O lugar das estacas

[dropcap]V[/dropcap]oltei ao lugar das estacas, expressão popularizada pela apresentadora Cristina Ferreira em 2016 quando declarou, emocionada: “Mesmo que eu um dia tenha de voltar à feira, ainda sei o lugar das estacas”. Considero este um dos grandes momentos da televisão portuguesa, com laivos de Scarlett O’Hara na sua saudosa Tara, declarando a Deus que jamais voltará a passar fome. Ao contrário de Cristina, que muitos consideram a figura deste ano que encerra, eu nunca vendi na feira, mas recordo-me bem de uma entrevista em que ela dizia só ter andado de avião pela primeira vez aos trinta.

Há anos que não visitava a Feira do Relógio, a qual tenho descoberto ser ainda um mistério para alguns residentes lisboetas. Também eu me tenho esquivado, por preguiça e por ter vivido três anos na rua contígua à Ladra, a voltar à mãe de todas as feiras. Tolice. Nada faz passar a melancolia dominical como uma ida ao Relógio.

Cresci em Alverca do Ribatejo, uma das muitas cidades onde há uma feira, no mínimo, todos os sábados. O ritual de sair para passear, normalmente em família, reencontrar toda a gente, ver coelhos e pintainhos à venda, voltar para casa com saias a dois euros e farturas no bucho em qualquer altura do ano, é parte da qualidade de vida que perdi quando me mudei. Que me perdoem os farmer’s markets, mas esta é uma liga superior: dos lugares mais mágicos, surreais e divertidos, em estímulo exagerado e contínuo de todos os nossos sentidos. Nada se faz pela metade a não ser, talvez, o preço. Há alguns domingos, depois de uma primeira desistência por causa da chuva na semana anterior, lá me dispus a percorrer novamente a Avenida de Santo Condestável.

Abre o olho! Vá lá, vá lá, vá lá! Muito artigo bom e barato. Dois a um euro! Três a um euro. E há a quatro euros, também! Uma mulher usa um megafone e sobe a um pequeno escadote e há quem suba à própria banca onde tem os artigos. Desde que não chovam pedras!, repete alguém. Há quem cante Ciiiiinco euros, em falsete de fazer corar o Prince. Cinco, cinco, cinco é o mantra repetido em tom gutural. “Because I love you”, canta um homem que por mim passa, reclamando entredentes que o saco vai muito pesado para o seu gosto. É tão fácil existir aqui. Por todo o lado, sacos de plástico com desenhos de Pai Natal envolvem cuecas e tomadas eléctricas. Uma banca está protegida por uma toalha que reconheço: um padrão de ursinhos, que me remete de imediato para um primeiro date, há quase um ano. Já acreditávamos, mas isto confirma o seu lugar como a melhor toalha do mundo. Reparo ainda num belo avental, ostentado por uma feirante, com a inscrição “Deus te abençoe e te guie” pintada.

Andem mal vestidas, andem. Não gastem o dinheiro, não. Ó jeitosas! Ó jovem! Ó menina, pode mexer à vontade. Um euro cada, se comprar cinco leva seis. Leva um oferecido. Já não é quinze, é a dez! A dez a dez a dez, é para a criança andar bem vestida na rua, na escola, para ir à missa! Cheguem-se para cá! É três por dez! Artigos de loja, artigos de marca! Para homem, para mulher: coisa linda! Leve tudo, leve tudo! É coisa boa, não é Primark, não é lixo. É da Loja das Meias! Pode abrir e ver. Aproveitem, Carolina, Francisca! Venham ver! Vá lá, princesa! Três collants! Olha a mala! Pode levar maiores e mais pequeninas, está bem, querida?

Olhem que eu tenho luxo! Ó Teresa, esta menina diz para eu não a provocar. Vocês hoje estão uns chatos do caraças! É de roer! Andem bonitas, mulheres!

Parar não é permitido. A feira pulsa, ribomba em sons e línguas diversos, e quem está nela deve acompanhar os seus movimentos. Cães a passeio e carrinhos de bebé são levados com cautela pelo mar de gente em constante desvio, uns dos outros e das estacas de metal que seguram as tendas com fios grossos e coloridos. Por aqui, há quem ande de patins em linha, quem branda pijamas-escalpe do Pikachu, quem fale com abacates, quem declare que é o próprio homem, o próprio ser humano quem está a dar cabo disto tudo.

Delicio-me com um pastel de vento, clássico brasileiro de massa tenra com recheio de carne e queijo, que mal cabe no prato. Bifanas, garrafões de vinho, ervas aromáticas frescas e secas. Águas de colónia, bolas de futebol, a genialidade da expressão “jogo de cama”. Buzinas, serras, flores falsas e verdadeiras. Encanto-me com giló, malagueta em forma de rosa, pitaya de polpa roxa. Há pássaros, plantas, ovos em caixas intermináveis e bem organizadas. Com sorte até cassetes e disquetes. Soldados de brincar, porquinhos-mealheiro, mantas multiusos, um pinguim verde de louça que me acena, facas, bálsamo chinês, cola e escovas de dentes convivem num caos irónico que me tranquiliza. Posso comprar um sofá, um pente fluorescente, uma toalha de praia com golfinhos, um relógio do SLB, um baralho de UNO, pensos rápidos, brincos, uma Nossa Senhora que brilha no escuro ou pães chamados bebés. Não há limites. São ou não são os melhores, estes domingos de manhã na cápsula do tempo, no museu vivo de todas as coisas tuga?

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