Que me diz o corpo? Cai.

Fora de Lisboa, 24 de Março

 

[dropcap]A[/dropcap] notícia apanha-me fora da cidade, fora de mim. Andávamos a arranhar céus, por causa de uma ideia, é sempre assim, mas agora não sei, Manuel [Graça Dias]: desapeteceu-me.

Hei-de dar umas voltas, para ganhar coragem de arrumar o irresolvido. Quem, como tu, viu na cidade um corpo vivo, fulgurante e contemporâneo a cada instante? Ninguém, como tu, defendia o direito de cada um, sem restrição de gosto ou proveniência, a fazer a sua casa, a sua cidade. A riscar, arriscando. A construir com ruínas, a erguer em circunvoluções, vasculhando noas catálogos do disponível, sem perder a hipótese do sonhado. Lembro agora que falámos muito de janelas. Hei-de dar umas voltas, de pernas para o ar.

Almirante Reis, Lisboa, 28 de Março

Deixei-me alhear. A cena estava destinada a durar poucos minutos naquele aquário com uma única parede de vidro, a porta abrindo sobre azáfama de papéis, em murmúrio de irrequietude, prestes a sossegarem em um quase nada absolutamente determinante. A leitura em voz alta e borracha na mão despejava em ladainha dados objectivos, moradas, lugares de nascimento, portanto datas. Definitivos que nem lâminas, se excluirmos os nomes. Os nomes completos não se limitam ao real, trazem primeiro o próprio, e logo dele evocação, perfume, um eco; seguem-se os apelidos revelando raízes, as serras e os rios onde germinaram os pais dos pais, quando uns ainda eram filhos e não sonhavam ser pais. Os apelidos são paisagens que nos atravessam. Movimento, só passada a fronteira de vidro. Os corpos aqui fizeram-se estátuas sentadas, recebendo a chuva a conta-gotas da voz verificando o que precisava ficar escrito para que a vida dos apelidos cruzados prosseguisse depois da morte. Estava quase como devia, a emenda fez-se para justificar o aparato do absurdo formal. Sem precisar, pus os óculos e assinei. O carimbo fez ponto mais final. Ainda não sequei as lágrimas.

Santa Bárbara, Lisboa, 29 de Março

Corto [Maltese] fez corte à navalha na mão desenhada para prolongar destinos. Meio torto, resolvi alterar a leitura das rugas na testa com lanho longitudinal. Demorei a perceber que se trata de acentuar as coordenadas. Lá diz José [Anjos]: «a mera consciência de si próprio/ ou do corpo/ não é mais do que uma tentativa,/ vã tentativa de estar parado / no que é imparável: a queda.»

Horta Seca, Lisboa, 2 de Abril

Valério [Romão] regressa de mais uma incursão europeia trazendo na bagagem dois contos vertidos para castelhano, italiano, neerlandês e romeno, no âmbito do projecto CELA (Connecting Emerging Literary Artists), projecto a dar atenção aos emergentes, escritores e tradutores. Isto além da participação na delegação portuguesa à Feira do Livro de Leipzig. Parece satisfeito com ambas as experiências, mas não se lhe arranca relatório minucioso assim à primeira.

Anda embrenhado em traduções e junta-se logo ao colossal coro de cobradores das minhas crónicas tardanças: «já trataste da autorização?» Nada me castiga mais que a papelada. Ainda nem abri o documento com as vendas do mês passado. A derrapagem parece ser a minha maneira de caminhar.

Campos Trindade, Lisboa, 3 de Abril

Nas poucas vezes que não fizemos o tradicional lançamento, por vontade do autor ou outro contratempo, sobrou-nos um estranho gosto da incompletude. Algo parece faltar no longo ciclo de construção do livro sem este ponto de exclamação. Contudo, uma avaliação rigorosa, subtraindo o que se investiu em tempo, recursos e incómodos aos parcos resultados, justifica a dúvida: valerá a pena? Até que acontecem destes, o de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça», do mano José [Anjos]. Falo do intangível, claro: o ambiente. E para melhor explicar, dissequemos, rezando para que o Frankenstein seja, ao menos, terno na sua disformidade.

O lugar do crime, de vizinhança que se quer crescente, possui o perfume das raras possibilidades.

O Bernardo [Trindade] acendeu a luz da sala de estar, que sabe ser o epicentro de encontros insuspeitos. A Graça [Ezequiel], com foto na página, em versão antes da noite cair, ajuda a dar ideia. A generosidade da Quinta do Gradil, pela mão gentil da Ana [Matias], dispôs saborosas boas-vindas em formato viosinho, no branco, e cabernet sauvignon com tinta roriz, para o tinto.

Entre muitos amigos, chegados ou dos de partir, estavam a querida Luísa [Pires Barreto], que desenhou o objecto, cuja capa nasce de uma tela onde o Gil Madeira pôs o Anjos a procurar o feminino por entre luz e espelho e manuscritos. O Gil oferece, ainda, o nosso primeiro logótipo em círculo, dança doida de linhas sinuosas. O Marcello [Urgeghe] rodou sobre si sob o lustre para sussurrar leituras comovidas. E o João [Morais] encheu o espaço que já não havia com a sua campaniça, insuflando oxigénio. O autor, tão amante da queda, levitava, talvez por sentir que as páginas se cumpriam nas mãos e nos olhares, enfim, chegavam algures, a uma estação primeira (à maneira de O Gajo). O Gui sublinhou passagens, sem surpresa, sentindo-se com exemplar naturalidade em casa.

Ademais só mesmo a calorosa interpretação cantada pela Ana Teresa [Sanganha], que liga o seu gosto pela poesia à psicanálise, «que de gosto meu não se trata, mas sim de uma identidade». A leitura veio tintada pela amizade, como convém, mas revelou-se justa e cheia de alma.

«Digo complexidade porque, à medida que ia mergulhando nos poemas e dobrando as ondas do livro, percebia que não estava a conseguir dissociar as partes em que me tocava, da mesma maneira que não consigo dissociar corpo e mente. Mas pude perceber que memória, infância, amor e morte emergem com a subida das páginas e vivem, transversalmente, numa roda-viva de posições e justaposições. E, enquanto me desvendo através do Zé, penso que afinal só de quatro gotas se faz o oceano e que os mergulhos poderão ter só a profundidade destas quatro gotas: infância, memória, amor e morte… talvez arriscasse dizer que poderíamos retirar a infância e a memória, que das duas fala o amor e a morte, mas, como escreve o José, “são precisos dois olhos para focar/quatro para ficar”. São estas as Quatro Águas que matam a sede à humanidade e lhe dão a distância suficiente da boca do corpo até à terra.»

Ferin, Lisboa, 4 de Abril

Anuncia-se programa para a televisão pública em torno da música que nos fez mais portugueses. Pede-me o Pedro Castro depoimento matutino sobre o Sérgio [Godinho] e dispara logo a abrir um refrão de memória. A minha perdeu o pio. Sou homem do presente, sobretudo do indicativo, o que me perturba e irrita, fica escrito. Lembrei-me na atrapalhação do hoje que se quer primeiro dia para lançar novo sopro no resto a vir. Veio-me depois à boca o grão da mesma mó, «não sei se estão a ver aqueles dias/ Em que não acontece nada sem ser o que aconteceu e o que não aconteceu/ E do nada há uma luz que se acende/ Não se sabe se vem de fora ou se vem de dentro/ Apareceu». Está visto que o meu tempo continua à espera de suceder. E não ocorreria da mesma maneira sem o SG [gigante].

Biblioteca da Imprensa Nacional, Lisboa, 5 de Abril

Lá está, lançamento: «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», de Mariana Viana, com a vetusta a dizer que está atenta aos cânones agitados apesar dessa camisa-de-forças onde a querem fechar, mas que não abdicam nunca de atacar a jugular, a que sangra, não a cegueira das minudências do artesanato do ódio. Ele há diferenças, podemos fazer degraus sem pensar em cânone, subindo ou descendo. Esta sala faz-se lugar perfeito para este desdobrável, em cada uma das direcções de todos os ventos. Entre a terra e o céu, umas varandas sem acesso, disponibilizam livros a quem saiba sobrar o varandim, folhear a geografia, saber o caminho dos degraus de água.

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André Matos
André Matos
10 Abr 2019 18:33

E caem também centenas de milhar de euros em ajustes directos nas mãos do senhor editor e diarista: https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/mega-ferreira-simpatia–uniao

JSaraiva
JSaraiva
12 Abr 2019 02:36

Uma prosa tão farfalhuda como os cheques do IPAD,ó sôr editor