como poucos a recordações. Há momentos – ou serão lugares? – que se fundem em antenas.

Mártires da Pátria, Lisboa, 6 Julho

Não vem cantada, a notícia. Morreu João Gilberto quando o oiço no peito, na cabeça, nas mãos? Ai, esta maneira de estender os versos que nem roupa lavada, cheirosa. Ai, a dança das linhas nos dedos, que vi de perto, em tolo êxtase – por onde andam essas fotos? Ai, a simplicidade em crescendo até ao nó do que nos explica, a dor cantada e o riso acanhado, o amanhecer e a carne, a boémia e a fé, a alegria palpável por entre lágrimas, o sussurro e a inflexão, o desdobramento que nem linha de comboio, a doba da lã, a dobra do linho, a roupagem perfumada e dobrada nas gavetas do fundo de nós. Este sussurro fez-se chão, é céu, é rumo, «é madeira de vento, tombo da ribanceira/ é o mistério profundo, o queira ou não queira/ é o vento ventando, é o fim da ladeira/ é a viga, é o vão, festa da cumeeira// é a chuva chovendo, é conversa ribeira/ Das águas de março, é o fim da canseira». «Águas de Março», que melhor rol da vida inteira? «É o fundo do poço, é o fim do caminho/ no rosto o desgosto, é um pouco sozinho». O Verão finou-se, sobro cada vez mais sozinho.

Santa Bárbara, Lisboa, 7 Julho

Ignoro a agenda sufocante, nem preciso do pessoano conselho. Dormito e acedo à tentação da lingerie contada por voz anónima nas «Confissões de Um Travesti» (ed. Orfeu Negro), e ilustradas pelo João [Maio Pinto] (exemplo algures na página). Pode uma cabeça perdida encontrar-se pela palavra? Quem escreva para pensar não pode ignorar a potência do texto erótico, que parte do estímulo mais livre em busca do pensamento, revelando que as formas não se soltam das ideias. Ou vice-versa. Este texto voa baixinho e a maior parte das transparências são apenas isso, descrição do que perpassa. Duvido que o autor fosse, de facto, travesti. Quando muito, voyeur, provavelmente apenas curioso em modo de exercício divertido. Salvam-se as luxuriantes ilustrações do João. Possuem momentos explícitos, suscitados pelo texto, mas são apenas mais uma peça de um lego governado pelo olhar. O corpo desfaz-se em elementos, que se juntam a outros naturais, pau, pedra, planta, espinhos, mecânicos, bomba de bicicleta, urdiduras, textos, farrapos, «dis-formas», cores, mesclados em composição surreal e orgânica, vitrais de improvável catedral. Na celebração fulminante do desejo, somos partes, momentos, gestos. Um olho pode ser lábio. E vice-versa.

Horta Seca, Lisboa, 11 Julho

Devia tê-lo feito. Os anos-anões que me sobram permitiriam esse quebrar as regras, mais ainda as íntimas, que as outras lá foram sendo desobedecidas, com muito respeitinho. Não consegui rasgar a página e pô-la em altar defronte. Para que os olhos, e o corpo por inteiro na sequência, ali encontrassem, refrigério. «Luz teimosa», eis o título deste fascinante desenho-de-luz de Fernando Lemos, incluído na colecção Ph. (ed. Imprensa Nacional), em quarto volume que se afirma definitivamente no papel de extraordinário serviço público, que disso falamos quando se acendem memórias. Em canto de corredor, estas linhas de luz parecem conversar, as portas abrindo para segredo, bocas do mistério permitindo o contacto fulcral de subtis fonteiras, alicerces de um real por acontecer, ou então cenário do sucedido. O artista revela de que falamos quando falamos de surrealismo: dá-se aqui o reverso. Casa que seja nossa, íntima de sangue e sopro, deve ser erguida sobre alicerces de luz. Os cruzamentos espectrais de cintilações conspiram para erguer habitação. As portas sussurram entre si, talvez incomodadas pelo olhar da fotografia, afinal sinónimo de fotógrafo. Não arranquei a foto, não fui capaz.
Encontro nestas notáveis fotografias, que fazem dos rostos enormes palcos do humano, as sonoridades marítimas de João Gilberto. E o seu gesto de quase nada, uma nota apenas que muda. «Quanta gente existe por aí/ Que fala fala e não diz nada,/ Ou quase nada./ Já me utilizei de toda escala/ E no final não sobrou nada,/ Não deu em nada.// E voltei pra minha nota/ Como eu volto pra você.» Você, o outro que vejo, digo, desejo. O suculento texto de enquadramento de Filomena Serra assinala o peso da cumplicidade e da amizade nestes retratos, na simplicidade afinal desconcertante da pose, digo, atitude, digo, nudez. Eles são, não estão. Ele Agostinho da Silva, Alexandre O’Neill, Hilda Hist, Jorge de Sena, Sophia, o «irmão» José-Augusto França e por aí adiante. Transfiguram-se em paisagem, desdobram-se, entregam-se. O corpo todo no rosto. A realidade toda na criação. A invenção do desejo. Diz o artista, a modos que «quanto mais desejo/ mais invento o que vejo// quanto mais vejo/ mais invento o que desejo// quanto mais invento/ mais desejo o que vejo».

Adega da Bairrada, Lisboa, 12 Julho

Andava o gordo a arrastar-se procurando sua sazão, tentando escapar aos assomos de verão sinistro, que se desdobram, acima de tudo, nas fragâncias de quando um quarto do ano era liberdade primitiva, cheia de outros medos, de quartos partilhadas, às vezes, mas distintos sempre, com aberturas acima e abaixo, baralhando os quadrantes do mistério, daqueles universos longínquos, de encontro bruto com a natureza completa, da aranha à vaca, do milho à uva, do leite coalhado ao mosto, do pão acabado de fazer ao peixe frito ao pequeno-almoço, da gadanha ao rádio das noites com noticiário e naperon incluído, natureza que incluía o estiramento da família também, primas e primos e mais primos e mais primas, sem contar com tios e tias, o conjunto regado a implicações e beijos, piores estes que aquelas. O gordo tenta e o passado manda. Vai de almoçar com velhos colegas apenas para confirmar que o passado custa a acontecer para quem tenha a memória desfocada. Temos ainda algures alguma coisa dos vetustos índios do forte Afonso Domingues em ruínas?

RTP1, Barcelona, 14 Julho

Tive um stick de hóquei. Não me lembro de ter tido patins. Joguei apenas nos corredores pequenos e estreitos da Rua Castelo. Parti jarras e admoestações, «a gente faz o que o coração dita». Devo ter visto mais touradas ao vivo que jogos de hóqueis em patins. Só me acode o Livramento. Nostalgia deve ser esta vibração com modalidade na qual a televisão não substituiu a rádio: quem vislumbra o golo? Celebro, por tido isso, a vitória de um guarda-redes, o mais improvável dos heróis na época dos esteróides. Como encher um alvo e impedir os disparos fulminantes? Perguntem ao Ângelo Girão, campeão do mundo.

17 Jul 2019

Da audição dos mapas

Metro, Lisboa, 20 Junho

 

[dropcap]G[/dropcap]ostava de o ter lido em Sines, por coisas que nada mudariam. «parágrafo único: salvar da/ devastação. Nomear… objectivar/ o Mundo, prendendo-o por/ liames decentes, ligaduras.» Os mapas só se mexem quando bastamente dobrados, encolhendo-se nos bolsos, recolhendo dos restos, cotão e agrafo, saliva e fiapo de pano, maneiras de reorganizar o horizonte. Anotemos as coordenadas: «Al Berto: A Busca. A Solidão, A Morte. E Sempre este Nosso Idioma [cartas inéditas e outras raridades, transcrição quase diplomática anotada por Paulo da Costa Domingos] (ed. viúva frenesi)». Atirado às feras leitoras para assinalar os setenta e um anos de Al Berto, esta compilação ergue-se testemunho de época, de grupo, até de geografias (coincidentes na santa catarina, quinta e bairro, ambas tornadas vizinhança), mas sobretudo de encontros. Ninguém como o Paulo para dizer política quando afirma o íntimo. Na literatice de hoje respira-se ambiente tóxico, com uma intimidade a ser castigada parvamente apenas por pertencer aos outros, quando se incensa esta tão só por pertencer aos nossos, ainda que os nossos durem fósforo antes de passarem a outros. Neste opúsculo acontece planta que dura um dia, ou antes efêmero insecto, ou, melhor, a extrema combinação de ambos: em torno de versos e sua leitura livre desponta uma amizade que floresceu de mil maneiras antes da morte a cercear. «Dias retorcidos a ferro, alguns com a suavidade/ do tweed, ou em lamúrias de sangue/ mal drogado pelas veias, e depois o tal regresso/ ao noticiário, ao mito, à museologia.» Insisto, só o Paulo para fazer da navalha algo que nos apeteça beijar.

Antena 2, Lisboa, 28 Junho

Estranho que a morada de um alcatifado silêncio, mesmo por entre as frases dos que falam, sejam os estúdios da rádio. O vermelho luminoso dos «No Ar», dentro por extenso, fora apenas no sonoro vermelho, impõem o respeito devido ao normal funcionamento da mais desabrida curiosidade. No corredor, sussurrados, no aquário, tudo se faz possível – ei-lo, o doméstico animal que cruza idealizado com concreto, bruto que às vezes morde, outras se aconchega para ser a pedir carícias. (Parece gato, assim descrito, mas não nos deixamos enganar).

Encontro-me, por acidente e na vez do exterior do vidro duplo, no miolo-estúdio do Paulo [Alves Guerra], enquanto este descasca camadas ao Levi [Condinho]. Assisto, na primeira fila, ao espectáculo em vias de extinção da esclarecida curiosidade: o jornalista a sobrevoar que nem vespa o maduro entrevistado em floresta de memórias e papéis e cd’s e o mais que nos vai ajudando a ser nas obsessões e outras identidades, picando nas carapaças, nas timidezes, nas agendas do que não posso deixar de dizer, até que os voos os soltam a ponto de apenas ser.

Para os ouvintes. Dou por mim a pensar que a rádio alarga o especto do silêncio, tal o humano faz à alma, que só ela sabe ser toda em si. Rodo o botão e sintonizo o Filipe Pires do «Canto Ecuménico», e o metal que se dobra de sonora maneira «Para vos falar de toda essa música do Universo/do Universo conhecido e criado na (tua) alma de barro eu digo miosótis…» e estendendo-se até «extensas palpitantes águas». Mas podia apanhar o Mahler em que concordámos, quando chamado à conversa, quando devia a escolha ser um dos jazz. Para sermos, precisamos de rios tornados próximos pela sede e pelo mergulho, nos quais aprender a dança e o detalhe da letra e da melodia.

A mesa do almoço acrescenta alguém que vem confirmar os meus laços ao Oeste, o das míticas ressonâncias. Fazendo contas de cabeça, cóbois só dois ou três, o Henrique [Manuel Bento Fialho], o João [Nazário] e, além dos que me escapam, este que agora se ajunta, o Bernardo [Trindade], mestre do laço laçado aos mais brutos animais. (Não vislumbro nem índios nem índias, por agora). O pudor, mais pela lamechice do que pela bruteza, não permite descrever o que aqui aconteceu em torno de Alcobaça e seus mosteiros, altaneiros ou rasteiros, o passado e suas estreitezas, o presente e suas possibilidades. A minha memória diz oboé, diz mamas, diz vanguarda, diz liberdade, tudo com anos de diferença e dores distintas. Falámos, como se ali estivesse, de Tarcísio Trindade, por estas e outras tantas razões: «Doze marcos quilométricos brancos/Actualizam a paisagem// Estáticos na berma da estrada/Ornamentam o itinerário da viagem». Paulo, bota aí Arnold Schönberg, só porque sim e por ser título do poema-mesa onde nos espelhamos, que lemos, no qual viajamos.

Artes e Letras, Óbidos, 29 Junho

A palma da mão marcava linha em direcção às míticas poltronas, cadeirões, maples que se fazem centro de um universo forrado a lombadas, imagens-fortes, restos de viagens e mapas, dos absolutamente irrequietos. O Luís [Gomes] mudou-se de armas e bagagens – as segundas já descritas, tomando por primeiras os caracteres de chumbo e demais ajudantes de pôr tinta no papel – para o Oeste. Convém distância do centro a certas artes, as de mastigar mistérios como as criar modos de viajar no desconhecido. Agora que nos perdemos nisto da rede, custa mais perceber que cada livraria, em o sendo, se deixa fazer igual às outras. Uma livraria, mais ainda a de fundos, e portanto agravada no caso dos alfarrabistas, ganha o feitio, o recorte, o perfil de quem a alimenta. Em boa verdade, desta ao quilo, que não a engano, freguesa, aplica-se a qualquer comerciante, um vedor de necessidades. Nisto, sinto-me em casa, só de estar por perto da máscara do astrolábio, dos tchokwe, da bússola do colonialista, do velhíssimo símbolo da fertilidade, daquela carta marítima onde os destinos confluem, do cavalo em madeirame parvamente calmo, quando devia ser baleia a esmagar-nos. Trouxe o mobiliário à colação, mas o essencial reside na conversa, no percurso único, no saber disperso e marinheiro, na presença do Luís, o único capaz de trazer o mar e por inteiro às bordas do castelo.

Alfa Pendular, algures, 6 Julho

Aguardo o momento em que escreva desço a norte, mas não será desta. Projecto comum faz-me subir a Campanhã com o Luiz [Pires dos Reys], que não carecia de pôr y no nome para agravar afinydades. Logo ali na estação, um dos seus autores, Côta Seixas, confessa-se-me devedor de um vinho caseiro, dos de gosto mal-educado. A memória não me ajuda nunca, estou a quase a abdicar da dita, ou pelo menos a castigá-la (não me lembro de como o fazer). Tinha o acontecido raízes nas Correntes da Póvoa. Haja quem faça contabilidade dos encontros e das conversas. Celebro a coincidência de livro na mão, este «Fabulário Amoral de Fauna & Flora» (ed. Edições Sem Nome), pequena colectânea de deliciosas absurdezas, ilustradas por Tiago Seixas, que desenha sobre a quadrícula das latitudes e longitudes. A que esta página contém ilustra o micro-conto «Rosa dos Ventos», que fala da convivência carnal entre as estações. Mas para ilustrar a delícia de desfazer quilómetros no vidro da janela do comboio trago «Adrede». «Por não ouvir, um surdo pede a um absurdo que, por escrito, lhe diga quem é.

Com caneta permanente, de tinta extinta, o absurdo que não houve responde ao surdo que não ouve:

– sou tudo o que há e não existe, o princípio do nada, o fim do infinito.”

10 Jul 2019

Recessos de cidade

Lisboa, 11 Junho

 

[dropcap]T[/dropcap]em armadilhas, a (suposta) diarística. Agravadas a cada degrau pela vida, alheia aos esforços do (suposto) cronista. Alturas há em que a folha se estende qual cemitério na falda da colina. E que dizer descontado o banal, além do bem e do mal, sobre aqueles que partem, mais ou menos próximos, relativizando-se a proximidade por conter intimidades, por ter contribuído, das maneiras mais díspares, para o que fomos sendo? Mal conheci Ruben de Carvalho (1944-2019), mas devo-lhe muita navegação no grande oceano da música, não apenas pelo que foi dizendo, mas por quem programou na Festa do Avante, para dar um exemplo. A América, sem o jazz e o romance policial por ele recontados, não me seria a mesma. Saudades das crónicas! Antigamente, os jornais andavam prenhes de futuro. (Relembro a talhe de foice que a minha infância desaguou em revolução, para a qual ele contribuiu.) Mas Lisboa, a minha tão ausente Lisboa, não me seria a mesma sem Ruben, por milhentas razões, as que se sabem e as outras. Uma delas, talvez despicienda, foi a sua defesa, enquanto vereador, de uma Bedeteca de Lisboa condenada à lenta agonia da indiferença. Saravá, Ruben.

Varandão, Lisboa, 15 Junho

Apesar dos pesares, Lisboa continua sendo o que jamais deixou de ser: jogo de patamares e vielas onde o encontro floresce que nem enigma. Ramón [Gomez de la Serna] imaginou-a ponte de grande navio prestes a rasgar oceanos. E nela assim me sento, a olhar os nós por desatar do horizonte. Abro parêntesis [recto] nos afazeres e passo a porta, que é janela, do Luís [Gouveia Monteiro] para experimentar o concerto de bolso do Fred Martins, na companhia de cristal da Sandra [Martins]. As linhas do horizonte são agora as cordas de onde se soltam as melodias de estonteante riqueza, conduzindo a voz que nem seta ao coração perfurado pelo violoncelo, mas o órgão do sangue pensa e diz do tempo e da paisagem, da casa e quem nela mora, de ontem e de amanhã. O varandão, com esta dilecta companhia, foi mundo pulsando, levou a gente. «Onde mora a ternura,/ onde a chuva me alaga,/ onde a água mole perfura,/ dura pedra da mágoa,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora.»

Santa Maria Maior, Lisboa, 19 Junho

A minha cidade tem uma galeria elevadora. Talvez devesse escrever elevatória, mas no contexto cruza-se com voadora. Diz o dito contexto que são «As Lisboas» do Nuno [Saraiva], postas no prédio da Junta de Freguesia que junta o baixo e o alto, Fanqueiros e Castelo, ou quase. Vou ter que voltar (fica até 27 do corrente), pois descobri que não consigo acompanhar o andamento do gabiru. Gabo-me de conhecer o seu corpus como poucos e logo me encontro hirto de surpresa, carapau a pedir o auxílio de alma caridosa na corrida de ver. E o quê? O mais solar dos cruzamentos entre a cidade e as suas personagens. O mais irónico dos mergulhos nos estereótipos, massa movediça da identidade. Um sem fim de suportes, a afirmar que Lisboa podia lá ser apenas de papel! Recapitulando, muito por culpa de sucessivas Festas da Cidade, mas também por ser filho de Alfama, o Nuno tem desenhado as figuras de que Lisboa se faz hoje. E cruza os monumentos, as ruas, os lugares, famosos e nem tantos, queridos ou nem por isso, com os corpos em andamento. E depois mergulha nas tradições, da sardinha à ginjinha, das marchas ao Fado, para colher os elementos com que compõe imagens que respiram sangue na guelra. O meu maravilhamento resultou ainda do encontro com azulejos e garrafões gourmet, mupis e troféus, jornais e muros. E finalmente os esboços, revelando as hesitações, as aproximações, antes do traço definir o corpo, ainda ele, da cidade, sempre ela. (Exemplo algures na página).

CCC, Caldas da Rainha, 22 Junho

A tarde respira de luz, mas, em obediência ao tema e à combinação, entramos no cubo escuro da sala. Nem por isso o momento deixou de se fazer solar, muito pela simpatia que o Carlos [Querido] suscita nesta sua terra (enfim, por onde passa). «Habeas Corpus» anuncia-se conjunto de micro-contos a bailar à volta da morte, a atazaná-la, empurrando-a, rasteirando-a, na certeza de que lhe cairemos nos braços. Cansados. Mas mesmo os aqui pousam nesta página acreditaram que, pelo riso e outras artes, a faremos mais tonta. Mas outras melodias se tocam nas deambulações destas figuras pelo território fértil do absurdo. E a palavra é uma delas. Os sentidos são tratados como produto da terra, com raízes e regas, cuidados de poda e desbaste. A Ana [Sousa Dias] teve a generosidade de nos oferecer leitura. «Gosto deste livro de caminhos obscuros e muitas vezes absurdos, recheado de citações discretas (ou evidentes) de grandes livros que fazem a história da nossa humanidade, e que recomendo que o leiam (e comprem, previamente). Que se divirtam como eu, sem gargalhadas mas com um sorriso cá por dentro, à espera do desfecho que chega na página seguinte. Que saboreiem a belo domínio das palavras, aquelas que são o fulcro de toda a literatura. Cuidado, que a fome das palavras pode levar a que desapareçam das páginas. E regresso ao início, a um dos temas recorrentes do «Habeas Corpus»: “Sempre que procurou o sentido da vida deparou-se-lhe o denso e indecifrável mistério da morte. Kyrie Eleison”.»

Santa Bárbara, Lisboa, 22 Junho

Este papel não parece de fibra, a não ser que seja de tempo feita. Não tivemos todo quanto precisávamos, Carlos [Câmara Leme] (1957-2019), para cumprir os projectos, muito conversados, inevitavelmente adiados. Deste prolixo testemunho do teu tempo, do nosso tempo e dos seus actores, perdido algures nos arquivos. Não te deixaste ficar. Procuraste sempre acompanhar em passo de corrida, como convém ao jornalismo, os que pensavam ou escreviam. Que saudades do tempo em os jornais falavam! Saravá, Carlos.

Horta Seca, Lisboa, 24 Junho

A ritmo mais do lento do que aspira o nosso querer, vão saindo edições internacionais dos nossos autores. Umas mais convencionais, como esta de «O da Joana», do Valério [Romão], que na versão francesa da Chandeigne se fez «Les eaux de Joana», o que me agrada bastante. As águas e o seu romper, na mulher, são fonte inesgotável de fascínio, portanto, de mistério. A saga de Joana é-nos apresentada, na contracapa, como cruzamento impiedoso de estudo clínico sobre a histeria, o cinema de Buster Keaton e a crueza de Louise Bourgeois, celebrando as sinistras núpcias do desespero com o burlesco. Sublinho a presença das referências visuais aplicadas ao texto do Valério, uma das suas forças.
Outras publicações resultam da soma de desejos e vontades, como «Chiuso per Inventario», pequena antologia de poemas da Rita [Taborda Duarte], passados a italiano pela Paola [D’Agostino] e acompanhados ao pincel pelo Pedro [Proença]. Destinado, por «Malas Artes», apenas aos sortudos de festival mediterrânico «na terra do pesto», eis inestimável volume, pássaro breve. «Non srivere troppi uccelli nelle poesie: è cosi triste/sentire un uccello che cinguetta nel posatoio del verso le unghie/ che raspano le frasi razzolate della poesia.”

3 Jul 2019

O feirante acidental

Galeria do 11, Setúbal, 1 Junho

 
[dropcap]C[/dropcap]ontinua por fazer uma história da ilustração portuguesa. Os contributos do Jorge [Silva] acabarão, tenho esperança, por erguer esse pano de fundo. E nele quantas figuras, de súbito, brilharão como Manuel Lapa (1914-1979), que tem nesta a sua primeira exposição? Que sabemos nós dele, sem uma única entrevista, depoimento, enfim, nada mais que vestígios?

Saberes instáveis e disciplinas discretas, como a ilustração, prestam-se a passarem entre os pingos de chuva da nossa comum atenção, mas convenhamos: tratamos mal a nossa memória. E perdemos com isso. Este autor, ainda assim notado como pintor, assina um enorme contributo para a nossa história visual, pela quantidade do trabalho, muito dele ao serviço das várias vertentes, educativas e outras, da propaganda do Estado Novo, mas sobretudo por um expressionismo riquíssimo em meios e assente no combate «Da Luz e das Sombras». As dicotomias sobre as quais o Jorge desenhou a exposição prolongam essa ideia revelando os vários rostos do artista, do livro ao cenário, das revistas às tapeçarias, do folclore à santidade, da espada à lebre: das sombras do mundo, do sal da terra, do sonho e da ilusão, do riso e das lágrimas, do céu e do inferno, da espada e do trono, da presa e do caçador (algures na página momento muito meu, assinado por Manuel Lapa). Acontece bastante cor, ainda que em tons baços, mas a força essencial exprime-se a preto e branco. Mesmo nos retratos, algo parece estar a acontecer, só o movimento nos traz o real perseguido. As massas servem de contraste para a figura, anunciam a peripécia, sugerem ambientes. E tantas nuvens passam por estes céus, estas decorativas, aquelas significantes, outras apenas correndo ininterruptamente. São sinal da elegância que habita este lugar. O equilíbrio entre originais, publicações e reproduções faz ainda desta exposição caso exemplar. E contém até o pormenor de um caderno de desenhos que não escapou incólume aos acidentes do tempo. Parece vociferar, no meio do dinamismo e da celebração de uma obra, que o comum descuido tem um preço: arde e até a água queima.

Largo José Saramago, Lisboa, 4 Junho

Ninguém pergunta: qual o gesto mais comum na vida de um editor? Talvez por se dar por adquirido que a óbvia resposta seria a leitura. Não: carregar com livros, eis o que mais fazemos.

Fui, portanto, carregado de exemplares, que queria exemplares, para a conversa com a Carla Oliveira, da Orfeu Negro, a convite do Jorge [Silva], no âmbito do «Faz-me Um Livro», ciclo dedicado ao design, edição e ilustração, comissariado pela Silvadesigners para a Fundação José Saramago. Tal como com outros deveres, estou atrasadíssimo com o primeiro catálogo da casa, com o qual pretendo fazer avaliação, mapa movediço do que foi sendo feito, aventando meia dúzia de porquês, enumerando episódios, falando dos modos, assumindo falhas e colhendo logotipos desta horta de abysmos, tão rica já. Estou atrasado, ia dizer, por carregar livros, o que não deixa de ser verdade. Dá muito trabalho sobreviver, nem sempre roubamos o tempo que nos permita pensar. E o catálogo há-de resultar de pensamento. E de tempo. Apesar das diferenças, reconhecemo-nos, a Carla e eu, em muitas das dificuldades da profissão neste momento concreto.

Não vos cansarei com a enumeração, mas os livros que levei eram dos que nos são devolvidos cansados e maltratados pelas livrarias. Apenas um sinal da irracionalidade deste processo que faz com que um livro não vendido possa acabar massacrado pelo hábito de o (mal)tratar como mercadoria. E não será? A mística arreigada ao objecto afirma que não, que se trata de um mudador de vidas, um abridor de horizontes, um «amigo». Fomos, espero, muito para além do fado habitual, dissemos das ânsias e desejos dos autores, da interferência do editor no processo criativo e da importância dos títulos e das capas. Acabámos falando, antes do mais, da paixão de continuar a esticar o objecto-livro em todas as direcções. Falámos sempre de livro na mão.

Feira do Livro, Lisboa, 8 Junho

Temo tê-lo repetido de mais: estreámo-nos na Feira do Livro com pavilhão próprio, partilhado com a Livros do Meio, editora que mora em assoalhada destas páginas. Havíamos participado antes de modos diferentes, sem grande intensidade, estou em crer que por não arranjarmos maneira de nos relacionarmos com o modelo. O ano passado tivemos até resposta entre o absurdo e o irritante a propostas solicitadas de animação, que nos permitiu anotar o interesse mínimo, para dizer o mínimo, que os organizadores devotam à poesia. A Feira evoluiu afastando-se do livro e da cultura em direcção ao comércio e entretenimento de massas. Passa pelo Parque muita gente, mas a pensar mais no passeio do que nos livros. Estes merecem a atenção de um olhar se os preços se agacharem tanto que rastejem pelos cêntimos, dando razões aos génios do marquetingue que dizem ser tudo igual, desde que com capa e páginas. Toda a lógica sopra a favor das grandes superfícies, digo, grupos editoriais que aqui copiam as ditas, com a sua lógica suicidária de descontos e neutralização. A programação da Feira não consegue apresentar-se com uma ideia forte, integrada e assente no essencial: o livro, o autor, a literatura. No concreto, o investimento revelou-se imenso, nos maravedis e no trabalho, sobretudo com o que se estraga e desperdiça. Ainda assim, pela primeira vez expusemos ao vento, à chuva e ao calor, mas também a alguns olhares interessados, o catálogo completo. A localização que nos calhou em azar afastou-nos das rotas, mas ainda assim demos um ar da nossa graça.

Horta Seca, Lisboa, 10 Junho

Um dos melhores jornais do mundo, The New York Times, cedeu à sanha moralista que envenena a opinião pública e, na sequência de críticas a um desenho de opinião do António [Antunes], que se “atrevia” a criticar as relações caninas entre a política norte-americana e israelita, anunciou o fim dos cartoons políticos. O principal visado, Chappatte, escreveu um texto que desafia os editores a não baixarem os braços. Só um sábio coquetel de resistência e inteligência nos poderá trazer oxigénio a estes tempos em que os gases das massas em fúria cega nos impedem de respirar horizontes. E também Martin Rowson, no The Guardian, disse o óbvio, lembrando as ameaças crescentes aos canários dos fundos da mina: «the New York Times’ decision is particularly irksome in its intoxicating combination of cowardice, pomposity, over-reaction and hypocrisy. » O NYT ofendeu-nos muito e merece castigo.

Feira do Livro, Lisboa, 13 Junho

Ficará da experiência adulta no Parque duas dezenas de páginas de certa edição especial que se atreveu a pensar, através do poema, do ensaio, do desenho e da pintura, que sentidos se colecionam nas massas difusas do etéreo em movimento. O jornal «Nuvens» teve, à sombra do pavilhão nefelibata, singelo lançamento, regado a duas versões da Trevo, a mais literária das cervejas do burgo. Foi um ar que se lhe deu, um corpus nubilum nascido de cadáver esquisito. «E se fosse a terra um modo movediço, reflexo chão do movimento acima? Como assentar escada na canção? Nuvem feita canção, verso que foge, cão.”

26 Jun 2019

O desenho dos dias

Horta Seca, Lisboa, 30 Maio

 

[dropcap]A[/dropcap] parceria que se ergueu pavilhão nefelibata na Feira do Livro desenterrou-me nostalgias, como se preciso fosse por estes dias negros e amargos. O Carlos [Morais José] achou por bem fazermos edição especial toda dedicada ao tema fugidio e fascinante, «nuvens», que vogam sempre no plural, já que cada uma por si só muda a cada instante. A saudade que me rasgou não foi tanto a do jornalismo assim vagamente, mas a dos fechos de edição. Acontece magia naquelas horas, pois o caos instalado grita-nos a cada momento «impossível», mas a golpes de vontade as peças vão-se encaixando de modo a fazer luz, isto é, tinta sobre papel. Por vezes, até sentido e beleza se alcança. E fechei revistas e jornais ainda antes do computador simplificar, onde tudo era mais lento. Mas dobrávamos o tempo. Assentámos o essencial nos colaboradores da casa e chamámos Carlos [Fiolhais], o cientista, e o João [Queiroz], o pintor, para conversar. Percebemos por aqui que a água dança nos céus para que a nuvem aconteça, que é colecção de pequenas coisas, ou melhor, que nelas se espelham um sem número de outras coisas.

Ouvimos garantir que a luz pesa, que na pintura o essencial é perceber as fronteiras dos objectos, que as nuvens podem absorver o real. A conversa tombou, às tantas, para um suave combate entre ciência e arte, mas não houve feridos. O Carlos [Fiolhais] teve depois de nos deixar, mas continuámos a três, sendo que essa continuação merecia também gravação. Quem sabe se a memória nos assistirá? Não estávamos sós, percebemos pouco depois. A mymosa tem destas surpresas.

Casa do Juiz, Bencanta, 31 Maio

Saltada a Coimbra, em contexto profissional específico, para ouvir [Álvaro] Laborinho Lúcio discorrer brilhantemente sobre a mais recente e possante recolha de micro-contos do Carlos [Querido], estes todos dedicados a morder os calcanhares da ceifeira. Como de costume, o Sal [Nunkachov] trouxe para a capa um corpo, que não anuncia fins. Além disso, contribuiu com um apêndice de múltiplas interpretações destes ambientes, nem por isso soturnos. A morte está bastante viva, afinal. Pode ser que a palavra nos defenda um pouco, talvez possamos escolher o modo de partir, por exemplo, virando árvore, como em «Tília». «Um dia sonhou-se árvore. Tronco ereto, copa frondosa, folhas perfumadas e caducas. Tília. Enverdeceu. Dum pequeno corte no rosto quase escanhoado brota um líquido pastoso, espesso, escuro. Seiva. É do fígado, desdramatizam os amigos. Diagnóstico precipitado. Eles sabem lá, os amigos. A icterícia é amarela. Não faz os cabelos crescerem verdes, em tufo, espigados, horizontais, a oferecerem aos pés doridos uma sombra circular e refrescante. (…) Por detrás da casa, no fim de um caminho de terra batida, espera-o um bosque com outras tílias. É para lá que se dirige. Escava com os pés até os sentir raízes. Abre os braços em cruz, virado para o nascente onde há-de irromper o sol.

Depois, sobe-os suavemente até que se unam as pontas dos dedos, no desenho quase perfeito de um pentágono que projeta para poente, para o mar, a sombra de uma copa à procura da eternidade a que aspiram todas as árvores.»

Casa da Cultura, Setúbal, 30 Junho

Pouco depois das 00h00, manda a «tradição» de cinco anos, demos por aberta a edição da Festa da Ilustração, em plena rotina. Desta, abriu-se muito espaço para o desenho de humor, não apenas por via do trabalho da convidada contemporânea, a Cristina [Sampaio], mas também pela homenagem a Tignous, um dos mártires do massacre do Charlie Hebdo. O título desta crónica foi também o título de uma exposição da Cristina na Bedeteca de Lisboa, em 2001. Fui reler o que então escrevi e comecei por me surpreender com um rasgado elogio ao jornal, enquanto objecto e lugar de encontro dos tempos todos. Faltou apenas chamar-lhe nuvem… Não me revejo hoje em nenhuma das publicações nacionais, mas para o caso pouco importa. Os desenhos da Cristina perderam fundo, foram-se simplificando, mas o essencial da sua força mantém-se, com forte ligação às narrativas da actualidade, assentando o agudo comentário na dança entre a linha e a transparência, mastigando os corpos. No final, estamos nós. Pessoas e laçadas na corda do tempo.

(Algures na página está a ilustração feita para a Festa). E cito, lá do início do século. «Nós. Ou os bonecos nas mãos de um destino que joga aos dados no bar do cruzamento. Espreitamos com prazer nas transparências que nos espelham. A Cristina Sampaio é uma produtora de ambiguidades. Tem um olhar quase infantil e por isso cheio de perversão. Os seus desenhos, traços leves, mas pesados, surgem-nos claros e imbuídos de texto, sem serem nem caricatura nem cartoon e bastante mais do que meras ilustrações. Dizem, sem querer, que somos acrobatas de borracha, a pedalar sobre um elástico esticado, meros bonecos pintados à mão, a apanhar vento e chuva, às vezes sol, na montra do tempo.»

Lapso, Setúbal, 1 Junho

Não tinha voltado ao passado, quando procurei falar do presente, os mais de oitenta participantes que compõem um rosto à Ilustração Portuguesa, desta feita acolhida em novo e arriscado espaço, a Lapso, galeria-livraria na baixa da cidade. (Que seja augúrio de sorte!) Para o melhor ou pior, continua pujante, entre nós, esta disciplina, tanto mais que nem todos aqui estão representados, por uma razão ou outra. Vejo estrelas. «Soubera eu desenhar e desnecessário se tornava este esforço de procurar a metáfora que cosa estes pedaços soltos de nós, de nós aqui nestes dias adversos e confusos, mas também palpitantes de alegrias e possibilidades. Não chegámos ainda à centena de participantes, mas aproximámo-nos como nunca. As imagens, essas, desmultiplicaram-se e são mais que muitas, umas soltas, outras resultando da mesma encomenda, propondo olhar distendido sobre aquele assunto, próximo da actualidade ou inserido em narrativa, resultado de projecto mais pessoal, com fulgor poético ou comentando isto e aquilo. Reúnem-se aqui apenas por coincidirem no ano que passou? Ou algum nexo, um estilo, uma cor as pode reunir? São estrelas solitárias a comporem uma constelação. Mais do que iluminar a noite escura, brilham para nos mostrar de que somos feitos: poeira de luz. Muitas destas imagens fortes continuam a voar sob o radar da atenção. Quantos de nós se deitam de costas a mirar o firmamento? Não perdem, por isso, a capacidade de nos atrair. Pela dança estética das formas, pelo que dizem ou mostram, por parecerem pedaços partidos de espelho. Parte de nós encontra-se aqui, estilhaçada. Vale muito a pena perdermo-nos à nossa procura.”

12 Jun 2019

Nuvens passageiras ou nem por isso

Egas Moniz, Lisboa, 14 Maio

 

[dropcap]C[/dropcap]onheço quem leve a velha da gadanha para o ginásio. Uns, mais leitores que outros, levam a morte pela mão para os lugares da vida, da sua vida: a mesa, o miradouro, a tela, o desenho de humor, um jogo de futebol. Não a vencerão, sabem disso, ainda assim dão-lhe pancadas nas costas, empurrões cúmplices com o ombro, contam-lhe anedotas, o que muito a irrita por causa do riso comum, ela que padece de humores frios, dá-se bem no cemitério solene, dos que soerguem a tristeza em mármore. Quando a bruta aparece no hospital, atazanando, pedem-lhe por favor que vá fumar enquanto decorre a neurocirurgia. Ela obedece, distraindo-se, por instantes, do xadrez. Levantemos os braços e celebremos. Esta partida fica empatada.

Santos-o-velho, Lisboa, 20 Maio

Estava para ali no velório, a imaginar o que diria de cada um dos que entravam e saíam, o Manuel de Brito (1950-2019), praticante da aguda arte do sarcasmo e da má-língua. Aliás, há uns anos que o fazia, anonimamente e na versão moderada de comentário humorístico, nas páginas do Correio da Manhã. Interessar-me-á sempre mais a sua faceta de editor na Contexto, onde criou catálogo importante, e desigual por experimentar, mas que revelou Al Berto, os volumes fundamentais de Rubem Fonseca ou de Albert Cohen – no caso, com a sua cúmplice, Joana Morais Varela, na tradução –, além de, isto na ficção nacional, autores como Fernanda Botelho, Nuno Júdice, ou mais «fáceis», que nem a Rita Ferro. Como tantos, o impacto deste seu legado está por avaliar. Recordo conversas quase sempre agrestes, resgatadas apenas pelo riso, e conservarei a mais recente que me deu a ver outro rosto em homem intransigente. Saravá, Manuel.

Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 21 Maio

Ainda antes de partirmos, e o plural faz-se com o mano António [de Castro Caeiro], aconteceu na Horta Seca um daqueles momentos que (quase) me fazem acreditar estarmos vivos: alguém ajuda um infante a escalar o português escolar de hoje, enquanto uns esculpem projecto de sombra e luz, e a Isabel [Amaral] tenta deslindar o quebra-cabeças que acaba sendo Feira do Livro. Cada um para seu lado, acreditando. Corremos depois para o cozido à portuguesa, regado de mil maneiras distintas, celebrando logo à mesa a dita poesia. Acontece bastas vezes, para desatino dos cultores do fel. E voltámos a apressar-nos para o escuro do palco. O [José] Anjos tocou enquanto o mano-anfitrião, Henrique [Manuel Bento Fialho], ia entrando nas profundezas de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça». Leitura crítica já a tinha feito antes, no inestimável «Antologia do Esquecimento», classificando-o até, em fórmula que desgosto, como «um dos mais estimulantes livros de poesia portuguesa contemporânea dos últimos 20 anos», mas agora era texto que se soltava como os aromas do jardim da Céu e do Carlos [Querido].

«Creio numa poesia que ande nua sem sentir vergonha por isso, que mergulhe nas águas do Lete para nadar contra a corrente. Poesia que… se não “recupera o ímpeto / do espanto”, pelo menos revigora-se nesse sentido. Que é feito do espanto, da inocência com que olhávamos para as coisas descobrindo-lhes respiração própria, única, singular? Os mortos revelam-nos a condição, a fotografia aponta-nos o passado à cabeça, mas à poesia pode convir o ânimo de uma vida que não se resuma a contar pelos dedos quantos anos passaram. Entendendo a queda, o poeta mergulha a pique no delírio inquieto das imagens, remove do corpo impurezas e aceita o mistério, nele já não opera a lógica do pecado, porque ao mastigar os frutos não sente vergonha, desnuda-se, oferece-se tal qual é, ri, chora, recorda, faz emergir nas palavras o tempo recalcado, desperta a morte do sono silencioso do esquecimento. Há quem nisto veja desespero, arte fundida pela técnica, logro, mas eu vejo fome de viver, vontade de provar todos os frutos proibidos e fazer valer o tempo da espera, vejo essa tão aterradora circunstância de ser-se livre, já não como anjo, ainda não como besta, simplesmente como homem.»

Sobraram simplesmente leituras, por vezes emocionantes (disponíveis na rede apesar das nossas vontades, mas que fazer?), do próprio poeta e convidados. E depois os comentários de uma sala cheia, a fazer acreditar que se pode despertar do sono silencioso do esquecimento.

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Partilhamos a banca, na Feira do Livro, com a Livros no Meio. Ora muito por causa da poesia, mas também por se configurar como metáfora (voadora) da relação de Portugal com a China, ou o Oriente e a tradição, de modo mais genérico, escolhemos a nuvem. Pedimos ao Rui [Rasquinho], grande mestre no assunto, dos muitos lados dos vários continentes, para lhe costurar vestimenta. Fê-lo em tons justos de azul e branco (Propomos exemplar algures na página).

Horta Seca, Lisboa, 27 Maio

Parêntesis para questão curiosa que merecia mais tempo. Edições da abysmo surgiram à venda nas «lojas» de saldos que infestam as estações (de Metro e outras). Não sabendo quem autorizou ou de onde são oriundos esses fundos (de armazém, mas dilectos), questionámos a empresa que as revende, sem sombra de culpa. Uma primeira resposta, tintada pela mentira («foi só este exemplar e veio num lote», tendo nós conhecimento de muitos outros títulos), afirma ter «adquirido junto dos seus parceiros». E «prontos», mais não seria preciso. Mas vai ser, que quero saber que parceiros são esses, se foram roubados da distribuidora ou de uma qualquer outra proveniência, suspeita à partida nestas quantidades. Estes saldos em permanência, até podem surgir atraentes para o leitor comum, mas, a prazo, envenenam o trabalho do editor. O preço não pode ser o essencial neste ofício.

Feira do Livro, Lisboa, 29 Maio

A organizadora-mor inventou um desvio para quem se inscreveu por primeira vez. Somos o pavilhão E15 (devia-nos ter calhado o E13…), mesmo na fronteira dos corredores que sobem e descem. Achámos, por isso, que faria sentido acrescentar o logo abysmo desenhado pelo André [da Loba] e acrescentámo-lo a uma das paredes laterais. Nem quero saber da exacta razão, não ficou onde devia por interpretação das orientações, dos ventos, do baixo e do cima. Pousou em lugar incómodo uma gralha chamada dobradiça. Deram-se mais detalhes desgraçados, quando queríamos a perfeição e a leveza da nuvem. Razão tinha Li Bai: «Dormindo, as brancas nuvens são teu leito. / Se acordas, brancas nuvens são teu lar.»

Desconsolado, consigo puxar o renitente Carlos [Morais José] para um dos lugares que definem a cidade. Podia ser bordel, mas falo de alfarrábio. O Bernardo [Trindade] mostrou, com as mãos a subir a descer das estantes, que os melhores navios vão sendo de papel (pergaminho, por excepção). Houve ainda mais delicatessen, das que vencem tempo e a geografia.

5 Jun 2019

Imagens passando

Mymosa, Lisboa, 13 Maio

 

[dropcap]P[/dropcap]arece Primavera, mas os dias não sabem a projecto. E, no entanto, ei-los que aportam a este cais poroso e desabrido, instável. Clássico e original à vez, este de que falo sem o nomear, deixa-me entusiasmado. Enlevado, até. Uma obra completa das radicais, com tanto por descobrir, ainda incómoda e desafiante, um pensamento de fio de navalha. Cheira-me que surgirá novo abysmo escrito pela mão de autor redivivo. E na conversa lhana que lhe dá sequência, Deus aflora, a querer suscitar outros fôlegos, sempre adiados. A tristeza recolhe-se por umas horas e deixo-me tombar na noite. Sem consolo.

Casa da Cultura, Setúbal, 14 Maio

São uma mão, as vezes que me sento a apresentar, pouco antes, a Festa de Ilustração. Custa-me cada vez mais subir o degrau daquele palco. Este ano, dá-se atenção redobrada ao humor desenhado, com a Cristina [Sampaio] no papel de convidada, e um olhar sobre o famigerado Tignous, um dos tombados do «Charlie Hebdo», modesta homenagem quando os tempos mandam sinais de que a liberdade não foi, nem será, conquista definitiva. Os medos entranham-se. O autor clássico, Manuel Lapa, não escapará das leituras proto-censórias que procuram a todo o custo reescrever a História, antes mesmo de a entender, no conforto dos gabinetes das academias. Assim se incomodem a ir espreitar a exposição, desta vez prolongada Verão adentro, antes de começar o digladiar das bandeiras. Do muito para ver e ler e até ouvir, mal ficaria não destacar a sempiterna «Ilustração Portuguesa», mai-las suas centenas de imagens. «Reúnem-se aqui apenas por coincidirem no ano que passou? Ou algum nexo, um estilo, uma cor as pode reunir? São estrelas solitárias a comporem uma constelação. Mais do que iluminar a noite escura, brilham para nos mostrar de que somos feitos: poeira de luz. Muitas destas imagens fortes continuam a voar sob o radar da atenção. Quantos de nós se deitam de costas a mirar o firmamento? Não perdem, por isso, a capacidade de nos atrair. Pela dança estética das formas, pelo que dizem ou mostram, por parecerem pedaços partidos de espelho. Parte de nós encontra-se aqui, estilhaçada. Vale muito a pena perdermo-nos à nossa procura.»

Casa da Música, Óbidos, 16 Maio

Por um triz não me vejo obrigado a deixar Lisboa sem o livro, que chega segundos antes da minha boleia se fazer à estrada. Óbidos recebe-nos chuvosa e fria. Acabo a montagem mesmo em cima da abertura do Latitudes, que mistura «Literatura e Viajantes». Demoro-me sempre mais do que devia nas imagens deste «Atrito», do André [Carrilho]. Viajo da maneira mais confortável, através dos olhos e das palavras dos outros. Não será o mesmo, mas quantos conheço que se fartam de andar pelo mundo estragando tanto para trazerem tão pouco? Não se aplica a regra a este andarilho, que anuncia parar com tais aguarelas nascidas no sítio em que o tocam. Não me canso de o sublinhar, acompanhadas depois por textos saborosíssimos. Quase não tive tempo de lamber a cria, a nossa primeira em off set digital, mas estou satisfeito, com a velocidade de produção, claro, mas sobretudo com o resultado vívido, que me permite multiplicar as horas vendo a alma de Macau, espelhada nos emaranhados de linhas ou nos cruzamentos de luz e velocidade (algures na página). Vou ali dar uma saltada a Shenzhen.

«A China moderna ultrapassa todas as expectativas e ri-se das nossas ideias preconcebidas. Quer que a conheçamos, e gentilmente nos estende a mão para uma viagem guiada. Uma viagem que é também o pretexto para conhecer visitantes e os mundos de onde vêm, do outro lado da muralha. Mundos que, à falta de melhor, estão representados nos mitos dos filmes de Hollywood e das grandes obras literárias. Ou, ainda melhor, estão ali ao lado num parque de diversões, espraiado debaixo da minha varanda de hotel.

O Windows of the World é a última etapa da estadia, obrigatória, e não desilude. É um gigantesco campo de percepção distorcida e, obviamente, diz tanto do Ocidente aos chineses que o visitam, como revela aos visitantes estrangeiros a ficção que a China tem do resto do mundo. (…) Mais adiante outra pequena ilha aloja o Capitólio de Washington, completa com uma multidão em miniatura que a visita e tira fotos. E eu tiro fotos também às miniaturas de turistas que tiram fotos às réplicas de monumentos americanos transplantados de uma fantasia chinesa. Mais adiante estão as Pirâmides do Egipto, mesmo ao lado da Esfinge de Gizé, e o respeito que lhes é dado é evidente, pela área desafogada que ocupam, à laia de deserto. Faz sentido, uma vez que provavelmente são as atracções cujos originais mais poderiam rivalizar com o que a civilização chinesa produziu ao longo de cinco séculos. (…) Acabamos o último dia em Shenzhen a rir das representações que a China faz do que vê à distância e que só podem ser em miniatura. E levamos connosco a suspeita de que o Império do Meio poderá um dia meter o Ocidente no bolso.»

Casa Saramago, Óbidos, 17 Maio

Não foi à primeira, como se o poeta se quisesse ficar pelo traço desenhado com as palavras do Carlos [Morais José], que tentou substituir o projector em panne. Um dia depois, lá se conseguiu ver «Pe San Le – O Poeta de Macau», da Rosa [Coutinho Cabral], com sucessivas aproximações a Pessanha através das reflexões e da omnipresença do Carlos, no papel de entendido e dilecto apaixonado. «Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para nunca mais!…» São hipnóticos os longos travellings que vão sugerindo uma Macau de outros tempos, ainda que fixada no âmbar dos gestos de hoje.

Livraria Santiago, Óbidos, 17 Maio
Não foram muitos os que ouviram o José Luiz [Tavares] dissertar acerca do lugar em que se encontra, entre línguas, a portuguesa, que maneja como poucos, e o crioulo materno. Temo que esteja condenado a esta ponte sobre um nada tão substancial, que percorreu agora em insuspeitadas direcções com estes fados, litanias, toadas, lengalengas e sarabandas, algumas que nos entram carne dentro. Ou dela partem. (Bem que tentámos preservar uns quantos mais afoitos, mas a guilhotina, não só não o permitiu como acabou atraindo a atenção para o que se queria recatado.) Nem a «Arder A Vida Inteira» se livra o poeta da sua sombra maior: Camões.

Artes e Letras, Óbidos, 18 Maio
Continua chuvosa a manhã, pelo que postámos as velhas carcaças, a do Luís [Gomes] e a deste vosso criado, nos famosíssimos cadeirões de contemplar prateleiras jamais virgens. Não sem antes dar saltada a uma África gravada há muito no olhar de exploradores holandeses, papel que se desfaz, volume que fala. Folgo em ver assentar esta irrequieta livraria, pejada de memórias vivas, finalmente protegida por muradas.

Casa Saramago, Óbidos, 18 Maio
É de vida feito, este «Anastasis», percurso sinuoso do Carlos [Morais José] por entre ruínas e textos, ajaezado agora com capa vítima da espontaneidade do traço livre do Rui [Garrido]. O copo que se derruba quer apenas dizer que a conversa está a meio. Há ainda a última história, pensamento que se esconde no verso, um reconhecimento por fazer. A poesia que aqui se apresenta de peito feito, desafiante, diz de quem preza tanto a casa que não consegue parar de partir.

29 Mai 2019

Ainda não acabei

Santa Bárbara, Lisboa, 1 Maio

[dropcap]T[/dropcap]rouxe-o comigo do lançamento d’ A Imortal da Graça, que as livrarias cobram-me sempre portagem. Por coincidência, as governam as boas vidas, vi depois anunciada a tradução deste «Sabrina», de um desconhecido Nick Drnaso (ed. Granta). Aliás, o meu desconhecimento do que se vai fazendo hoje na banda desenhada alastra, tristeza tão minha, como nódoa de petróleo. Esta notável novela gráfica, na linhagem do minimalismo de Chris Ware, diz-nos do presente andando sobre vidro partido. Com golpes narrativos de certeira subtileza, entramos de mansinho na vida das personagens, sem muito aprofundar, uma quase banalidade, todavia poética. As solidões só na aparência se tocam, limitam-se a conviver. Apesar do drama. A vida faz-se toda presa nas redes, sendo a opinião dos outros, talvez próximos, apenas mais um fio.

Somos fantasmas, figuras de papel à mercê de vandalismos vários: recortes, recomposições, rasgões, furos, amarrotamentos. Apenas brincadeiras. Apenas para que meter cada figurinha, nós, mas desatados, na fábula infantilóide de determinada perspectiva de mundo. Perturbador, com dose de intensidade e mistério que fere. Tive, algures, crónica onde defendia que os livros só nos tocam se lidos no momento exacto. Eis um caso.

Horta Seca, Lisboa, 4 Maio

Andávamos para o fazer há meses. Coincidindo com momento que pedia serenidade, recebemos o Mû [Mbana] para dedilhar cordas que prendem destinos. Convocou a Sandra [Martins] e o José [Anjos], além de outros amigos, que com ele cantaram, disseram, tocaram. Acolher um pedaço da Guiné-Bissau nesta casa invoca raízes e tempos que me parecem de outras vidas, não sendo, vejo agora. Nada tocando, para amarga e íntima tristeza, navego estas frustres articulações separadas por vírgulas. Por vezes, a busca de mudança significa meter as mãos na terra. Toquei em África raízes impressionantes. Sentia-lhes uma pulsação que logo rimava com coração e pulmão e o resto do corpo que lhes obedece, às vezes. A voz de Mû desenhada com os dedos nas cordas constrói centro, um nó de origens e tempos e histórias e vertigens, entretecendo tapete de possibilidades que são de transcendência. Estamos p’ra aqui em busca do rasgo no quotidiano, que permita a entrada da luz, que abra a própria luz e feche o seu núcleo em âmbar, em raiz de cola. Desatentos, custa-nos perceber que os diamantes estão onde menos o esperamos. Hoje, na horta seca, estendeu-se um chão possível.

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio

A dedicatória deste «Vida Nova» (ed. Turbina) contém os desejos de uma vida boa. Entre nova e boa, hesito. Melhorou qualquer coisa ouvindo este regressado Manel [Cruz], que não é apenas álbum, mas excelso volume de capa branca e amiga do toque, com título desalinhado e com corte. Sinais que se prolongam em série de pinturas do artista, letras inscritas em texturas ricas e variadas, sortido fino da ruína. (Exemplo algures na página). Este lugar faz-se de tessituras sem fim, ligando a letra à pele, o verso ao som, a crueza ao ritmo. Acresce a pujança das canções, feridas e irónicas, cansadas apesar de enérgicas, quase todas grito. Melancólico? O manifesto começa em tom confessional, o artista à procura de gesto que o traga ao momento, contra o tempo e a favor da infância, homem de novo a inventar-se em outra vida. Pode haver outro tema?

O cabaret de fim de século, adolescente como tudo o que renasce, abre a porta para deixar entrar corrente de ar de inteligência e ironia. E perda, como convém. Sento-me. «Eu desta vez vou conseguir/ Desta vez vou largar/ Eu não estou farto, eu cansei-me/ De que apenas parece/ Eu não sei se eu sou forte/ Só que tenho este grito/ Não contem comigo». Oiço uma e outra vez. E outra, sem pensar muito no nó dos sentidos. Vou ali passar as mãos nas paredes, em certa casa de Sintra, longe, tão longe, no tempo. «Desta vez eu desisto// De lutar contra a merda/ Eu sou feito de perda/ É mais do que um desabafo/ É uma voz que desperta/ Um consolo de abutre/ No direito à vivência/ Do pacote completo/

Não lamento palavras/ São o meu alimento». Lamento muito. Muito, mas. «Porque não pões um fim nessa vida sofrida?/ A resposta tem graça/ É que eu adoro esta vida!» esta vida sofrida tem graça. «Ainda não acabei!/ Vamos embora chorar, vamos embora sorrir/ Vamos embora sair, vamos embora ficar/ Vamos embora cair, vamos embora voltar/ Vamos embora ou não, são tudo coisas do chão».

Horta Seca, Lisboa, 9 Maio

Despois de «Anastasis», lanço, em breve, «Anastática». Pura coincidência, juro, fácil de comprovar nos longos atrasos a que me submeto. Imagino agora a confusão que fará na distribuidora, nas livrarias, nos incautos. Pelo inusitado dos vocábulos, arranhando a incompreensão dos poucos que não sabem googlar, e pelo inesperado dos que, visitando dicionários e memórias, descobrirão modos de renascer. Assim saiba eu ler o que ambos contêm de explosivo saber, sentido, sonho.

Horta Seca, Lisboa, 12 Maio

Em pleno caos e desatino, estou à mesa com Tóssan, o dos desenhos, sim, mas sobretudo o das palavras. Estou p’ra ver em papel o que, por enquanto, só brilha nos ecrãs: visões e revisões de três generosos volumes em caixa, casa de acolher uma daquelas obras que tendem a viajar sob os radares. E noto: «Desengane-se quem espere encontrar apenas motivo de riso. Anda por aqui «um algeiroz sofrendo da telha», a morte apresentando-se nas suas vestes de tédio, o tempo a discorrer, um olhar parado, perdido na linha de um qualquer horizonte. Estamos em pleno território do nonsense, esta ideia de que na arrumação dos dias, algo se desalinha. Algo animal que despenteia, até os dentes do pente. A máquina que nos faz avançar outra não é se não o trocadilho, esse modo de tornar elástica a língua, de a atirar a paisagens outras, de fornecer uma interpretação diversa. Está mais transparente nos poemas, ainda que os contos também se deixem contaminar por este olhar penetrante que entra nas palavras para nelas descobrir outras por pura convivência, com a conivência dos sons, mais o que perdura de uns nos outros.»

Se aqui o absurdo vira refrigério, ali somos parados por um verso, uma agudeza lógica, uma quase melancolia. «É no tempo que passa/ que recordamos o tempo que passa./ E é neste encontro que vamos/ criar saudade do reencontro.// A fome come o homem/ a ambição também o come/ como um abraço optimista/ a repetir o nome./ É como fazer as coisas/ sem as ter feito/ de emoção a emoção/ caminha no presente/ mas o futuro é solidão.» Na solidão do meu presente, procuro a custo devorar a fome que me come.

22 Mai 2019

O lugar de que sou é estar aqui

Rivoli, Porto, 10 de Abril

[dropcap]V[/dropcap]iagem -relâmpago para outra manifestação em torno das «Constituições» atribuídas a Aristóteles, na versão do António [de Castro Caeiro]. O Rui [Spranger] emprestou a voz cava para dar corpo aos fragmentos e José Meirinhos propôs um detalhado e muito cuidado enquadramento do percurso destes textos até chegarem à mão do tradutor, que, como bem assinalou, atreve-se a contribuir com inúmeros neologismos. A nossa língua não tinha ainda acomodado medidas e moedas e demais peças de um quotidiano perdido no tempo (e na fantasia). Pena terem sido poucos os que se atreveram à viagem.

CCB, Lisboa, 11 de Abril

Poucos conseguem falar de livros como o Jorge [Silva Melo]. Há um saber que se esconde nas calorosas definições das personagens, no respigar do detalhe biográfico do autor que interessa para estender da história como toalha tombando sobre a mesa. Falou-se de teatro, e muito, neste Obra Aberta. E de língua, que o Duarte [Azinheira] trouxe como pretexto um utilíssimo «Novo Atlas da Língua Portuguesa», de José Paulo Esperança, Luís Reto e Fernando Luís Machado (ed. INCM).

Casa da Cultura, Setúbal, 12 de Abril

Acaba sempre sendo viagem, a conversa desta «Filosofia a Pés Juntos». Lá fomos às raízes para perceber que a alma ensopa o corpo e que demorámos séculos até perceber de que massa somos feitos. O órgão do tempo demorou a descobrir o coração como centro. Até então, o esterno era o lugar da consciência de si: quando apontamos para nós próprios, o cerne fica mesmo ali. Depois, em fundo de boca, fica-me o sentido de sarcófago como comedor de carne.

Povo, Lisboa, 15 de Abril

Sessão marcada por avarias e desencontros, esta dedicada à poesia de José-Emílio Nelson, que terá para mim sempre o caracter de «Beleza Tocada», de fruto que o toque encaminha para a maturação, talvez o apodrecimento. O Henrique de-tantos-nomes Fialho ficou na estrada, traído pelo motor. O Filipe [de Homem Fonseca] foi travado e não podemos ver as suas mãos dançar no ar que o teremim respira. Mas o Pedro [Proença] desenhou com a voz, a Rita [Taborda Duarte] abriu caminhos, que o Luís [Carmelo] e eu seguimos diligentemente. Mas esta poesia é ruim de se dizer, despega-se dos olhos, faz-se agreste e desassossegada, com ela todo o caminho se faz sobre gelo fino. Peculiar, portanto, o encontro.

Coura, sem paredes, 26 de Abril

De súbito, na esplanada, talvez em resposta ao Trakl que o António [de Castro Caeiro] acabava de ler, o Miguel [Martins] diz de cor o «soneto presente», do Ary dos Santos. Na rua onde pulsa o coração desta terra inscrevo na pele o meu hino para estes dias. «Não me digam mais nada senão morro/ aqui neste lugar dentro de mim/ a terra de onde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui.// Não me digam mais nada senão falo/ e eu não posso dizer eu estou de pé./ De pé como um poeta ou um cavalo/ de pé como quem deve estar quem é.// Aqui ninguém me diz quando me vendo/ a não ser os que eu amo os que eu entendo/ os que podem ser tanto como eu.// Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/ a força do lugar que for o meu.» As gaiolas também se rasgam, grita o cartaz do «REALIZAR:poesia» (algures na página), assinado pelo António Pinto.

Biblioteca Aquilino Ribeiro, Coura, 27 de Abril

Por agora, uma certa ideia totalitária de cânone enquanto regulador do gosto vai fazendo escola, suscitando aqui e ali boas traduções, mas acompanhado de retóricas castigadoras, sem se afastar de miserável proselitismo. O momento, portanto, não será o melhor para entender que alguns livros possam nascer de gestos de amor, na crença de que o humano possui grandeza única. E que merece ser celebrada. O António Cabrita e o Miguel [Martins] escolheram guiar-nos através da esparsa produção do Levi [Condinho] com este «Pequeno Roteiro Cego». Trata-se de um tributo afectivo, um reconhecimento da importância que o autor teve no concreto de algumas vidas, tornando-se ainda testemunho de um certo tempo. A poesia ilumina e muito para além desta circunstância, apesar da tocante simplicidade que parece praticar. E depois Levi Condinho trata deus por tu, chama-o para inúmeras conversas, de braço dado, de olhos nos olhos. O autor não quis subir, não se dá com viagens, mas foi devidamente descrito enquanto paisagem pelo Miguel. Por causa da música que soa ininterruptamente em pano de fundo, a Luísa [Pires Barreto] glosou na capa um certo modo das cores se arrumarem para dizer jazz, como foi com certas editoras que, no seu tempo, não recusaram esta luxúria.

«A sensibilidade do miolo miúdo do poema/ não concebe o grito do pregador/ nem o sarcasmo dos castrados da intempérie// o homem vai no transporte da sua vida/ e a escrita faz-se no andar do transporte/ quem entende apenas o exterior parado/ nada vê – por isso o abandono é tanto// e o pudor de uma flor discreta comove/ como o grito das aves na montanha árida// voltar ao grito e ao silêncio/ mas não da forma tão visível como quereis/ eis a ciência do azul de dentro// canto/ mas os cães mijam/ nos postes de silêncio/ do meu canto.»

Retiro do Taboão, Coura, 28 de Abril

O sol esbatia, impiedoso, cada contorno. O rio parecia quedo, concentrado na tarefa de espelhar o céu. Os carvalhos receberam as palavras com soberana indiferença. E, no entanto, os versos de Georg Trakl, vertido pelo António para o cadinho do português, parecem resultar de golpes de canivete em um qualquer tronco. Lá nos explicámos o melhor que pudemos este volume de «Poemas», mas foram sobretudo as leituras em voz alta que me parece que impuseram uns laivos de magia. Não vejo melhor lugar para fazer soar esta melancolia escaldante, este «Sussurro ao Meio Dia». «Sol outonal, delgado e hesitante,/ E a fruta cai das árvores./ O silêncio habita espaços azuis,/ Onde um meio-dia se alonga.// Sons de metal, de moribundos;/ E um animal branco precipita-se./ Canções roucas de meninas morenas/ São levadas como as folhas em queda.// De Deus, a fronte sonha cores,/ Adivinha as suaves asas da loucura./ Sombras movem-se na colina,/ Envolvidas pelo negro da podridão.// Crepúsculo sereno cheio de vinho;/ Fluem tristes as guitarras./ E tu entras na terna lâmpada/ Como se de um sonho te tratasses.» Indistinto na folhagem pareceu-me ver o autor tal qual aparece, tão bem apanhado pelo Manuel [San Payo], na capa. Mantinha o corpo trocado pelo sobretudo de traços, de vestígios. E pareceu-me sorrir, mas ao longe podia ser apenas um esgar.

Algures entre Coura e Braga, 28 de Abril

Esta estrada sinuosa presta-se a devaneios meditabundos. À ida, tive por companhia uma série magnífica de nuvens a pintalgar um azul de espanto. Na descida, o assunto foram árvores, sobretudo os carvalhos e as oliveiras. Anda por aqui uma estranha moda de podar as oliveiras arredondando-as e achatando-as que nem pneu. Mas o que tenho que registar (para prova futura) é a revelação desta espécie que me era desconhecida: limão caviar. O fruto contém pequenas nuvens.

8 Mai 2019

País sem vestígios

Rua Cor-de-Rosa, Lisboa, 8 de Abril

[dropcap]J[/dropcap]á vos tinha dito que as segundas-feiras se tornaram abomináveis? Perseguido pelos mastins das delongas, a semana começa com setas de todas as direcções possíveis mais as que se inventam no momento. E tudo concorre com este alinhavar dos dias, pingue-pingando para a última das horas. O primeiro acaba anunciando a semana que se desfaz, na mão em corrida de obstáculos. Prestes a chegar ao «Povo», para outra sessão de leituras em torno da colecção «Mão Dita», que acabou revelando-se saborosa e intensa, o telemóvel doía-me no bolso de tanto vibrar. Era, avisos de ser «taobua de tiro ao álvaro» em uma delicodoce cena do ódio, assinada por super-herói de saia justa se vangloria da mui nobre arte de espatifar supostas porcelanas, João Pedro George, sobrinho-bisneto do 1.º Visconde de Avelar e 1.º Conde de Avelar – segundo investigação na wikipédia que me deu um trabalhão.

Ora o que diz sua excelência, em douto «ensaio», assim chamado para se livrar ao contraditório, dispensável para o suposto jornalismo que a «Sábado» pratica. «Sim sim tem aqui bela coisa que bela coisa tem aqui» (aspas, ver abaixo). O enorme «investigador» foi, com cansativa dificuldade e resiliência, vitimiza-se o putativo herói, a distintas plataformas abertas ao público, do Diário da República à dos contratos públicos online, para levantar um conjunto de contratos que fui fazendo ao longo de vinte anos com câmaras ou entidades supostamente ligadas aos socialistas e ao António [Mega Ferreira]. Exclui todas as outras, de distintos quadrantes políticos, da monarquia ao comunismo, da Presidência da República ao Jardim Botânico da Universidade do Porto, que pudessem afectar a lógica narrativa, que de uma história de adormecer se trata. Põe tudo no mesmo saco, claro, projectos de dimensão e alcance variáveis, envolvendo mais ou menos participantes, assessorias concretas ou colaborações. Mais: se foram propostas ou convites. Em nenhum momento, lhe interessa investigar se alguma coisa ficou por cumprir, se sombra de sombra ou mijo de gato tombou sobre a gestão de cada uma das ideias postas em movimento.

Não, basta discorrer a demagogia dos valores e o uso das alarvidades do costume para o efeito: «empochar», «deitou a correr, dirigiu-se saltitante», etc. Aliás, o mais insidioso, que me obriga a defesa frustre perante ataque soez, é o sobrinho-bisneto não afirmar nada. Insinua, com a elegância do «elefante no nenúfar» (aspas, ver abaixo). As páginas da revista abrem para se tornar tribunal de série televisiva mediana, mas muito dramática, de apelo ao mais básico. Reparem que, ao contrário de qualquer prática deontológica, juiz e o advogado desapareceram, para entregar por completo o pôr-do-sol ao procurador-inquisidor que nem precisa apresentar prova alguma, apenas valores, maravedis, contado, dinheirinho de fazer salivar. Agora o projector cega-nos, recortando a figura do dono da justiça, a denotar torrencialmente para que o júri possa. O júri, quer dizer, os leitores. Julgar?, leia-se, condenar sem apelo nem agravo. O temível «investigador», sempre louvado pela coragem, não teve tomates para afirmar nada pelo qual pudesse ser responsabilizado. Só sugere, em nome da liberdade de putativa imprensa. As ligações à maçonaria, por exemplo, que botam sempre picante na grande caldeirada das teorias da conspiração, resultam de artigo do vizinho «Correio da Manhã», ia lá o visconde sujar as mãos…

Até na crónica anterior (primeira de quatro), no momento mais abjecto, ao falar das ameaças que vencerá com enorme sacrifício, ainda que isso ponha em risco a criação das filhas, fá-lo entre aspas. Alguém lhe disse, não foi ele. Insisto, de investigação jornalística (ou outra) a prosa nada tem, só manhosice. Para não maçar, veja-se a asneira de dizer que António Lamas sucedeu a Mega Ferreira. Mas há mais mentiras, incorrecções, torções na verdade, como se fosse esse o objecto, sendo mero ensaio. Deu-lhe sopro de ideia e vai de a borrar no papel. Com a máxima a liberdade de enlamear, por ser essa a sua pulsão, que outra. Diz ele, com extrema correcção e maior indignação: «o mártir da Abysmo e da Arranha-Céus, que tem mister de recorrer a parcerias com o El Corte Inglês, a INCM, a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, etc., para publicar quase todos os livros do seu catálogo, é a encarnação do ideal de editor independente, que compromete o seu conforto e segurança em nome da formação cultural do país.» Lá está, o «investigador» nem sabe contar. Nos mais de 140 títulos que publicámos, se 10% resultarem de parcerias é muito, sendo que fica por explicar as diferenças, que nem tudo se resume a dinheiro, nem todos os logótipos. Talvez seja a única afirmação-acusação, logo falsa, por azar. Custa, ao rapaz, que eu seja mesmo editor independente. Agasta-o não ter pedido licença. Prova o contrário as edições apoiadas? Será que aquelas por si organizadas e devidamente apoiadas, as fez sem remuneração? Nos puros, sabemo-lo de outros quintais, a superioridade está na limpeza com que deixaram de evacuar. Tanto faz. Nada aqui carece de prova, o supremo tribunal das redes sociais já me condenou pelo crime capital da minha vida estar indelével e cabalmente ligado ao António Mega Ferreira, com o apoio activo do Duarte Azinheira, e as costas quentes do Partido Socialista sem esquecer a Maçonaria. Tenho como pior a «acusação de mau carácter», na vez desta terrível de ser, à vez e conforme as circunstâncias, extremista de esquerda, anarquista, adepto da teologia da libertação ou do Opus Dei. Decidam-se, por amor de Deus! Não me sinto lá muito bem, de nenhum ponto de vista, muito menos financeiro, mas não conto desviar-me muito do caminho feito. Até pelo orgulho nos projectos que partilhei com o António, sobretudo, o de ser um dos editores do seu português límpido, ao serviço de pensamento desabrido e curioso, hedonista e libertário. Sim, libertário significa isso mesmo: construir as montanhas de onde se respira ou vislumbram horizontes. E, de súbito, no meu país e em meio que, supostamente, pensa, a ideia de ser do contra tornou-se valor máximo. Erguemos bandeiras sem ler, sem interpretar, só por ser contra, mesmo uma parede, sem razão nem sentido. Embora lá e de cabeça, que não serve só para pensar!

Ao contrário dos santos adorados pela nova inquisição, que pagaram na pele o preço do dito e do feito, mais abjecta resulta esta manhosa impunidade. E em pasquim dirigido por alguém que, antanho, achei ser jornalista e ter noções de deontologia. Que a vergonha te seja leve, Eduardo Dâmaso! Não tenho filhos, mas tive pais e avôs e quem não se sente não é filho de boa gente. O debate pode continuar em outras sedes, com variegados modos de responsabilizar a leviandade da calúnia. Citando amigo querido, «a honra ainda é um valor e ainda há juízes em Berlim».

A propósito. Admiro o facto de o vigilante ter colocado em perigo o bem-estar das filhas por tão sanitária sanha (ou saga, ainda não sei bem). Como sou, além de independente, um romântico, acredito que estas leituras maldosas e tristes do mundo não fornecem alegria a ninguém, nem ao próprio, dobrado sobre si, ligado ao saco de fel na vez de soro, nem aos restantes, pela queima de oxigénio. Fiquei, portanto, com alguma compaixão pelas crianças que não escolheram conviver com gente desta cujas janelas dão apenas para o nevoeiro.

Mando beijo, com dedo de permeio.

A vizinha, Lisboa, 9 de Abril

Primeira intervenção do lado de lá da mesa, no «Inventário Possível», projéctil dos manos José [Romão] e Valério [Anjos], ainda por cima de Beckett e tendo por parceiro aceso de velório, o Nuno [Miguel Guedes], cuja quântica da vida reaproximou os nossos buracos negros. Antes do momento, de que já tenho saudades, uma delas o violoncelo rasgante da Sandra [Martins], o Tiago [Fezas Vital] pediu que posasse para projecto seu.

Revejo-me na ferida e no gesto. Piegas, comovo-me com o divertimento que erguemos, apesar de não ter sido servido com whiskey. De propósito, traduzi poema que me atapetou depois estes dias. Vede, sem há coincidências.

«om bom é um país/ onde o esquecimento onde pesa o esquecimento/ com suavidade nos mundos sem nome/ ei-la a cabeça que sustentamos a cabeça fica muda/ e sabemos que não não sabemos nada/ o canto das bocas mortas morre/ sobre as praias de gravilha fez a viagem/ nada há por que chorar// a minha solidão conheço-a vá conheço-a mal/ tenho tempo é o que me digo tenho tempo/ mas que tempo osso faminto o tempo do cão/ do céu empalidecendo sem parar meu quinhão de céu/ raio que sobe as cataratas tremelicando/ mícrones de anos tenebrosos// vocês querem que vá de A a B não posso/ não posso sair estou em um país sem vestígios/ sim sim tem aqui uma bela coisa que bela coisa tem aqui/ o que é que foi não me faça mais perguntas/ espiral poeira de instantes o que quer que seja dá no mesmo/ a calma o amor o ódio a calma a calma”.

17 Abr 2019