O Mundo Animal

[dropcap]A[/dropcap] bem do início desta crónica irei imaginar que algures num arquipélago remoto onde nem sequer um rumor de civilização terá chegado existe alguém que não sabe o que é um meme. E é para esse solitário que destino as primeiras linhas deste texto.

Os memes são panfletos instantâneos, comentários rápidos sobre o estado das coisas. Uma imagem, quase sempre retirada de contexto, a que se apõe uma legenda normalmente crítica e humorística. Funciona, tem graça e dado o espectro de atenção pouco acima de zero que rege a reflexão das redes sociais está quase à beira do ensaio. Mas divago: eu gosto desta forma de expressão (diria mesmo de arte pop) e recentemente deparei com um destes novos posters que me chamou a atenção para além do sorriso. Nele, podíamos ver um indivíduo com um semblante que demonstrava um imenso alívio, olhos cerrados, mão no peito e cabeça erguida para o céu (era o Robert Downey Jr, mas isso é irrelevante); e a legenda era de uma certeira percepção. Dizia: «Quando pensas que atropelaste um cão e afinal era só uma pessoa».

A frase funciona porque é um barómetro do nosso tempo. Quem consegue sorrir por causa dela sabe que é um sorriso triste, pela simples razão de que é verdade. Como também é verdade que muita gente verá uma ofensa no que acabei de descrever. E é isso que hoje é para aqui chamado. Só os mais distraídos não terão notado que há um novo paradigma de olhar para o mundo que pouco a pouco se tem imposto. É um activismo pelos “direitos” dos animais, cada vez mais ortodoxo na sociedade ocidental, onde nesta altura há pouco espaço para dissensão, e que leva a que muitas vezes o humano seja preterido em favor do não-humano. Um pouco de contexto, para que melhor nos entendamos: a expressão “direito dos animais” apareceu pela primeira vez num artigo do Sunday Times em 1965, assinado por Brigid Brophy. Mas foi em 1975 que o filósofo Peter Singer consagrou esta mundividência no livro Animal Liberation, que está na base do pensamento Animalista. Outros se lhe juntaram e sem surpresa o que era uma filosofia tomou contornos de ideologia com o aparecimento do Especismo, criado por Richard Ryder, que defende que, tal como o racismo ou o sexismo, a nossa relação com os outros animais é uma forma de discriminação sem qualquer fundamento, transformando assim os animais não-humanos num grupo oprimido e vitimizado – um pensamento subsidiário da ortodoxia corrente.

De uma forma simplificada, os Animalistas defendem que a sua doutrina é semelhante ao Humanismo (onde o Homem é o centro de todos os valores e dignidade) mas incluem na sua atitude todos os animais não-humanos que consideram seres sencientes e portanto individuais. Aceitam que não sejam agentes morais – isto é, capaz de agir em função de Bem e Mal – mas que isso não significa que não possam ter direitos e que os agentes morais humanos não tenham deveres para com eles. Do outro lado, encontramos filósofos como Roger Scruton ( Animal Rights And Wrongs, 1996) que, seguindo uma tradição que vem de São Tomás de Aquino ou Descartes mas indo para além dos alicerces teológicos argumentam que não sendo agentes morais ou sequer conscientes, os animais não têm direitos – somos nós que temos deveres para com eles sem deixar que o humano seja prioritário.

O que me interessa aqui não é uma exposição das duas filosofias ou sequer a minha opinião sobre elas (mas sempre direi que estou com Scruton): são os sintomas quotidianos que o aparente triunfo do Animalismo vem provocando. Há manifestações inócuas e ridículas, como a recente vigília que um grupo vegan de Bristol organizou por nove perus que foram mortos para o Natal. Mas existem outros sinais mais preocupantes desta tendência: o facto de a PETA – a mais credibilizada organização de defesa dos animais – pedir a alteração ou proibição de provérbios e expressões idiomáticas que, na sua opinião, reflectem a crueldade dos humanos para com os outros bichos. Isto é mais grave do que parece porque na base tem a ver com a manipulação da linguagem para condicionar o pensamento – algo que Orwell previu e que o “politicamente correcto” estabeleceu. De uma forma não institucional, bastará olhar para os comentários online de qualquer notícia que envolva toureiros colhidos, por exemplo: o desejo de morte do homem que “tortura” o animal é quase unânime, com requintes de maldade só equiparáveis aos tempos de Nero. O mesmo para famílias que devolvem cães adoptados às instituições que os recolhem: a família é imediatamente insultada (desejos e ameaças de morte incluídas) mas ninguém se oferece para ficar com o animal.

A nossa relação com os animais merece a atenção que a noção do Bem e do Mal pode oferecer. Deve haver penalizações para quem deliberadamente é cruel com os que de nós dependem ou apenas têm o essencial direito de existir. Mas o fanatismo destes dias é perigoso e insalubre, talvez até um pouco desesperado. Reflecte falta de valores e cansaço de tudo o que nos diz respeito – a nós, humanos. Atribuir características antropomórficas aos bichos faz com que o ser humano seja equivalente em todas as situações. Há um velho problema de Ética, cujo enunciado é mais ou menos o seguinte:“Imagina que numa situação limite onde estão em perigo de morte X e Y só poderás salvar um. Qual salvarias ?” . Um Animalista hesitaria pelo menos um segundo entre salvar um ser humano e um animal. E é esse segundo de hesitação que representa um mundo que eu deploro.

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