A vida saudável

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Dezembro

[dropcap]C[/dropcap]ada dor contém enigma que não se resolve assim. Alivia, se me distrair do pé. Por estes dias, demasiadamente muitos, o meu corpo concentra-se algures em torno de um dedo. Tento o diálogo com o dito, também ele já cansado de imprecações, palavrões e outras rimas de quebrar gelo. Não lhe reconheço traço distintivo, além do cansaço de arrostar com quilos e tropeções, toques artísticos em móveis caseiros e mobiliário urbano, quase nunca em bola ou transeunte, apesar dos apetites. Ah, a culpa não lhe cabe. Só um caricaturista, mestre em dores públicas, e nesta privada, podia apanhar a criatura: James Gillray [algures na página]. O ligeiríssimo bálsamo advém da investigação, que permite escapar aos médicos-formados-agora-mesmo-no-google que me atazanam, picando piedade com habitual gozo. Cada passo desfaz-se em impossibilidade que acumula gritos na garganta. O chão ou o lençol, dá igual, tornaram-se instrumento de tortura. Horizontal anuncia-se novo normal, logo agora que preciso de andadura certeira. O bicho acaba de cravar outra unha. Perco a concentração, algo mais se atrasará, agora por razões de tormento. Descubro nos queridos cristais em excesso uma raiz herdada nos cálculos renais que atormentaram, e muito, o progenitor. Depois, o nitrogénio no composto do ácido úrico fraterniza-me com aves e répteis. Alegra-me saber, antes de alegre guinada, que a razão pela qual o guano se faz bom fertilizante está no alto teor de nitrogénio. Nem sempre do excesso resulta desvantagem, mas isso só para os outros. O remédio tinha que ser «um estilo de vida saudável»! Além da actividade física regular, ai!, consta, e cito, a redução («mas não proibição») de alimentos ricos em purinas (carnes, vísceras, marisco e alguns peixes como salmão, truta e sardinhas) e redução do consumo alcoólico, especialmente de cerveja e bebidas brancas. O consumo de refrigerantes e sumos de fruta deve também ser evitado. Em tempos, quando os pobres pouco comiam, a doença era de ricos, pelo que a caça e as carnes jovens são para esquecer. Aquela perdiz desossada, as costeletas de novilho… As conservas, os enchidos e até as sopas, se nelas repousarem caldos processados, estão proibidas. Aquelas anchovas, o bucho! Não sei, mas ou a vida ou o corpo ou ambos andam a querer dizer-me o que já sei: não lhes pertenço.

Horta Seca, Lisboa, 10 Dezembro

Na luminosa desgraça da quadra poucas são as razões de ânimo. E piora quando, na travessia do inominável deserto do novo puritanismo, não páram de chover cometas. Hoje, soube-se de professor universitário nos antípodas que tornou objecto de estudo os 24 filmes de James Bond. Não para lhe descobrir novos sentidos, em modos de dizer, na ideia de aventura, nas invenções entre o mortífero e o salvífico, mas para concluir que o espião ao serviço de Sua Majestade era alcoólico crónico, que bebericava, por filme, umas 109 vezes. Fez outras contas, que davam como resultado ter o homem trabalhado em coma alcoólico. A conclusão maior e indispensável à humanidade está na «irresponsabilidade das chefias» que tal permitiram. A palavra fantasia, estou certo, desapareceu dos dicionários. Por causa das coisas, bebo uma gota (sim, há por aqui uma ironia qualquer) de um maravilhoso Redbreast (12 anos), que mão amiga me trouxe. O que me leva à de ontem, o apelo à censura da célebre canção, «Fairtale of New York», dos The Pogues, lançado por um estudante, editor de um jornal, e logo secundado por um DJ, costumeiros habitantes de sacristia. Causa? A palavrinha faggot. A vida é bastante abusiva, vamos deixar que a arte seja um sítio fofinho onde descansar um pouco a cabeça. (Melhor dizê-lo: há por aqui um sip de ironia.) As boas intenções estão, finalmente, a fazer da vida em sociedade um inferno. Saudável, claro.

Cervantes, Lisboa, 13 Dezembro

Um homem corre em caminho nevado de montanha na direcção oposta de um cavalo amarelado levando na mão cabeça de mulher. Um homem agachado ignora a cena, como o pássaro que depenica. Abaixo e ao centro, um olhar infantil interpela-nos. As colagens de Adriano del Valle, nunca antes vistas por aqui, iluminam «O Ultraismo Espanhol e Portugal – Cem Anos de um Movimento de Vanguarda», breve mas intensa exposição que António Sáez Delgado organizou para celebrar momento importante nos diálogos ibéricos. Importantíssimo, digo eu, no peso dos nomes que ignoraram fronteiras para, para lá de pensarem, fazerem em conjunto. Ramón [Gomez de la Serna], outro núcleo da exposição, e Almada [Negreiros], são disso exemplo maior. Acrescente-se Rogelio Buendía, terceiro núcleo, que, com Adriano, se apaixonaram pela literatura deste lado, logo levando Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro aos leitores ibéricos. Revistas, livros, recortes e correspondência, além de fotografias e desenhos, ajudam a desenhar um mapa que nos permite entrar em território fascinante. Esta vanguarda sabia incendiar gestos colectivos, desmultiplicava-se em manifestos, montava antenas de atenção cristalina ao cosmopolitismo navegante das geografias e dos tempos, e alargou o possível.

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

A chegada de provas alegra o dia, ainda que contenham erros ou incorrecções. As novas técnicas fazem com que estejam mais próximas da maqueta inicial, mas, em simultâneo, aproximam-nos mais do livro como ele será. Ou seja, as provas são impressões do documento enviado, sem montagem prévia em acetatos, sem outra intervenção da gráfica, que não o ordenar dos cadernos no formato. (As provas de cor, essas, darão indicações da realidade futura.) Mas o mono pode com extrema facilidade dar-nos emocionante visão do que será o livro, em versão descolorida. Apesar do estrago, em papel e no mais, devíamos trabalhar sempre maquetas tão próximas quanto possível para melhor percebermos a sua personalidade. E detectarmos o que nele não funciona sem o exercício da idealização. Folhei vezes sem conta este «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», belíssimo e perturbador álbum da Mariana [Viana], primeira coedição com a Imprensa Nacional.

Casa da Cultura, Setúbal, 14 Dezembro

De «Fronteiras» se fez a discussão no «Filosofia a Pés Juntos», logo separando as internas das externas, essas mais óbvias, ainda que sem perderem complexidade, ou não fosse o horizonte também ele uma fronteira. Só pelo esforço ultrapassamos em nós limiares, resolvemos fases, vencemos medos e o que mais nos poderá definir. Esforço que ao tempo pertence, enquanto a definição de comunidade se inscreve no território, no espaço. Sem nunca se afastar da antiguidade e das palavras cujos significados sabe fazer explodir como ninguém, o António [de Castro Caeiro] deixou claro que a identidade se torna central nesta construção a cada instante do próprio corpo e do nosso no de todos. Sem fronteiras não nos orientamos, nem que seja para as derrubar. Certos temas insinuam-se com veemência.

Metro, Lisboa, 15 Dezembro

As escadas rolantes da estação Baixa-Chiado estão amaldiçoadas. Findos vários meses de paralisia do primeiro lance, em ambos os sentidos, para substituição dos velhos (20 anos…) mecanismos, ei-los que reluzem. Parados. Um sinal cristalino que nada vencerá a degradação dos serviços.

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armandina maia
armandina maia
19 Dez 2018 22:16

sempre a abrir, mesmo em narrativas curtas, as portas de uma escrita que já quase ninguém ousa.