Gardénias Brancas

[dropcap]N[/dropcap]unca gostei de me sentar na parte de trás do autocarro. Já desde os tempos de escola, parecia ser o lugar reservado (reivindicado por eles, até) aos rufias, mal-comportados e barulhentos. Ao longo dos anos, sempre preferi as primeiras filas e os primeiros lugares, na sala de aula e nos transportes públicos. Ando de transportes quase todos os dias, já sem regras muito definidas sobre a parte da frente ou o fundo, mas hoje reflicto muito mais sobre o lugar que ocupo, interior e exterior.

Outro dia respondi a um anúncio para uma curta-metragem. Enviei duas fotografias, o clássico rosto e corpo inteiro, e algumas informações. Em resposta, ouvi que gostaram muito do meu look, e que havia um outro papel para o qual queriam que eu lesse: o de senhora da limpeza, cleaning lady (é uma curta americana), empregada, governanta, como quiserem chamar. Talvez alguns ainda sejam do tempo em que se dizia criada.

Eu não sou malcriada, e como encontro sempre algo de positivo em tudo, lembrei-me de imediato da empregada mais famosa retratada por uma negra: a Mammy, de E tudo o vento levou. Foi este papel que arrecadou o primeiro Óscar alguma vez ganho por um afro-americano. Entre o Óscar de McDaniel e o de Whoopi Goldberg, a segunda a ganhar o prémio de melhor actriz secundária, passariam cinquenta anos.

Este meio século é maior do que o espaço temporal que separa a primeira modelo negra a encerrar um desfile Chanel vestida de noiva, Alek Wek, da segunda, Adut Akech Bior. Este ano, contudo, Karl Lagerfeld voltaria a estar nas bocas do mundo pois, em mais de um século de existência, finalmente a marca contratou o seu primeiro modelo negro, Alton Mason.

Confesso, envergonhada, que nunca pensei muito nos modelos negros masculinos: onde estariam, se teriam trabalho. Talvez estivesse muito ocupada a olhar para Naomi Campbell, detentora de tantas primeiras vezes (primeira modelo negra a aparecer na capa das Vogue inglesa e francesa, e na revista Time) numa carreira que, por momentos, quando era muito nova, pensei seguir. Ser a primeira pessoa a conseguir algo, quando isso acarreta uma afirmação muito maior do que a pessoal, é uma responsabilidade agridoce.

Quando se trata de minorias étnicas, ainda mais. Sandra Oh foi, também em 2018, a primeira actriz de descendência asiática nomeada para um Emmy, prémio que existe há setenta anos. Ser o segundo ou o terceiro ainda pesa muito, sobretudo se os intervalos entre os feitos forem de décadas. Cada conquista é um peso e um bálsamo, um evento e uma revolução, um movimento ou a promessa de mais lugares, visibilidade e igualdade. Hattie McDaniel fez História num hotel segregado, não podendo sentar-se no mesmo lugar que os seus pares. Por não se ter assumido politicamente e ter feito papéis estereotipados, foi criticada pela comunidade negra, ao que respondeu celebremente que poderia ser uma empregada e ganhar sete dólares por dia ou fazer de empregada e ganhar setecentos dólares por semana. Sobre o escândalo de Kevin Hart, e a apresentação dos Prémios da Academia, alguém disse que Hart não deveria pedir desculpa novamente por declarações do passado, pelas quais se achava já redimido, pois a Academia nunca o fez em relação a McDaniel. O tempo passa, mas a hipocrisia não. Se o tivesse, poderia marcar os dias no calendário Pirelli 2018, totalmente protagonizado por negros, com temática de Alice no País das Maravilhas e até um coelho preto.

Aguardo o resultado do casting. Nunca trabalhei nas limpezas, mas sou obcecada por elas. Acredito que é impossível não sorrir e abanar a cabeça ao passar por uma cabo-verdiana a falar alegremente ao telemóvel com alguma amiga, enquanto faz o seu trabalho. Se perceberem crioulo, ainda melhor: têm a experiência completa. O cliché é real e a luta também. Acredito em ter flores no cabelo, em vida e na morte, como foi expresso por McDaniel enquanto desejo fúnebre. McDaniel, que era filha de antigos escravos, e fez o papel de uma; McDaniel, a actriz de vestido azul e gardénias no cabelo, cuja presença em determinados lugares dependia de chamadas, pedidos e favores, devido às leis da altura, e que nem assim pôde assistir à estreia do seu filme. McDaniel, que tinha um agente branco, e também foi a primeira actriz negra a ter o seu próprio programa de rádio, lutou para que os negros pudessem viver na zona das famílias brancas em Los Angeles.

McDaniel, cujo prémio físico, na altura ainda não uma estatueta, se perdeu e nunca foi recuperado. McDaniel, com uma estrela no passeio da fama mas rejeitada no cemitério que escolhera. McDaniel, que sabia quem era quando as câmaras deixavam de gravar e que fez inúmeros papéis sem ser acreditada por eles. Hattie fez a sua escolha e o seu papel num mundo muito mais fechado do que o de hoje. Talvez pudéssemos todos dar mais a cada causa, ou talvez nos vejamos sujeitos a ter de fazer o que abominamos em prol de facilitar as coisas para quem vier depois. Para dizer: estou aqui. Para que outros não tenham de fazer o mesmo.

Gostaria que fossem precisas cada vez menos autorizações para existir. Mas também gostaria que fizéssemos tão mais do que isso. Gostaria de definir o meu lugar e o meu papel. Gostaria de fazer a empregada da limpeza na curta, mas só porque sei que também o faria fora da tela, se precisasse de sobreviver, e que isso não me define, nem define o meu valor. Às vezes, antes de podermos servir a causa, ou para podermos servir-nos melhor uns aos outros, temos de nos servir a nós mesmos primeiro. Ninguém o disse melhor do que Daniel Faria: “Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.” Ele era mais de magnólias, mas sei que teria entendido a beleza das gardénias brancas.

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