Mão cheia

Horta Seca, Lisboa, 21 Janeiro

[dropcap]O[/dropcap] mundo continuará a triturar o que agora se faz aqui, para quê tentar capturar a sensação? No dia em que todos assuntos acordam, vejo-me amiúde ainda a avaliar por palavras os meus dias falecidos ontem. Vale o quê, nos múltiplos contextos que se agigantam? Precisava apenas que se instalasse ao meu redor o silêncio mínimo para estender frases, que são agora tapete de entendimento, tentativa de não derrapar. Mas tudo parece convergir no agora mesmo. Eu a fechar-me e o telefone ininterruptamente a abrir-me, ostra. Eu a fingir sentido e o banco a dizer-me buraco. Eu tentando a concentração e todos-cada-um cobrando atraso. Nada mudará o ter escrito isto.

Mymosa, Lisboa, 22 Janeiro

Boto aqui sob a data o que vai acontecendo, digo eu, dia após dia, contra isto e o resto. Mas pode não ter sido bem assim ou aqui, por conveniência de prosa. E nem precisava acontecer, bastava o meu registo e a tua leitura – vergo-me respeitoso –, tantas são as formas de uma árvore dar fruto. Nas nossas mãos. Beba-se o suco da ideia. Impossível, como todas antes de tentadas. Palpável, esta, exaltante a outra. Do contexto mastigável, da interpretação saborosa, da construção lúdica. Ei-las até comerciais, urgentes e necessárias, afinal dispensáveis. Ninguém m’acredita, mas além da criação acontece trabalho. O jardim infantil apresenta-se belo conceito, capaz de ser regado. Pulei, mãos no ar, frente ao ministério da economia. Não devia? As companhias contam no despertar das abstrações, mas nem todas saltam.

Horta Seca, Lisboa, 24 Janeiro

Não concebo o erotismo sem que, coisa de geração, seja desenhado. Ou dito. Já nasci na fotografia, mas o tráfico do proibido fez-me com a importação de quadradinhos que nos diziam um prazer por descobrir. Desenhado, insisto, antes de dito pela palavra e nas ausências entreditas. Mas desvio-me do que não devia. Morre outro clássico não celebrado. O caricaturista, sobretudo o da ressaca do 25 de Abril, merecia a atenção dos jornais, por exemplo, o Diário de Notícias, em cujas páginas semeou as figuras e os figurões da política, que era tudo, então. Em várias revistas humorísticas, e até no Jornal do Exército, praticou com bonomia e traço anguloso a crítica de costumes, o registo das modas, a piscadela de olho. José Manuel Domingues Alves Mendes (1944-2019), nome que se encolhia em Zé Manel, desenhou a mulher com uma elegância e candura que não seria possível hoje. Uma pequena antologia dos seus corpos daria muito que conversar. Saravah, Zé Manel.

Horta Seca, Lisboa, 25 Janeiro

Mundo Fantasma, estimada galeria, no Porto, cumpriu dez anos. Para dizer o mínimo, mostrou o máximo de ilustrações e quadradinhos oriundos dos vários continentes, os dos mapas e os do gosto. Não foi agora, mas no ano passado, só que o pretexto destas linhas andou perdido. Júlio [Moreira], irmão dos mais antigos, disfarçando a timidez com a câmara, fingindo que não, fixou dez olhares de entre os muitos milhares em que a década se desfez. Nas fotos, que o José Rui [Fernandes] transpôs em risogravura, conservam-se leituras de quem olha: os artistas ou a sua arte, que as imagens perderam protagonismo, ficando-se por desfocado pano de fundo, luminosa razão de ser. O volume confidencial, pasta A3 dobrada, traz por nome «10» e expõe, em murmúrio, o grão da memória. Projectos-projéctil, que vão sabendo ferir o tédio dizendo das margens.

Horta Seca, Lisboa, 26 Janeiro

Tomba na coincidência descobrir que Tom Zé, este feiticeiro da minha língua, gravou para celebrar os seus 80 anos um álbum supostamente destinado a crianças, pega na minha mão que te mostro: «Sem Você Não A». As palavras dão corpo ao manifesto costumeiro de esfusiante criatividade. Não consigo parar de ouvir: ele se apresenta de f na mão para o colocar em afaga na vez de apaga. E depois o carinho revela a cidade de cada um. Ele há jardins infantis que, bem regados, inventam futuros. Oiça-se «O Forrobodó do ABC», um hino à palavra, portanto à edição. Isto sou eu, que oiço vozes e em tudo vejo lombadas. Possíveis.

Horta Seca, Lisboa, 28 Janeiro

Na feitura do livro, os momentos mais compensadores têm raízes nas primeiras leituras, a inicial e a seguinte, já de lápis de carpinteiro na orelha. Falhámos o prazo que nos tínhamos imposto para este «Anastasis», do Carlos [Morais José], cujo detalhe de capa, desenho do enorme Rui [Garrido], aqui se mostra, não por acaso. O livro não deixou ainda de me surpreender, parece brilhar no escuro. Sem fronteira de género, cruzando poesia e relato de viagem, aforismo e reflexão solta, leva-nos em peregrinação às fontes, aos lugares sagrados da mescla de civilizações que somos por esta altura. Para matar sedes, claro. Diz ele, já a meio, que «a primeira palavra desfez o mundo. Ainda hoje nos entretemos, com as suas irmãs, no trabalho de o recriar». Garanto que acontece nestas páginas, e tenho que inventar modos e maneiras de que não venha a perder no ruído (não é invariavelmente esse o desafio?). Possui uma poderosa voz poética, devidamente alheada de modas e outras práticas. O peregrino não foi sozinho, levou deus, que chama ao ininterrupto diálogo com o transcendente, encontrando nas plantas e nas pedras, no chão e no azul, na poesia, nas figuras concretas de hoje ou nas míticas de antanho. Onde quer que se encontre, está só. Estamos todos. E a conclusão dificilmente poderia ser outra. «Por vezes é o mal que sobra. É o que levamos para casa, nos bolsos da alma, sem o conseguir espantar. […] Não amamos: avaliamos; não usufruímos: possuímos para esquecer. Não há exorcismo. O mal será o leal companheiro de um percurso finito». Deixo-me pairar, com frequência, nas minudências tratadas com cuidados de jardineiro-cirurgião. Extraía daqui, com facilidade, um catálogo de descrições da luz, descrições das que fazem acontecer. Este livro pode bem mudar quem nele se atreva. «Cada dia tem a sua espuma própria. Rarefaz-se ao anúncio das sombras, esvai-se nos gestos hipnóticos da noite. Depois reaparece nos labirintos dos sonhos ou no encontro da vida com a morte.»

Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro

O escritor moçambicano, Ungulani Ba Ka Khosa, em polémica azeda com [António] Cabrita começa por me oferecer a estima, anunciar o respeito pelas pequenas editoras, para logo nos fixar sede «num botequim lá para as bandas do Bairro Alto.» E pergunta mais adiante, a propósito de disciplina de trabalho: «alguma vez te adjectivaram por teres uma editora a funcionar num botequim?» Curioso, o Ungulani achar que nos insulta por vivermos muito nas tascas, gostando de comer e beber. (E a sede não pode ter sede?) Não o adjectivarei mais, antes o convidarei. A ver se da próxima não nos põe num quartinho do Ministério de Economia.

Horta Seca, Lisboa, 1 Fevereiro

De súbito, como convém ao inesperado, imagens e palavras chegam dançando uma língua que fala do âmago, do ser. A Bárbara [Fonte] ofereceu esta pérola: https://www.barbarafonte.com/words Gosto de mãos, por nelas ver uma das janelas para o obscuro de cada um, mais do que ferramenta de possíveis. Contudo, aqui, o assunto cresce além dos membros amados, vai à violência e à morte. «As minhas mãos são mais velhas que eu», assim começa esta narrativa, com Debussy ao longe, que me transfigurou o dia. Poderosíssimo micro-espectáculo, como se a vida se medisse aos palmos.

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