Que me diz o corpo? Cai.

Fora de Lisboa, 24 de Março

 

[dropcap]A[/dropcap] notícia apanha-me fora da cidade, fora de mim. Andávamos a arranhar céus, por causa de uma ideia, é sempre assim, mas agora não sei, Manuel [Graça Dias]: desapeteceu-me.

Hei-de dar umas voltas, para ganhar coragem de arrumar o irresolvido. Quem, como tu, viu na cidade um corpo vivo, fulgurante e contemporâneo a cada instante? Ninguém, como tu, defendia o direito de cada um, sem restrição de gosto ou proveniência, a fazer a sua casa, a sua cidade. A riscar, arriscando. A construir com ruínas, a erguer em circunvoluções, vasculhando noas catálogos do disponível, sem perder a hipótese do sonhado. Lembro agora que falámos muito de janelas. Hei-de dar umas voltas, de pernas para o ar.

Almirante Reis, Lisboa, 28 de Março

Deixei-me alhear. A cena estava destinada a durar poucos minutos naquele aquário com uma única parede de vidro, a porta abrindo sobre azáfama de papéis, em murmúrio de irrequietude, prestes a sossegarem em um quase nada absolutamente determinante. A leitura em voz alta e borracha na mão despejava em ladainha dados objectivos, moradas, lugares de nascimento, portanto datas. Definitivos que nem lâminas, se excluirmos os nomes. Os nomes completos não se limitam ao real, trazem primeiro o próprio, e logo dele evocação, perfume, um eco; seguem-se os apelidos revelando raízes, as serras e os rios onde germinaram os pais dos pais, quando uns ainda eram filhos e não sonhavam ser pais. Os apelidos são paisagens que nos atravessam. Movimento, só passada a fronteira de vidro. Os corpos aqui fizeram-se estátuas sentadas, recebendo a chuva a conta-gotas da voz verificando o que precisava ficar escrito para que a vida dos apelidos cruzados prosseguisse depois da morte. Estava quase como devia, a emenda fez-se para justificar o aparato do absurdo formal. Sem precisar, pus os óculos e assinei. O carimbo fez ponto mais final. Ainda não sequei as lágrimas.

Santa Bárbara, Lisboa, 29 de Março

Corto [Maltese] fez corte à navalha na mão desenhada para prolongar destinos. Meio torto, resolvi alterar a leitura das rugas na testa com lanho longitudinal. Demorei a perceber que se trata de acentuar as coordenadas. Lá diz José [Anjos]: «a mera consciência de si próprio/ ou do corpo/ não é mais do que uma tentativa,/ vã tentativa de estar parado / no que é imparável: a queda.»

Horta Seca, Lisboa, 2 de Abril

Valério [Romão] regressa de mais uma incursão europeia trazendo na bagagem dois contos vertidos para castelhano, italiano, neerlandês e romeno, no âmbito do projecto CELA (Connecting Emerging Literary Artists), projecto a dar atenção aos emergentes, escritores e tradutores. Isto além da participação na delegação portuguesa à Feira do Livro de Leipzig. Parece satisfeito com ambas as experiências, mas não se lhe arranca relatório minucioso assim à primeira.

Anda embrenhado em traduções e junta-se logo ao colossal coro de cobradores das minhas crónicas tardanças: «já trataste da autorização?» Nada me castiga mais que a papelada. Ainda nem abri o documento com as vendas do mês passado. A derrapagem parece ser a minha maneira de caminhar.

Campos Trindade, Lisboa, 3 de Abril

Nas poucas vezes que não fizemos o tradicional lançamento, por vontade do autor ou outro contratempo, sobrou-nos um estranho gosto da incompletude. Algo parece faltar no longo ciclo de construção do livro sem este ponto de exclamação. Contudo, uma avaliação rigorosa, subtraindo o que se investiu em tempo, recursos e incómodos aos parcos resultados, justifica a dúvida: valerá a pena? Até que acontecem destes, o de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça», do mano José [Anjos]. Falo do intangível, claro: o ambiente. E para melhor explicar, dissequemos, rezando para que o Frankenstein seja, ao menos, terno na sua disformidade.

O lugar do crime, de vizinhança que se quer crescente, possui o perfume das raras possibilidades.

O Bernardo [Trindade] acendeu a luz da sala de estar, que sabe ser o epicentro de encontros insuspeitos. A Graça [Ezequiel], com foto na página, em versão antes da noite cair, ajuda a dar ideia. A generosidade da Quinta do Gradil, pela mão gentil da Ana [Matias], dispôs saborosas boas-vindas em formato viosinho, no branco, e cabernet sauvignon com tinta roriz, para o tinto.

Entre muitos amigos, chegados ou dos de partir, estavam a querida Luísa [Pires Barreto], que desenhou o objecto, cuja capa nasce de uma tela onde o Gil Madeira pôs o Anjos a procurar o feminino por entre luz e espelho e manuscritos. O Gil oferece, ainda, o nosso primeiro logótipo em círculo, dança doida de linhas sinuosas. O Marcello [Urgeghe] rodou sobre si sob o lustre para sussurrar leituras comovidas. E o João [Morais] encheu o espaço que já não havia com a sua campaniça, insuflando oxigénio. O autor, tão amante da queda, levitava, talvez por sentir que as páginas se cumpriam nas mãos e nos olhares, enfim, chegavam algures, a uma estação primeira (à maneira de O Gajo). O Gui sublinhou passagens, sem surpresa, sentindo-se com exemplar naturalidade em casa.

Ademais só mesmo a calorosa interpretação cantada pela Ana Teresa [Sanganha], que liga o seu gosto pela poesia à psicanálise, «que de gosto meu não se trata, mas sim de uma identidade». A leitura veio tintada pela amizade, como convém, mas revelou-se justa e cheia de alma.

«Digo complexidade porque, à medida que ia mergulhando nos poemas e dobrando as ondas do livro, percebia que não estava a conseguir dissociar as partes em que me tocava, da mesma maneira que não consigo dissociar corpo e mente. Mas pude perceber que memória, infância, amor e morte emergem com a subida das páginas e vivem, transversalmente, numa roda-viva de posições e justaposições. E, enquanto me desvendo através do Zé, penso que afinal só de quatro gotas se faz o oceano e que os mergulhos poderão ter só a profundidade destas quatro gotas: infância, memória, amor e morte… talvez arriscasse dizer que poderíamos retirar a infância e a memória, que das duas fala o amor e a morte, mas, como escreve o José, “são precisos dois olhos para focar/quatro para ficar”. São estas as Quatro Águas que matam a sede à humanidade e lhe dão a distância suficiente da boca do corpo até à terra.»

Ferin, Lisboa, 4 de Abril

Anuncia-se programa para a televisão pública em torno da música que nos fez mais portugueses. Pede-me o Pedro Castro depoimento matutino sobre o Sérgio [Godinho] e dispara logo a abrir um refrão de memória. A minha perdeu o pio. Sou homem do presente, sobretudo do indicativo, o que me perturba e irrita, fica escrito. Lembrei-me na atrapalhação do hoje que se quer primeiro dia para lançar novo sopro no resto a vir. Veio-me depois à boca o grão da mesma mó, «não sei se estão a ver aqueles dias/ Em que não acontece nada sem ser o que aconteceu e o que não aconteceu/ E do nada há uma luz que se acende/ Não se sabe se vem de fora ou se vem de dentro/ Apareceu». Está visto que o meu tempo continua à espera de suceder. E não ocorreria da mesma maneira sem o SG [gigante].

Biblioteca da Imprensa Nacional, Lisboa, 5 de Abril

Lá está, lançamento: «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», de Mariana Viana, com a vetusta a dizer que está atenta aos cânones agitados apesar dessa camisa-de-forças onde a querem fechar, mas que não abdicam nunca de atacar a jugular, a que sangra, não a cegueira das minudências do artesanato do ódio. Ele há diferenças, podemos fazer degraus sem pensar em cânone, subindo ou descendo. Esta sala faz-se lugar perfeito para este desdobrável, em cada uma das direcções de todos os ventos. Entre a terra e o céu, umas varandas sem acesso, disponibilizam livros a quem saiba sobrar o varandim, folhear a geografia, saber o caminho dos degraus de água.

10 Abr 2019

Como um garfo

Povo, Lisboa, 18 Março

 

[dropcap]”Á[/dropcap]gua, água a toda a volta / e as pranchas a encolher; / Água, água a toda a volta, / E nem gota para beber. // O oceano apodrecia: / Meu Deus, meu Deus e que isto se haja podido passar! /Viam-se ali rastejar seres de lama com patas/ Por sobre a lama do mar!» A noite abriu-se com A Balada do Velho Marinheiro, épico setecentista de Samuel Taylor Coleridge, lido de enfiada pelos marujos Jaime [Rocha], [José] Anjos, Luís & Luís [Carmelo Gouveia Monteiro], com apoio de amurada do violino de Francisco Ramos. Navegou-se a versão de Alberto Pimenta, recriando pela voz as paisagens negras, as tempestades interiores, as fantasias de horror que resultam da morte descuidada de um albatroz. Sonharei com mil metáforas, vicejando no charco do tédio, enquanto a nave-cemitério desliza.

Mymosa, Lisboa, 19 Março

Apesar do ruído de fundo, a conversa com o Levi [Condinho] possui condão musical. Aparte a agenda do que se vai tocando, nas salas-praças como nos becos recônditos, discorre ainda com qualquer coisa de cidade. Um lugar erguido sobre espantosa memória. Andamos às voltas com «Pequeno Roteiro Cego», a antologia que o Miguel Martins e o António Cabrita lhe dedicaram, e por isso mesmo o assunto dificilmente seria outro que as múltiplas vidas, a minimal repetitiva ou a atonal, a aleatória ou apenas clássica. «vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento/ para que o mundo saiba que a redenção dos astros/ passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos/ as portas de Deus». Ao que parece, foi a música que fez trocar o seminário pelo mundo. Mas por onde anda Deus, afinal?

Horta Seca, Lisboa, 20 Março

Por milhentas razões, uma deles o bafio de grémio ajuntando duas profissões que não possuem os mesmos interesses, fui resistindo. Até hoje. Recebi o cartão que diz ser o sócio 2733 (rasurado) da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Que auspício devo ler nesta gota de azeite tombando no alguidar?

Jardim da Parada, Lisboa, 21 Março

Carregamos caixotes, quase só poesia, para a barraca de madeira ainda com nódoas de queijo, talvez de enchidos ou mel, quem sabe. Desta, na Feira da Poesia da Casa Fernando Pessoa, não nos calhou em sorte a número 13. De tanto ouvir que a poesia está na moda, talvez comece a acreditar. Tomo nota das homenagens com que o país se engalana para saudar Sophia ou Sena, mais aquela que este. Vejo os fins de tarde nos cafés da cidade a encherem-se com leitores em voz alta. Nas sessões do Povo, há quem exija acaloradamente momentos open mic para aproximar os lábios do microfone. Depois, os festivais, os concursos, os simpósios, as polémicas. A questão emerge sempre a mesma: que sobrará desta espuma? O esforço de feira serve apenas para manter ténue ligação à terra, para que um ou outro leitor incauto possa ter os livritos à mão de semear.

Mymosa, Lisboa, 22 Março

Certas amizades entretecem-se em agitada tranquilidade. Pode cada um dispor na mesa a sua inquietação, a dúvida, o que resta do sofrido ou alegrado, a esperança e uma visão, ânsias, um texto ou afazer, gestos, por vezes até a crepitação de um deus fugidio. E memórias, sobretudo se assumirem o fulgor das de Agostinho Jardim Gonçalves, o viajante frenético. Certos encontros são, só por si, rota e destino.

Villa Portela, Leiria, 23 Março

A vista do vale pedia mais tempo de fruição. Abusámos, pelo que a descida às mãos do João [Nazário] atropelou minutos e paisagens e despenteou os tiles dos nomes que os tinham.

Acorríamos, no âmbito da «Ronda Poética», à primeira sessão pública em torno de «anastática/para Alberto Pimenta», antologia que ganha intensidade por força das circunstâncias.

Manuel Rodrigues aconteceu fazer-se grande leitor de Pimenta, que há muito fascinou Edgar [Pêra] que, na sequência do documentário que lhe dedicou, vai de escolher os poemas onde o Manuel mais se entregava ao diálogo com Alberto. Do triângulo nasceu o volume, com insuspeita unidade e abrindo para uma voz que merece outras a(tenções (não sendo gralha, o parêntesis). A linguagem, a palavra surge aqui na vez da carne da realidade, personagem principal neste coro de vozes, tantas vezes mudas, mumificadas, postas em pedra. Estamos em perda, bem o confirma qualquer diálogo com as tradições, com os mortos, com os mais vivos de nós. A palavra tem que desfazer-se navalha que rasgue sentidos. E isso faz o Manuel com a mais banal, a mais gasta pelo uso, que colocada cirurgicamente no poema nos obriga ao torção, a procurar novo rumo, a rodopiar para fora de todos os centros. A pontuação atípica respira uma asmática de esforço.

Muitos parêntesis se abrem para nenhum fecho visível. Assinalando pontos de encontro de origens distintas, confluências, esquinas. Como pétalas de uma rosa que resiste. «abre-se a janela/corre uma aura romântica/ através da cortina bicolor e/se fecha logo ( mas já entrou/ abre-se para que saia e/ penetra outra com pó/ moderno ( os germes/ vêm sempre já com nomes/ e uma equipa de especiais/ que lá fora provam o ar/ e o respiram para conclusões/talvez teóricas talvez piores/ que as anteriores/».

E depois há Pymenta, aquele que jamais conclui, como bem revela o imperdível, «O Homem-Pykante – diálogos com Pimenta». Afirma Manuel, fechando poema que tudo implica: «estás no meio e sabes que vais morrer ’/ por entre qualquer infinito/ cada ponto é eixo sendo seu central/ livre ou perdido ou orientado/ caindo sempre por dentro/ veículos de lenta transformação/ transporte mudanças e transacções/ na constante mesma certeza/ do inesperado eminente incógnita/ concomitante/ ao corpo trazido/ à potência do delírio …/para além dos seus limites/ ninguém mais vivo há que tu ’/ e sabes que vais a meio»

Arquivo, Leiria, 23 Março

Somos reincidentes, na triplicidade, mas com pretexto mais óbvio de lançamento. Mas agora caiu oficial, a «Ficha Tripla», tanto mais que a foto do Sal [Nunkachov] (algures na página) foi tirada aqui no palco, já querido, da Arquivo. Que acontece de distinto quando nos juntamos para dizer? O Anjos leu menos do que o habitual, pendurado que estava nas cordas da guitarra. Sem que com isso contasse, devolvemos-lhe versos de raspão. O António faz soar como ninguém o seu Trakl. Fugi dos meus versos (onde andam eles?) para me perder no José Manuel Simões. As noites acontecidas e prestes a acontecer exigiam-no. «Do chão onde ontem a enterrei/ a noite irrompe como um garfo,/noite de hoje que eu não conheço/ e todavia já/ noite velha que sei de cor.// Como um gesto premeditado,/ nasce assim devagar,/ tão nacional e tão leve,/ tão primaveril pelas esquinas,/ tão cheia de gatos nos telhados,/ tão sem sono por ela adiante,/ pequena noite habitual e casta/ ligada ao dia por minúsculos grãos de café,/ cores, vidros e frágeis cordões de fumo,/ mas no entanto e sempre/ tão principalmente noite».

Arquivo, Leiria, 24 Março

Antes de outra de «cores, vidros e frágeis cordões de fumo» e luminosas gargalhadas, com a incansável Susana [Neves], a cansada Suzana [Nobre], o anfitrião João e o atento Sal, também para esconjurar as negras notícias, «No Precipício Era o Verbo» desdobraram-se em palco, com uma novíssima segunda parte dedicada a Sophia. As cordas endiabradas do Carlos [Barretto] soaram a chão movediço para as vozes inspiradas dos funambulistas habituais. Uma das peças foi dedicada à Patrícia Baltazar, que, em «Catapulta» (Ed. Do Lado Esquerdo), desenhou o momento com esta navalha: «Não vai doer. É bater de frente com a morte. Olhar a silhueta das asas de um anjo». Saravá, Patrícia.

3 Abr 2019

Que ninguém atire

[dropcap]C[/dropcap]isterna, Lisboa, 11 Março

A semana foi absorvida pela montagem das imagens fortes da Ana [Jacinto Nunes], oriundas de «Ararat», com que a Cisterna, da Catarina [Marques da Silva], se abriu à cidade. A experiência da curadoria, no caso partilhada com o António [Gonçalves], não vai sem tensões. A escolha dos curadores, ainda que conversada, não deixa de ser a imposição de uma leitura, no caso, arremedo de narrativa, criação de ritmos a partir de cores, dimensões e temas, com subtilezas espalhadas que nem armadilhas e dramatismos a roçar o teatral, enfim, jogos de luz e sombra. A partir da leitura do sítio, pareceu-nos que mostrar menos, dada a força do gesto da artista, seria mostrar mais. A respiração de cada pintura interpela-nos, puxa-nos inteiros pela mão de modo a participarmos em cada cena. Outro fio corre ainda, tocando aqui e ali o chão: a escultura. Para além da sua força intrínseca, cada peça ora se associa ora confronta o habitat criado. Não consigo evitar a metáfora do ecossistema para descrever o por aqui se ajardinou. Imagino o que acontecerá nas noites com o conjunto convivendo em plena escuridão. Parece-me, aliás, provável que algo vá mudando durante o período da exposição. A nossa colonização do lugar alterou muitas vezes o que víamos. Até repousar em uma harmonia que só aconteceu no derradeiro segundo.

 

Cisterna, Lisboa, 12 Março

A perene confusão que habito faz com que a agenda seja de geometria violentamente variável. Dá-se algumas vezes em que aprecio bastante a medida do estrago: à mesa do almoço. Gosto de pensar nela como extensível, respondendo às surpresas como novos lugares. O resultado costuma ser não apenas de disparatada alegria, mas de produção criativa. Hoje foi dia. Tinha planeado, por entre os escolhos dos muitos aniversários do mês, pôr a escrita em dia com o Miguel [Rocha], mas estava por cá o António [Gonçalves] e juntaram-se, por força do calendário, a Raquel [Santos] e o José [Pinho], sem esquecer a Isabel. Em cima do cheiro a café e dos mimos que o Miguel trouxe, isto é, gengibre cristalizado e grãos de café vestidos de chocolate, e das gargalhadas, a conversa versou artes e culinária, livros lidos e a escrever, festivais e exposições e crianças. E má-língua, claro. Nem precisava nascer nada desta horta, mas garanto que sim, um qualquer cruzamento de couves e flores. Para já, aqueceu-me o coração, passe o lirismo.

 

Horta Seca, Lisboa, 14 Março

Outro dos grandes que parte. Recebo a tristeza em mensagem que fala da alegria. Quando me apetecia o silêncio, aceito evocar para as câmaras de televisão o Augusto Cid (1941-2019), que não caberá nunca nas minhas toscas palavras. Vejo-o chegar de mota e blusão de cabedal ou de scooter e chapéu de palha para contar história que nos fazia rir às lágrimas, ou outra que nos comoveria, ou para troca de ideias que nos indignaria. O Cid, como carinhosamente era tratado, foi, antes do mais que foi muito, um homem bom. Em período de pensamento único, arriscou conduzir a alta velocidade em contramão. Em cenários de grande dificuldade manteve-se íntegro e generoso. Era de causas, claro. Sofreu ataques terríveis à sua liberdade de expressão com um sorriso nos lábios e a caneta na mão, desenhando. Foi dos poucos corajosos a tentar ler, com sentido de humor, o que se passava na frente colonial, lá no temível Leste de Angola. Foi dos primeiros a sentir, em democracia, os arremedos da pulsão censória que habita todos os poderes. Riu-se e continuou. Disparava em todas as direcções, embora tendo alvos predilectos, que não lhe perdoaram o apontar dos ridículos (algures na página a desenhar-se em acção). Encolheu os ombros e continuou. Aqui e ali esculpiu, mas desconfio que uma das suas melhores obras acabou sendo a camaradagem. Descobriu o que se escondia na palavra amizade em plena guerra, como haveria de escrever logo nas primeiras páginas das memórias, em que trabalhava, e que tombam incompletas em combate. Levariam por título «Salazar não está cá!» e não resisto a transcrever o por quê.

«O título escolhido para este livro pode sugerir um inquietante apelo saudosista. Sosseguem, porém. Essa não é, de todo, a intenção do autor. Na noite de 29 de Novembro de 1966, o meu destacamento de Caripande, na fronteira de Angola com a Zâmbia, a sul do que se designou chamar o «saliente de Cazombo», foi violentamente atacado por uma numerosa força do MPLA. Entre os vários slogans e palavras de ordem gritados pelo inimigo, «MORTE A SALAZAR!» deixou-nos algo surpreendidos pelo que tinha de inesperado.

Seguiu-se um pesado silêncio que viria a ser interrompido por um soldado que se levantou na trincheira e, numa carregada pronúncia nortenha, ripostou num tom meramente informativo: «SALAZAR NÃO ESTÁ CÁ!…».

Uma sonora gargalhada percorreu a nossa linha de defesa num momento em que, dada a grande desproporção de forças e o enorme poder de fogo do inimigo aliado à impossibilidade de sermos socorridos a tempo, o moral ameaçava começar a fraquejar…»

Ainda fui a tempo de ler muitas histórias que revelavam a dimensão do seu carácter. Escolho uma ao calhas e fugindo ao óbvio. «Aliás seria ao escrever estas memórias que, curiosamente, me dei conta que a ordem mais repetida por mim, em combate, nos meses que se seguiram foi: «NINGUÉM ATIRA!!»…

Esta minha preocupação tinha uma justificada razão de ser, dada a natural impreparação dos nossos homens em combate. Às rajadas do inimigo, tinham uma irreprimível tendência para ripostar na mesma moeda. O problema era só um: a G3, em posição de rajada, devorava as vinte balas do carregador num ápice. O atirador, de carregador vazio, se estivesse num aperto, teria pela frente a complicada tarefa de se socorrer de um dos carregadores de reserva, normalmente empurrados para as costas e inseridos em bolsas nada fáceis de abrir numa emergência, enquanto a frente do cinturão estava “ornamentada” com o cantil, granadas de mão e faca de mato… As minhas ordens em combate, com o tempo, acabaram, contudo, por vingar – arma sempre em posição de tiro a tiro. Só atirar na presença de um alvo. Economizar ao máximo as munições, por forma a estar apto a poder enfrentar um corpo a corpo com a patilha em rajada antes de ser obrigado a recorrer a arma branca.»

Saravá, Augusto.

 

EC.ON, Lisboa, 16 Março

Acorro ao ciclo poético da EC.ON e assisto, com prazer, ao Jaime Rocha desenhar o palco que a Nazaré se tornou para ele, no qual nunca mais deixou de ouvir conversas com mortos, nem de acompanhar figuras de negro a passearem medos e angústias, sem esquecer a íntima observação do mar ininterrupto e o cultivo do silêncio. Vi até uma enxada a passar à beira do café em Benfica e na mão de um semeador de cães e gatos. Ouvi também o dodecassilábico Henrique Manuel Bento Fialho defender acesamente a contaminação entre géneros, a descoberta do verso na prosaica planura da prosa, ou da centelha da ideia em pleno poema. Pensei, por causa disso, que o gesto poético surge que nem aquelas utilíssimas placas de sinalização espalhadas pelo nosso interior. Perdidos, acendemos os faróis para ver melhor a indicação que nos salvará a pele e eis que surge, brilhando, «outras direcções».

 

Horta, Lisboa, 17 Março

A ingrata tarefa de jurado em prémios de poesia, sobretudo se dirigido aos não publicados, serve para medir a temperatura ao nosso lirismo. O panorama surge nevoento e sem que a paisagem ganhe contornos nítidos. Não sem espanto, assinalo a enorme quantidade de veias e espelhos e crepúsculos que pode o poema conter.

20 Mar 2019

Bestiário

Correntes, Póvoa, 23 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]J/dropcap]osé Anjos, pela primeira vez sentado à mesa das Correntes d’Escritas, administra bem o nervoso, entalado entre os relatos de viagem do Afonso [Cruz], celebrando a potência do livro no meio da guerra intestina de civilizações que se vive também em lugares como a Palestina ou Bagdade, e a humorosa torrente de Ondjaki, desenhando com as palavras e o corpo as mãos que lhe importam. (Ecoavam ainda as volutas das cordas ancestrais do concerto íntimo de Mû Mbana). O tema lançava-se com o verso final de poema dramático de Sophia: «Este é o tempo em que os homens renunciam.» Anjos sugeriu duas ou três ideias e conservo esta de um só verso se soltar do poema, para autonomamente conservar ou ampliar potência explosiva, para ser gato. «O verso é», diz ele, «a partícula subatómica do poema, composto por sua vez, também ele, por outras partículas subatómicas, que pelo seu comportamento equívoco e aparentemente paradoxal, alteram a sua morfologia, a sua história, e podem até matá-lo. Imagino dentro do verso uma caixa em forma de jardim onde vários gatos de Schrödinger (vivos e mortos simultaneamente) brincam entre si, à espera de serem escolhidos para saberem se sobreviveram.» Ainda assim, algumas desgraças recentes na reinterpretação do autor da sua obra passada podem bem ter origem nesta ideia de relâmpago.

O poema de Sophia falava daquelas noites em que a selva respira chacais, mas tal acontece muito por via da renúncia dos homens a sê-lo. Anjos encontrou esperança em outro lugar da poeta dos dias iniciais inteiros e limpos. «Um dia, gastos, voltaremos/ A viver livres como os animais/ E mesmo tão cansados floriremos/ Irmãos vivos do mar e dos pinhais.» Anseio pelo dia um.

 

Lapa do Lobo, Nelas, 23 Fevereiro

Vejo-me com a Inês [Fonseca Santos], atravessado o Dão, em sala cheia para conversa conduzida pelo Rui Fonte, da Fundação Lapa do Lobo, ao sabor de atenta curiosidade. O mote era a poesia, mas deixou-se contaminar pela chateza do assunto edição. Lá mais para o fim, veio à baila o inevitável contorno do objecto, a definição de fronteiras. «A impertinência põe-se a fornecer lições de arquitectura». Servido pela coincidência de conversa na Póvoa, trouxe Herberto, em resposta dos idos de 1974, quando alguns oponham pão e casas e poesia. Contém, ainda, a resposta a ma ânsia de pureza de certas seitas que usam a sujidade como arma. «Deus tem uma cabeça demasiado pesada para não ocupar totalmente o alforge do pão. Crê-se mesmo ser abusivo um toque no ombro, para nosso momentâneo desvio da carga. Deus dorme, dorme de um sono pesadíssimo, e pro isso pesa tanto aquela cabeça. Às vezes pretendemos acordá-la, para que se faça mais leve. Tudo morreu em nós, menos exactamente a morte das cosias divinas. É por dentro de poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortas. […] A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria ajudar aa morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas conveniências do mal. O que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego, e um pequeno contentamento para quem está com alguma pressa em agravar. // E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.»

Refrescante como o rio no vale revelou-se este lugar de irmãos vivos do mar e dos pinhais. Esta fundação afunda raízes na terra e na fraga e brota exemplar nas sombras como nos frutos. O seu trabalho não se esgota na cultura, mas fiquemo-nos por esta leira. E deixemos ainda de lado apoios à publicação de jovens autores da região, exposições de artes plásticas, desafios aos artistas para residências, ou acções como esta em que participámos, articulada em rede com bibliotecas e escolas. Fixemo-nos nas edições, cuidadíssimas nas mais diversas camadas. Ou melhor, atentemos apenas nesta: «O Lobo da Lapa». Leva por subtítulo, «memória colectiva da população da Lapa do Lobo», tendo começado com caderno a circular por todas as casas para recolher por escrito memórias e lendas (serão seres distintos?). O livro final, enriquecido com belas fotografias que coalham o imaginário, resulta em viagem comovedora. Pulsa por ali gente concreta, de vidas múltiplas, quase todas duras. Nas entrelinhas, solta-se um quinhão do país que ainda somos. Depois há um lobo bom que se apaixona por uma santa que fazia de dia a renda que desfazia à noite. Um bom que continua a ouvir-se em noites iniciais inteiras e limpas.

 

Tema, Lisboa, 28 Fevereiro

Lá vai Lisboa. O centro definha e evaporam lugares. (Há quantos anos empurraram o atentíssimo Luís [Bordalo] aqui do Calhariz?) Agora fecha esta loja, que não será histórica na versão gourmet dos paladares ladinos, mas que nas últimas três décadas foi, entre jardim e janela, fonte inesgotável de oxigénio. No caos que habito limitei as minhas visitas ao mínimo, mas sentia-me tão mais leve quando de lá saía bem mais pesado: revistas são dos meus animais domésticos preferidos. Ia em busca do habitual, descobria sempre novidade. Recorto da notícia do Público esboço de explicação. «“O problema não reside no facto de vendermos versões impressas da informação, até porque o suporte em papel está a ter um regresso”, o problema está na deslocalização de muitas empresas e moradores que ali se fixavam para passarem a residir e trabalhar noutras zonas mais periféricas da cidade, diz. “Antes as pessoas passavam por aqui na sua hora de almoço, e o facto de a loja fechar às 23h permitia que também cá viessem quando saíam do trabalho”.» Hão-de surgir novos, e até sei de um ou outro ao virar da página, mas isso não diminui a tristeza da Baixa ir perdendo proximidades.

 

Horta Seca, Lisboa, 1 Março

Vejo que «A Guerra», do André [Letria], a partir do texto de José Jorge Letria, some e segue com mais um prémio, este do Talking Pictures. Cobro a promessa, e sento-me a «ouver» a inquietante sucessão de imagens fortes, iniciada na inevitável floresta. O André conseguiu fazer convergir aqui, dramaticamente como em maqueta de território íntimo, as cenas que a longa história dos conflitos armados gravou na memória colectiva. Do elmo às bombas largadas de avião, do discurso inflamado às ruínas derradeiras, o essencial fica mostrado. A narrativa começa logo nas guardas com a chegada de aracnídeos, insectos rastejantes e serpentes que se congregam no corvo, incarnando a metáfora que atravessa de negro as sucessivas destruições até ao silêncio final. Pobres bichos, que ganham o rosto dos nossos medos.

 

Horta Seca, Lisboa, 2 Março

Por estes dias, a bicheza foi minha companheira. Muito por culpa da Ana [Jacinto Nunes], que me obrigou a enfrentar os rostos que pinta como quem doma a correnteza do rio. E que se tornam ponto de convergência de cenas onde a animalidade pulsa. Falo de «Ararat», a exposição que inaugura agora mesmo, na Galeria Cisterna, e para a qual produzi texto fascinado. (Algures na página «a menina e o ganso» revela-se um pouco do que por ali acontecerá.) «Estes animais que abraçam e são abraçados, a serpente que tudo parece ligar, o crocodilo boquiaberto, mas sobretudo os seres alados, os que ligam céu e terra, não são exactamente o espelho do humano, possuem autonomia que nos interpela, que nos fala de liberdade. Sobre esta intimidade, diz a artista, assenta o mundo».

13 Mar 2019

Cara, face, enfim, rosto

Santa Bárbara, Lisboa, 15 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esagua-me nas mãos o número oito da «Suroeste», a revista de literaturas ibéricas que o Antonio Sáez Delgado dirige a partir de Badajoz. O seu grande formato vem cheio de poesia, acompanhada de ficção e ensaio, ainda que em doses menores. O Edgar [Pêra] cruza palavra e imagem para alinhavar nas bainhas o que deve o seu olhar a Almada, Negreiros, está bem de ver. Constato que perdi duas ou três dessas suas incursões no universo arte-nativo. Ponho na lista dos afazeres. Rui Pires Cabral entrega-nos, em encarte, um poema em 12 figuras: Hotel Andaluz. Belo exercício, entre «la abstracción» e «el olvido», quando a palavra se atira à imagem despertando pequenas concêntricas de sentido e sentimento, aqui plástico, ali metafísico. Fixado que ando em rostos, «Variações sobre um tema de Rulfo» , do João [de Melo], tocou-me. Mas isto sou eu, lamechas de filhos e pais. Um filho que, em busca de um quase pai, reconhece-o na descoberta de um lugar-comum feito de feições, rugas e olhos. E a cara logo se torna ilha, em momento expressionista de alta intensidade. O mano Luis [Manuel-às-vezes-Miguel Gaspar], que contribui com o seu «Consejo» (de Redacción), pediu-me colaboração. Mandei-lhe um pequeno filme «surrea-listo», no qual os olhos se fecham para ver no escuro. «A mão que toca um rosto, agreste, fugidio. Os fins de tarde onde cada amigo se junta para trocar gestos assim. Chegam e bebem. Chegam e tocam. Riem antes de partir. Saúdam a noite. Param por quase segundos para que a imagem se componha. Ilusão que logo a chuva desfaz. Há além pálpebras que fecham, para melhor ver em si. Portas de igreja que chiam ao abrir arrepiando os santos. Logo esvoaçam desfeitos corvos para não concederem graças. Os santos andam cansados de quotidiano: pequenos-almoços, almoços médios, quase jantares, longas mesas festivas. Mortes rotundas ao longe, crimes hediondos ao perto. Vistos de perto. Que devem vestir os crimes, veludo sangue de boi ou chita vaporosa e transparente? Lavo disto as minhas mãos.»

 

Horta Seca, Lisboa, 16 Fevereiro

Sentado no escuro, projecta-se fita feita de corpos com voz. Bruno Ganz (1941-2019) será, sobretudo, Damiel, anjo de bibliotecas e desespero. Mas as palavras que vai dizendo são corpo ainda. No alemão que perdi algures lê «Il Canto Sospeso» de Nono, encantatoriamente evocando o fascismo, a invenção de possibilidades, a paixão. A vantagem dos que dão corpo ao manifesto funde-se nisto, na possibilidade de continuarem a ecoar à maneira dos corpos na nossa memória, a incorporar o que apenas intuímos. Desejava muito tê-lo visto em Tarkovsky, a tocar a água com versos. Não saberia nunca de Berlim sem ele, em Wenders. Mas isto sou eu, com os corpos.

 

Atlântico, 19 Fevereiro

A morte do [Geraldes] Lino (1936-2019) seria sempre triste surpresa, por muito anunciada que tivesse sido. A alegria contagiante pelas histórias aos quadradinhos construiu-se enorme cidade, com ruas e praças que passavam pelos fanzines, pela memória, pelo bem escrever, pelo prazer do acolhimento e da partilha, de liberalizar contactos e informação. Esteve sempre presente em cada momento, geração após geração; ele, a quem a idade desconfortava, era o mais jovem de todos, casquinando gargalhadas. Aliás, todo ele era infância desembocando no luminoso gozo da descoberta. Longe da social despedida, comovo-me lendo os testemunhos dos inúmeros criadores e confirmo, muito para além do gosto, que poucos se podem orgulhar de terem tornado tão amavelmente comum este lugar-linguagem.

 

Correntes, Póvoa, 19 Fevereiro

No habitual quotidiano, parto em pulgas sem saber se os livros chegarão a tempo desta prévia apresentação. Encontro o oceano a vociferar na devida constância sob uma luz que não esmaga os contornos, colocando assim cada gesto no seu contexto. A colecção «Fósforo» ganha dois novos volumes, ambos assinados pelo Helder [Macedo]. «Oitocentos Anos de Literatura», síntese histórica da nossa literatura, uma das mais desafiantes e completas, com os nomes essenciais, as temáticas estruturantes e os nomes principais, mas com atenção a outras correntes, mais profundas ou fracturantes, como agora se gosta de usar. E «Cada Um Com o Seu Contrário Num Sujeito», este inédito, em torno do sempiterno Camões. Helder está a dizê-lo neste instante, brilhando: «o conflito só poderia ser resolvido pela transformação recíproca do apetite em razão e da razão em apetite, tornando possível alcançar a desejada “mansa paz” através da coexistência de “cada um com seu contrário num sujeito”.» Fazendo do erotismo ferramenta do conhecimento, o poeta entendeu na carne que cada coisa pode ser ao mesmo tempo o que é e o seu contrário.

Depois abriu a noite.

 

Correntes, Póvoa, 20 Fevereiro

O João [Rios] estava em casa. Ou próximo. Vociferou a emoção de dizer, com todas as letras (todas?), que fronteiras à beira-mar não fazem grande sentido: o mar apaga-as. E atirou-se aqui segundo volume de uma poesia de escárnio e maldizer para bem reflectir. «Reter o amor no gancho do talho», também traz à ilharga a pulsação de um amor oceânico. Mas isto sou eu, que me deixo inebriar pela maresia.

O Valério [Romão] subiu na missão de propor leitura de «Fotografia Apontada à Cabeça», terceiro volume do outro mano José [Anjos]. Sobre a maré de ruído, enquanto passavam gatos na janela que lhes servia de espaldas, ouvi-o: «A infância corresponde, despida de qualquer carácter transcendental, ao Éden bíblico, à Arcádia, ao sítio da possibilidade de todas as possibilidades. A infância corresponde, pelo menos no mundo ocidental remediado, a uma espécie de território estaminal, onde todas as ideias de futuro podem ainda ser possíveis, e enquanto crianças ainda podemos sonhar ser, com a mesma facilidade desarmante, astronautas, bailarinos ou veterinários (acredito que o cardápio de sonhos tenha mudado nestes últimos vinte anos).» (Algures na página, o Pedro [Teixeira Neves] captou o momento e as faces).

De seguida, a noite espraiou-se.

 

Correntes, Póvoa, 21 Fevereiro

Resumo breve do dia. Onésimo Teotónio Almeida diz, aos microfones do Obra Aberta (RR e CCB em viagem), que a poesia não pensa sendo o verso apenas deriva barroca. A Carla [Craveiro] recebe-nos na Coquelicot Delicatessen com perfumado gin, Bica, e umas suaves delicadezas da Tia Quinota. Anunciou-se ao público a obscena «Flanzine», com frutos colhido pelo [João Pedro] Azul e pelo Carlos [Guerreiro]. Contributo modesto: «que procura o teu olhar/ lá fora/ que não possa o meu caralho/ dar-te dentro?/ horizonte, tempo/ mundo e possibilidades?/ dentro e fora/ eis ao que aspiramos/ quando respiramos/ tudo em nós/ pupilas e membros.»

Em breve, marulhava a noite.

 

Correntes, Póvoa, 22 Fevereiro

Treslendo o desafio, mandei para o cuidadíssimo dicionário de afectos, que agora folheio, «Palavras Correntes», uma entrada que desafina das incontáveis «correntes», «mares» e «marés» e «maresias», «noites» e «noitadas» para além do restante celebratório: atraso. Fecha deste jeito, «fora de tempo, por elogio, também se lhe aplica. Atraso de vida, e por idiotia, nem tanto. Entretanto, nada.» Não tem que ver com o festival, está na cara que isto sou eu. E a palavra maior da minha «noitidia». Como bem a define César Ibáñez París, no mesmo volume: «1 Pétalo de la flor del lenguage. 2 Espina del cactus del lenguage. 3 En cualquier caso, tanto si acaricia como si pincha. 4 Vínculo.»

6 Mar 2019

Com os corpos

Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro

[dropcap]P[/dropcap]or esta altura, obriga-nos a soberana lei fiscal a inventariar cada volume sobrante, em repouso nos armazéns, perdido nos esconsos das supostas livrarias, entregues aos mais desconformes cuidados. Mais adiante pagaremos imposto sobre este fracasso. Os livros por vender são activos, mantêm potencial de monta, afirma o ultra-sensível fisco, ainda não pesando valor literário ou outro. Não tarda, hão-de apurar o interesse, a influência e a cintilação dos textos com vista ao apuramento de taxa respectiva. O momento deprime invariavelmente, por tornar claro que os livros, ainda que circulem, demoram a atravessar para o lado de lá, continuam nossos em mãos alheias, por via da tóxica figura da consignação. O pior é que os apuramentos, por mais esforço investido, não chegam nunca a ganhar corpo de rigor. O que era compra sólida acaba por revelar-se miragem gasosa. Estou para encontrar negócio mais tolo que este.

>Horta Seca, Lisboa, 4 Fevereiro

Chegou-me «Rossio», primeira d’ «As 4 Estações» d’ «O Gajo». Não podia começar melhor esta viagem, logo recebendo um cais de partida. Calcando qual cavalo de ferro as linhas do horizonte, os dedos do João Morais nas cordas da viola campaniça desenham paisagens. E despertam desejos, tanto mais que não consigo desligar sul do som. Vejo cores. Em geometria performativa, os andamentos impelem ao movimento, dispõem-nos ao caminho, que é poema, diz o mano [José] Anjos, na terceira faixa: «uma linha lenta, sempre recta, sempre certa, para onde quer que se vire». Nem sempre recta nas volutas de aconchego, nem sempre certa na poeira que se levanta. Gosto muito de comboios, com a sua fala que liga terra ao coração e olhos largos a riscar a superfície das árvores e das nuvens. Esta viola faz-se gazua de arroubamento.

Horta Seca, Lisboa, 6 Fevereiro

Para não variar, muito antes da oficial, circula a oficiosa lista de candidatos ao Prémio Casino da Póvoa/ Correntes d’Escritas, dedicado nesta edição à poesia. Da dúzia, quatro pertenciam a autores da abysmo. Cada prémio literário levanta maremoto tipo lençol de comentários e gritos e choros e indignações, até alegrias difusas. Continuam sem me despertar grande interesse, embora me veja obrigado a navegá-los sem carta de patrão de costa ou alto mar. Para o melhor e o pior, talvez ajudam o corpus a definir-se na neblina do sistema literário. Para brutos abalroamentos ou suaves atracagens. Escolhidas por Ana Paula Tavares, Maria Quintans, Marta Bernardes, José António Gomes e Almeida Faria, as nossas vozes díspares e canoras foram a Inês Fonseca Santos (Suite sem Vista), o João Rios (Não É Grave Ser Português), o José Luiz Tavares (Rua Antes do Céu) e o Luís Carmelo (Tratado). Lá canta o nomeado Rios, sem o ponto de interrogação, maneira assaz nossa de morrer na praia: «a pata no meio/ e a pátria num canto/ se a pata for astuta/ e a pátria tiver recheio/ canto ou não canto.»

Facebook, 7 Fevereiro

Nunca fui ao México. Tenho medo de não voltar. Quem mais celebra os mortos que somos, caminhantes, às tantas festivos, daquela maneira? Recordo-te Albert Finney (1936-2019), na mais elegante das bebedeiras, caindo da tela, em tropeço, para a cadeira ao meu lado. Saltitando entre o castelhano de Buñuel e o inglês de Potter, fizemos festas ao cão tinhoso, evocámos a contragosto o Lawrence da Arábia perdida, ressuscitámos o frio Lázaro, só não perdendo a cabeça por um fio, bebericámos juntos até cair sob o vulcão, citando versos que diziam da sagrada bebedeira. Chorei por não te ter visto vez que fosse no palco, partilhando o ar que me faria crer que não eras inventado, antes lugar de tornar possível. Quantos corpos se sabem fazer palco?

Facebook, 8 Fevereiro

Depois dos mexicanos, só os franceses sabem desenhar a minha amiga morte. Desta vez, a da gadanha tapou os olhos ao Tomi Ungerer (1931-2019) sem lhe dar tempo para responder (ver algures na página desenho do autor). Ele sabia. Quantas vezes apanhou os modos que a dita tem de nos fixar em carne os contornos? Não chegam os ossos dos dedos das mãos, falange falanginha falangeta. Conta, isso sim, o modo como nos deu a ver aquilo a que o corpo pode aspirar, farol e antena. Ora recebendo os raios da fantasia, pondo no papel a maravilha da infância. Ora atirando a luz da sátira, quando nos perdermos no mar do quotidiano abstruso. Ora, entre coisa e outra, dar e receber, reinventando a boa «adultância» que não perde o instinto de brincar quando se atira às correntes alterosas da lascívia. Não sei se me oriento sem Tomi.

Alecrim, Lisboa, 11 Fevereiro

Bela que seja a rua, o nome devia coincidir com uma praça. O lugar do homem está em rua paralela, das que descem em direcção ao rio-quase-mar, não longe da Trindade. O homem é Bernardo Trindade e não se distingue dos livros, não apenas das lombadas e das páginas, do pó que a tudo toca, mas dos typos e das ilustrações, da linha com que se cosem, das sobrecapas protectoras. Por teimarem as coisas em se ficarem pelo que parecem, andava adiado este encontro que doravante não mais deixará de partir. Assinale-se em folha (persistente) de árvore-calendário. Ainda nada lhe ofertei e já recebi «The Blue Guitar», prodigioso álbum de gravuras de David Hockney ilustrando poema de Wallace Stevens, que parte de «The Old Guitarist », de Picasso. E onde o contorno procura a forma, o traço a cor, a palavra a canção e por aí fora: «So that’s life, then: things as they are?/ It picks its way on the blue guitar.// A million people on one string?/ And all their manner in the thing,// And all their manner, right and wrong,/ And all their manner, weak and strong?// […] And that’s life, then: things as they are,/ This buzzing of the blue guitar».

Politécnica, Lisboa, 14 Fevereiro

«A Gata e a Fábula» merece leitores assim. Jorge [Silva Melo] brindou-nos, por junto com as leituras da Maria João Luís, com visita guiada não apenas ao proscénio do romance, entre obscuridade e holofotes, mas aos seus bastidores, carpintaria e adereços. Sacudiu personagens, demonstrou a mestria da narradora no inesperado tecer do contar, enquadrou os temas e acertou o passo ao tempo. Declarou, afinal e de modo contagioso, grande amor à escrita «bisturica» de Fernanda Botelho. O resto deste lançamento há muito almejado, tendo pelas costas o palco dos Artistas Unidos, celebrou o encontro com uma família exemplar no esforço de pôr a obra nas mãos e olhos de novos leitores, tornada visível na energia da Joana Botelho. E ainda de um encontro «inquietante e vivo» com a Paula Morão, do Centro de Estudos Comparatistas.

CCB, Lisboa, 14 Fevereiro

Grande festa se encena ali naquele palco, cheio de actores e adereços e temas queridos! À primeira vista parece algumas que eu cá sei. A partir de mergulho em apneia em escritos e personagens de Fiódor Dostoiévski, a Carla [Maciel] monta, nestas «Confissões de Um Coração Ardente», uma girândola vertiginosa na qual a palavra nos puxa aqui para dentro e nos atira ali para fora de nós, das nossas interrogações, certezas, deslizes. Pode o amor resgatar-nos da miséria?

27 Fev 2019

Mão cheia

Horta Seca, Lisboa, 21 Janeiro

[dropcap]O[/dropcap] mundo continuará a triturar o que agora se faz aqui, para quê tentar capturar a sensação? No dia em que todos assuntos acordam, vejo-me amiúde ainda a avaliar por palavras os meus dias falecidos ontem. Vale o quê, nos múltiplos contextos que se agigantam? Precisava apenas que se instalasse ao meu redor o silêncio mínimo para estender frases, que são agora tapete de entendimento, tentativa de não derrapar. Mas tudo parece convergir no agora mesmo. Eu a fechar-me e o telefone ininterruptamente a abrir-me, ostra. Eu a fingir sentido e o banco a dizer-me buraco. Eu tentando a concentração e todos-cada-um cobrando atraso. Nada mudará o ter escrito isto.

Mymosa, Lisboa, 22 Janeiro

Boto aqui sob a data o que vai acontecendo, digo eu, dia após dia, contra isto e o resto. Mas pode não ter sido bem assim ou aqui, por conveniência de prosa. E nem precisava acontecer, bastava o meu registo e a tua leitura – vergo-me respeitoso –, tantas são as formas de uma árvore dar fruto. Nas nossas mãos. Beba-se o suco da ideia. Impossível, como todas antes de tentadas. Palpável, esta, exaltante a outra. Do contexto mastigável, da interpretação saborosa, da construção lúdica. Ei-las até comerciais, urgentes e necessárias, afinal dispensáveis. Ninguém m’acredita, mas além da criação acontece trabalho. O jardim infantil apresenta-se belo conceito, capaz de ser regado. Pulei, mãos no ar, frente ao ministério da economia. Não devia? As companhias contam no despertar das abstrações, mas nem todas saltam.

Horta Seca, Lisboa, 24 Janeiro

Não concebo o erotismo sem que, coisa de geração, seja desenhado. Ou dito. Já nasci na fotografia, mas o tráfico do proibido fez-me com a importação de quadradinhos que nos diziam um prazer por descobrir. Desenhado, insisto, antes de dito pela palavra e nas ausências entreditas. Mas desvio-me do que não devia. Morre outro clássico não celebrado. O caricaturista, sobretudo o da ressaca do 25 de Abril, merecia a atenção dos jornais, por exemplo, o Diário de Notícias, em cujas páginas semeou as figuras e os figurões da política, que era tudo, então. Em várias revistas humorísticas, e até no Jornal do Exército, praticou com bonomia e traço anguloso a crítica de costumes, o registo das modas, a piscadela de olho. José Manuel Domingues Alves Mendes (1944-2019), nome que se encolhia em Zé Manel, desenhou a mulher com uma elegância e candura que não seria possível hoje. Uma pequena antologia dos seus corpos daria muito que conversar. Saravah, Zé Manel.

Horta Seca, Lisboa, 25 Janeiro

Mundo Fantasma, estimada galeria, no Porto, cumpriu dez anos. Para dizer o mínimo, mostrou o máximo de ilustrações e quadradinhos oriundos dos vários continentes, os dos mapas e os do gosto. Não foi agora, mas no ano passado, só que o pretexto destas linhas andou perdido. Júlio [Moreira], irmão dos mais antigos, disfarçando a timidez com a câmara, fingindo que não, fixou dez olhares de entre os muitos milhares em que a década se desfez. Nas fotos, que o José Rui [Fernandes] transpôs em risogravura, conservam-se leituras de quem olha: os artistas ou a sua arte, que as imagens perderam protagonismo, ficando-se por desfocado pano de fundo, luminosa razão de ser. O volume confidencial, pasta A3 dobrada, traz por nome «10» e expõe, em murmúrio, o grão da memória. Projectos-projéctil, que vão sabendo ferir o tédio dizendo das margens.

Horta Seca, Lisboa, 26 Janeiro

Tomba na coincidência descobrir que Tom Zé, este feiticeiro da minha língua, gravou para celebrar os seus 80 anos um álbum supostamente destinado a crianças, pega na minha mão que te mostro: «Sem Você Não A». As palavras dão corpo ao manifesto costumeiro de esfusiante criatividade. Não consigo parar de ouvir: ele se apresenta de f na mão para o colocar em afaga na vez de apaga. E depois o carinho revela a cidade de cada um. Ele há jardins infantis que, bem regados, inventam futuros. Oiça-se «O Forrobodó do ABC», um hino à palavra, portanto à edição. Isto sou eu, que oiço vozes e em tudo vejo lombadas. Possíveis.

Horta Seca, Lisboa, 28 Janeiro

Na feitura do livro, os momentos mais compensadores têm raízes nas primeiras leituras, a inicial e a seguinte, já de lápis de carpinteiro na orelha. Falhámos o prazo que nos tínhamos imposto para este «Anastasis», do Carlos [Morais José], cujo detalhe de capa, desenho do enorme Rui [Garrido], aqui se mostra, não por acaso. O livro não deixou ainda de me surpreender, parece brilhar no escuro. Sem fronteira de género, cruzando poesia e relato de viagem, aforismo e reflexão solta, leva-nos em peregrinação às fontes, aos lugares sagrados da mescla de civilizações que somos por esta altura. Para matar sedes, claro. Diz ele, já a meio, que «a primeira palavra desfez o mundo. Ainda hoje nos entretemos, com as suas irmãs, no trabalho de o recriar». Garanto que acontece nestas páginas, e tenho que inventar modos e maneiras de que não venha a perder no ruído (não é invariavelmente esse o desafio?). Possui uma poderosa voz poética, devidamente alheada de modas e outras práticas. O peregrino não foi sozinho, levou deus, que chama ao ininterrupto diálogo com o transcendente, encontrando nas plantas e nas pedras, no chão e no azul, na poesia, nas figuras concretas de hoje ou nas míticas de antanho. Onde quer que se encontre, está só. Estamos todos. E a conclusão dificilmente poderia ser outra. «Por vezes é o mal que sobra. É o que levamos para casa, nos bolsos da alma, sem o conseguir espantar. […] Não amamos: avaliamos; não usufruímos: possuímos para esquecer. Não há exorcismo. O mal será o leal companheiro de um percurso finito». Deixo-me pairar, com frequência, nas minudências tratadas com cuidados de jardineiro-cirurgião. Extraía daqui, com facilidade, um catálogo de descrições da luz, descrições das que fazem acontecer. Este livro pode bem mudar quem nele se atreva. «Cada dia tem a sua espuma própria. Rarefaz-se ao anúncio das sombras, esvai-se nos gestos hipnóticos da noite. Depois reaparece nos labirintos dos sonhos ou no encontro da vida com a morte.»

Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro

O escritor moçambicano, Ungulani Ba Ka Khosa, em polémica azeda com [António] Cabrita começa por me oferecer a estima, anunciar o respeito pelas pequenas editoras, para logo nos fixar sede «num botequim lá para as bandas do Bairro Alto.» E pergunta mais adiante, a propósito de disciplina de trabalho: «alguma vez te adjectivaram por teres uma editora a funcionar num botequim?» Curioso, o Ungulani achar que nos insulta por vivermos muito nas tascas, gostando de comer e beber. (E a sede não pode ter sede?) Não o adjectivarei mais, antes o convidarei. A ver se da próxima não nos põe num quartinho do Ministério de Economia.

Horta Seca, Lisboa, 1 Fevereiro

De súbito, como convém ao inesperado, imagens e palavras chegam dançando uma língua que fala do âmago, do ser. A Bárbara [Fonte] ofereceu esta pérola: https://www.barbarafonte.com/words Gosto de mãos, por nelas ver uma das janelas para o obscuro de cada um, mais do que ferramenta de possíveis. Contudo, aqui, o assunto cresce além dos membros amados, vai à violência e à morte. «As minhas mãos são mais velhas que eu», assim começa esta narrativa, com Debussy ao longe, que me transfigurou o dia. Poderosíssimo micro-espectáculo, como se a vida se medisse aos palmos.

13 Fev 2019

De Gritos

Horta Seca, Lisboa, 20 Janeiro

 

[dropcap]C[/dropcap]hegou há dias, mas só agora consigo lamber a cria: «Desenhos em Volta de Os Passos de Herberto Helder», que reúne os desenhos da Mariana [Viana] feitos a partir do célebre livro «em contramão», na feliz expressão da posfaciadora, Diana Pimentel (capa algures na página). Neste volume, o primeiro em parceria com a Imprensa Nacional, incluímos ainda frases soltas, deliciosamente manuscritas pelo Luís [Manuel Gaspar], e carta de HH acerca do trabalho, com que se maravilhou, e na qual confessa o desagrado com «Os Passos em Volta», afinal, com a sua obra, «que, se me ponho a perscrutar, me vai cada vez menos satisfazendo.» Alguns dos bichos da Mariana esticam os pescoços à maneira retrátil dos velhos telescópios. Ora este seu livro resulta do mesmo expediente, estica para surrealizantes imagens o texto incandescente de HH.

Apesar dos espelhos aqui e ali, não procura tanto reflectir o texto, mas interpretá-lo. À maneira de uma encenação, que inclui cenários, falas, gestos e luz. Levou ao limite a animalidade que os contos – ou capítulos de romance, segundo alguns – contêm e escolheu o corpo como matéria. O cão virou marinheiro, mas não se deixou ficar na mera antropomorfização. A genética visual permite as mais díspares combinações e o geneticista enlouqueceu. A copa da árvore pode agitar cabeças de cão, com elegância. Mas os passos da aranha perturbam na sua semelhante com um bebé. De um mamífero pode sair simplesmente um peixe, mas logo dar-se uma obscura transmutação em ser do indizível. Corpos cruzam corpos, mergulham uns nos outros, voam como se se atravessassem, abolindo as matérias, as diferenças entre carne e céu, entre água e exosqueleto, entre ramos e pele. As cenas, apesar de soltas, estão prenhes de energia, movimento e som. Impossível ser assim no silêncio. Nem nos sonhos. Ecoa a frase, que naquela grafia de minúcias parece agora locomover-se: «Serei um colecionador de gritos?»

Instituto Camões, Lisboa, 21 Janeiro

Chego atrasado à sessão dobrada em C, de Camões e Cervantes, mas ainda a tempo de ouvir o Luis [García Montero], director do Instituto Cervantes, primeiro, e logo depois o Helder [Macedo] fazerem o elogio do mau comportamento. Mais: reclamando a sua urgência. As figuras maiores de ambas as culturas foram brigões, sofreram no corpo os combates, enfrentaram as leis, civil e religiosa, experimentaram a prisão, viveram aventurosamente, conheceram a miséria. Opinaram e escreveram, se não contra, apesar da maioria e do seu tempo. Camões anunciou o direito à felicidade na terra. Para desenhar o humano, Cervantes fez da escrita o que lhe deu na gana. A assembleia nem pestanejou, as afirmações não fizeram risco na solenidade. O pretexto eram dois volumes, «Cervantes Y Portugal – Historia, Arte y Literatura», sob organização de Aurelio Vargas Díaz-Toledo, José Manuel Lucia Megías (Ed. Estratégias Criativas), compilando as actas de colóquio de 2016, e «Camões e Cervantes – Contrastes e Convergências» (ed. Institutos Cervantes e Camões), com dois ensaios de Helder Macedo e Carlos Alvar. Do lado castelhano, Alvar recolhe os indícios da relação de Cervantes com Lisboa, sobretudo a partir do seu póstumo «Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda. História Setentrional», relato de uma peregrinação, que começa em mortífera ilha, no Círculo Ártico, e se insere em tradição peculiar e com ecos em certo trabalho que estamos prestes a editar, por coincidência. Não se alonga, Cervantes, mas basta para apresentar os portugueses como grandes na escrita de epitáfios e na morte por amor. Sobra ainda extraordinário pintor capaz de em um dia compor tela… épica. Faz-se hábito, o brilhantismo do Helder nas sínteses, somando como poucos a erudição e o pensamento desafiante. Volta a acontecer neste «Luís de Camões: os opostos complementares», que acaba perguntando se a ilha bárbara de Cervantes, nesta novela póstuma, não será «o reverso infernal da iniciática “ilha angélica, pintada” n’ Os Lusíadas». Mas a correspondência conceptual entre Os Lusíadas e Don Quixote encontra-a, está bem de ver, na utopia. «A épica – ou anti-épica – camoniana remete para o seu oposto arcádico numa idealizada Idade de Ouro recuperável num imaginado futuro. A anti-épica – ou épica – cervantina deriva de uma idealizada ética cavaleiresca que recuperasse valores equivalentes aos arcádicos num presente imaginado.» Apesar destas leituras refrescantes, até em ambiente institucional, cada 10 de Junho parece afastar-nos mais da Ilha dos Amores.

Mymosa, Lisboa, 22 Janeiro

Algumas desatenções podem resultar em explosiva surpresa. Trazendo o assunto Antero para a mesa dos projectos, imaginado futuro que nos dai hoje, sou apresentado pela Manuela [Rêgo] ao Andrea Ragusa. Não tinha dado pelo lançamento destes «Pensamentos», do Giacomo Leopardi (ed. Edições do Saguão), e inopinadamente recebo-os da mão do tradutor (com Ana Cláudia Santos). Folheio-o e logo ressalta que «o mundo é uma liga de malandros contra os homens de bem, e de vis contra os generosos». Apoiados nestas reflexões curtas, entramos, qual caminhantes, em plena natureza humana. Descrição de costumes, observação aguda, digestão da experiência, reflexão livre, eis perfume do que se encontra nestas páginas bilingues e tratadas que nem jardim barroco. Contrariando alguma filosofia, tropeçamos no tédio, apresentado como «o mais sublime dos sentimentos humanos», já que «o não poder contentar-se com nenhuma coisa terrena, nem, por assim dizer, a terra inteira; considerar a amplidão inestimável do espaço, o número e a mole maravilhosa dos mundos, e achar que tudo é pouco e pequeno para a capacidade do próprio espírito […] – parece-me a mim o maior sinal de grandeza e de nobreza que se possa ver na natureza humana.» Chega o Carlos [Morais José] e evoca, de imediato, a cena do «Amarcord» onde a comparação de Leopardi com Dante se faz frase de engate. Valha-nos S. Fellini, padroeiro das grandes verdades! E depois encontram-se pérolas de auto-ajuda (editorial). «Diz la Bruyére uma grande verdade: que é mais fácil um livro medíocre ganhar fama em virtude de uma reputação já adquirida pelo autor, do que um autor ganhar reputação por meio de um livro excelente. A isto pode acrescentar-se que talvez a via mais directa para adquirir fama é afirmar com segurança e pertinácia, e de todas as maneiras possíveis, tê-la adquirido.”

30 Jan 2019

Raízes e copas

Web, nenhures, 5 Janeiro

[dropcap]O[/dropcap] meloso natalício não muda grande coisa na folhagem das árvores despidas, menos ainda nos múltiplos brancos contidos na neve que nem tomba na cidade. Com a estação chegam os tiques próprios das ditas, como este de comprar a correr disquito ou livrito para oferecer, à falta de melhor.

Multiplicam-se as listas dos melhores do ano, fingindo que se lê por cá ou ao menos que se respeitam os livros. Enfim, a miséria habitual, que apesar de costumeira se amisera mais e sem piedade. Contudo, brilham excepções. A mais divertida, atenta e reveladora de extremo amor ao livro encontra-se no blogue do Henrique [Manuel Bento Fialho], «Antologia do Esquecimento»: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2019/01/o-melhor-dos-livros-em-2018.html A melhor lista dos melhores contém mais de trinta itens confirmando que, para o seu autor, o livro é um mundo a ser abordado de todas as perspectivas, por menores que sejam. Não creio que inclua livros de cujo conteúdo não tenha gostado, mas pega-lhes pelas minúcias do contentor: capas e contracapas, primeira e segunda badana, cortes superior, dianteiro e inferior, lombada, guardas, sobrecapa e cinta, formato e impressão, folha de rosto e índice, cólofon e notas de rodapé, mas também título, texto de contracapa ou epígrafe ou dedicatória ou agradecimento, além de prefácio e posfácio. Isto além das mais tradicionais capas, ilustrações, fotografias, colecções, tradução ou… livro do ano, que no caso foram dois e de imagens. Um divertimento, que nem por isso deixa de desenhar panorama dos mais completos.

Horta Seca, Lisboa, 6 Janeiro

Falho redondamente, como convém aos anafados, os desejos: descansar e planear. As urgências, ainda elas, muitas que resultam do incumprimento do planeado. Desprezando a electrónica, a minha arrumação assenta em papel, profusos papéis, que desenham do ano ao momento. O electrocardiograma dos meus dias sai em folhas A6, nas quais assinalo rugas, ideias, afazeres, telefonemas, pagamentos, nomes, projectos, gatafunhos. Não seria mais fácil em cadernos, que também frequento? Talvez, mas estes fragmentos são portáteis, podem tanto gritar-me o imediato como sussurrar o horizonte. Consigo juntá-los para harmonizar um mapa, uma hierarquia de prioridades. Embora resulte dissonância, alegre, mas dissonância. Ler os que foram sobrando relembra-me o óbvio. Afinal, não evitam o atropelo ou o esquecimento, menos ainda o acumular de irresolvidos. Pela simples razão de que não esticam o tempo. Quanto perdi com esta inutilidade?

Casa da Cultura, Setúbal, 11 Janeiro

Esta sessão da «Filosofia a pés juntos» tinha a Justiça por tema e logo a radical arqueologia do António [de Castro Caeiro] revelava uma surpresa. Para o grego, a injustiça resulta da humana ambição de querer ter mais, de fazer disso o seu horizonte. Até ao ponto ganancioso do meu tudo metamorfosear em nada o do outro. Injustiça continha, então e sobretudo, a ideia de denúncia. E pessoal. O processo visava que o injusto entendesse o erro e o confessasse publicamente. Dizê-lo era meio caminho para a resolução. O acento punha-se no trabalho interior do próprio, mais que em acusação externa. Daí a conclusão maior de que melhor seria sofrer uma injustiça do que cometê-la. A conversa expandiu-se, e muito, mas este pensamento-raiz ainda brilha que nem copa.

Acácio de Paiva, Lisboa, 12 Janeiro

Manhã de sábado em Alvalade, com uma luz de fazer esquecer o frio. Ambiente ideal para espreitar os trabalhos mais recentes do multi-talentoso Simão [Palmeirim]. Não falo agora nem da música, nem das investigações em torno da geometria ou sobre Almada [Negreiros], mas das pinturas. Vi-me em paisagens de tom negro onde o monumental não abafa a minúcia, o gesto, a composição. Entrei no miolo de máquinas, transmudadas do absoluto concreto para um abstracto contido. Cada pasta parecia mala devolvida de mundos por haver. Depois o papel rasgou-se janela, e surgiu um contínuo de umbrais feitos de cor e paciência. A repetição não tem que ser o igual multiplicado. Bebemos longo café e falámos ainda de Philip Glass. Vem aí exposição.

Povo, Lisboa, 14 Janeiro

Para sessão em torno da «Poesia do KWY», o Alex [Cortez] chamou-me ao microfone. Em ambiente aprimorado pelo Nuno [Miguel Guedes], e comentado propiciamente pelas cordas do [Vítor] Rua, que transliterou e pensou encontrar-se em Bukoswki, ouviram-se as vozes da Paula André enquadrando o relâmpago que foi projecto único, que dizia o portuguesinho Ká Wamos Yndo com letras que não havia, do tonitruante Manuel João [Vieira], brincando com anónimos e o episódico João Garcia de Medeiros, e do Miguel [Feraso Cabral] a evocar Manoel de Castro. Pensando nas contaminações (imagem, palavra, nomes) levei nos lábios para estragar o Helder [Macedo], capaz de descrever como ninguém o que foram aquelas lúcidas noites, o António José Forte, com sorrisos a doer-lhe nos lábios, e o José Manuel Simões: «Um quadro, como um poema, é demasiado pequeno para conter um coração. Por isso ele cresce, ilude os limites estreitos do caixilho, expande-se e fica a flutuar, qual cúpula, globo ou aquário, palpitante e rubro, exposto aos olhares clínicos e turísticos de quem se aproxima e contempla.»

Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 15 Janeiro

A noite aconteceu, enorme. E lúcida. Os que se afastem do convívio com os palcos (de teatro, que os de concerto são outra música) perdem, sem o saber, contacto com a realidade, com o oxigénio. Por isto. O Henrique [Manuel Bento Fialho] resolveu recomeçar o ciclo lunar do «Diga 33 – Poesia no Teatro» com os supermanos, António [de Castro Caeiro] e José [Anjos]. A singeleza da encenação (foto na página de Graça Ezequiel) potenciou a cumplicidade entre os dois, com leituras, comentários e música. O Henrique manuseou a curiosidade como ferramenta e pôs o António a explicar-nos que o destino se faz corda de ringue nas nossas mãos, sendo o boxe apenas uma das possibilidades, cada qual tendo na mão a escolha de modalidades, combates, até de adversários. Ilustrou depois os versos ditos do Anjos à viola, antes de o fazer com lanterna, no fecho: «um quadrado de terra na cidade/ um verão de amendoeira/ uma flor, uma pedra luminescente no peito/ da igreja/ a respiração ainda quente de uma boca derrotada/ um dia cruel/um gato de sombra que nasceu da invenção/ de uma escada/ e a sombra de um gato que morreu/ como a divisão de uma casa// a dor à volta da qual tudo se constrói.»

Horta Seca, Lisboa, 18 Janeiro

A Escola de Escritas do Luís [Carmelo] abriu «Crateras», colecção que recolhe textos dos que se vão cruzando aquela ideia. Começou com o «Tenham uma Boa Vida», do Francisco Resende, que evoca experiência do lugar, e a Ana Margarida de Carvalho, que em «Primeira Linha de Fogo», investiga o (sem) sentido das fronteiras em que nos entrincheiramos.

23 Jan 2019

Data redonda com arestas

Horta Seca, Lisboa, 2 Janeiro

[dropcap]C[/dropcap]ontagem, agora mesmo que nos fixamos no calendário, na tentativa de melhor o ver. Cem crónicas sem que a dúvida se dissipe: em negro pano de fundo, aquilo que aqui se vem desenhando chega a ser espelho?

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

Mau e frio, este tempo. O [José] Bandeira, há tantas décadas a fazer-nos pensar de sorriso nos lábios, foi posto fora das páginas do Diário de Notícias em silêncio. Merecia suplemento especial, que assinalasse devidamente o seu contributo, mas nem falo nisso; eu, leitor, pedia apenas um obrigado. O [Paulo] Barriga, que fez do Diário do Alentejo um jornal atento e criativo, singular, acaba de ser saneado de modo vil. Ele há frios mais gélidos que outros, que nos encolhem, nos tolhem.

Horta Seca, Lisboa, 10 Janeiro

Só mesmo Tintim saberia resolver este enigma: Quem é Tintim? O seu nome está algures entre a alcunha e um erro infantil de dicção. Não tem apelido, veio ao mundo despido de família. E de infância: nasce a 10 de Janeiro de 1929, logo como repórter aos quadradinhos do Petit Vingtième, suplemento infantil de um jornal conservador belga que levava o nome do século. Tinha 14 anos. Cinquenta anos mais tarde não passava dos 17. «C’est bizarre, mais c’est comme ça !…», confirmaria, Georges Prosper Remi Remi, o jovem belga que, aos 22 anos e sob o pseudónimo de Hergé, assinava aquele traço tosco que compunha um rosto com três pontos, enquadrados por um pequeno nariz e duas orelhas interrompendo um círculo. A popa era ainda mais cabelo que personalidade. Naquela aventura no País dos Sovietes, a primeira de 23, foi jornalista, mas nunca mais se lhe viu estilo ou texto ou reportagem.

Quem é esse, então, risco tosco que, em 1930, Bruxelas em êxtase esperava como se fora herói de carne e osso? Quem foi o único rival confesso do general De Gaulle e inspirador de Warhol e de tanta arte moderna? Quem é esse nome sem sentido que continua a ser pronunciado em mais de 45 línguas e a brilhar na capa de mais de 170 milhões de álbuns de banda desenhada? Quem é esse pseudo-jornalista que desperta vocações e é das figuras da cultura popular mais estudadas?

Tintim é perfeito. Destemido e incansável, o seu coração é tão grande como puro. Foi, à razão folhetinesca de duas páginas por semana, colonialista quando a Europa o era, mas nutria simpatia pelos índios pele-vermelha. Procurava a verdade a qualquer custo, o que, está visto, acaba sendo inocência simpática. O seu paternalismo equilibrava-se com forte disponibilidade para o outro. Não deixou nunca de defender os fracos e de combater as injustiças, mas sempre do lado do poder legítimo. No último dos álbuns, Tintim e os Pícaros, o ditador derrotado lamentava-se ao ditador vitorioso por não cumprir a tradição de fuzilar os vencidos, a pedido do nosso herói: «Um idealista, não é?… Infelizmente essa gente não respeita nada! Nem mesmo as mais antigas tradições!», responde-lhe o reposto Alcazar: «Sim, triste época esta…» Uma ironia, está bem de ver, que Tintim foi respeitoso da sua época, embora desconfiado de ideologias. Só um fortíssimo desejo de vergar o mal o fez cruzar a Terra, do Ártico à Indonésia, do Médio Oriente à Suiça, da América do Sul à África Negra, de Chicago ao país dos Sovietes, da China ao Tibete, de países inventados como a Bordúria a uma Lua tão premonitória que até tinha água. E nesse afã aventuroso de salvar amigos usou todos e cada um dos meios de transporte, do avião ao foguetão, embora tenham sido os barcos e o mar palcos especiais. Tornou-se nómada, mas por muito que viajasse, regressaria sempre a um apartamento incaracterístico que, apesar de tudo, não ficava longe do palácio de Moulinsart, onde um tesouro repousava escondido em globo terrestre. O dinheiro não entrou na vida de Tintim, cujos inimigos principais acabaram sendo os capitalistas, maquiavélicos manipuladores de políticos e causadores de guerras, patéticos génios do mal que enriqueciam com o tráfico de armas, drogas ou escravos.

Tintim foi perfeito, insisto. Além de corajoso, era atlético e inteligente. Não bebia, nunca fumava, jamais vociferou. Para isso se multiplicaram personagens como o Capitão Haddock, esse iconoclasta senhor de gritante vocabulário, ou os gémeos Dupondt, desastrados e vigilantes, direi mesmo mais, vigilantes desastrados. (Na página, o comentário de Pedro Pousada). Sem sombra de pecado, nenhuma mulher conspurcou o seu mundo moralista, herdeiro dos códigos de honra medievais. Mas o cavaleiro solitário teve uma cadela, Milu, a fox-terrier que falava e tantas vezes o salvou quantas lhe fez perigar a vida? De pouco importava, para Tintim a amizade estava no tecto do mundo. Por ela, amizade, verteu a única lágrima, em Tintim no Tibete, quando julgou que o seu amigo Tchang, que não via desde O Lótus Azul, havia morrido.
«Em Tintim pus toda a minha vida», cedia um Hergé de 76 anos, a um par de meses da sua morte, esmagado pelo peso do fenómeno. A perfeição do herói de papel tinha como reverso o humaníssimo percurso do seu autor. Do mesmo modo que a actualidade marcou o ritmo de cada uma das aventuras de Tintim, também a vida de Georges Remi se imiscuiu na obra de Hergé. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim», escreve Pierre Assouline, autor de uma biografia, Hergé (ed. Folio, 1998). «A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos.»

O pensamento de Hergé tem a cor da sua infância: cinzento. Assumindo como divisa «toda a convicção é uma prisão», tratava-se de uma moral que misturava em doses iguais o espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor, valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas preconceituoso, cheio de generosidade ingénua e misógina virilidade. Para Hergé, mestre da «linha clara», a lisura há-de ser sinónimo de limpeza. Ora todo o homem, e o século XX encarregou-se de o escrever em sangue, tem os seus lados obscuros.

George Remi enfrentou os seus demónios com a ajuda de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achava co-autor de Tintim, marca o período da formação. Tchang, o artista-estudante que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual e artístico é a do período (vermelho) da maturidade, que corresponde a’ O Lótus Azul. A descoberta, em Fanny, da mulher-amante, que o faz divorciar-se, marca um período depressivo (branco) de Tintim no Tibete.

E ergueu uma obra, apesar dos seus tabus, fossem eles a dúvida acerca da identidade do seu avô paterno; ou a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo na imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos, talvez seja este o mais discutido, quando se limitou a sobreviver com algum oportunismo, obedecendo, afinal, à… amizade.

16 Jan 2019

Casas e ocasos

Rebelva, Carcavelos, 18 Dezembro

[dropcap]O[/dropcap]s ateliers são-me assim como o reverso das telas, modo de espreitar as hesitações, de passear no grande jardim do caos, de tocar as bainhas da beleza. Sinto-me acolhido na confusão, a lareira acesa das ideias, queimando-se na absoluta liberdade, hesitantes ou disparatadas, roupas tocadas por restos das cores, por gestos involuntários, as ferramentas e as matérias postas no seu repouso prestes a. A pretexto do mais que improvável, logo desafiante, projecto da Catarina [Marques da Silva], a emergente galeria Cisterna, encontro-me no meio dos panos e formas da Ana [Jacinto Nunes]. Anuncia-se a chuva nas massas de cinza lá fora, erguendo pano de fundo apropriado para o que por aqui se passa ou guarda. Um rolo pode desdobrar-se em texturas e mistérios. Um recanto pode tornar-se janela para um jardim do Éden. Sobre a mesa podem baloiçar-se uns pássaros do paraíso ou alongar-se uma bailarina. A Ana pratica um desenho que mantém relação líquida com a palavra e o pensamento, desaguando nos mais díspares suportes. Anda em inquietação com os modos da mulher ser contra a gravidade, a paisagem e o tempo, de se fazer corpo no confronto com os bichos da arca atracada ao dilúvio. Admiro a estupefacção dos rostos, as figuras envolvendo o seu próprio movimento, os objectos de assentar. Aliás, vi por ali rostos a fazer de bancos, bailarinas suspensas na parede suportando peso. Trouxe nos olhos uma deusa de duas cabeças, desmultiplicada em olhos e bocas, sentada sobre rosto ecoando águas de cisterna de velha encruzilhada de civilizações, a interpelar-nos, a nós enrolados no tempo, com frescura de seda. «A deusa imaginária/ planeia crimes/ progride o caos.» Assentam bem, os versos finais de Progride o Caos, do Rui André Delídia. Entretanto, chove.

Horta Seca, Lisboa, 18 Dezembro

Escavamos na circunstância e, desfocados dos ritmos alheios, até em título excluindo natal («Às Voltas em Dezembro»), arranjámos maneira de plantar pretexto para mostrar a carne do ano, feita de livros e imagens. A generosidade do mano [José] Anjos suscitou um pouco mais, dispondo-se a tocar enquanto o António [de Castro Caeiro] ou o Pedro [Lamares], o Valério [Romão] ou a Raquel [Serejo Martins] foram dizendo. Surgiu do nada um calor que suspendeu a chuva e permite esperançar outros verões. Leio, do Delídia com delícia, de Em Pó como Antiquíssimas Memórias: «Infinito? Estrada de fogo nocturno?/ silencioso caminho/ por onde se parte para nunca chegar;/ máscara círculo etéreo/ de ódio contra a luz alastra a voz/ na névoa onde as formas se confundem/ contra aranhas e estrelas explodem as palavras.»

Lisboa, 19 Dezembro

Para o estado, o óbito é uma bala expansível, das que em requinte de crueldade se fragmentam e expandem por todo o corpo da vítima. Incontáveis gestos burocráticos minaram os últimos dias da contagem que me importa tão pouco. No seu afã prático, o meu pai resolveu partir de lugar próximo de tantas oficialidades. Não facilita voltar ali para sublinhar a morte com funcionalidades do obrigatório seguir em frente. Depois, no banco, era suposto herdar o seu nome, tal qual, quando há muito me escolheram outro apelido, com desagrado seu, estou certo. Tive que o dizer alto, sem querer: não quero esse nome.

Horta Seca, Lisboa, 20 Dezembro

Comecei por pensar em lâminas, vítima de dramatismo. Passei para golpes de papel, respondendo com optimismo. Nada disso. Alguns dias metamorfoseiam-se em corredores, longos corredores com paredes movediças e uma floresta de mãos. O terror tem raízes no quotidiano mais plano. De pouco serve voltar atrás, mas continuar implica arranhadelas, nódoas negras e, sobretudo, o asco. Não me posso queixar, pois ninguém me obrigou a vir passear para o pântano. Mas custa aguentar, sem qualquer ordem particular, o desdém e a indiferença, a má-fé e a ganância, a volúpia do ataque gratuito e a miséria fria dos pequenos poderes, enfim, o desprezo generalizado. «Corte/ feridas no olhar incurável/ doença aberta/ mapa volátil.» Delídia, de novo.

Horta Seca, Lisboa, 21 Dezembro

«em forma de árvore, a face oculta do mal/ agrava a chama dos jardins, escultura/ aérea. Faca volátil, colecção de mortes,/ ombros, braços contra paredes, raivas privilégios/ nas cabeças dos visionários, aventureiros/ como colares ou pássaros, tigres alfabéticos.» Trata-se de «Uma Ideia Mineral», isto é, um seu fragmento (terceiro). Nem para os editores as memórias se ficam pela espessura do papel. De uma penada perderam-se dois dos que importavam nisto de erguer livros que são vidas. Devo a ambos, além de preciosíssimos títulos para bibliotecas instáveis, conversa solta e o farol de uma ética. Coincidem no acaso desta croniqueta com a animália. Não foi apenas a Salamandra que o Bruno da Ponte (1932-2018) criou, mas nela nos encontrámos, tendo sido prévio leitor da Questões & Alternativas, e partilhando o interesse pela poesia experimental além de recorrente discussão sobre luta armada. Fez-se primeira ilha açoriana conhecida e ainda nos cruzámos na Abril em Maio, maneira de dar nós no tempo, aqui há tempos. Afastado que tenho andado dos sábados e da Anchieta, há muito que não me encontrava com o [Rui] Martiniano (1954-2018), mas a Hiena jamais deixará de me gargalhar ao peito. A boa editora faz-se cruzamento dos vários tempos que se souberam inventar uma literatura a partir dos restos arestas do humano. Um catálogo cometa, resultado de investigação de um particular e partilhado gosto febril. São peças simples e cuidadas, feitas para servir textos indispensáveis e nomes únicos, que brilharão no alfarrábio, como convém. Pássaros que continuam a voar na noite. Acendi, nestes dias, a Luz Negra, do seu lado B, a do poeta Rui André Delídia. Faça-se parágrafos de silêncio.

Horta Seca, Lisboa, 21 Dezembro

Voltámos a consumir a tarde por entre os acordes do [José] Anjos e as palavras de quem se chegou ao microfone. Desta ecoaram inéditos da Rita [Taborda Duarte] e do Ricardo Gil Soeiro, augurando horizontes. A inesperada figura da tarde acabou sendo o Tóssan, de que o Jorge [Silva], além de grande divulgador, se tornou voz. Suscitou mesmo a amorosa participação de vários putos sem medo. Tudo fragmentário, desorganizado, discreto. Aqui e ali surpreendente. Para o fim da tarde, rimando, deu-se a breve e inusitada apresentação de «Caridade Romana», a nova e inclassificável polifonia de José Emílio-Nelson. Pequeno somatório de impossíveis, cruzando momentos de fulgurância poética com confissões ejaculadas nas redes sociais, invocando a erudição das teologias heréticas para as queimar nas fogueiras dos misticismos desregrados e celebratórios do corpo, altar maior. Pensar com espinhos que esfolam, que pedem a paciência dos prazeres estendidos ao limite. Quem arriscará para além do paleio transgressivo? As capas (algures na página) são visões (dobradas) da carne do mergulhador de corpos, António [Gonçalves].

Cova Funda, Lisboa, 28 Dezembro

Fazendo da mesa tantas vezes bússola, saber que o Cova Funda vai fechar agrava a minha desorientação.
Foi ponto de partida e porto de abrigo, lugar de encontro, miradouro de horizontes, plantação de desafios e ideias, casa de família. Construído a partir da mesa. A Ana [Jacinto Nunes] faz das cadeiras um bicho. Soubera eu, e faria da mesa animal doméstico. A mesa é o melhor amigo do humano. Também serviam, no Cova, dos melhores cozidos da cidade, um peixe que o fogo celebrava como carícia, pezinhos de coentrada e outra comida de tacho que soerguia a cova a pontos altos. A companhia importava, mas até o farol precisa ser aceso.

9 Jan 2019

A vida saudável

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Dezembro

[dropcap]C[/dropcap]ada dor contém enigma que não se resolve assim. Alivia, se me distrair do pé. Por estes dias, demasiadamente muitos, o meu corpo concentra-se algures em torno de um dedo. Tento o diálogo com o dito, também ele já cansado de imprecações, palavrões e outras rimas de quebrar gelo. Não lhe reconheço traço distintivo, além do cansaço de arrostar com quilos e tropeções, toques artísticos em móveis caseiros e mobiliário urbano, quase nunca em bola ou transeunte, apesar dos apetites. Ah, a culpa não lhe cabe. Só um caricaturista, mestre em dores públicas, e nesta privada, podia apanhar a criatura: James Gillray [algures na página]. O ligeiríssimo bálsamo advém da investigação, que permite escapar aos médicos-formados-agora-mesmo-no-google que me atazanam, picando piedade com habitual gozo. Cada passo desfaz-se em impossibilidade que acumula gritos na garganta. O chão ou o lençol, dá igual, tornaram-se instrumento de tortura. Horizontal anuncia-se novo normal, logo agora que preciso de andadura certeira. O bicho acaba de cravar outra unha. Perco a concentração, algo mais se atrasará, agora por razões de tormento. Descubro nos queridos cristais em excesso uma raiz herdada nos cálculos renais que atormentaram, e muito, o progenitor. Depois, o nitrogénio no composto do ácido úrico fraterniza-me com aves e répteis. Alegra-me saber, antes de alegre guinada, que a razão pela qual o guano se faz bom fertilizante está no alto teor de nitrogénio. Nem sempre do excesso resulta desvantagem, mas isso só para os outros. O remédio tinha que ser «um estilo de vida saudável»! Além da actividade física regular, ai!, consta, e cito, a redução («mas não proibição») de alimentos ricos em purinas (carnes, vísceras, marisco e alguns peixes como salmão, truta e sardinhas) e redução do consumo alcoólico, especialmente de cerveja e bebidas brancas. O consumo de refrigerantes e sumos de fruta deve também ser evitado. Em tempos, quando os pobres pouco comiam, a doença era de ricos, pelo que a caça e as carnes jovens são para esquecer. Aquela perdiz desossada, as costeletas de novilho… As conservas, os enchidos e até as sopas, se nelas repousarem caldos processados, estão proibidas. Aquelas anchovas, o bucho! Não sei, mas ou a vida ou o corpo ou ambos andam a querer dizer-me o que já sei: não lhes pertenço.

Horta Seca, Lisboa, 10 Dezembro

Na luminosa desgraça da quadra poucas são as razões de ânimo. E piora quando, na travessia do inominável deserto do novo puritanismo, não páram de chover cometas. Hoje, soube-se de professor universitário nos antípodas que tornou objecto de estudo os 24 filmes de James Bond. Não para lhe descobrir novos sentidos, em modos de dizer, na ideia de aventura, nas invenções entre o mortífero e o salvífico, mas para concluir que o espião ao serviço de Sua Majestade era alcoólico crónico, que bebericava, por filme, umas 109 vezes. Fez outras contas, que davam como resultado ter o homem trabalhado em coma alcoólico. A conclusão maior e indispensável à humanidade está na «irresponsabilidade das chefias» que tal permitiram. A palavra fantasia, estou certo, desapareceu dos dicionários. Por causa das coisas, bebo uma gota (sim, há por aqui uma ironia qualquer) de um maravilhoso Redbreast (12 anos), que mão amiga me trouxe. O que me leva à de ontem, o apelo à censura da célebre canção, «Fairtale of New York», dos The Pogues, lançado por um estudante, editor de um jornal, e logo secundado por um DJ, costumeiros habitantes de sacristia. Causa? A palavrinha faggot. A vida é bastante abusiva, vamos deixar que a arte seja um sítio fofinho onde descansar um pouco a cabeça. (Melhor dizê-lo: há por aqui um sip de ironia.) As boas intenções estão, finalmente, a fazer da vida em sociedade um inferno. Saudável, claro.

Cervantes, Lisboa, 13 Dezembro

Um homem corre em caminho nevado de montanha na direcção oposta de um cavalo amarelado levando na mão cabeça de mulher. Um homem agachado ignora a cena, como o pássaro que depenica. Abaixo e ao centro, um olhar infantil interpela-nos. As colagens de Adriano del Valle, nunca antes vistas por aqui, iluminam «O Ultraismo Espanhol e Portugal – Cem Anos de um Movimento de Vanguarda», breve mas intensa exposição que António Sáez Delgado organizou para celebrar momento importante nos diálogos ibéricos. Importantíssimo, digo eu, no peso dos nomes que ignoraram fronteiras para, para lá de pensarem, fazerem em conjunto. Ramón [Gomez de la Serna], outro núcleo da exposição, e Almada [Negreiros], são disso exemplo maior. Acrescente-se Rogelio Buendía, terceiro núcleo, que, com Adriano, se apaixonaram pela literatura deste lado, logo levando Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro aos leitores ibéricos. Revistas, livros, recortes e correspondência, além de fotografias e desenhos, ajudam a desenhar um mapa que nos permite entrar em território fascinante. Esta vanguarda sabia incendiar gestos colectivos, desmultiplicava-se em manifestos, montava antenas de atenção cristalina ao cosmopolitismo navegante das geografias e dos tempos, e alargou o possível.

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

A chegada de provas alegra o dia, ainda que contenham erros ou incorrecções. As novas técnicas fazem com que estejam mais próximas da maqueta inicial, mas, em simultâneo, aproximam-nos mais do livro como ele será. Ou seja, as provas são impressões do documento enviado, sem montagem prévia em acetatos, sem outra intervenção da gráfica, que não o ordenar dos cadernos no formato. (As provas de cor, essas, darão indicações da realidade futura.) Mas o mono pode com extrema facilidade dar-nos emocionante visão do que será o livro, em versão descolorida. Apesar do estrago, em papel e no mais, devíamos trabalhar sempre maquetas tão próximas quanto possível para melhor percebermos a sua personalidade. E detectarmos o que nele não funciona sem o exercício da idealização. Folhei vezes sem conta este «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», belíssimo e perturbador álbum da Mariana [Viana], primeira coedição com a Imprensa Nacional.

Casa da Cultura, Setúbal, 14 Dezembro

De «Fronteiras» se fez a discussão no «Filosofia a Pés Juntos», logo separando as internas das externas, essas mais óbvias, ainda que sem perderem complexidade, ou não fosse o horizonte também ele uma fronteira. Só pelo esforço ultrapassamos em nós limiares, resolvemos fases, vencemos medos e o que mais nos poderá definir. Esforço que ao tempo pertence, enquanto a definição de comunidade se inscreve no território, no espaço. Sem nunca se afastar da antiguidade e das palavras cujos significados sabe fazer explodir como ninguém, o António [de Castro Caeiro] deixou claro que a identidade se torna central nesta construção a cada instante do próprio corpo e do nosso no de todos. Sem fronteiras não nos orientamos, nem que seja para as derrubar. Certos temas insinuam-se com veemência.

Metro, Lisboa, 15 Dezembro

As escadas rolantes da estação Baixa-Chiado estão amaldiçoadas. Findos vários meses de paralisia do primeiro lance, em ambos os sentidos, para substituição dos velhos (20 anos…) mecanismos, ei-los que reluzem. Parados. Um sinal cristalino que nada vencerá a degradação dos serviços.

19 Dez 2018

Sopros de paixão

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

[dropcap]E[/dropcap]xperiência é a palavra dum viajante em zona estranha, hostil.» Ainda há poucos dias, Fernando Belo (Lisboa, 1933-2018) publicava em uma das pontas da sua intrincada meada de blogues intenso depoimento acerca da entrada enquanto pensador irrequieto no jogo de gato e rato entre espiritual e intelectual. Engenheiro por causa dos números, padre por via de um transe, filósofo em resposta a uma enorme paixão… intelectual.

«Comecemos por distinguir intelectual e inteligente: este é quem compreende as coisas do mundo, além dos seus interesses próprios, aquele é quem sabe jogar com conceitos e literaturas. Há quem sem ter estudos superiores e sem ser intelectual seja fortemente inteligente e há intelectuais académicos que são burros de fazer dó (acontece-me em certos aspectos da vida). […] Também o motivo de ‘espiritual’ tem que ser distinguido de ‘religioso’, que se constituiu como uma forma social englobante de toda a sociedade, desde o nascimento, enquanto que o ‘espiritual’ parte da conversão da vida e rompe com o aparato ritual e doutrinal da religião. Mas também o ‘espiritual’ não é a pôr apenas do lado da ética, que esta também tem incidências intelectuais, ainda que filósofos, cientistas e artistas possam por vezes rebaixarem-se eticamente. Seria tentado a pensar o que chamei ‘respiritual’ do lado do sopro na vida, mais do que da ética de que, melhor ou pior, muita gente dá provas em vidas que não são fáceis: ‘respiritual’ seria o sopro duma paixão que se põe acima do culto dos feitiços habituais, o dinheiro, o poder, as ortodoxias mediáticas, uma paixão que não transige, não se dobra em face do que impera.»

Os seus textos não perdem densidade quando se deixam tomar pela poesia. E, contudo, deu, como poucos, atenção à materialidade e ciência. Lamento muito não o ter chegado a editar. Há que percorrer estas suas paisagens em busca de vestígios de funda linguagem, do ser e do tempo, do corpo e da alma. Como de oxigénio, dedo no ar, tenho que perceber de onde se pode reacender o sopro.

Povo, Lisboa, 3 Dezembro

A cada segunda, a noite estremece: por vezes arrepio, outras relâmpago. Outras nada, mas ainda assim há 274 sessões que Poetas são ditos e celebrados pelo Povo, no Cais Sodré de ancestrais traficâncias. Desta, tratava-se de alguém que ajudou, luas atrás, a definir o perfil do lugar. O mano José [Anjos] não teve como seguir as suas instruções e desaparecer. Dando cor aos seus versos, fez-se presente de guitarra na mão e pedais ao pé, de par com Filipe Homem Fonseca no teremim, que encheu o ar de futuros e distintas coreografias de mãos tocando o nada. O resto deu-se no ziguezague costumeiro das vozes cavas do Vitor [Alves da Silva] e do Pedro [Lamares] e as mais agudas do mano António [Caeiro] e do gordo que se assina.

Nem toda esta poesia nasceu para ser dita, mas em muita a voz fá-la ganhar corpo e respiração. Sou testemunha próxima do amadurecimento do poeta também na sua encarnação de diseur, encenando leituras com rigor extremo e testando sem descanso parcerias variáveis, em busca da companhia e do instrumento exacto para aquela palavra. Estas exibições não dispensarão leituras em modo íntimo, olho na página, mas toca lugares nem sempre visíveis apesar de palpáveis. No que me diz respeito, o mistério acontece na partilha plana da pessoal interpretação, como se a estivesse a ouvir na minha cabeça, sem efeitos de maior.

A voz que se segue logo revela mais possibilidade. E nisto se descobre pelo verso corrido, respirado, suado do Anjos a oculta arquitectura das paisagens.

Nova, Lisboa, 5 Dezembro

Aristóteles teve de ir a casa. O António [de Castro Caeiro] anunciou-o e o Luís [Gouveia Monteiro] explicou-o estabelecendo paralelo entre as personagens do clássico liceu e as tribos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. O Paulo [José Miranda] detectou a estranheza com que o outro, qualquer que seja, nos surge (texto publicado há dias nestas páginas). «As Constituições Perdidas de Aristóteles» continuam a suscitar desafiantes leituras. «No mundo de Aristóteles os elementos têm vontades: a terra deseja cair em direcção ao centro do universo, o fogo anseia pelo céu, a natureza tem horror ao vazio. No nosso também, e ainda nem sequer nos livrámos da ideia de que os deuses nos olham lá de cima sentados numa nuvem, às vezes visitam-nos e podem até, em querendo, pescar-nos como peixes. E as Constituições, produto daquelas escolas, como a academia e o liceu, são um documento essencial para um momento único na história da espécie, uma verdadeira indústria de conceitos, de espírito, que procurou organizar e sistematizar o conhecimento disponível numa espécie de primeira grande modernidade intelectual da espécie.» Mas o Luís foi mais longe e traçou uma genealogia do jogo entre alma e corpo, espírito e matéria para concluir: «E é claro que as coisas têm desejos, como disse Aristóteles, como precisa a metafísica e como a poesia sempre suspeitou. A física contemporânea continua à volta dos problemas daquilo que não é nem espírito nem matéria, ou então é as duas coisas ao mesmo tempo, como a luz. […] O mistério continua intacto e esta tradução enriquece esse mistério, dá alimento ao pensamento e à imaginação.»

Palácio, Queluz, 7 Dezembro

A Divino Sospiro, assombroso projecto animado pelo Massimo [Mazzeo], instalou-se em boa hora no renovado Palácio Nacional de Queluz, lugar de prolongados namoros entre paisagem e arquitectura. E estendeu-se com um Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, que lançou, entre muitas outras iniciativas, um primeiro volume dos «Cadernos de Queluz» (ed. Hollitzer) dedicado à «Serenata and Festa Teatrale in 18th Century Europe», e coordenado por Iskrena Yordanova e Paologiovanni Maione. De grafismo irrepreensível, os dezasseis estudos levam-nos a lugares e celebrações do fausto, mas sobretudo a uma complexa maquinaria teatral que criava mundos nas capitais da Europa. Artifício e verdade, poder e arte dançavam apaixonadamente juntos. Dançavam?

S. Luiz, Lisboa, 10 Dezembro

«Sócrates tem de morrer», certo e sabido. Uma certa ordem das coisas, por exemplo a que diz serem distintas a alma e o corpo, precisa da morte para se afirmar. Mickaël de Oliveira investigou Platão e produziu um díptico, ao qual se soma «A Vida de John Smith», erguendo cenário para questões que nos atravessam, rindo, rasgando e perturbando. Na primeira parte, a lógica do pensamento que garante a sobrevivência da alma depois da morte leva à criação de grupo quase terrorista. E quase apenas por ser o assassinato o seu horizonte, não tanto o terror. A segunda parte revela-se distopia: «a matéria (a linguagem, as texturas, a luz) não é obstáculo ao conhecimento, no qual já não existem segredos, particular ou universais.» É um mundo triste, de onde a poesia está ausente, a custo, diz a personagem, mas ausente. Não radica aí a tristeza, antes na inescapável cedência à lógica de qualquer poder: jamais se questionar nunca. E o fim da linguagem não resolveu os imponderáveis. A ficção científica nacional, subitamente rica, tomou os palcos e neles questiona futuros de maneira aguda. John Smith, em poderosa interpretação de Albano Jerónimo (foto de Bruno Simão algures na página), pega na arma do mais chão bom senso e corta cerce.

13 Dez 2018

Fragmentos de um discurso qualquer

Horta Seca, Lisboa, 24 Novembro

[dropcap]N[/dropcap]ão preciso do fim do ano. A obrigação destas linhas abre, a cada semana, espaço de avaliação, tantas vezes cruel, ou pelo menos, frio que nem mármore como devem ser as ditas, bases de autópsia. Outras vezes, são mesmo as circunstâncias que a isso me obrigam, mãos forçando cabeça, a ver o feito, o desfeito, o prometido, que será sempre devido. Circulou, há pouco, pedaço de entrevista do Orson Welles – vaya huevos – no qual falava do artista que era, incapaz de sacrificar a amizade em nome da arte. O mais importante não é arte, ainda que por ela morra. Isso não disse, mas pro falta de tempo. Valorizava muito aqueles artistas que o faziam, mas no seu caso, não conseguia – silêncio – ser profissional. Ele ia sendo – silêncio – aventureiro. Se fosse arte, o que faço nos intervalos do que vou sendo, seria mais aventureiro do que profissional. E tal não se encontra contaminado pelo romantismo. Nalguns momentos, o que de nós enfrentados na perspectiva espelhada dos autores ganha a carne da dor. O editor-aventureiro está sempre a falhar, algures e com alguém. E o ano foi pródigo em falhanços, alguns tão rotundos que estou capaz de por eles me apaixonar.

Horta Seca, Lisboa, 25 Novembro

A Lua empurra outra maré e nela marulham páginas e mais páginas a exigir leituras. Alguns textos, com e sem encontros, fazem esquecer o lápis do carpinteirar, despertando logo o leitor, alegrando-o, erguendo-o, sustentando-o até. Metade do meu dia devia ser desta matéria e não de outras. Esta põe-me nas nuvens, as outras atrasam-me, deslassam-me, esmagam-me.

Horta Seca, Lisboa, 25 Novembro

De súbito e à mesa, um, dois, três projectos. Pressinto sol além do nevoeiro, matinal o dia inteiro. Este, sendo pessoal, talvez me obrigue a escapadela pela criação, tão maltratada. Serei capaz? Aquele, colectivo, colado à poesia, ainda para mais, permite ensaiar a ideia de editora como plataforma de, dizendo com corpos e vocações envolvidos, empresas. Venceremos as oposições que se alevantam? Estoutro, em colaboração estreita, pode satisfazer necessidades e, talvez, trazer algum proveito. Saltaremos os obstáculos? Estou nas nuvens. Até que a chuva me doa.

Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro

Tenho nas mãos, e não deixo de o manusear, o segundo volume das Obras Completas da Fernanda Botelho, «A Gata e a Fábula», um dos notáveis e dolorosos atrasos do ano que finda, quando me apetecia esmagá-lo – vã tentativa de o mudar. Dói a demora no que afecta das vidas vividas da Joana [Botelho] e da Paula [Morão]. Adiante: outro romance ímpar, pano de fundo intenso e colorido para as deambulações de mão-cheia de belas personagens, esculpidas em carne e osso. Alguns fragmentos iluminam-se peças de teatro, outros desafazem-se em guião de filme ou composição de quadro modernista, ou seja, o romance acontece em todo o seu esplendor e potência. Com extrema subtileza, somos transportados no tempo, em direcção aos encontros e desencontros que nos fazem ser isto ou aquilo, de uma maneira ou de outra. Também o podemos visitar como museu próximo, mas cada um vai onde quer. As plantas carnudas e carnívoras da capa da Maria João Carvalho florescem em luxuriante e (pictórica) metáfora, ou seja, evocação [algures na página].

Horta Seca, Lisboa, 27 Novembro

Cedo, recebo a versão paginada do desafiante «Pensar o Trágico», do José Pedro [Serra]. Que gosto, confirmo, o uso cortante que se faz do incandescente adjectivo! O bom gosto de salão rejeita-o liminarmente, na vã espectativa de fazer bolos sem açúcar. A metáfora é propositada, pois a crítica principal está no efeito meloso. Contudo, não há por aqui pântano, antes floresta de lâminas. Interessa-me o assunto, muito por causa deste regresso dos palcos lisboetas ao clássico, que me entusiasma, mas não sei explicar. O destino na mão? O fim do mundo? Está sempre a acontecer em versão Parque Mayer, não será por aí. Para já, estou concentrado na gestão das notas de rodapé, na transcrição do grego, no cultivo dos índices, etecetera. Assim vença eu a tentação do texto, sem o lápis de carpinteiro, cuja ovalidade só se afia com canivete: «A pergunta sobre a tragédia e o trágico é também pujante porque é vital revisitação, cultura sobre cultura debruçada, arriscado olhar incandescente e interessado sobre o nosso destino de seres históricos. Nessa imensa pujança reside também a sua urgência.»

Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro

Na revista Mercurio de Novembro, Diego Doncel, inclui Valério Romão, e o seu tríptico Paternidades Falhadas, nas Voces de la Nueva Novela: «Precisamente en la Francia de la emigración portuguesa nació Valério Romão. Su trilogíaPaternidades falhadas es una de las empresas narrativas más solventes de la última generación. En Cair para dentro (Abysmo) el tema del Alzheimer le sirve para tratar precisamente los sueños, antes y después de la Revolución, fallidos o equivocados, las esperanzas que murieron al mismo tiempo que la política se hacía solo formalmente más democrática. Hay que llamar la atención sobre el recurso narrativo del fragmento que indica el mundo disociado de la enfermedad y el mundo disociado de un país que pulveriza su propia memoria». Curiosa, esta leitura do fragmento como elemento estruturante. E pulverizador da memória.

Folgo em constatar que se vai descobrindo o músculo desta escrita, apesar da desatenção – ou será preconceito? – de um certo bom gosto de salão que teima em exclui-lo das comitivas nacionais. Se, por um lado, resulta desagradável comentarmos listas e nomes, por outro, parece de elementar justiça e mínima transparência que sejam públicos os critérios das escolhas. Nem que seja para confirmar o óbvio, a rimada combinação de mediatismo e amiguismo.

Horta Seca, Lisboa, 30 Novembro

Pela primeira vez, somos visitados pela ASAE, em inspecção de rotina e prevenção em torno do branqueamento de capitais. Pensei e não disse: nesta cave nem os dentes se branqueiam quanto mais capitais. As inspectoras cumpriram a sua missão didáctica, constatando o amarelo sorriso face à ameaça dos crachás policiais, logo percebendo que a arte, por aqui, tem que acumular absurdos para ultrapassar o limite dos mil euros em dinheiro vivo, quanto mais o dos 15 mil que obriga à burocracia. Conferiram a facturação, pelo que ainda nos rimos juntos: o dinheiro aqui está morto. E tal fragmento não se encontra contaminado pelo romantismo.

Santa Bárbara, Lisboa, 1 Dezembro

Atentemos no título, «Tiempo que Dura esta Claridad» (no colófon, corrige para Soledad, pois o autor adora saudade), que explica muito deste álbum que me puxou ao passado, para logo me atirar ao futuro. O cansaço de ser reside todo no tempo, areia a meter-se por todo o lado, nas dobras da pele, nas margens dos livros, na saliva, nos olhos. Esta banda desenhada vem de um momento em que acreditei, quando revistas se erguiam cidade, amizade e tantas rimas: Madriz, Médios Revueltos. Trata-se da antologia de histórias curtas/fragmentos do querido e pessoano Federico [Del Barrio], de mão dada com os evanescentes argumentos de Elisa Gálvez (ed. Reino de Cordelia). Nenhum autor pratica, como ele, o intenso jogo do não dito, o mais solto dos horizontes para a novela gráfica. O branco a ser preenchido pelo leitor, a matar a narrativa, a desmultiplicar a poesia, cada qual interrogando-se ou crescendo no espaço entre os quadradinhos. E depois, quem como ele, pôs gato a pensar abstracto, como eles a traduzir o mundo em pintura?

5 Dez 2018

O grão da surpresa

Horta Seca, Lisboa, 17 Novembro

 

[dropcap]A[/dropcap] língua pode ser revista. Traz promessa de passar em revista o alfabeto inteiro começando pela letra primeira, a de Atlântico. Chega-se com nome que não podia ser mais feliz: linguará.

Não por acrescentar princípio a língua, toque que amplifica, até porque A de perfil faz altifalante, mas por ser, em algum dos muitos afluentes semeados na outra banda oceânica, sinónimo de intérprete (de branco para índio e vice-versa, na origem, a evitar nos dias correctos). Em tempos brutos, a subtileza com que se anuncia vem portadora de imensa frescura: «uma revista pela língua portuguesa». Com a densa simplicidade do azul, são cadernos A4, que só não voam porque e linha na lombada os mantém próximos da mão. Orquestrada pela Maria José [Amorim] e companheiras, Carla Paoliello e Priscilla Ballarin – que também desenha, com amplitude e afecto, esta edição (http://www.revistalinguara.com) a aventura toca-me pela leveza com que apresenta as múltiplas, fugazes, desafiantes cambiantes da língua. Na vez de publicar ruído, digo, redundâncias tonitruantes, convoca para a frente do espelho fragmentos, restos que, por vezes, nos fazem falsos amigos, noutras nos atiram para longo beijo de língua.

Faz tanta falta este amoroso descomprometimento que reúna no mesmo lugar, no mesmo falar, o astrofísico e a o alfaiate, o mecânico e o místico, o malabarista e merceeiro. Ou seja, mais do que longos e académicos ensaios, encontramos pormenores ampliados, ligações avulso que produzem sentido. O artesanato material e o linguajar comum cruzam-se com a pesquisa erudita e a aspiração artística para fazerem primaveras. Andorinha, a palavra ergue-se rainha, mas não desdenha a imagem, como nas fotos de lugares homónimos ou na caligrafia artística em busca de azulejo onde se eternizar. O intérprete faz-se ponte movediça entre tudo e mais alguma coisa. O puro prazer desta recolha não esconde a teoria dos cruzamentos que fazem crescer esta água na boca. Há tradição para descobrir, modernidade para oferecer, maneiras de fazer, ideias à deriva, poesia e filosofia, memória e canção brega. Desconfio que não seja essa a intenção, mas além da mais interessante política de língua comum (ou vice-versa) pode nascer daqui uma outra de promoção a leitura. Diz Adélia Prado, Antes do Nome: «A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/ foi inventada para ser calada.// Em momentos de graça, infrequentíssimos,/ se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão./ Puro susto e terror.» Uma língua pode morrer na nossa mão. Ou arejar.

Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro

Este voar baixo e cego, de que me cansa falar, impediu-me de saborear devidamente (lamber a cria, diz-se) a chegada do volume III da poesia completa do Antero, permito-me, sem rir, o tratamento por via da convivência. Tacteio a cor da capa do volume mais surpreendente por razões que o Luiz [Fagundes Duarte] não se cansa de anunciar em conferências, mais e menos participadas: há um Antero para além «santidade» fixada. Descobrem-se por aqui, com grão de surpresa, mundanidades, dislates, ensaios, voluntarismos, sátiras, ânsias e fúrias, perfumes do desejo e vapores da política, humanidades, enfim, deliciosas preciosidades, para rimar. Folhear basta para encontrar coincidências com os dias, ainda e para sempre estes nossos: «Bem é falar de tristezas/ Por estes tempos de risos,/ Em que passa a Gargalhada/ Na face dos paraísos […]». As tormentas vêm de todos os horizontes e o poeta leva a Alma pela mão visitando o que se anuncia nos mapas e nos mitos, mas antes esculpe rostos. «[…]A gargalhada do sábio,/ Que se chama… indagação;/ A gargalhada do céptico,/ Que tem nome… negação:// A gargalhada do santo, Que tem nome — fé e crença;/ A gargalhada do ímpio,/ Que se chama… indiferença:// A gargalhada da história/ Que se chama… Revolução:/ E a gargalhada de Deus,/ Que tem nome… Escuridão […]». Resultado? Leia quem possa, que hesito na conclusão. Entrar na boca do demónio que vive desta atroada de possessos ou sonhar com a luz que sairá do peito do condenado.

Horta Seca, Lisboa, 23 Novembro

«Prólogo a la Invención del Diluvio», assim se chama a antologia do José Luiz [Tavares], com tradução de Diego Cepeda, com que abriu asas e voou a Puro Pássaro, novíssima editora do Jerónimo Pizarro e do Pedro Rapoula, com ninho em Bogotá. Seguiu-se, entre outros, «Las Cosas», da Inês [Fonseca Santos], no caso com tradução do Pedro Rapoula. Edições cuidadas, pequenas no formato de lombos coloridos, com ilustrações, desenhadas ou fotografadas, a quererem afirmar a poesia como o lugar maior da língua. No «Dilúvio» há mesmo folhas em vegetal que propõem versão (sobreposta) do poema no crioulo de Cabo Verde. E cuidadas, sobretudo, no transpôr do verbo, do espelhar da construção, no tento com que se busca o verso exacto. Encontro nestes esforços, de que o Jerónimo se vem fazendo pródigo, solo bem mais fértil que o dos acampamentos de pompa e circunstância nas feiras internacionais (do negócio e da vaidade). Mas isso sou eu, que montei casa em horta seca. «Solo yo no me quedo bien, my señor,/ que espero toda la tarde ele poema/ que no viene, aunque barcos suban/ el tajo aullando a través la niebla».

Facebook, algures, 24 Novembro

O mano Gaspas, de seu nome inteiriço, Luis Manuel Gaspar, publicou um conjunto de imagens, devidamente legendadas – com as mais dispersivas coordenadas, com se latitude e longitude fossem primeiros passos na viagem – da Maruja Mallo. Digam lá o que disserem, há quem faça das redes um tapete de serviço público, servindo para limpar sapatos antes de entrar ou para sair a correr um direcção ao espanto e maravilhamento.

O mano produz sequências em torno dos seus queridos (Almada e Alvarez e Amadeo, Botas e Botto, Herberto e Helder, Wyatt e Waits, Ramón e Ramos Rosa) que espalham informação segura, detalhes explosivos, um gosto feito trepadeira a crescer. Aqui e ali, mostra migalhas das suas detalhistas e cruzadas composições (a isso voltaremos), mas interessa-nos agora a autêntica produção de conteúdos raros e sensíveis. Ando para falar disso há tempos, armado em intérprete-tradutor-ponte, e eis que a pintora, «metade anjo, metade marisco», se faz pretexto. (Algures na página, «A Surpresa do Trigo»). O motivo, para o mano sem acento, raras vezes nasce da actualidade, mas a sua página está sempre a estender-se tapete de museu vivo. No caso, da Maruja trouxe trigo e festas de aldeia, em composições de geometria «fatal» que atiram para a melancolia. Uma colorida melancolia onde os elementos da vida poderiam ainda fazer sentido. Um incerto sentido sobre o qual caminhar.

28 Nov 2018

Entre nuvem e deserto

EL Corte Inglés, Lisboa, 9 Novembro

[dropcap]U[/dropcap]m dos objectos mais quotidianos acontece ser a conversa. Desatentos, não damos pelas palavras a explodirem ao nosso redor, demasiado perto apesar de alheias, a ecoarem autónomas do seu sentido, a despertarem indignações, quase sempre caladas, mas também as do comércio do espírito, soltas da nossa boca por receio do silêncio, para atapetar a urbanidade. Mas conversa séria acontece para além das palavras.

O modo como são ditas, como o corpo as interpreta, brinca com elas, gargalhando, repetindo, hesitando, sublinhando, sussurrando, provocando, acolhendo, sugerindo, comovendo, oferecem tanta informação como o resto, feito apenas ponto (e logo penso em Reinaldo Ferreira). «Mínimo sou,/ Mas quando ao Nada empresto/ A minha elementar realidade,/ O Nada é só o resto.» Recordo pouco, para defesa da razão, mas guardo como privilégio do que vou vivendo assinaláveis conversas, meros pontos que, no momento, fazem do resto pouco mais que nada. E ecoam. Acaba de acontecer com o António [Valdemar], esse portador da chama da memória que incendeia a minha mítica Lisboa. Encontramos sempre lugar onde encaixar figura, ou vice-versa. Pode ser um sátiro de Canto da Maia, uma passagem de Aquilino ou os olhos de Almada. Hoje passeámos bastante por Almada, o que quer Lisboa e o resto. As palavras, claro, mas sobretudo os olhos de ver ao longe. O que importa vai ficando dito pelo António. Preciso, para mim e para efeitos básicos de orientação, que me o António me faça, um destes dias, o mapa das famílias que há muito estendem redes, latitude e longitude, sobre este ponto de acostagem. Falo da cidade ou de cultura?

Santa Bárbara, Lisboa, 10 Novembro

Tons de amarelo, mais ou menos torrado pelo sol. Não há América do Sul (nem realismo, mais ou menos neo) sem torreira do sol. De que cor se veste a solidão? A adolescência acontece a Norte? «cem/ anos/ de solidão», minúsculas assim partidas em três linhas, a bold, a fazer cama para meio general ao baixo, quadriculado quase por inteiro, como se as mãos fossem medalhas, com muitas mãos por ser de baralho e, portanto, espelhado. À esquerda, quase a caber na altura da palavra «cem» lá aparece, cortando mais que o sabre do general: GABRIEL/ GARCIA/ MARQUEZ, maiúsculas assim partidas em três linhas. E o mundo mudou. O 13.º volume da preciosa colecção D (ed. Imprensa Nacional), do Jorge [Silva], anda por aí a mostrar fragmentos de Dorindo Carvalho (Lisboa, 1937). Muito trabalho de salvaguarda do património gráfico nacional acontece discretamente por aqui, dando atenção ao que a academia (quase) sempre despreza ou menoriza. Que importa o desenhador do logotipo da colecção Três abelhas, ou das capas dos Livros de Bolso Europa-América? Ou do logo da Assírio & Alvim bem como as capas ilustradas dos Cadernos Peninsulares dessa mesma editora? De que cor se veste a memória, amarelo-torrado?

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Novembro

Vivi perto de Évora, nem cidade nem campo, lugar perdido do intermédio. Nunca antes havia experimentado o sol, mormente aquele que se faz entorno e nos sustém. Nunca antes tinha visto nuvens, sobretudo a diversidade que ora pasta no azul, ora vem prenhe de tempestade. Não longe, a Cartuxa de Évora, cujos muros nunca transpus. Tenho ideia que tentei, mas a memória esvai-se-me.

O duplo volume «Nuvem» (ed. Chili Com Carne), do Francisco Sousa Lobo, dedicado à Cartuxa, abriu-me espaços sobre a paisagem da inquietação, esse deserto. Um dos lados, com uma toada jazzística, de curtas e sucessivas aproximações, não apenas ao universo cartuxo, mas ao sagrado. O outro lado, que se chama «Deserto», funciona ora como prefácio, ora posfácio, à vontade do freguês, que para tanto ajuda o facto de serem dois volumes invertidos umbilicalmente colados pelas contracapas. O Francisco desenha com ponto de interrogação. Faz autobiografia, como a melhor da banda desenhada contemporânea, mas muito para além do recurso diarístico de episódios mundanos ou circunstanciais. Reflecte-se, no duplo sentido de se espelhar e de se pensar. E fá-lo combinando textos breves, simples, despojados, com uma estética minimal, a duas cores, na qual a criteriosa composição estética procura sublinhar não tanto a narrativa como o pensamento. Sim, temos uma banda desenhada de ensaio, que não se furta a questionar a própria linguagem que pratica. Mas são detalhes, se comparados com a rara atmosfera que do volume se solta, interpelações incluídas, algures entre nuvem e deserto.

Redes, Algures, 12 Novembro

Morreu Stan Lee (1922-2018), o inventor do pós-modernismo. O Umberto Eco percebeu antes de toda a gente, mas agora que o cinema vive da inesgotável máquina de produzir e questionar narrativa e heróis percebeu-se a realidade da fantasia. Ou melhor, a potência da narrativa gráfica. Este colosso da iconosfera foi pioneiro em dezenas de aspectos, mas, por estar tudo dito algures e me sentir nostálgico, vou apenas procurar os meus Spiderman, mais torrados que amarelos. Proponho apenas um quadradinho (algures na página), que, até por não ser apenas dele, afirma logo que esta linguagem resulta de singulares colaborações: entre palavra e imagem, gesto e reflexão, mas também entre criador e leitor. Conseguiu, por isso, atingir o âmago do humano, esse vértice das narrações. Stan Lee inventou a interactividade, ali nas páginas baratas das revistas que voavam abaixo do radar. Respondia às cartas dos leitores, pedia e aceitava sugestões, prolongava o fascínio tornando-o palpável. E no momento em que cada um dos adolescentes, perdido em mundo que os não entendia, sonhava em ser super-herói e assim resolver a enorme confusão da vida, Stan Lee cria o Homem-aranha, herói perdido na mais clássica das tragicomédias: que fazer com este destino? «Sai daí, não sejas empecilho do progresso.»

Almeida Garrett, Porto, 18 Novembro

Um dia a caminho de [Manuel António] Pina tinha que começar assim: o destino era o Porto, para o celebrar nos seus 75 anos. Ia com a inevitável companheira destas andanças e amizade, Inês [Fonseca Santos]. Chamei o táxi e a motorista, não tão comum no feminino, chamava-se Inês Santos. O gato sorriu-me, como só eles sabem, e segui. O Pina fez-se lugar, cada vez mais frequentado. Encontro-me sempre melhor em Pina, seja ele onde for. Antes de irmos à biblioteca tratar de «desimaginar o mundo», fomos comer ao Convívio e lá estava ele, modestamente iluminado em dia cinzento. As árvores tinham uma cor que não consegui investigar devidamente, entre outono e inverno, um trato por resolver entre a água e o frio. O Pina desconcertava muito. Oiço dizer que foi dos poetas que mais vestiu os versos de perguntas. Rio-me só de imaginar que alguém os andou a contar, aos versos. E aos gatos, sabidamente pontos de interrogação. A ideia de obra era-lhe estranha. E ter começado pelos livros para putos deve tê-lo afastado das ribaltas. E depois praticou o teatro e a crónica e a poesia (em bulas de medicamentos e outros papéis menores). Sem esquecer a conversa, arte maior. Até que choveu e se começou a reparar no Pina. Mas ele não ligava nenhuma. O Pina ligava às pessoas e aos gatos. E às palavras, mal se tornam desobedientes. Entrar no Pina, mesmo sem ser pela janela da amizade, era limpar os olhos. Sei lá com os restantes, os que fazem mundo, mas comigo mudou-me a maneira de ver os dias. Espanto-me mais, muito mais.

21 Nov 2018

Vestir de negro

Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 13 Outubro

[dropcap]C[/dropcap]onvive com o a do Pedro [Proença], esta exposição dedicada ao «Grupo 8», conjunto artístico dos anos 1970 que projectava a sua identidade a partir do Alentejo. António Palolo foi membro e dele, Joaquim Tavares, o curador, escolheu telas cinza, talvez reverso iluminado das cores primitivas que o tornaram dos pintores mais imitados. Anunciava-se tempestade, mas não ali, no conforto climatizado do museu, parede negra e luz baixa de acentuar mistérios, obscuridades. Aquele cinzento magnetizou-me, logo deixou de ser apenas cor, ganhou textura, uma pele áspera e cortes a desenhar meridianos, cicatrizes que a fornecem de carnes. Estamos nisto: extrair da cor uma qualquer razão. Nem que seja para vestir.

Clube Estefânia, Lisboa, 1 Novembro

Certo e sabido: a vida não se deixa prender nos calendários. Ou seja, o espírito fin de siècle está a explodir-nos agora nas mãos. A religião feita refém da loucura sanguinária. A economia feita máscara dos meta-estados corporativos. A política entregue à violência da estupidez. A arte virada do avesso a patinhar nas tripas. Em fundo, o desespero que atira gente ao nada, ao nada feito mar ou muro. Gente que se atira ao nada, entorpecente e narcótico. «Três actores, três músicos, uma personagem discreta, mas omnipresente: a morte», assim se apresenta na «inútil» folha de sala do «Cabaret Macabro», que o Valério [Romão] escreveu para a Marta [Lapa] encenar. Com excepção da senhora da gadanha, que usa cabeleira, e apesar atração inevitável pela perfeição do triângulo, a afirmação não se confirma. O autor do texto começa cedo a ser invocado, contrariado, maltratado, fazendo-se afinal benquisto do princípio ao fim, ou não tivesse esculpido o texto durante os ensaios. Também a encenadora se faz personagem, primeiro interpretada pela Carla Galvão, para depois sair mesmo da sombra para fazer o que faz bem: questionar tudo, baralhar e voltar a dar. Estamos, pois, em plena desconstrução, essa noção tão cara à nouvelle cuisine. Iniciada na folha de sala, não mais útil que pastilha elástica sob a cadeira, diz ele. O autor-a-fingir-que-não-o-quer-ser usa bem a bisnaga vira-bicos, e põe a Margarida Cardeal e o Vitor Alves da Silva a questionarem o «processo», a discutir tudo e mais alguma coisa, acompanhados, como se de fado se tratasse (e trata!), pelo [Carlos] Bica, pelo Lucius Omnibus e o Pedro Moura. «Como é que a arte contemporânea reflecte o actual sistema de labirintos simultâneos a que parece corresponder o mundo actual?» O meio artístico – por ideal romântico? – vê-se sobejamente maltratado e logo curado, como agora se diz das exposições, para sinónimo de escolha e arrumação. Nem escaparam os abysmados, esses que praticam activamente e para desconhecimento geral a subtil arte do cabaret e o encantatório tratamento por mano. Não tanto desconhecido, que passa amiúde alguéns mais alheios em busca de encosto. A girândola vai rodando sobre si própria, e nem precisa parar para deixar entrar assuntos sérios, íntimos até. Para nos chamar à voragem. Só que as expectativas, se não a esperança, parecem mortas e enterradas no negro do fundo-cenário (até das fotos que autor também assina, algures nesta página). O Valério, que usa cartola, desenha a luz com o negro. E nem as canções nos salvarão. Ou salvam?
No dia da estreia, o cabaret agudizou-se em seguida, prolongando a «proceça», e confirmando a realidade: «what could permitting some prophet of doom/ To wipe every smile away/ Life is a cabaret, old chum/ So come to the cabaret.»

Lisboa, 3 Novembro

Se quisermos ter exemplo na ponta da língua de que o 25 de Abril acabou sendo revolução, apesar de não ter começado por sê-lo, basta aduzir a rede nacional de bibliotecas de leitura pública. São mais de 300 corações espalhados pelo país mais obscuro a bombar sangue, a trocá-lo por oxigénio, a produzir palavras, imagens, pensamentos. Nalguns destes lugares, a vida mudou, a morte cedeu. Sou testemunha, disso e do facto de muito devermos à força de vontade da Maria José Moura (1937-2018) este aumento das possibilidades. A morte toca menos quem soube espalhar vida.

Barraca, Lisboa, 7 Novembro

Andam por aí vozes que, de tão doutas ficam burras. Sabem tudo sobre tudo, mas sobretudo sobre edição. Sabem bem o que deve ser feito e até como. Cospem cânones na vez de expectoração. Por serem do contra, agora que é fácil e custa pouco, ganham automática razão. Costume de largo espectro, não fazem, basta-lhes escrever sobre. As enormidades do que dizem procurando fátuos likes, além do pressuposto ideológico e moral que querem impôr, resulta da ignorância, além de endémica má-fé. Livro simples, como este que agora lançamos, «As Constituições Perdidas de Aristóteles», esconde processo – próximo do cabaret . Mas interessa? Começa logo pela vontade e horas investidas na tradução pelo mano – olha outro… – António [de Castro Caeiro]. E na paciência: há muito que estava pronto a sofrer os tratos do prelo, mas circunstâncias várias retardaram-no. Até que um trabalho de outra natureza iluminou a colecção que, afinal, se quer bífida, traduções de um lado, ensaios sobre os clássicos, do outro. Depois, já que o primeiro esforço resulta informe, sobretudo devido ao carácter fragmentário e científico da obra, houve que arrumá-lo em partes, pensar em apêndices e notas, enfim, decidir se a colecção cresce no sentido da divulgação ou dos circuitos especializados. A revisão merece, também por isto, revisão. Desembocamos, então, nas conversas com o Miguel [Macedo], das quais resultará objecto, no caso com meia sobrecapa, sobrepondo apenas em metade da capa cor forte e outra tipologia, mais carregada. Este jogo, que se prolonga no miolo e no logótipo com outros expedientes gráficos, propõe esta ideia de fenda, que resulta de cruzamento abrupto entre o passado e o presente, entre elegância e arrojo. O essencial do trabalho de arqueologia destes textos reside na urgência de sentidos que escapam aos tempos. O futuro, tal como se nos apresenta hoje, precisa de se atirar de cabeça aos clássicos. Neste caso, além de questões fundadoras do nosso direito, que estão ameaçadas, também pelas de identidade. O que faz de nós comunidade? Como manter-nos comunidade viva e convivial, na vez de moribunda e despedaçada por cegos antagonismos? Nas apresentações, manda o protocolo, não se fala destes assuntos. O livro existe para além da forma e os processos, estamos aqui para congregar leitores. O Carlos [Querido], em Óbidos, e agora o Ricardo Araújo Pereira, não fizeram outra coisa se não ensinar cavalos a tocar flauta. «Contava-se que os Sibaritas chegaram a um tal ponto de devassidão que até traziam os próprios cavalos para os jantares. Estes, mal ouviam entoar a flauta, erguiam-se apoiados nas patas traseiras e com as dianteiras dançavam como quem marca o ritmo com as mãos.»

Casa da Cultura, Setúbal, 9 Novembro

Esta «filosofia a pés juntos» faz-se no terreno pesado da educação. De súbito, o António [de Castro Caeiro], mesmo após dia inteiro de aulas na escola, que não significa «tempo livre» como outrora, consegue atingir a leveza e inspirar uma plateia. Como os atletas para o combate, procuremos a disciplina de um treino, por via do estudo e da conversa. Para acrescentar cor no arco-íris das possibilidades. A vida toda feita brincadeira de crianças, outro modo de dizer paideia.

14 Nov 2018

A fragância do riso

Menina e Moça, Lisboa, 3 Outubro

[dropcap]S[/dropcap]em conseguir estancar a sangria, parar o relógio, cegar a agenda, por entre idas e vindas ao Fólio, dou uma saltada à Menina e Moça, a livraria da Cristina [Ovídio], entalada entre alcatrão pink e céu tintado pelo [João] Fazenda. Trouxe comigo o Rui [Garrido], de modo a podermos concluir se quem vê capas também pode ver corações. Indisciplinadamente, ou não estivéssemos sentados em mobília de infantário a beber como gente grande, discutimos muito para pouco concluir. Apesar da venenosa massificação, e da desatenção comercial, encontramos livros desenhados com cuidados de leitor, a procurar oferecer à primeira vista, ao primeiro toque, um sinal do que lhes vai no miolo. O livro a esticar-se objecto, quase um ser, pelo menos para os sentimentais que neles veem amigos, ferramentas que mudam vidas. O Rui contou da sua experiência de muitos anos e formatos e encomendas e cretinos, ajudando a desmontar essa ideia-feita de que a capa pode ser responsável por fazer ou desfazer bestas céleres. Ou até que deva ser pensada dessa maneira tacanha e desviante. Nas grandes fábricas da livralhada asséptica, tudo começa e acaba aí: na suprema ideia de venda. Nem que seja ao engano, prometendo por fora tema ou experiência ou escrita ou qualidade que não se encontra dentro. O Rui já nos ofereceu logótipos, ergueu grandes livros, pintou capas, e posso testemunhar da inteligência atenta a cada detalhe e desejosa de brincadeira. Por aqui sacrificamos, ainda que em cadeiras de adulto, ao deus lúdico.

Facebook, 6 Outubro

Divertida, a maneira como Bansky voltou a navalhar a arte enquanto jovem assunto. Serão feridas, serão arranhões, que a morte não bate assim? Três ou quatro fitas para reflectir na encenação: a galeria desconhecia por completo a moldura armadilhada? E uma com bomba incluída, passaria nas análises dos peritos? Quem o foi o primeiro dono da peça, ele próprio, orquestrando a cena? Era suposto a menina ser toda rasgada, ou o rosto escondido, o corpo cortado e o balão esvoaçando propõem nova versão? Há meias-destruições? A obra agora consiste apenas na moldura com original estraçalhado ou deve incluir os olhares e as expressões e os murmúrios durante a performance? Outras duas para pensar na atitude: Bansky quer mesmo fugir do mercado, fazer das ruas a sua galeria, das redes o lugar de debate? Que outra expressão artística se alimenta tanto da (auto) crítica como as plásticas? Por junto, eis mais umas quantas golpadas para o dinheiro, motor do velho assunto arte: a menina agora fendida vale mais, muito mais que o milhão que a arrematou. E o valor artístico mede-se em contado? Milagre da multiplicação do vazio. Valha-nos S. Dada. Um balão, neste espelho, nunca será apenas um balão.

Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 13 Outubro

O Pedro [Proença] desafia tempestades anunciadas com inauguração em Évora, que ficará Março do ano que aí vem correndo contra mim. «O Riso dos Outros», mais do que exposição, instalou-se por uma boa dezena de salas e em nós como máquina produtora de histórias, de personagens, de reflexos e reflexões, de experiências sensoriais. O Pedro não pára um segundo, nem de pensar e menos ainda de fazer, em excesso celebratório de uma invejável alegria de viver. Tenho assistido com prazer à desmultiplicação de heterónimos que fazem vida a experimentar as relações das imagens com a literatura, da palavra tornada imagem, etc.. Se por um lado, a arte se deixa pensar em toda a sua gramática, nos seus processos, por outro, a bichocarpinteirisse criou, além de um sem número de livros, algumas passagens à parede destas ideias. Nesta mais recente, desmultiplicou-se em curador, João Gafeira, para convocar à livre criação sete artistas: John Rindpest, Sandralexandra, Sóniantónia, Pedro Proença, Rosa Davida, Pierre Delalande e Bernardete Bettencourt. Podemos, portanto, experimentar instalações, gigantescos frescos, colagens, fotografias, jogos com etiquetas-títulos-aforismos, pintura de frases e seus duplos, postais de viagens ao imaginário das viagens, formatos variegados, poesia solta, sarcasmo avulso [ver foto algures na página], telas. O jogo faz-se em idas e voltas ao texto, nas legendas e enquadramentos, nos títulos, nas frases soltas, claro, nas biografias. Há por aqui qualquer coisa de Oulipo, que nos convoca ao jogo de espelhos, a continuar a produção. Sofro de afecções peculiares suscitadas por cada um dos artistas incarnados, mas o Rindpest com a sua pintura de palavras toca-me mais além: «eu sou o texto que trai a sua sombra». Se parece artificial, tal se deve à minha inabilidade, que no Palácio da Inquisição, ampliada pela lente do humor inteligente, acontece muita vida, carne, sangue, suor e lágrimas. E, se a vida fede, como diz o Henrique [M. B. Fialho], em um dos seus contos, há que crer na «revolução interna que ajude o corpo a exalar uma fragância simpática, agradável, aprazível, a fragância do riso».

Biblioteca, Oeiras, 13 Outubro

«Geração Espontânea», o ciclo de conversas de «novos autores da língua portuguesa com o seu público» incluiu este mês o Valério [Romão]. A terra não tremeu com a conversa, orientada pelo José Mário Silva, mas não carecia. Uma primeira surpresa confirma a velha ideia de que as bibliotecas conservam tesouros. A receber-nos, um primeiro «romance», que o autor renega com (imberbe) veemência. Nenhum dos mais recentes estava à vista, embora disponíveis no final. Estavam, contudo, nas mãos dos leitores. E aqui reside a segunda surpresa, um lembrete para quem que ache tempo perdido tais sessões (quem nunca?): no final, as intervenções foram pura curiosidade, dúvidas luminosas e comentário inteligente. As bibliotecas ainda conservam leitores.

Casa da Cultura, Setúbal, 26 Outubro

Multiplicaram-se por estes dias cinza as vezes em que me sentei ao lado do Henrique [Manuel Bento Fialho], e delas todas conservo a rara sensação de que a conversa nos saiu, mais a ele, que a mim só me cabe suscitar, prazenteira e fluida que nem flume, rio ardendo na corrida para a foz que não chegará nunca. Desta vez, e para além do costumeiro distribuir de jogo sobre «A Festa dos Caçadores», mostrando aqui e ali um trunfo, o Henrique ergueu-se apreciador e intérprete do Zeca [Afonso]. Acabámos a trautear, mais ele, que só me cabe desafinar, a surrealista ternura: «Era um redondo vocábulo/ Uma soma agreste/ Revelavam-se ondas/ Em maninhos dedos/ Polpas seus cabelos/ Resíduos de lar […]»

Prazeres, Lisboa, 29 Outubro

As almas livres também se perdem? Só deambular á toa permite a descoberta. O Zé [Sarmento Matos] (1946-2018) ia sempre um pouco mais longe, mais adiante, e não apenas no calcorrear da cidade. Não se limitava a recolher informação, que o fazia e como poucos, mas arriscava interpretações. Com risco. Dava ideia que os seus passos faziam cidade, desenhavam-na. E os seus olhos tiravam da sombra, iluminando, o esquecido, o ignorado, o oculto. Lisboa não lhe escondia nada. Fez livros, não tantos como devia, mas o que trouxe a lume garante-lhe lugar de destaque na olissipografia. Devemos-lhe, ainda, a toponímia mais aventurosa do mundo e arredores. Por causa do Zé, Lisboa tem tatuada na pele ruas como a da Ilha dos Amores ou travessas Sandokan, Sinbad o Marinheiro ou Corto Maltese.

Na despedida, o ataúde não entrou à primeira na cripta dos escritores. O que não te deves ter rido… Não, não foi erro de construção arquitectónica e coiso. A cidade apenas não estava preparada: falta um beco, que seja, com o teu nome. Não esperas pela demora.

7 Nov 2018

A luz do desejo

Praça da Fruta, Caldas da Rainha, 4 Outubro

[dropcap]E[/dropcap]difício que já foi banco alberga tesouro maior. Se não é museu, engana bem, tantas vezes as portas generosamente se abrem para entrarmos no «cofre» onde se expõe a maior – dizem-me, em coro a Isabel [Castanheira] e a Margarida Araújo – colecção de cerâmica caldense. João Maria Ferreira faz parte daquela raça de coleccionadores cuja paixão o leva, não tanto à acumulação, mas a descobrir o máximo sobre o objecto do seu desejo. A projectar sobre ele luz. Sem eles, muito património se teria perdido nas voragens do tempo e desatenções estatais. Faltou tempo para apreciar cada detalhe, cada história, cada brilho. Obrigatório voltar, e não apenas por causa de Bordalo. A simpatia de João Maria a isso obriga. Outros pretextos podem ainda acontecer, que das idas ao Oeste costumam resultar aventuras.

Museu Municipal, Óbidos, 4 Outubro

Além das muralhas, de pedra e humidade, este lugar está cheio de igrejas, vãos de silêncio onde a luz troca carícias com as sombras. As fotografias que Fernando Lemos tomou de Hilda Hilst ergueram outro desses espaços dedicados ao sagrado. E ao desejo. Na dança entre o olhar e o modelo, sendo no essencial pose, a intimidade encandeia de natural. Ela entrega-se sobre a mesa, mão estendida, olhar fugindo; ele desce para recolher o movimento. Só em três dos doze retratos se cruzam os olhos de ambos, mas em todos ela e ele se tocam. Dela emana absoluta liberdade, de pálpebras cerradas solta tranquilidade. As pupilas, as unhas-garras e o cigarro dizem tão só arrebatamento. «Já não sei mais o amor/ e também não sei mais nada./ Amei os homens do dia/ suaves e decentes esportistas./ Amei os homens da noite/ poetas melancólicos, tomistas,/ críticos de arte e os nada.» Assim lhe disse ela, Hilda, a ele, Lemos. «Agora quero um amigo./ E nesta noite sem fim/ Confiar-lhe o meu desejo/ o meu gesto e a lua nova.»

Circula (pelo menos na Ler Devagar) cuidado volume (Edições SESC), com organização e texto de Augusto Massi, além de fotomontagens inéditas de Fernando Lemos. Ao texto de enquadramento não se podia pedir mais. A recomposição pelo artista das imagens da memória sublinha mais a luz e os olhos, rasgando, colando, focando, desejando. Os retratos, esses, brilham de intensidade. Não consigo deixo de me abrigar neles, templos portáteis de melancólico gesto, lua nova em noite sem fim. (Na página, exemplo do diálogo entre lâmpada, digo lua, e olho.)

Fernando Lemos foi para o Brasil, em 1953, cansado da ditadura. Tantos anos depois, inverte-se o movimento de outros artistas por via das trevas que ameaçam o mais solar dos países.

Casa José Saramago, Óbidos, 5 Outubro

Orquestrada pelo [José] Anjos, assisti intermitentemente às tentativas do [João] Barreiros, do Filipe [Homem Fonseca] e do [Luís] Carmelo para materializarem a incorpórea ideia de «realidade aumentada». (Já vos disse que o tema do Fólio deste ano procurava tactear o futuro?). Ela anda aí, não apenas nos livros de ficção científica, não apenas na literatura ela mesma, não apenas nos delírios tecnológicos, mas sobretudo nas expansões comerciais das redes. Retive duas notas. Esta de que os esforços mais recentes limitarão a nossa liberdade de escolha, ainda que anunciem o contrário. E outra: nos primeiros esforços de contar o mundo (Gilgamesh, Mahâbhârata) logo este se viu aumentado. Nem tanto resolvido.

Isso poderia ter acontecido na longa conversa, partida e logo reunida em um sem número de outras, mal se juntaram a nós o António [de Castro Caeiro], alegre com a realidade física das «Constituições», e o Henrique [Manuel Bento Fialho], solto de uma prestação televisiva de primeira. Disfrutando a sombra de digníssimas oliveiras, à força de um pão com sabor a verdade, devidamente regado, a tarde discorreu como rio fresco pelas margens da FC nacional e internacional, do cinema de género, das memórias, da inevitável filosofia, além de desabafos vários e pitada de má-língua. Nasceu ali, creio, a ideia intensamente hodierna de um festival literário cosplay: cada fã só teria entrada se vestisse a pele do seu escritor de eleição. Quanto tardará a acontecer tal visão do inferno?

Museu Abílio, primeiro, Museu Municipal depois, Óbidos, 6 Outubro

Cedo, demasiado cedo, o mano Tiago [Ferreira] expôs com desarmante clareza os desafios que enfrentamos face à tecnologia, sobretudo o seu braço armado, a robótica. Acalmou uma ou outra ansiedade, talvez tenha despertado outras, mas afirmou confiança invejável no futuro. Pelo que conheço dele no presente, descansou-me. Deu por título à masterclass, Apocalípticos ou integrados, piscando o olho a Umberto, e logo ecoando na do mano António [de Castro Caeiro], que à velocidade da luz, nos fez perceber que é nos momentos em que tudo parece impossível que o futuro se nos rebenta nas mãos: «o piscar de olhos da eternidade age sobre nós». O apocalipse ilumina, afinal, outra possibilidade de sermos em andamento. Assim saibamos ler cada sinal, cada brilho.

Casa abysmo, Óbidos, 6 Outubro

O primeiro andar do Jacinto [Gameiro], ali na Rua Direita, quase caía com o peso do bom humor e da luz que o Carlos [Querido] lançou sobre «As Constituições Perdidas de Aristóteles», finalmente vertidas em português de lei pelo António [de Castro Caeiro], e embrulhadas com sabor e saber pelo Miguel [Macedo], aproveitando bem do passado o que ele pode conter de futuro. Por junto, também com o mano [José] Anjos, parecíamos aviadores de balcão, mas, se olharmos às circunstâncias, servíamos possibilidades. Cada constituição começa por esta altura a instituir-se, com perigos, identidade, mas também expectativa, probabilidade outra. De súbito, veio a Raquel [Santos] arrancar-me daqui…

Museu Municipal, Óbidos, 6 Outubro

…para aqui. Estava para começar a sessão de homenagem ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, que se espraiou singela e luminosa, com o Nuno [Miguel Guedes] a gerir conversa solta com Luís Coimbra e o Vasco [Medeiros Rosa]. Falando de futuro, houve quem no passado tivesse razão antes do tempo, que fizesse do seu presente pavimento de utopia ajardinada: parques naturais, desenvolvimento sustentável, arquitectura integrada, luta anti-nuclear, amor à terra, hortas urbanas e política, bem entendido, de tudo se falou. Com soberano respeito pelas diferenças. Sim, é possível.

Fui surpreendido, neste contexto, por públicos agradecimentos do Zé [Pinho] e do Humberto Marques, que preside à Câmara. Protestei comovido. O prazer tinha acontecido antes nas longas sessões de preparação, sonhando possibilidades, fazendo pontes, discutindo identidades e constituições e braços amigos, os da robótica.

Bons malandros, Óbidos, 6 Outubro

Um dos segredos mais divertidos e mal guardados do Fólio neste lugar sagrado de pândega. E desejo. Recolhidas as díspares colheitas do dia, vão chegando ao longo da noitada infindável os poetas tomistas e alguns esportistas. A cada um, a Zélia e o Luís [Cajão] oferecem o conforto de um repasto, temperado pelo carinho, e a última bebida da noite ou a primeira da madrugada. Hoje, estivemos a ler futuros nas mãos até cheirar a jornais do dia e o dia raiava.

31 Out 2018

Tirar do sério

Diário de Notícias, 23 Setembro

[dropcap]A[/dropcap] liberdade nunca chegou a ser um absoluto, que a de outro era fronteira. Mas na grande área das ideias, da cultura, parecia estar para sempre aberto esse lugar-comum, o da opinião escrita e publicada. Qualquer de nós podia dizer a maior asneira, com limites estabelecidos, até legais. Por estes dias nublados, percebemos que a ameaça continua, de maneira mais subtil e venenosa. Estamos obrigados a extrema auto-vigilância, para não tocar nos nervos. Somos todos apenas sistema nervoso, portadores de dor fundamental, continuada e logo vociferante, doravante vítimas em explosiva potência. As palavras são os alvos primeiros, mas as imagens merecem ataque, sobretudo as humorísticas. O DN abordou o assunto, a pretexto dos cuidados com que as caricaturas devem agora ser esculpidas, e a Cláudia [Marques Santos] achou por bem ouvir-me. Titubeio como habitualmente, e cada frase devia ser desmultiplicada, mas ficou dito.

«”Hoje [o escrutínio] já não é tanto acerca da liberdade, mas acerca da identidade”, defende o escritor e editor com um percurso ligado à banda desenhada João Paulo Cotrim. “Há nas populações urbanas do mundo inteiro esta hipersensibilidade às chamadas causas fraturantes. A questão do feminismo, do racismo, da homossexualidade. E, depois, a questão da religião. A religião o que trouxe para isto, e contagiou todas as outras áreas, foi a questão da ofensa. Quando o direito à ofensa foi uma conquista civilizacional. Tens de poder ofender”, continua. “Agora, diz-se que a minha identidade justifica que eu não seja ofendido, que eu possa ser exatamente o que quero. As pessoas não percebem é que o humor é precisamente o oxigénio. No fundo, está-se a tentar acabar com o ambíguo, que é o que tem graça nestas coisas. As ruas estão completamente sujas, mas as cabeças das pessoas estão completamente limpas”, diz, apontando para o perigo de a censura ter invadido a cultura, espaço onde “não é suposto resolver-se problema algum”. “É sobretudo uma infantilização do leitor, do consumidor de cultura, de qualquer pessoa. Aquele pobre não vai perceber que… Isto também estupidifica. Não dá a possibilidade às pessoas de fazerem as leituras que querem.”»

(A apresentação diverte-me, por esquecer o lado talvez mais interessante no contexto, o de investigador com obra publicada, para me pôr na pele que não descola, a da banda desenhada…)

Livraria da Adega, Óbidos, 28 Setembro

Muito pelas portas travessas da amizade, a abysmo envolveu-se deveras na edição deste ano do Fólio, que vestiu o tema: «Ócio. Negócio. A Invenção do Futuro.» (Os cóbois da Rua Castelo eram de cerâmica e subiam muralhas?). Sei de menos do negócio, aspiro dolorosamente ao ócio e raramente penso em futuro, a não ser para o imaginar como maneira dos tempos se atarem em um nó à mão de semear. (K. Dick ou Orwell escreveram sobre que acontecimento desta semana?). Mantenho as minhas dúvidas sobre o exacto alcance destas iniciativas, se produzem horizonte ou nevoeiro, mas acredito em encontros. (Na foto, que ilustra a página, o Edgar Libório apanhou-me de costas. Prefiro esta versão do logotipo para colorir à deste ano, toda ela preenchida de óbvio. Ou será óbvidos?).

Logo na primeira sexta, a conversa, que partia da ideia de «Fora do Lugar», colocou alta a fasquia, com intervenções desassombradas e sabedoras, como deviam ser todas, mas raramente acontecem nestes eventos. Cada um, o Hugo [Mezena], o José [Riço Direitinho] ou o Henrique [Manuel Bento Fialho], soube descer da sua vigia de escritor ao encontro de leituras desafiantes e rompendo logo ali fronteiras. A pluralidade temática está bem vincada na moderna prosa. Talvez até tenha estado sempre, de maneira ou outra, se mergulharmos além dos modismos. Saídos da Livraria da Adega e, provado o Medronho, fui com o Henrique falar um pouco mais desse quase romance sobre a geração dos sem lugar nascidos pós-Abril. Em «A Festa dos Caçadores» também há cóbois de mítico antigamente, gente vulgar de hoje, fulgor poético que alimenta, esse sim, o porvir.

Artes e Letras, Óbidos, 28 Setembro

Não chegou a ser surpresa, que o [José] Pinho já mo teria anunciado: o Luís [Gomes] mudou a sua gruta de Ali Babá para Óbidos. Livros são ainda poucos, mas o chumbo dos tipos e as prensas permitem que se chame atelier ao Artes & Letras O.2. Passei os olhos pela micro-exposição em torno de Moby Dick, enquanto o Zacarias corria a desafiar-me com enorme cubo de granito na boca. Acolhi a sua generosidade, uma plaquete de Inês Caria, com quatro linóleos e versos, apropriadíssima ao momento, «De Passagem»: «FUI NEVOEIRO NESTA/ PAISAGEM / uma forma cobrindo/ a manhã// irregular». Depois aconteceu Bordalo. Celebrando o regresso do herói da campanha africana contra Gungunhana, Freire de Andrade, os seus camaradas de armas encomendaram ao artista belíssima homenagem sobre pergaminho, encimada pelo retrato, riquíssima no detalhe decorativo, de fino recorte colonialista, com primoroso trabalho de cor, assentando o conjunto em minuciosa evocação da famosa batalha de Magul. Não sei se foi o patriotismo exaltado ou o ódio de Rafael ao Ultimato lhe guiou a mão, mas a peça brilha de tão extraordinária. E o original estava ali, em pasta de couro que recolhe a preciosidade em sóbria exuberância. Fiquei assombrado.

Pavilhão Atlântico, Lisboa, 30 Setembro

Vinte anos depois, ao menos para mim, mais ainda nesta tarde quente de domingo, a grande nave de bojo nos céus continua a chamar-se assim. Só porque sim, que nem são fortes os laços que me prendem ao Parque das Nações, excepção feita para as árvores ou o «Homem Sol», de Jorge Vieira. Está feita, e apresentámo-la, entre amigos, esta cápsula do tempo, para qual o Bruno [Portela] me convocou, pondo-me em lugares perdidos da adolescência, mas sobretudo mergulhando-me em fragmentos desfocados, decadentes, enferrujados, abandonados, miseráveis da minha cidade. «Uma Cidade Pode Esconder Outra» tem detalhes poderosos, como a capa ser negra e maleável ou a omnipresença da torre que arde, que celebramos logo na capa, com vermelho que reflecte. No miolo, imensas nuvens atravessam os olhares.

Casa José Saramago, Óbidos, 2 Outubro

Graças à generosidade do João [Brazão] e da sua cervejeira Trevo, levámos à Casa Abysmo e a outros lugares de prazer, duas cervejas IPA, ambas com o mesmo nome, mas com duas ilustrações distintas do Nuno [Saraiva], retiradas de «Moléstias, embustes e pontinhos amantes – escrita quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX», cuja apresentação ali falhámos: um casto cupido e um belzebu flautista.

Imagino que comentário suscitaria a Buñuel, que se alegrou ao descobrir a delícia do sentimento de pecado, que celebrava a bebida a ponto de afirmar ter passado a maior parte da sua vida ligeiramente nas nuvens, e praticar como ninguém a arte do dry martini. Indispensável, este «A Propósito de Buñuel», com que o Javier [Rioyo] e José Luiz López-Linares celebraram o seu centenário. O homem que viveu «comodamente entre múltiplas contradições» apresenta-se, pela voz e olhares de amigos, familiares, colegas e colaboradores, um enorme investigador do mistério, que bem sabia tirá-lo do sério. Exemplo maior, pérola na ostra, encontra-se no seu erotismo. Os beijos são-lhe suprema obscenidade: «repugnam-me»! E depois o riso, que o atravessava como relâmpago. Cada dia, para o ser tinha que provocar gargalhada. Beijo-o na boca por isto.

24 Out 2018

O corpo em obras

Mymosa, Lisboa, 8 Setembro

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem foi uma criadora de ondas, a Maria José Mauperrin (1929-2018), hoje a Lena Pantcholita, que tanto usou o bisturi na vida comunitária como no íntimo dos corpos, cuja morte descobri sem querer e logo me fez subir o escândalo à boca. Se o mês se apresenta cemitério, faça-se lugar de encontro, para trocar pedaços do que fomos, para nos refazermos em adulto contínuo, que a mesa se faz ringue e palco e cama.

Para mim, a rádio foi a banda sonora da noite, quando ainda sabia a transgressão, quando outras companhias me eram proibidas. Vejo agora: quanto aprendi, sem saber, com o «Café Concerto» da Maria José! Quem me dera que o espanto, a ironia, o bom gosto, também vertido nas entrevistas e nos textos, se tenham mantido comigo de algum modo. Quase nada sobra nas redes sociais sobre a produtora, senhora da discrição, mas, insistindo, descobrimos programas com escritores e outros criadores. Invariavelmente atirados para diante, para os futuros.

A última vez que encontrei a Helena Lopes da Silva (1949-2018), anos depois da última, fizemos o quê? Foi em lançamento do Zé Luiz [Tavares], mas serviu para nos rirmos desalmadamente. Acontecia sempre, que o seu sorriso era dos que iluminava salas. Por pudor parvo, não conto o que me sussurrou no reencontro. Desconcertou-me, o que não vai sendo fácil. Partilhámos causas, das que insistem que corpo pertence a cada qual em nome da alegria, e sou testemunha do apreço que lhe é devido com professora e cirurgiã. Ficará sempre a doer-me aquela última ceia que não fizemos.

Horta Seca, Lisboa, 13 Setembro

Discutimos antes a capa, assinada pela Elisabete [Gomes], dos SilvaDesigners. Tal como no miolo da narrativa, acaba por invocar fantasma de Camões. Não mais nos livraremos desses queridos fantasmas, Camões ou Pessoa. (Precisamos, aliás, de continuar enriquecendo livre panteão de atormentadores.) O nosso olhar converge para um centro geométrico no qual brilha livro, preso em mão expressionista, de modo pouco natural, rodeado de linhas dinâmicas que não escondem as vestes barrocas. Será o Arquivo das Confissões, essa extraordinária ideia? Será o livro desaparecido do poeta maior? Será a inveja um rectângulo? O Carlos [Morais José], que me perdoará o trazê-lo aqui, em gesto que parece fazê-lo convidado da sua própria casa, traz, com este seu «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», um sólido contributo para esta colecção da Arranha-céus, na qual a História se verte em histórias (ficções, recolhas, biografias, sem limite de género). Atiro para trás no prazer de ouvir o Nuno [Miguel Guedes] discorrer sobre as inúmeras qualidades deste romance, o sabor veloz da sua escrita, o recorte justo das figuras, o desenho das paisagens e ambientes, a dialogar com a inveja, «essa paixão retorcida, deusa esverdeada, aguilhão da História». Macau, aparece, mas não chega a fazer-nos suar. É que a inveja brilha e escalda no âmago do que se conta nestas páginas – afinal forradas a amarelo, cor do luxo e da inteligência, dizem. Lê-se como aventura, mas fere como ensaio.

Horta Seca, Lisboa, 20 Setembro

Corro da conversa com a Isabel [Lucas] e o Jorge [Silva], no CCB aberto em obra de rádio, ainda a tempo de assistir às marés de olhos a encher e a esvaziar a exposição «Le Palais Idéal», do Carlos Guerreiro, integrada no integrador Bairro das Artes, da Ana [Matos] e do Cláudio [Garrudo]. Não podia calhar melhor, para esta ideia que celebra o livre deambular pelas imagens, pelos sons, pelas coisas, pelas cidades, pelas gentes. Gente que entra e sai, hora após hora, ligando entre si as galerias mais distintas de bairro que já o foi mais, que precisa de linha destas para se coser. Aqui sobreviveram à experiência de percorrer de olhos e mãos alguns pedaços do mais inesperado dos nossos designers. (Será que o podemos emparedar em tal categoria?) «Durante anos de trabalho como designer e ilustrador, enfim, como artista, Carlos Guerreiro passou-se quase todo pelo scanner: velhas fotografias, mãos e pés, tudo e mais alguma coisa foi sendo convocado pelo seu desejo de samplagem. Ao fim de muitos anos de deriva, agora em espelho do que antes se afirma, ou seja, de passear como se fosse scanner pelos temas e lugares, pelas letras e sons em deriva, o Carlos dá-nos o acesso a duas ou três assoalhadas do seu Palácio Ideal: um coração habitável erguido sem outra regra que não a de deixar-se levar por olhar dos mais dispersos, pela afirmação de uma voz cava, que escava. Pinturas jamais vistas estarão de par com trabalhos antigos, na pluralidade das suas disciplinas e interesses, do jazz ao cinema, da tipografia à televisão, da moda à política, da música à banda desenhada. Fica garantida a surpresa de entrar na intimidade exaltante de um caçador-recolector de imagens. Único: é o Carlos, ponto final.»

A1, nos arredores de Coimbra, 21 Setembro

Nem queria acreditar no que lia, em andamento: um designer recusava-se ir à gráfica acompanhar um trabalho de alguma sensibilidade. Reli vezes sem conta, parado, se por acaso fosse a velocidade a desfocar os argumentos. Era mesmo só este arremedo: que não, pois não tinha nenhuma relação comercial com a dita. Lido com livros e publicações há uns bons trinta anos e nunca me tinha acontecido. Isto e deixar cair o queixo. Cada vez mais, e apesar dos egos, este mister se faz de colaborações. De duas, uma: ou despreza o seu próprio trabalho ou tem-se em grande conta. (Lembrei-me agora de outra, também contemporânea: uma qualquer alergia.)

Horta Seca, Lisboa, 26 Setembro

O contemporâneo acontece ininterruptamente neste cruzamento, rasgado pelo rosto tal nas telas, a luz passando a tinta, o azul beijando o negro, o eterno movimento do gesto, a parede desfazendo-se em vazio, o corpo em obra. Helena Almeida (1934-2018), que assina o que interessa desta página («Saída Negra»), afirmou tanto e de corpo inteiro, sem os alardes palacianos do costume, com a dúvida e a ironia das tarefas domésticas: «A minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra».

3 Out 2018

A tua voz ao volante

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Setembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra podia ser esquadro,
ou fio-de-prumo,
esta contendo em si a tensão e o peso,
toque na parede, na pedra, concreto, matéria tão porosa sem o parecer,
a outra evoca a abstração de uma contagem
uma geometria recortada
(na memória: Nove-filhos era o stor de geometria descritiva, a linha de terra empre suja)
os anos contam-se, mas não valem certos minutos,
não valem nem aquele tom ou a palavra dita no momento exacto
navalha, de ponta de mola, de barbeiro,
antes de ser pedaço de lâmina substituída
porque não querias que fosse eu a desfazer-te a barba
ferida, que ferida te fiz eu?
sei das que me fizeste,
mas não trarei freud, que rima com fraude, para o assunto
menos kafka, que não será o caso.
quantas cartas ao pai se escreveram já?
quantos pais se perderam nas cartas
nem me atrevo a releituras,
afinal, como ele, nem sou assim tão literato
ofereceu-me Os Três Mosqueteiros, edição de abrir páginas
com lâmina
os lombos a sobrarem barbados, espada que se ergue
marcador de aventuras
sonhos, sonhos
fizeste-me sócio do Círculo de Leitores a troco da tabuada debitada, inútil
de que serve, para que sirvo
soube calcular impedâncias
perdidas nas volutas do esquecimento, raízes quadradas rabiscadas
matemática de corrida
vieram Herculanos no ritmo das quinzenas ou assim
o Bobo
orgulhavas-te que os filhos não te tratassem por tu
deste-me a escolher bicicleta ou máquina de escrever
aprendi o gosto da tinta nos chocos, mas começaste pelas lulas
não tantos as luas
essa foi na casa das avenidas já não tão novas
no ano da mana
o preto de branco a piscar, perto do Sidónio de parede
aquela lua fez-me sonhar em tocá-la
nem em papel lá cheguei
a revista foi, afinal, de treta, coisa fruste
sem a solidez da matéria
sem fios-de-prumo a desenhar verticais
a madeira tocando a superfície, a tensão do fio vibrando
ouves? vês?
e o traço com trabalho há-de sustentar muro, parede
trabalho, interstício nas férias dos outros
o trabalho estava feito ética que nos justificava, fazer
a preguiça era dos outros, os dos cafés
somos éramos das obras, serventias sem outro jeito
talvez tivesse, mas era a preguiça levava para as esquinas do sonho
nem bola, apenas a rua a inventar com outros histórias
mundos que podiam mudar, além de rodar
tinhas casas por construir, desenho a caneta,
ideias a rodar nos pneus do autocarro na noite
que começaram com a égua anabela, a rodar em círculo nas histórias
malandras, longe já e tão perto dos os pés na terra, na neve
a fome, a tua, mítica, mitigada com o pão, pouco mais
a minha, apenas do fiambre burguês, que a manteiga ainda era possível
a poupança, em nome dos tempos difíceis,
para confortar futuros, semeando sementes invariáveis de trabalho no hoje,
na terra, na linha de terra titubeante, rasurada, horizonte líquido
o cinto castigando desobediências sujas de lápis
peças de lego contadas na lata,
continente redondo de latão a sentir logo o tempo
e a humidade
a casa absorvia as águas das nuvens, na rua era melhor
haveria de acontecer a preço de esforço a tua casa que querias de todos
na rua passaram novelas e revoluções, carrinhos de esferas
navalhas de tempo a passar
nunca te dei a ver o filme sobre infância, oblíquo
a frontalidade vem de outro norte, não serve nesta descida
ou subida
gostavas de histórias, fazias o passado acontecer ali
quantas ruas de lisboa desenhavas
as carreiras abriam a cidade que nem fruto
figo laranja maçã brabo de esmolfe castanha cereja
cada fruto seguido de espécie, que nada pode ser apenas isso
os carvalhos desdobram-se em soutos, os pássaros poupam-se pelo cantar
geometria de volante e esquadro e prumo

(o fio-de-prumo utiliza a lei da gravidade para indicar que a posição de um elemento construtivo é realmente vertical. A corda suspensa com o peso que tem na sua parte inferior deverá ser vertical e perpendicular a qualquer outro plano de nível com o qual se cruze.)

foste perpendicular aos planos que contigo se cruzaram
pontapeaste o cão-polícia que te atacava contrariando a greve
agrediste o outro que atazanou noite inteira, arrependeste-te
gastaste as derradeiras energias em conflito com a autoridade as autoridades
ajuda-me a levantar, vamos à gomes freire, o gnr que aviei, coitado, deitado
de pé viste comboios a passar desafiando a tua fome em direcção à frente vizinha
no sangue corriam desobediências ancestrais, antígonas da beira, ventos e águas da gardunha
cidadãos livres, coluna vertebral fio-de-prumo perpendicular a outro plano de nível
linha de terra irregular, tocada pelos pés descalços, madeira contra a matéria a definir a gravidade
da história, que percorreste com o devido alheamento,
olhos e dedos nos jornais, do fundão, que não abandonaste na proibição, orgulhosamente
o orgulho é uma linha de terra ao alto
o século era jornal antes de ser contagem a esquadro do tempo, longos lençóis que lembro
o teu avô foi para o céu
o avô da burra, o avô do farrusco
foi o
que não se diz
neoplasia em escape
o teu centro a explodir na lentidão
a fugir do entendimento
abrindo brancas buracos de escopro na matéria cinzenta
quase indignado, barba por fazer
tinhas medo da minha lâmina?
perguntaste à enfermeira,
se não me conhecia a mim, «o homem que fez o funeral ao Salazar»
fi-lo aos quadradinhos
não tinha jeito para nada
o da leira, as batatas, a poda,
coisas breves de puto, a vindima, mas com jeito
sempre a sonhar, a lua, todo o dia a lua
as palavras atiradas ao chão da boca
agora na graça o avô da perna direita, invergável,
propõe-me pacto de silêncio, inviolável
não bebemos nada, pois não?,
o de três bate no meu de ginginha,
saudades de beber assim os segredos
a bengala batendo nas pedras da calçada
rimando com as águas descendo a serra em direcção ao milho
lençóis do século as crónicas do drummond no jornal do fundão
a noite inteira abrindo regos
os fios aprendendo a electricidade que me levaria à lua
que jamais me levarão à lua
que nem quis saber conduzir
olha freud, diz lá, antes do kafka, por que me queima o volante
a velocidade não me amarga
nem a preguiça
a preguiça é incestuosa irmã da velocidade
e o riso, o riso da mãe
a mãe na tela da janela
a ver destinos, a comentá-los
o vento que penteia o quadro
e a rua continua a descer
o obama pulou de um contentamento só desadivinhando partidas
os contentamos devem conter chegadas, talvez luas, toques no tronco
e apertas-me a mão com um desespero que adivinhava final
choraste lágrimas
gotas de granito escorrendo resto de rosto
sabias como perguntar à pedra o que ela podia ser,
lias-lhe os veios, marcas da água, do tempo, verticalidades,
ajeitava-la entre pernas e de maceta e escopro extraías bloco
não de urgência
uma verticalidade de enfrentar ventos
o teu destino foi de pedra
dobram sinos nas donas a dizer
que a pedra era agora nuvem
como só os sinos podem
vi mais lágrimas, ouvi as palavras escândalo e ânimo e parede
a fazerem-se promontórios na penha e na serra
sussurram-me sem número de perfumados é a vida
por acaso falando de morte, mas com raízes
por momentos, a sós apesar da mana,
a mão que apertaste tocou a madeira do caixão
era carga eléctrica, cesta de balão, árvore
ligada à terra

(continua)
26 Set 2018

A ferida tornou-se doença

Horta Seca, Lisboa, 27 Agosto

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cerca da primeira leva de selecionados para o Prémio Oceanos, aforismo nada novo e não se fala mais nisso: nome reconhecido na espuma vai mais longe que mil qualidades.

Horta Seca, Lisboa, 28 Agosto

Rodopiando no vórtice, por todo o lado encontro o tempo, agora mesmo nesta barata estrebuchando nas escadas rolantes do metro. Logo na inutilidade dos últimos movimentos outrora ágeis percorrendo o nada. Depois, vem lá do começo dos tempos para labutar decompondo o lixo que fazemos sendo. Ou vice-versa.

Horta Seca, Lisboa, 29 Agosto

«Histórias para meninas distraídas», assim se chama, mas estes poemas da Liliana [Ribeiro] estão prenhes de fina atenção. Ainda não falara do pequeno volume, dos iniciais colecção Mão Dita, aguardando inutilmente a oportunidade de lançamento na capital, que a norte já se desmultiplicou como quem semeia. Os versos misturam, qual biscoito de mel com gota de estricnina, um modo de ser gentil e duro. Infância, «adultância» e outras ânsias, mas também amor, morte, a palavra e o maior dos panos de fundo: o feminino. Ah, e o tempo, esse devorador, que merecia «Cartão Vermelho»: «Ninguém nos tinha dito que o tempo a favor de todas as possibilidades acabaria. Acabaria o ciclo, o ensaio, a diversão, a determinação instruída. A meta fixa fora sempre um truque, um sinal para as mãos se juntarem no banco do autocarro e assistir gratuitamente ao concerto no estádio municipal. Tudo o resto, desvarios, distrações contra as árvores iguais.» Acabado de ler o manuscrito, outro cuja publicação demorou o irrazoável, anotei: a ferida como doença. Tanto fica por dizer.

Horta Seca, Lisboa, 30 Agosto

Supostamente, qualquer computador se liga, enigma palpitante, ao coração do átomo onde arfa Cronos comedor de filhos e senhor de todas as colheitas, mesmo as mais sangrentas. Por que raio ou significado os números do canto inferior direito, do meu pêcê, irmanados pelos dois pontos, manetas de ponteiros, cavalgam muito além do comum? Induzem em erro, mas ajudam a cumprir. Contudo, chegar antes continua sendo alta de pontualidade. Marcará o kairos o das oportunidades que, por ver mal as horas, fui perdendo?

João Villaret , Lisboa, 1 Setembro

A querida Daniela [Gomes] desatou a compor uma boa série de «Covers» (ed. Paralelo W), i.e., ou seja, quer dizer. Recolheu fotografias antigas e anónimas sobre as quais pintou correspondências com versos de canções díspares e significativas. A que se reproduz na página, por exemplo, corresponde aos três últimos versos de Sandy Denny, acolhida nos Fairport Convention. Para sublinhar que não sei para onde o tempo se escoa, incluo aqui mais uns quantos e ponho a canção a rodar (vai passar a constar do karaokabysmo, cancioneiro selvagem das noites deste verão de mentirinha). «Across the evening sky, all the birds are leaving/ But how can they know it’s time for them to go?/ Before the winter fire, I will still be dreaming/ I have no thought of time// For who knows where the time goes?/ Who knows where the time goes?// Sad, deserted shore, your fickle friends are leaving/ Ah, but then you know it’s time for them to go/ But I will still be here, I have no thought of leaving/ I do not count the time// For who knows where the time goes?/ Who knows where the time goes?» A Daniela, fazendo uso de extrema e melancólica sensibilidade, isolou as figuras com trabalho sobre a cor que inventa carnes e matérias e prolonga as melodias. Isolou o humano, retirou-o das suas circunstâncias, para o fazer voar por sobre infâncias, desencontros, sonhos, ramos, rochas, corpos e casas. E aquele não lugar entre a luz e nenhures. Estamos sós com a música. Cai-se com facilidade em vários, por isto ou aquilo, olhar ou situação, detalhe ou conjunto, mas prendi-me a este da explosiva leitura do fulgor tendo por companhia as nuvens. Sei bem as razões.

Horta Seca, Lisboa, 3 Setembro

Tão dolorosamente belas são as imagens do Museu Nacional do Brasil ardendo, no seu aniversário! A estatuária que vigia, do telhado, perdeu terceira dimensão, são meras sombras face ao combate perdido, cegas do horizonte perdido, engasgadas pelo fumo tóxico da memória livre das ciências, talvez devessem deixar-se cair com o estrondo seco do escândalo. O gato embalsamado morrerá de vez ou sobra-lhe ainda hipótese de roçar alguém algures? Quantas mortes ali vivas voltarão a morrer à mão da estupidez impune? A múmia de Amon, o gajo de Atacama e o acocorado de Aymara e cada esqueleto ainda sendo ali poderiam levantar-se em grito para atormentar consciências. Bendegó, o meteorito vai resistir a estas brasas para continuar aceso na memória da incúria criminosa. A beleza é efémera ou não seria, razão maior para a admirar. E conservar. Ferida obscena, esta imagem da barbárie, servindo ideologia sanguinária que prefere a morte, na vez do humano que pulsa em cada migalha de museu. Que quotidianamente aceita sacrificar no altar do lucro a cultura, por dispensável, gratuita, inútil. Experimento em cada museu coração que pulsa. Pode até ter sido erguido sobre ideias gastas, solúveis na espuma da raiva, mas uma única delas justifica seiva e pulsação: fotossíntese. Falta-nos – cada vez mais – o ar.

Santa Bárbara, Lisboa, 5 Setembro

Vinte e cinco anos depois, continuo trocando os pés pelas mãos, incapaz de te dar o horizonte que merecias, tão aquém do possível que até dói. Nem poema consigo novo. «Os teus braços, afinal tu/ como sítio abrangente (a floresta)/ lugar panorâmico (o mar em fundo)/ onde me recolher/ sem palavras/ precisei delas gastei-as para chegar/ a ti/ despia-me já choroso (o mar em mim)/ e depositava-me/ massa desprendida solta de gordura e afecto e/ ossos/ nos teus abraços de estátua vibrante/ ora cama repousante/ ora colo ofegante/ soluçante, eu e os pensamentos/ ardendo à nossa volta/ incendiados pelo resto incandescente/ das palavras caminho/ os teus cabelos cobrem-nos de mundo/ aceitaste/ aceitaste-me/ os teus olhos húmus convidam à sementeira/ não terá sido por isso/ o desespero encontrou a intimidade/ continuo os soluços/ pois deles se soltam/ dançando/ as estrelas/ da já noite/ até que a tranquilidade/ por vida praça que rasgaste / na pele do promontório (a floresta)/ me acolheu desfeito/ não precisei da manhã para amanhecer/ ou de perder os verbos (a nuvem)/ para me erguer estendido/ na tranquilidade/ quedo tolhido fiquei/ já que continuei a vir pelas palavras caminho/ para repetidamente / morrer (em ti)».

6 Set 2018

A voz do vidro

Público, 14 Agosto

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo resistir ao estilhaçar de ironias causado pela notícia da queda de um visitante na escultura de Anish Kapoor, Descida para o Limbo (foto na página de Filipe Braga)? «Serralves está a acompanhar a situação clínica do visitante italiano, com cerca de 60 anos, que sofreu ferimentos quando caiu naquela escultura.» Podia a frase pertencer a conto do (tão meu) Mário-Henrique Leiria. O círculo negro no chão cumpre a sua função de perturbar com enganadora maneira o chão que pisamos. O escultor explora o vazio e procura pelos meios ao seu alcance mexer com a nossa percepção, em busca de outros lados, espaços negativos, chama-lhes. Não têm que ser físicas as armadilhas da arte, mas em servindo para alguma coisa, além da salvação do artista, há-de ser esta de se meter nos interstícios das coisas, ampliando-as. Ou encolhendo-as ao mínimo de uma noção. Limbo é um subúrbio do céu, construído para abrigar aqueles, justos e crianças, que não foram baptizados. Na teologia católica, segundo Borges, ramo da literatura fantástica.

Facebook, nenhures, 16 Agosto

Voz assim não se calará nunca. Por efeito de contiguidade, dei por mim a pensar que escultura poderia Kapoor imaginar a partir de Aretha Franklin (1942-2018). Orgânicos corredores vermelhos facilitando à superfície deambulações pelas vísceras? A sua voz explorou os côncavos do amor e do sofrimento, o sagrado e o profano, de modos, a um tempo, dilacerantes e prazerosos. Por inteiro, testemunhou um tempo, ou melhor: tempos, que foi capaz de eternizar fundindo-os em áspero diamante. Cai-lhe como vestido brilhante o nome de Lady Soul, ainda por cima baptismo de momentos iniciais. A máquina de produzir simbólico que são os Estados Unidos da América tocou o meu céptico coração com a sua participação vibrante na tomada de posse do presidente Obama. Por causa das coisas, as minhas horas procurarão um qualquer Spirit in the Dark. Aprenderei a dançar com as sombras? «Sure I know I can, I can borrow a smoke/ Why I can sit here all night and tell jokers some jokes/ But who’s gonna to laugh, / Who’s gonna laugh at my broken heart, heart.» Lá estou eu, Drinking Again.

Horta Seca, Lisboa, 17 Agosto

Esqueçamos por ora o momento primordial da escolha. Um editor realiza-se na preparação da obra, retirando do processo grande gozo e não menor ensinamento. Andamos a desenhar uma colecção para acolher os clássicos em duas vertentes, uma de traduções e outra de ensaios. A abordagem gráfica do Miguel [Macedo] pareceu-nos a melhor, para acrescentar um grão de sal ao conservadorismo que se pede. Quisemos descomplicar ao máximo a vida ao leitor, colocando cada expediente ao serviço do texto, que só por si será rico em excepções e notas. Cada detalhe da construção do livro suscita riquíssimo debate.

Não por acaso, e depois de tanto tardar, começamos com As Constituições Perdidas de Aristóteles, na tradução do mano António [de Castro Caeiro]. Uma micro enciclopédia sobre o mundo antigo, que se desdobra também em livro de viagens, carregado de momentos entre a luz e as trevas. «Aos Beócios, a divindade deu a seguinte resposta oracular: “domiciliem-se onde corvos brancos forem avistados”. Logo que viram as aves de Apolo, corvos brancos, pintados com giz por crianças inocentes, a voar em torno da baía de Págasa, ocuparam o local. Mais tarde, os Eólios expulsaram-nos dali e enviaram exilados para o mesmo local. Outros [interpretavam assim o oráculo, dizendo que era] porque o corvo é um animal sem vergonha e indica a proximidade do ocaso ao género humano. Aristóteles, por outro lado, diz que quando uma praga atacou, havendo muitos corvos, os homens capturavam-nos e depois de os terem purificado, punham-nos vivos em liberdade. E ordenavam à praga: “refugia-te nos corvos”». Assim nos fazemos crianças inocentes pintando de branco animais sem vergonha, dos que indicam ao humano a proximidade do ocaso.

Trindade, Lisboa, 20 Agosto

Casos há em que a preparação começa antes. Tive hoje primeiro mergulho em apneia no acervo de Tóssan, esse cometa das artes gráficas, além da escrita humorística e, afinal, um pouco mais, sobretudo contos e alguns poemas. São centenas de páginas, manuscritas na sua maior parte, generosamente disponibilizadas por amigos dilectos. Lição de humildade, este perceber que podemos ser reduzidos a meia dúzia de folhas conservadas pela amizade. O autor tinha planos para a papelada, tropeça-se em tentativas de arrumação, depuradas até ao singelo alinhamento que será a base das fases seguintes. Por ocasião de tais leituras, como que titubeantes, encontramos invariavelmente motivos de espanto. Veja-se este pequeno conto, que ilustra à transparência dias de tactear no nada.

«É preciso ter coragem para partir um vidro.
Nunca parti um vidro, mas sinto que é uma cobardia.
Tive sempre respeito pela limpidez de um vidro.
Tenho a impressão que os estilhaços se insinuariam na minha mágoa.
E depois o vidro tem voz. A voz do vidro é duma musicalidade fria, cortante. Não é só o grito emancipado, mas a multiplicação de gritos ao cair no chão, como se o primeiro protesto não fosse o suficiente.
E quando se pisam os estilhaços – é um longo lamento de rãs sem disciplina.
E depois o vidro quando quebra deixa uma cicatriz fosca cúbica que risca a noite ou o silêncio do dia.
Se o vidro não protestasse com violência, talvez as montras não fossem de vidro. A voz do vidro deve ser o guarda do próprio vidro. E quando tornasse a passar pelo lugar onde esteve o vidro, ainda por substituir, sentiria, quem sabe, os olhos doerem por não ver e a certificação do tacto gasta de tactear no nada.

Os estilhaços são o testemunho da agressão.»

Horta Seca, Lisboa, 15 Agosto

Pouco importa que seja este mês pulverizado, cheio de ausências brancas e brandas vontades. Tumultuosa ou plácida, a gestão corrente obriga-nos a trocar o essencial por um esmagador acessório. Há cobranças por fazer, pagamentos atrasados, gritos presos na garganta, impostos ameaçadores, formalidades por cumprir, direitos a pedir e outros a ceder, projectos a definir em papel, avaliações a ponderar, arrependimentos avulso, decisões tomadas e outras adiadas, impaciências por tolher, explicações que tardam, impressos a preencher, regras e mais regras de um negócio que me cheira ser dos mais estúpidos. O telefone, de súbito, cresce feito instrumento de tortura. Um único email estraga o dia por completo. Uma reunião que dura há semanas. E agora mesmo a suposta ajuda revelou-se obstáculo. Dia que se preze tem, pelo menos, uma crise, um buraco, quando não inferno, limbo.

29 Ago 2018