Titanic

[dropcap]N[/dropcap]o primeiro dia, ela leva-me para o escritório e fecha a porta à chave atrás de si, apesar dos dois seguranças do lado de fora, sorridentes e prestáveis. Na verdade, lembram mais polícias do que outra coisa. A casa tem vigilância 24 horas por dia, explica. A nossa conversa interrompida por gritos e risos vindos do corredor e, depois, por batidas cada vez mais fortes e pedidos cada vez mais desesperados de um dos rapazes tentando entrar. Como se fosse arrombar a porta. Como se fosse a coisa mais importante, mais urgente do mundo, entrar por aquela sala adentro. Para quê?

Explicações, justificações e desculpas enquanto alterna o que nos trouxe ali com pedidos para que se acalme, e espere. Nada. Ele continua e, eventualmente, consegue entrar. Parece perturbado por alguma coisa ou alguém. Parece encurralado, tentando escapar. Parece em perigo, a precisar de ser salvo.
Ela pergunta, finalmente, o que é que ele quer, e ele responde conseguindo-o: um abraço. Aquele rapaz, nos seus treze anos e quase um e oitenta de altura, caracóis dourados e olhos claros, capaz de tamanha brutalidade para com uma porta, apenas exige, apenas quer do mundo um abraço. Assino os papéis.

Gostas de mim?

Silêncio. Ouviria esta pergunta dezenas de vezes por dia nas próximas semanas. Pijama polar azul, olhar fixo sobre a rua, à espera de ver os outros regressar, com telemóveis novos nos bolsos ou mais uma expulsão da escola. A mesma força bruta e incomensurável de antes. Força essa que o levaria a passar dois dias no hospital, ao partir a cabeça de propósito contra uma janela, por querer visitar um dos companheiros, que lá está por doença. Sempre a mesma pergunta e, quanto mais ele a coloca, maior a tendência para passar do silêncio ao sim, e de essa resposta passar de conveniente a verdadeira.
Claro que gosto de ti.

Desço para a rua. Nas escadas ecoa um assobio cujo dono eu ainda não sei reconhecer. Ao tema, sim: My heart will go on, de Céline Marie Claudette Dion.

Tenho tempo antes de começar. Como um gelado na praça, nas únicas vezes talvez em que não reparo em ninguém. Dois euros, três sabores à escolha e natas. Quero esvaziar a cabeça ou ganhar coragem. Estar preparada. Como se fosse possível.

Há sempre futebol quando venho. Dois ou três fazem questão de estar em casa nesses finais de tarde. Ocupam o sofá, mandam os outros calar. Sento-me a ver com eles. Nos intervalos, jogam hóquei de mesa. Noutra noite, participarei numa peça de teatro sem guião e sem público, repetida incansáveis vezes. Perucas brilhantes, de cores extravagantes, e vozes feitas grossas para a ocasião, muita gesticulação e um médico louco, que nos persegue no lusco-fusco. É suposto que nos deixemos vencer por um destino cruel ao som de gargalhadas maléficas.

Há um rapaz de quem toda a gente me fala, mas o tempo passa e não nos cruzamos. Parece que ninguém sabe o que fazer com ele e, como se comporta, deixam-no no que julgam ser em paz. Entretanto, deixo-me ficar com os dois irmãos: um joga no computador (carros), enquanto ouve rap tuga sobre como é difícil a vida nas ruas. Ensurdecedora, pelos vistos. O outro, o que me ofereceu chocolates uma vez, lê a Bíblia. Às vezes não sabe dela e não sossega enquanto um dos outros não a descobre e lha devolve. Normalmente, está no andar de cima, onde nunca chegarei a ir.

Quando volto, na semana seguinte, ele já não está lá. Foi transferido para outro lugar. Na parede, nas mesas, vestígios da festa de despedida do dia anterior: fotografias a cores dos rapazes e da equipa, felizes. Bolos, sandes, frango de churrasco, sumo. Agora foi-se o líder. Agora que íamos ouvir música, escrever e rever canções juntos. Agora que eu lhe ofereci o meu pin do Muhammad Ali. Agora que eu estava a tentar convencê-lo a regressar à escola. Agora que eu o fizera sorrir, e falar-me dos temas do rap que fazia e da rapariga de quem gostava. Agora que volta a ser um nome suspirado por todos os adultos e recordado respeitosamente por todos os miúdos.

Eu não sei o que fazer e, como tal, escolho o que sempre faço nessas situações: um bolo. A oito mãos, impacientes e conflituosas, curiosas e inexperientes, que vão seguindo as minhas indicações com mais ou menos nuvens de farinha no ar. Mas isto não é sobre o bolo, embora eu espere que as cabeças que surgem à porta com olhar de gula, desprezo e maldizer, sejam compreensíveis caso não esteja como querem. É, ainda, a estreia do forno que não consigo entender de imediato como funciona. Ajudam-me. Ainda há muito por fazer e por limpar.

Alguns recebem telefonemas da família. Outros, encontram-na nos que ali trabalham e estão presentes todos os dias. Alguém suspira. Alguém comenta o quão nova era a casa ainda agora e o quão destruída vai ficando a cada dia, conforme as energias negativas, de que me dizem estar cheios, vão sendo libertadas. “Se eles puderem roubar-te, não vão hesitar.” Quem confiará em quem primeiro? Há um momento de tensão, e outro, e outro. Alguém separa adulto e adolescente. Em breve, ela, a adulta, estará de baixa, oferta da casa. Mas voltará. Voltará sempre, porque entende. Porque escolheu estar ali.

“Quem és tu?” Apresentam-me. Apresento-me. “Deve ser a nova estagiária.” Já no sofá, em sossego, continua: “Tens filhos?” Respondo. “Não te preocupes, miúda, um dia ainda vais ser mãe.” E mal tenho tempo de processar isto quando regressam os outros, como quem tivesse estado à escuta: “Vieste buscá-lo? És a tia dele?” Contam-me que uma ex-funcionária tentou adoptá-lo mas não conseguiu a aprovação. Queria levá-lo de novo para a terra onde nasceu, mas acabou por desistir. “Era a oportunidade de ele sair daqui. Vai sempre depender de alguém. Não sei o que vai ser dele.” Ele. Tenho carinho por ele.

Quando vou a casa dos meus pais, na semana seguinte, resgato o velhinho 20,000 Léguas Submarinas. No quarto, lemos juntos, à vez. Confessa, às vezes tenho uma escuridão dentro de mim. Daí a Bíblia. Tem medo, e um dos sorrisos mais bonitos que já vi. À nossa volta, posters e mais posters do filme Titanic, o seu preferido. Vê-o todos os dias. Chora sempre. Convida-me para o seu aniversário, daí a dois dias. Deixo-o descansar.

Saímos os três para a noite fria. Estou de totós, que outro dia aprendi dizer-se Maria-Chiquinha, no Brasil. “Pareces a Harley Quinn”. Fico a olhar para ele e digo a mim mesma: disfarça, não queres que deixe de pensar que és fixe. Continuamos a volta ao bairro. Estão a aprender a dar a quem precisa. Levam comida para quem a não tem. Eles que já têm tão pouco, e de quem apenas se espera o pior. Mas a verdade é que perto, longe, onde quer que estejamos, tornam-se facilmente os nossos miúdos preferidos. Mesmo quando se peidam sem pudor e evitam tomar banho por tanto tempo quanto possível. Mesmo se o autismo, a delinquência, o abandono, a deficiência. Ah, rapazes perdidos. Fosse o mundo assim tão puro.

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