Visto daqui, talvez seja Verão

 

Barraca, Lisboa, 30 Julho

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ircunstâncias do ofício, tinha atravessado concertos seus sem poder assentar ouvidos. A ideia é bela sem ser inculta, desmentindo o primeiro verso de Olavo Bilac no soneto que lhe serve de raiz. Para o vetusto senhor do clangor, a língua de Caetano e Camões, oriunda do vulgar (latim), abre-se como última flor: «a um tempo, esplendor e sepultura», «desconhecida e obscura», capaz de transmitir a tempestade e a ternura, «o gênio sem ventura e o amor sem brilho!» O André [Gago] foi de compor viagem pelas papilas gustativas desta nossa língua, às vezes materna, navegando nas primorosas ondas da percussão do Carlos Mil-Homens, do contrabaixo do João Penedo e da guitarra portuguesa do Pedro Dias. Mal seria se trocasse no alinhamento um ou outro verso, mas há por ali tanto «viço agreste», mão que agarra timão de leme, puxa cordame da vela, colhe manga e amanha peixe, como quem diz, «aroma de virgens selvas e de oceano largo», que a minha noite encheu-se de marés antes de escoar saciada. Anda por aí a passear discreta, est’ A Flor de Lácio, mas parece-me poderoso beijo de língua. E portanto, sensual-político.

Horta Seca, Lisboa, 6 Agosto

O mano António [Caeiro], que me sustém a vertigem com a altitude, entrega, com suprema alegria, versão final da tradução de Georg Trakl. Por momentos, tacteio na coincidência um sentido possível para o esfarelar destes dias expressionistas. Poderá este fazer (não lhe chamemos nunca trabalho) salvar-me? Assinalo as cores, os olhos e as mãos, antes de aspirar o cheiro detestável do hipoclorito de sódio nesta versão terceira de Melancolia. «Sombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros,/ Que longamente me fixam, ao passar./ Acordes suaves de guitarra acompanham o Outono,/ No jardim, dissolvido em lixívia castanha./ As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria/ Da morte. Lábios podres sugam leite de/ Peitos encarnados e na lixívia negra/ Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol.»

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Agosto

«“Liderados por Ademar e Manuel Fernandes, onze homens equipados vão irromper a galope, dispostos a tudo e convictos da sua superioridade. “A entrada em campo era especial”, conta António Oliveira. “Sabe que eu e o Meszaros éramos sempre os últimos desse pelotão, quase com dez metros de atraso face aos outros? Ficávamos no túnel a dar a última passa no cigarro. Eu puxava a última vez, atirava o cigarro para o túnel e sprintava para apanhar os outros. O Meszaros ainda fazia pior: chegou a levar o cigarro escondido na luva, chegava à baliza, dava uma última passa dissimulada e apagava o cigarro no poste!”» Não sou conhecedor do género, mas arrisco afirmar que faltam trabalhos como este: «Big Mal & Companhia – A Histórica Época de 1981-1982, em que o Sporting de Malcolm Allison Conquistou a Taça e o Campeonato» (ed. Planeta). O Gonçalo [Pereira Rosa] vem apurando um modus operandi com o qual já cometeu vários crimes de bem contar o jornalismo português. Precioso e raro como o oxigénio, mas igualmente ameaçado. Aplicou-o aqui e agora, em golpe que me deixou nocaute. Excelente investigação, entrevistas à quase totalidade dos intervenientes, exaustivas leituras, com a soma das partes aumentada pela potência do verbo. O primeiro capítulo, que lança a metáfora do estádio de Alvalade como ser vivo, é brilhante e dá o tom. Não se limita, o Gonçalo, aos episódios da época dramática, que acontecem para todos os gostos e alguns desgostos, antes aproveita o tempo e as suas contingências para a partir dele extrair, esculpindo, as personagens, as óbvias e as outras que nem tanto. Sinal, para mim, da organicidade que o Gonçalo soube emprestar ao volume está na vontade de ler as biografias do João Rocha ou do António Oliveira (são só os primeiros capítulos, e eu queria outra, ele sabe bem…) como o Eurico ou o Inácio se faziam à bola. A vida e a morte jogam-se nisto, no instante único, afinal sem importância para além do momento: quanto vale a jogada genial, a vitória esquecida, um jogador de eleição, o clube do coração? Filosofia de algibeira (a que cabe na mão): dependemos tanto de uns próximos e daqueles outros heróis míticos para sermos, afinal, o que acabamos por ter sido. Sem o perceber, até agora, e sem grandes vitórias no curriculum, Big Mal espelha o que gostaria de ir sendo: treinador de indisciplinadas vontades. Treinador, sim, mas dos anarquistas. Trago comigo um cigarro escondido na luva.

Horta Seca, Lisboa, 13 Agosto

Os dias do vórtice custam a percorrer. Anda, põe o pé adiante deste. Isso, inspira e agora solta. Nada muda sob o sol? Mas se próprio sol não queima do mesmo modo, dizes para ti. E expiras o estender da perna, o balanço do braço, deixando tombar o dito. Quebrar-se-á? Recebes, então do dilecto autor mensagem calorosa, incluindo poema que te explica a luz contida nas trevas de hoje, raiado de palavras, asco, saco, caso, casca, oca casa acesa. Segues em frente, ainda que poema não tenha direcção outra que a dos teus olhos. Obrigado, Henrique de nome feito linha de horizonte Manuel Bento Fialho, pelo zumbido. «Ao tentar escrever girassol/ ocorreu-me a imagem de uma gema/ a ser fermentada pela Terra:/ caule esguio na direcção do astro rei.// Podia dizer casa acesa por escritores japoneses,/ zumbindo como vespas em torno do tronco nu/ do homem que pensa/ enquanto observa duas osgas/ à procura de sombra/ numa tórrida tarde de Verão.// Se «o antónimo de flor é vento»,/ então para que servem moscas, melgas,/ mosquitos, formigas aladas,/ senão como alimento/ de aves desvairadas?// Asco, saco, caso, casca, oca casa acesa/ pela temperatura branca do pensamento./ Dias prolongados nas noites,/ noites repetidas nos dias,/ enquanto por detrás dos montes,/ espreitando dentre pinheiros mansos,/ uma lua cheia cresce na direcção dos nossos olhos.// E só então compreendemos/ os dois astros que temos no rosto,/ como na sua direcção tudo se levanta,/ e que todo o nosso corpo é um universo de planetas/ reduzíveis a picadas de insectos/ na terra acesa de uma casa que circula/ como o rosto de um girassol.»

Facebook, nenhures, 15 Agosto

Houve altura em que o Verão era isto, todas as direcções convergindo em dias indistintos da noite. Já viste que a colher de pedreiro é plana? E se a talocha fosse palco, quem a seguraria? Sonho plataforma, afinal talocha, para onde atirar e mexer os materiais com que os nossos autores se constroem. Encimada por esta La Nostra Feroce Volontà D’Amore, dos Pop Dell’Arte, vejam lá se esta playlist do mano Carlos [Guerreiro] não nos explica de que matéria se ergue um Verão, sem muros nem ameias: https://www.youtube.com/playlist?list=PLSNaRSIGOqBtuxVs2TMOC_Mdnth_pvFKG A gravidade não impedirá nunca o voo nem a dança. Reparem na riqueza das línguas, no malabarismo da palavra, no agudo ver ao longe, na disparidade de paisagens, na debandada dos estilos, na gargalhada e na tensão saltitando de mão dada, na convocatória dos corpos, no perfume de pensamento, na correspondência das melodias e absoluta liberdade do gosto. Somos ambos reinadios amantes da deriva, mas por junto, só podia ser dele (assim a pintura que ilustra esta página) este poema, que nos empurra em definitivo para a dispersão. Se isto não for a minha praia…

 

22 Ago 2018

Virgens ofendidas

Horta Seca, Lisboa, 25 Julho

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão se ofendam já. O editor funciona como filtro. E os pequenos moldam-se a coadores mínimos, de natas esfriadas no bom leite. (E mais não puxo pelo elástico da metáfora.) De súbito, supostas amizades desfazem-se com estrondo pela razão de que a obra, certamente prima, não foi lida nos prazos impostos pela ansiedade do autor. Não era amizade, apenas pó. Muita desfeita e desgosto tenho causado, na maior parte das vezes sem querer. Ganhei projectos para o resto dos meus dias, de tanto exagerar no voluntarismo. Sofro, claro, de mania das grandezas, tenho pernas mais pequenas que o passo, cultivo alheamento crónico da realidade, de tal modo que nem ao correio dou vazão. Adio a resposta, para ser concreto, para dizer um pouco mais que a obrigação, mas as urgências sobrepõem-se e, às tantas, já se fez ferida. Haverá forma de inventar organização que me livre do que não pedi, do que não vale a pena, do desapropriado e do incómodo. Nem assim, creio, conseguiria sorver a torrente de propostas que me esmagam a cada dia. Sofro com isso, mas não se compara às incompreensões de quem poderia oferecer, ao menos, o benefício da dúvida. Aceite-se. Até que algumas mensagens despeitadas chegam tintadas de verve.

Horta Seca, Lisboa, 10 Agosto

Vivemos, afinal, na idade das trevas. The Nation, título norte-americano com pergaminhos na cultura aceita publicar poema, pueril, diria eu, de Anders Carlson-Wee: «If you got hiv, say aids. If you a girl, / say you’re pregnant––nobody gonna lower/ themselves to listen for the kick. People/ passing fast. Splay your legs, cock a knee/ funny. It’s the littlest shames they’re likely/ to comprehend. Don’t say homeless, they know/ you is. What they don’t know is what opens/ a wallet, what stops em from counting/ what they drop. If you’re young say younger./ Old say older. If you’re crippled don’t/ flaunt it. Let em think they’re good enough/ Christians to notice. Don’t say you pray,/ say you sin. It’s about who they believe/ they is. You hardly even there.» Logo se levantou costumeira tempestade por ser branco a fingir voz grossa e negra era causa de excruciante pena. Vieram logo de bombeiro as editoras «lamentar a dor que causámos às muitas comunidades afetadas por este poema». E até o poeta se desculpou (https://www.nytimes.com/2018/08/01/arts/poem-nation-apology.html?action=click&module=RelatedLinks&pgtype=Article). Em nenhum lugar percebi outro argumento além da cor da experiência, que impedisse o desgraçado de sussurrar na voz poética o jargão da negritude. Só posso concordar com a opinião de Grace Shulman, ex-editora da secção de poesia da mesma revista: The Nation Magazine Betrays a Poet — and Itself (https://www.nytimes.com/2018/08/06/opinion/nation-poem-anders-carlson-wee.html?smid=fb-nytimes&smtyp=cur), até por terem «lived by Thomas Jefferson’s assertion that “error of opinion may be tolerated where reason is left free to combat it.”». Os debates do género infantilizaram-nos ao ponto de despercebermos o fundamental do acto literário. Ninguém poderá, doravante, permitir que a sua voz abandone a experiência concreta sem ofender comunidades. Eu, sendo gordo, terei que me ofender e lançar indignação de cada vez que o magricelas Valério [Romão] se atreva a alargar personagens. Não, não é apenas ridículo, cresce o perigo desta nova cultura, como lhe chama o alegre mal disposto, Roger Scruton (https://blogs.spectator.co.uk/2018/08/the-art-of-taking-offence/): «I was brought up to believe that you should never give offence if you can avoid it; the new culture tells us that you should always take offence if you can. There are now experts in the art of taking offence, indeed whole academic subjects, such as ‘gender studies’, devoted to it. You may not know in advance what offence consists in – politely opening a door for a member of the opposite sex? Thinking of her sex as ‘opposite’? Thinking in terms of ‘sex’ rather than ‘gender’? Using the wrong pronoun? Who knows. We have encountered a new kind of predatory censorship, a desire to take offence that patrols the world for opportunities without knowing in advance what will best supply its venom. As with the puritans of the 17th century, the need to humiliate and to punish precedes any concrete sense of why.» Punir antes de perceber porquê, se isto não são trevas…

Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto

Soterrado pela passagem dos dias, entrevi e salvei da pilha de papéis «O Espião Acácio», leitura interrompida ainda mal começada, há meses, quando o Júlio [Moreira] me ofereceu este seu velho projecto, posto finalmente em cuidado álbum (na Turbina), com a ajuda da Margarida [Mesquita]. O Acácio (algures na página) vem lá das paisagens da infância e confesso agora o receio de magoar vetustas e exaltadas recordações. Em fuga do vórtice, apliquei-me com ligeireza semelhante à que imagino ter sido a do Relvas naqueles idos de 1970, à razão de duas páginas por semana na revista Tintin. Como se fosse traço único a percorrer o papel, sem o largar nem para respirar, as aventuras do espião partem da Primeira Grande Guerra para delirar pelos grandes espaços da política mundial e da ficção científica. Tudo varia e vareia entre momentos de especial cuidado e outros da maior soltura, buscando ora o contraste das manchas ora a leveza da linha. Não se procure aqui sentido outro que não o puro prazer, um humor insurrecional e ofensivo, como deve ser, e a mais anarquista das ligeirezas. O Relvas não foi nunca de grandes narrativas, mas de explosivos momentos e extraordinárias personagens. As orelhas de Acácio, como bem celebram as guardas do álbum (à maneira dos álbuns de Tintin), são moldura de galeria única e disparate de figuras. Que poderiam ter ido onde nunca a mão do homem pôs o pé.

Horta Seca, Lisboa, 15 Agosto

Várias das virtudes do livro acabam tornando-se maldições. Esta de ser objecto ascensional, que se ergue acima da sua materialidade, no qual se investem valores, transcendências e saberes fê-lo perder o seu corpo, comercial por exemplo. Não exagero no número, que chega à centena, de exemplares que a tradição manda oferecer a meia hierarquia das redacções, aos críticos em «actividade» e em pausa sabática, aos fazedores de opinião, individualidades variegadas e amigos, nossos e de mais não sei quem. Esmolamos em nome da esperança, quase sempre vã, de singela referência nos céus da opinião, brilho fátuo que ajude o pobre título a existir. Muito pior, prática comum e bastante reveladora, reside na inimaginável quantidade de pedidos diários, sim, a cada dia, oriundos dos mais (im)suspeitos lugares: blogues, sites, clubes e outros leitores com vontade de partilhar leituras; grupos das mais expeditas acções sociais a quererem usar o livro para fazer o bem. E o grau de obscenidade vai aumentando: professores universitários, garantindo que palavra sua de endosso desmultiplicará tão pequeno investimento; organizadores de festivais, bem pagos para isso, que cravam o mísero exemplar para o moderador da mesa na qual participa o autor, ou a novidade de um leitorado de português, portanto dependente do estado, com o argumento supimpa de termos livros perdidos nos armazéns. Devíamos, portanto, aproveitar este feriado da Assunção de Maria e celebrar a promoção do livro a modesta necessidade. Se quem precisa não compra, quem trocará festivais e futebol pela transcendência de umas páginas?

16 Ago 2018

Nada é óbvio nem absoluto

 

 

Mymosa, Lisboa, 19 Julho

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão me lembro da última vez que almocei sozinho, gestos dos mais anti naturais da civilização. O desatino destes dias de apocalipse que piso a tanto obriga, daí o peso acrescido da mensagem que me trouxe à tona do aquário alheado em que mergulhei: Luis García Montero acaba de ser dado como novo director do Instituto Cervantes, substituindo o querido Juan Manuel Bonet, que não reencontrei durante o seu mandato. A ausência dos óculos fez com que o colocasse em uma qualquer short list do homónimo Prémio. Ambas as situações segregam estranheza, que os nossos autores não são de frequentar prémios, ou melhor, os prémios não os visitam a eles; e os corredores do poder estão em lados opostos da cidade. Ainda assim, a notícia alegra-me, pelo que conheço do afã polémico da figura, do modo como radica em Lorca uma ética, da sua paixão pela língua, do carinho por Portugal, da generosidade que testemunhei. Sendo apenas nomeação a um cargo, estou em crer que pode sair daqui algo de bom, assim como horizontes. Melhor: tenho a certeza, pois acredito no que salta do seu O Dogmatismo É A Pressa das Ideias: «Aqui junto das dunas e dos pinheiros,/ enquanto a tarde cai/ nesta hora ampla de beleza no céu/ e faço meu sem pressa/ o vermelho livre da luz,/ penso que sou o dono do minuto que falta/ para que o sol repouse sob o mar.// Essa é a minha razão, o meu património,/ depois de tanta margem/ e de tanto horizonte,/ ser o dono do último minuto,/ do minuto que falta para dizer que sim,/ para dizer que não,/ para chegar depois ao outro lado/ de tudo o que afirmo e do que nego.// Essa é a minha razão/ contra as frases feitas e a manhã,/ enquanto a tarde cai por amor à vida,/ e nada é óbvio nem absoluto,/ e a águia que desfaz os jornais/ arrasta as palavras como peixes de prata,/ como espuma de onda/ que sobe e se matiza/ dentro do coração.» Não fecha assim, antes afirmando «esse único dogma do abraço, minha única razão, meu património.» Partilhando esse dogma único, o do abraço, aqui segue um, com o devido atraso.

Horta Seca, Lisboa, 23 Julho

Circunstância do devir: de cada vez que cai relâmpago perto sinto-o na pele como frase de jazz, desmultiplicadora de inspiração e presságio. O nascimento do Jaime, filho da Liliana [Ribeiro] e do Paulo [Moura], marca nas constelações que pisamos tantos e tão díspares princípios de viagem que justificam este queimar da alegria. Os autores não são de papel, são árvores de tantos frutos. Por cada criança que nasce, vejo surgir, na voz, no olhar, um outro pai, uma distinta mãe, baralhando a posição do céu e da terra, dos ramos e das raízes.

Horta Seca, Lisboa, 25 Agosto

Nos últimos anos, quem se atreva a escrever, a publicar e a editar, está sujeito, ao abrigo da liberdade (talvez de imprensa), ao enxovalho de julgamentos e condenações sem sombra de contraditório. Eles afirmam-se jornalistas, mas confundem código deontológico com etiqueta masturbatória; eles dizem-se críticos, mas trocam a leitura aberta pela cegueira maldosa; eles julgam-se poetas, desde que cada verso se faça degrau para o altar supremo do culto em que oficiam, o único que assegura a única e mais verdade que a verdadeira poesia; eles são editores, mas que só arriscam o himalaia do cânone, aquele que congela para sempre o tempo e as opiniões sagradas dos mortos; eles são livreiros que criticam o capitalismo aberrante, sem que nada os impeça de especular com as raridades anti-sistema. Mimetizando outros tempos e outras figuras em versão serôdia e fora de prazo, celebram a «postura crítica», mas nisso agridem, fazem execráveis ataques de carácter, cometem sem pejo a ignorância mais profunda, riem do seu próprio fel, arrotam sound bites vendendo-os como pensamento. E há quem compre, claro. Gente até que devia saber mais. Não se lhes exija coerência. Estão tão acima moralmente de todos os outros, que nenhuma das regras detestadas por escrito se lhes aplica. Estão muito fora, muito além, muito apesar, muito contra, tudo e todos, mas não sei de nenhum que tenha estado preso ou passado fome. Detestam militantemente a alegria e a festa e o único prazer que se lhes conhece está em chafurdar no ódio. Por mim, levá-los-ei a sério quando doarem o corpo à ciência para que se estude o seu inegável contributo civilizacional: de tão puros, deixaram de cagar.

Curry Cabral, Lisboa, 27 Julho

Não sou supersticioso pela óbvia razão que dá tremendo azar. Tive e estimei gata preta, senhora de muitas sortes. Adoro a parte de baixo das escadas, mesmo quando não as subo. Parto espelhos e espalho sal com displicência e descuido. Celebro muito o treze, por razão tremendíssima, e acumulo bilhetes em que me sentam, por acaso, na sobredita cadeira. Partilho com poetas de envergadura este divertimento. Como interpretar agora o facto do meu velho pai aterrar, ao fim de deambulação de meses, em cama número 13?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

Parece impossível mas couberam nas nossas duas modestíssimas salas os cinquenta e nove autores de Ilustração Portuguesa. O veterano Diniz [Conefrey] comentava há pouco o caminho, desde o Salão Lisboa e outras iniciativas semelhantes, vetustas de duas décadas: «o que andámos para aqui chegar». Alguns nomes mantêm-se em estimulante laboração, mas nada impressiona mais que a riqueza de estilos e linguagens e temas e projectos. Tal selva só se atravessa sabendo onde pôr os olhos. No último canto, mesmo junto à janela, a ordem alfabética arrumou aqui as peças assinadas por Tida Siuda, polaca a residir no Porto. A janela alargou-se, melhor escrevendo, tal a frescura dos seres-formas que por ali convivem (um deles algures na página, mas outros podem ser verificados aqui: https://tinasiuda.com/). A força poética toca-me, bem como a subtileza das suas cores. Despertam gestos e palavras muito para além do óbvio.

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Eis as palavras do poeta Montero chegando ao cargo com pressuposto radical, antes mesmo de irónico presupuesto, contra a desintegração ética da sociedade: o esforço de ser bom, ainda que seja, por ora, tão pouco sexy. «Esta mañana siento la voz de don Quijote, en una de sus famosas parrafadas en homenaje a la libertad, la poesía, la dignidad o el buen gobierno, advirtiéndome sobre la responsabilidad que asumo. Yo le contesto que en mi responsabilidad se abrazan a la vez la exigencia y la ilusión. A los 60 años de edad, cuando he vivido tantos momentos diferentes de la historia de España, agradezco la oportunidad que se me da de compartir en mi oficio una vocación cívica y un tiempo nuevo para la democracia española.
Empecemos por las primeras palabras, esas que según Elsa Morante hacen del arte una apuesta contra la desintegración ética de la sociedad. El mayor reto que tenemos, desde muy diferentes perspectivas, es el esfuerzo por ser buenos, en el buen sentido de la palabra bueno, frente a los que trabajan por crear un tiempo propicio al odio. Cito, como ya sabéis, a Antonio Machado y a Ángel González.»

 

8 Ago 2018

As formas do tempo

Horta Seca, Lisboa, 8 Julho

Liga-me o Nuno [Ramos de Almeida] anunciando a morte de Steve Ditko (1927 – 2018), o criador do Homem-Aranha, com Stan Lee. Improviso comentário que não viaja longe do óbvio: este ícone da cultura popular há gerações foi o primeiro super-herói a duvidar da sua condição, a perguntar-se adolescentemente. A personagem não encaixava no mundo que era suposto salvar. Os longos monólogos, em versão brasileira, cedo me espantaram. Mas só muito mais tarde descobri a grande dinâmica gráfica, que fugia à gramática aparentemente simples, mas sempre eficaz, que, por alturas do voo abaixo dos radares, foi sendo construída peça a peça por operários, que não autores, como Ditko nos comics. Estou em crer que só a máquina da indústria cinematográfica, que remastiga até às migalhas a enigmática categoria dos super-heróis, consegue assinalar o desaparecimento de um obscuro obreiro. Confesso que não estou em condições de analisar o que se simplificou na passagem para as versões cinematográficas, portanto mais divulgadas, mas o Homem-Aranha contém original potência de mito.

 

Vale de Santo António, Lisboa, 14 Julho

Escolhos recebidos das marés vivas, por estes dias chegaram-me inúmeras colagens, na forma de propostas para exposições, enquanto acompanhantes de poemas, agora mesmo nos bastidores do labor actual do José Manuel [Rodrigues]. O eremita, que não deixará nunca o Alentejo, abriu atelier em Lisboa e estendeu festa. No meio das vitualhas, lá estava a sua actual matéria: velhas fotografias de todo o tipo, resgatadas pela gandaia nas feiras de antiguidades, aguardavam em repouso os cortes que, para começar, as tornarão ainda mais fragmentadas, antes de se fixarem em novas e unas composições. As primícias que nos foram dadas a ver estão cheias de potencial, de latências e pulsações. O jogo na colagem reside no descentramento do olhar, nas formas originais que surgem das ruínas, dos restos. Há muito que não as pratico, de tal modo o meu tempo se fez sucessão de nós por desatar. Tinha por material de eleição convites em papel que ia recebendo para exposições e lançamentos, isto além de múltiplas outras proveniências. Desconfio que me seria muito difícil sacrificar velhas fotografias. Bem sei que sacrifício talvez seja peso exagerado, e os anónimos renascerão, mas há um lado patrimonial que me custa ofender. Curiosamente ou mais que isso, os dois poetas que me têm acompanhado, o Luis Garcia Montero e o Felipe Benítez Reyes tratam o tempo por tu, escavam-no por dentro revelando o seu vazio de formigueiro. Acresce que o Felipe também compõe colagens, como as que incluiu na sua prova de amor a Pessoa e a Lisboa (uma delas ilumina aqui a prosa). Em todas as cinco, o mostrador de relógio com os ponteiros na sua marcha inexorável surge no lugar de protagonista. Faz-se mesmo cabeça nos casos agudos. O tempo persegue-me.

 

Horta Seca, Lisboa, 15 Julho

Folheio o catálogo que o Museu Internacional de Escultura Contemporânea, de Santo Tirso, dedicou ao desenho de Júlio Resende, nos idos de 1950. Para as lermos com o corpo todo, precisamos ver os originais ao vivo. Mas um livro, quando bem feito, transfigura-se em museu portátil, disponível em qualquer altura, sempre pronto a surpreender. Folheio e fico preso. Um após outro apresentam figuras em diálogo, confinadas à sua paisagem, às tantas quase caracteres, como se o gesto libertasse formas. Até que me encontro nas figuras compostas de finos traços, volutas que parecem evoluir até se fixarem numa forma, concreta aqui, abstracta além. «Homem com rede» só se faz corpóreo pelo título, mas assim que se lê o homem dança, feito forma pelos traços súbitos das suas horas. Talvez ganhe o dia, o peixe, o pão. Ou se perca no rodopiar, modos do cinzento ganhar um pouco mais a espessura de negro. E o mar sobrando no quase branco do papel, ressoando.

 

Horta Seca, Lisboa, 16 Julho

Devidamente notificado do lançamento das novas listas (primeiro semestre) do Plano Nacional de Leitura, descubro que temos dois títulos seleccionados, «Poetas Portugueses de Agora» e «Odes Olímpicas», mas a única forma de tal sabermos será usando o motor de busca da Rede de Bibliotecas de Lisboa (BLX). Torna mais difícil analisar o conjunto das listas e tinha curiosidade de ver o que mudou, se alguma coisa tiver acontecido, com os novos avaliadores. O que acabou por me tocar foi ver os livros aparecerem com os selos da biblioteca a que pertencem, encimados por traço verde, números e letras a marcarem com coordenadas a pureza. A minha aldeia lúgubre de infância foi uma biblioteca no topo da colina. Não perdoarei à Junta de Freguesia ter expulsado os livros de tão perto das nuvens. Nem mesmo por os mudar para a vizinhança da escola, no Vale Escuro.

 

Hoje Macau, 19 Julho

O mano António [de Castro Caeiro] continua a traduzir [Georg] Trakl, enchendo-me com os suspiros pestilentos da melancolia, rezando a quotidiana proximidade da morte, ainda ela: «Oh! a noite que chega até às aldeias lúgubres da infância./ A lagoa entre as pastagens/ enche-se com os suspiros pestilentos da melancolia./ Oh! a floresta que mergulha suavemente nos olhos castanhos,/ para aí das mãos ossudas do solitário/ a púrpura dos seus dias delirantes decair./ Oh! a proximidade da morte. Rezemos./ Nesta noite, desfazem-se sobre almofadas mornas/ amarelecidos pelo intenso os frágeis corpos dos amantes.»

 

CCB, Lisboa, 19 Julho

Fechamos a temporada do «Obra Aberta» com o Fernando [Sobral], a trazer sobretudo romances históricos, dos que nos poem a pensar quem somos, sobretudo na relação com o poder, e o Vítor [Paulo Pereira], oriundo dessa esfera do poder, mas do próximo, daqueles que fazem a diferença, e assente na cultura, soltou tocante e espontâneo, como é seu timbre, apelo à leitura. Por causa dos mundos que os livros contêm. Professor, que talvez não tenha deixado de ser, em comentário à crise da educação, Vítor afirmou depois que nada é mais importante do que a relação criada entre o professor e o aluno na sala de aula. Tudo o resto pode estar a ruir, mas o essencial acontece ali e dependendo pouco de terceiros. Deixou-me a pensar.

25 Jul 2018

Urgências

Horta Seca, Lisboa, 6 Julho

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ejam minudências, mas com solidez de pedra no sapato. Por mais provas que se façam, nada evita o maravilhamento do livro acabado de imprimir. Só então se revela a sua aura, se acede ao seu espírito. Além do pasmo. Temos controlo total para diminui-lo, mas o imprevisto acontece, por mais testes que se cumpram. O nosso mais recente, «Uma Mancha Chamada Berlim», tem a capa ligeiramente descentrada. Mais, a escolha daquele amarelo para segunda cor provocou uma aflição no Ricardo [Ben-Oliel], pois só lemos as dedicatórias com esforço extremo. Na rede que tece entre as memórias e as palavras estas ligações a nomes são de extrema importância. Estamos fartos de saber que abrir branco sobre o amarelo não resulta. Experimentar sempre, mas já agora para errar diferente. No caso, aceito as imperfeições com bonomia. O descentramento do rosto parece resultar do movimento que a espiral suscita. E os destinatários quase apagados no amarelo ganham doravante a potência do enigma. Neste ofício, a perfeição resulta de estranhos equilíbrios.

Mais uma colecção que não o queria ser, mas conta já com uns cinco volumes, foi iniciada precisamente com «Silêncio», do Ricardo, para contrariar ideias feitas em torno do parente pobre dos géneros literários, o conto. Com o Luís [Taklin], grande criador de infografias, desenvolvemos paginação desafogada, desperdiçando entradas generosas para cada conto, além de pictograma, essa máxima síntese de conceito numa figura, e duas cores no miolo, em papel de toque suave pouco transparente. Queríamos dar máximo conforto ao leitor, uma respiração mais pausada em objecto que revelasse pensamento e cuidado. Na capa, um desenho mais elaborado, com a espessura do baixo-relevo, capaz de sugerir tema ou de piscar o olho, como aconteceu com o espelho em «Da Família». E, desde o início, me agrada a sugestão de parede dada pelas texturas. Um conto pode ser fenda, tijolo, marca em grande muro. No caso de «Uma Mancha…» demorámos a encontrar o tom, mesmo depois de nos termos fixado no óbvio: o tempo. A espiral, onde podíamos colocar (breve) história do universo, chegou tarde, soavam de novo os alarmes das urgências. Este título estava previsto para o mês em que se confirmou a falência, tendo sido o primeiro a ser empurrado pela onda de choque. Não podia atrasar mais, de tão cheio de ícones de relógios e referências ao soberano que nos escraviza.

Sem resultados palpáveis, pretendíamos com o expediente gráfico sugerir unidade, sem vender narrativa por lebre. Afirmar que, por exemplo, as deambulações das personagens do Ricardo eram fruto de uma mesma demanda de identidade, podiam ser lidas como faces, fragmentos de uma mesma viagem pelos lugares e na continuidade. Parte da popularidade do romance resulta da capacidade de nos transportar para algures e aí nos manter tempos infindos. Por ironia, o conto acontece ser demasiado curto para estes dias de não haver tempo para nada. Menos ainda para ler.

S. Luiz, Lisboa, 7 Julho

O Sérgio [Godinho] chamou fechar de círculo a este seu primeiro concerto com orquestra sinfónica. Orquestra Metropolitana de Lisboa e banda, os Assessores, dirigidos pelo Nuno Rafael. Orquestra, sob batuta de Cesário Costa, e piano. Orquestra e arranjos, também do Filipe [Raposo], aquele que desenha paisagens sentado ao piano. Orquestra e pulmão do SG. O palco estava, portanto, transbordante a ponto de nos encher de marés a nós, aos sentados sob o grande candelabro. Com sensível sabedoria, na escolha e alinhamento, nas oscilações entre o sussurrante e o extravagante, na carne acrescentada ao esqueleto das canções, o concerto insuflou. E voou. O gozo contagiante do bloco das cordas, que tantas vezes nos levou às cordas, cantando coros e gingando foi apenas sinal do que por ali se ergueu. Gastámos o resto da noite a discutir que outras canções mereciam ser aumentadas e de que modos e maneiras. Como pedras atiradas à água, as canções continuaram como continuam ondulando em círculos. Abertos, de tal modo que vou ao passado apanhar o que quero para matar esta sede de dizer agora.

«”E coisa mais preciosa no mundo não há”. Falamos de canções, certo? Não vejo maneira de crescer sem elas, miopia minha, que não distingo o longe horizonte sem degrau mínimo, este íntimo à mão de semear. As paisagens que fomos construindo no último século, hesitando ou correndo, sentados no passeio ou comendo alcatrão, seriam impossíveis de percorrer sem estes seres particulares. Chamemos-lhe canções, para facilitar, embora sejam bastante mais do que isso, síntese letal de poder que invoca diamantes e granadas. Não conheço melhor maneira de cruzar ciência e poesia, pensamento e prazer, quotidiano e intemporalidade do que nestes nós que nos acompanham vida fora, por causa do verso estilhaço ou da melodia tatuagem. Os dias deixam-se oxidar, amarelando sensaborões até que a batida nos invade, aquela que sendo de todos parece apenas nossa. E logo Lisboa amanhece. Ou o Porto fica perto. Tão fácil falar de lugares comuns! Lá está, se se tornaram comuns devemo-lo a autores como Sérgio Godinho.

Década após década, SG fez-se gigante construtor de canções que traçaram pontes, ruas e túneis, aliás, mapas entre gerações e géneros, temas e estilos, personagens e imagens. Foram relâmpagos que continuam acontecendo à medida que vivemos, para nos ajudar a perceber a dimensão exacta do que fomos mal o ouvimos, mal ouvimos as canções. Esta arte do Sérgio assenta na peculiar atenção ao que fica do que passa; na raiz mergulhada na experiência pessoal mas de um modo tal que rima com universal; nas coreografias com que a palavra arrasta os ritmos. Nisto e nos enigmas da curiosidade que recolhe, mistura, amadurece e atira. Para voar e nos levar também.»

S. José, Lisboa, 9 Julho

Quando em apuros, volto à música. O flamenco acompanha-me nas idas e vindas ao hospital tornando peregrinante o percurso banal. A imensa noite de S. João da Cruz dedilhada à velocidade da luz, as palavras jorrando de fonte fresca onde Lorca bebe enquanto faz tombar as estátuas. As vozes de Enrique Morente ou Rosalía são visitas das horas.

Horta Seca, Lisboa, 12 Julho

Recebo do José Carlos [Costa Marques] o seu «Uma Voz Entre Vozes», nas Edições Afrontamento, dedicado ao eterno adolescente Cristovam Pavia e tendo a morte por horizonte. São 35 poemas que ajuízam caminhos, causas, lutas, entre o solar tenebroso e o brilho iluminado da noite, que reflectem e celebram a natureza. Com candura. E alegria, mesmo tintada de amargura. «Alegria suprema é estarmos vivos na carne/ Como Larkin, estremecê-la e sentirmos assim// Sentirmos assim a carne habitada Vibrante/Ridente como o sol da manhã lá fora// Entre neblinas devassando o inverno/por entre a erva tépida// Sermos assim alegres na carne Que é onde a vida passa e trespassa/ E onde a somos E onde ela é pro dentro de nós// Vibra também a carne do crucificado A carne do torturado/O estremecer no fim da carne que a doença venceu// Vibra no terror No grito que não chega a gritar Vibra no pânico e exala// Quem nos levará da suprema alegria que vivemos na carne/ Àquela outra liberta da carne Liberta da tortura// Quando nada mais formos Nem carne nem espírito// Apenas Alegria»

Gosto deste modo de, com maiúscula, abrir vale da quase pausa, afirmando assim que o verso pode esconder um outro. Assim descubramos o valor da letra.

18 Jul 2018

Mundos de papel

Gulbenkian, Lisboa, 27 Junho

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]isita rápida, em excelente companhia, à exposição «Pós-Pop. Fora do lugar-comum», que leva ainda como subtítulo a moldura enquadradora, «Desvios da «Pop» em Portugal e Inglaterra, 1965-1975». Desvios interessam sempre, guinadas para fora dos comuns lugares, mais ainda. A curadoria da Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas desenhou percurso desafiante por entre surpresas e confirmações acontecidas, mais coisa menos isso, na década de 1965 e 1975, no eixo em L de Lisboa a Londres, com cotovelo em Paris. O passeio faz-se, além dos clássicos, está bem de ver, por entre paupérrimos materiais e outros tal o acrílico ou o poliéster, o natural perdido e química inventada. Com a matéria díspar veio, contaminado e contaminando, o quotidiano mais banal, nuclear. Lourdes Castro, além das suas sombras e perfis, desenha com os invólucros prateados dos doces da infância. A mais pura das tintas. O gozo da experimentação arrepia o caminho. A palavra brilha, como néon, omnipresente (onde está o nylon e a lycra?). Toca Teresa Magalhães, faz-se corpo com Ana Hatherly. Mas o que enche as salas são corpos, esse tema-abysmo inevitável. Corpos, corpos inteiros ou fragmentos, em dimensão ou reduzidos ao mínimo. Sérgio Pombo a perturbar com fragmentos de olhar pousado («Joelhos», algures na página). João Cutileiro a fazê-lo palco de lúdicos desejos. Depois tombo em Eduardo Batarda e podia para ali ficar, nas suas narrativas de impossíveis infra-heróis, no imenso burburinho em papel de golpes e contra-golpes. Lá estão, em frágil papel, corpos e texto a travarem-se de razões com a percepção do mundo. Parecem espelhar o lado de lá da grande janela (acrílico?) que abre para o jardim cheio de alegres. E patos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Junho

Não sei quem disse ou escreveu, não me apetece procurar, que fique anónimo este saber óbvio: quando morre um homem, perdeu-se um mundo. Com a morte de Afonso Cautela (1933-2018) extinguem-se vários. Pioneiro do movimento ecologista, desconfio que nesses lugares se deu o nosso encontro, não tanto nos jornais, que eu ambicionava frequentar. Era alentejano e animou um jornal pleno de coentros quando a rega escasseava, A Planície, só na aparência regional, como outros, logo e penso no «meu» e do Drummond Jornal do Fundão. Cronista de mão cheia, era bem capaz de alimentar rotativas, como aconteceu com A Capital da minha adolescência, e não falava apenas do Planeta. Ou melhor, tratava-o como um todo. Partilhámos momentos e uma sala, ao Rato, em distintas militâncias, ele contra o terror sísmico nuclear, eu a favor da objecção de consciência. Recordo-o enxuto e ríspido, não sacrificava ao álcool, mas partilhei com ele das poucas refeições macrobióticas. Fez poesia, mas com lâminas. Ainda não tenho o primeiro volume, «Lama e Alvorada», que o José Carlos [Costa Marques] organizou para as Edições Afrontamento (tive pena de não saber do seu lançamento), mas quero voltar a lê-lo. Sem o esbofetear. «Não, não estou doente,/ não preciso de escolta,/ os rins funcionam, felizmente,/ ou por morrer também se paga multa?// Não preciso de nada,/ estou em ordem,/ despeçam-se de mim à bofetada/ e passem muito bem.// Deixem-me dormir que tenho fome/ e sede e sono,/ o meu corpo bebe e come/ dor e abandono.// Já tenho fato,/ metam-no na caixa,/ não esqueçam de pôr luto/ e nos sapatos, graxa.»

Campo Mártires da Pátria, Lisboa, 1 Julho

Vi-me à rasca, mas é costume, para encontrar onde comprar o primeiro Diário de Notícias da nova fase. Curiosamente, esta – chamemos-lhe, como o director gosta – transição tem como padrinho, Stuart de Carvalhais, homem de desenho libérrimo e nos mais diversos suportes, mas nado e criado nas páginas dos jornais. Ontem, à laia de manchete, um casal de anafados burgueses contemplava de um bote enorme navio que parece mais de guerra do que paquete. A mão no ar do homem pede legenda. E o mesmo acontece na que é oferecida em grande formato. Quem faz aqui a vez de pesada nave e ligeiro bote, o papel ou a rede? Ao contrário do que desejava, e julgando apenas por esta primeira edição que me suja os dedos, perdemos mundo, perdemos pé, com o abandono do papel.

Mymosa, Lisboa, 3 Julho

Volto-me para os regionais, que voaram e continuam a voar, tantas vezes abaixo do radar. Penso agora no «meu» Diário do Alentejo, que o Paulo [Barriga] faz vogar pelos mares alterosos do trigo com galhardia. Ou no surpreendente Jornal de Leiria, dirigido pelo João Nazário, para dar dois exemplos. À mesa do almoço, para qual não era servido este assunto, recebi da mão seu director, velho e querido amigo Ricardo [Salomão], o novíssimo Notícias da Gandaia, no qual e além do mais cronica a Luísa Costa Gomes. O Gandaia, que já pontuava online há muitos anos, a partir da Costa da Caparica para Almada, fez contas e percebeu que ganhar corpo de papel era forma barata de alargar a rede. Assenta tudo em trabalho associativo de primeira água, que assegura universidades populares, grupo de teatro, ciclos em torno dos livros e muito mais. O mar muda-nos todos os dias, dizem eles. A Luísa, cuja coluna se intitula «Nós e a Nossa Época», por coincidência, interroga-se sobre a estranha atracção dos jogos online: como usar o que vicia para nos agarrar aos poetas maneiristas ou a Astrofísica, «como aprender então a brincar com coisas sérias?»

Facebook, algures, 4 Julho

«A morte não te há-de matar», cantam os Sétima Legião, abrindo Glória. A dita poderá ter levado Ricardo Camacho, mas não o matou. «Há mil anos de memórias a contar», entoam ainda em Sete Mares, no qual celebram a força das marés contra as tormentas. Na pós-adolescência, nutria alguma desconfiança ideológica com a malta da Fundação Atlântica, sem que isso atrapalhasse o costumeiro voluntarismo de me atirar pelas janelas que abriram ao encontro do pós-punk, que o mesmo é dizer Durutti Column. A senhora da gadanha, e a sua auxiliar, melancolia, ajuda a descobrir o lastro que não somos obrigados a deixar para trás no caminho do envelhecer. Somos pó e aos pós (esta semana pop e punk) voltaremos.

Horta Seca, Lisboa, 6 Julho

O Carlos [Querido], na apresentação, topou um nexo entre o conto «Mestres Vivos ou A Lição do Silêncio» e este «Uma Mancha Chamada Berlim», que abre este terceiro volume de contos do Ricardo [Ben-Oliel]. O primeiro acrescenta uma geração a uma família que se apresenta o nó do mundo, tão dispersas as origens, recolhidas embora sob o tecto de uma mesma casa, uma tradição, bênção e maldição. Um filho que corre, um avô que se recolhe, entre ambos frutifica a árvore do narrador, que tanto oferece o fruto fresco da anedota como o sumo ácido da reflexão. Delicia-me esta escrita perdida entre línguas, como o narrador perdido entre pátrias, países, práticas em busca de identidade. Sinto o fôlego da respiração prestes a insuflar novela, noto o absurdo a espreitar nas frestas de monólogos e introitos, acompanho, por momentos, o autor a fazer-se. Ao caminho.

«Foi quando a morte se não conteve em ser dos outros só, e veio morar por detrás da porta. Quando deixou de avisar, de se anunciar, porque estava mesmo de chegada. Silente e firme. Invisível. Tão presente se tornara que as vozes se não ouviam. Um passo era bem um passo. Estalava o madeirame dos móveis. Ruminavam os canos nas entra­nhas da velha morada. Os relógios não tocavam já.

Em cada objecto da casa há um alguém que te fita, porque também contigo a morte está. A ramalhosa árvore que resiste lá fora contempla‑te à janela e solta‑te folhas em despedida.”

11 Jul 2018

«Um rumor na noite!»

Horta Seca, Lisboa, 14 Junho

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s idas a Paredes, ao REALIZAR:poesia, ecoam pelas mais diversas razões. Fazem-se com facilidade amizades que perduram. Desta vez e por exemplo, os vizinhos Do Lado Esquerdo apresentaram-me a «Um Tal de Koslowski». Tenho conversado amiúde com a figura, com quem me cruzo quase todos os dias. Nenhuma razão para espanto, tende a acontecer quando personagens literários coincidem com esqueleto do real. «Koslowsky jura a pés juntos ter-se encontrado pessoalmente com Huckleberry Finn, há muitos anos. “Mas ele é apenas um personagem literário!”, protestou alguém. “Também eu sou”, disse Koslowsky.» A criação do poeta alemão, Michael Augustin, que também faz colagens, essa linguagem de restos significativos, nasceu no riquíssimo país do absurdo, que visitei já. Importado para português de corte impecável por João Cláudio Arendt e pelo João Luís [Barreto Guimarães], apresenta-se esculpido em contos curtos, golpes de lógica que volteia no ar e corta em todas as direcções. Cada título surge à maneira de proposição de tratado, como se procurasse, em desespero e com asma, o âmago do ser. Veja-se o cristalino Da pergunta e da resposta: «“É verdade que você, independentemente do que lhe perguntem, dá sempre uma resposta errada?”, pergunta alguém. “É isso mesmo!”, responde Koslowski.» O humor está sempre a querer chegar-se à frente, mas não consegue, nem à força de cotovelo, afastar a melancolia que se instalou de armas e bagagens. Estes olhares que descascam tendem a deixar-nos em carne viva. Trouxe o Mário Henrique-Leiria para a conversa, que, por muito produtiva, acaba sempre de modo abrupto. Tal qual a puta da vida. Em Da proximidade da morte, o Koslowski namora com a senhora da gadanha e entra em coma, nada de grave. «Fui subitamente invadido por um sentimento de conforto semelhante ao calor de um casaco de pele de animal, pois sabia que, em breve, o famoso filme da minha vida passaria diante dos meus olhos. Preparei-me, então, para cenas extraordinárias. Mas a única coisa que vi foram anúncios comerciais».

Horta Seca, Lisboa, 15 Junho

A placa gráfica do computador encheu-se de pó e curtocircuitou. Tenho uma relação especial com o pó, coisa de amor-ódio que hei-de levar a próxima conversa com o Koslowski. Mas enquanto o pobre do José Carlos [Gonçalves] resolvia o problema “informático” tratei de ouver «Sonatina», escrita por José Miguel Gervásio, e composta para livro pelo mano Miguel [Rocha], que me custa ver tão pouco. Mão amiga e por coincidência havia-me avisado que estava disponível a entrevista dada à Ana [Sousa Dias], há mais de uma década, a propósito do «Salazar, Agora na Hora da Sua Morte», talvez a empresa que mais me satisfez e perturbou (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/joao-paulo-cotrim-e-miguel-rocha/). O Miguel mantém relação íntima com o teatro e foi ele que suscitou esta raridade, pequeno livro no meu A5 fetiche, capa dura e crua apenas forrada com sobrecapa, com edição artesanal da Oficina de Impressão e Oficinas do Convento, de Montemor-o-Novo. O conto, esticado quase a pequena novela, poderia ser vivido por um tal de Koslowski, se este tivesse conhecido Bernardo Soares. O absurdo não explode neste caso com o fogo de artifício da (i)lógica, antes procura o reverso do sentido, a bainha onde as minudências se ocultam da narrativa: uma cidade e um porto, talvez um amor, pelo menos um encontro, e rumores não bastam para que as vidas ganhem propósito, para que desfaçam o enigma, se desmanchem em enigma. Como migalhas em labirinto, os minúsculos paladares, gostos, prazeres são transformados em anúncios ilustrados. Bolachas, fósforos, carne enlatada, biscoitos, sabão, sardinhas em conserva, os rótulos inventados, as caixas iluminam-se em evocações do que pode ser a vida. A história seria outra, sem os desenhos, a cadência da paginação, o trabalho de corpos na tipografia, as entradas de capítulo, as duplas páginas engenhosas, o texto estendido à maneira de toalha de piquenique, pronto a acolher os insectos-afectos que recolhemos de velhos grafismos. O meu exemplar tem caderno fora de sítio e resisti à tentação de o tentar corrigir. Se não estivesse atento, poderia ter lido o fim antes, muito antes. Mas nem assim daria desígnio àquelas vidas. As últimas páginas começam por ser manchas ruidosas de cor antes de terminarem com pontos arrumados. Se dançarmos algo se arruma. Antes, um halterofilista de enormes bigodes promete saúde. Na legenda aconselha: «Conservar em lugar seco e fresco. E ao abrigo de insectos.»

Horta Seca, Lisboa, 16 Junho

O Jorge [Silva], de tanto zombar com a minha tendência para o, chamemos-lhe assim, barroco bucólico, acabou por provar do mesmo veneno. O anódino «Publicidade Ilustrada – 1895 -1972» passou a «O Sono Desliza Perfumado», belo fecho de anúncio, com desenhos de Carlos Carneiro (algures nesta página). O álbum, capa dura em tons de azul texturado, anuncia colecção de prazeres gráficos, todos com raiz na Biblioteca Silva. «Uma biblioteca com facilidade se torna floresta de faróis, se plantada com saber e sabor. Outra coisa não vem fazendo Jorge Silva, no que à ilustração portuguesa diz respeito. Há décadas que demanda, nos baldios do património, com extremo afinco e persistência, a matéria de que é feita a memória gráfica nacional. Como colecionador apaixonado, persegue a presa, indo longe na investigação, não apenas de documentos, mas de figuras e testemunhos, desfazendo o nevoeiro da dúvida, sistematizando o terreno das explicações até à solidez. E depois constrói e comunica, por via de textos e enumerações, alguns recolhidos em Almanaque Silva (https://almanaquesilva.wordpress.com), organizando inúmeras exposições e espalhando-se por aulas e conferências e mais. Almeja tudo recolher, para o ter à mão de semear, debaixo de olho, sem nunca por nunca excluir o gosto. Como bom coleccionador.» São 227 anúncios com trabalhos de Bernardo Marques, Carlos Botelho e Cottinelli Telmo, e tantos outros. De cada vez que folheio, descubro razão para voltar. Antes de mais pelas imagens, também pelos jogos com a tipografia e o grafismo, mas sobretudo pelo desenho puro, as composições engenhosas, o cómico, o realismo, o espírito. Estou sempre a encomendar fotogravuras com Fred Kardofler, a beber café com Luís Flipe Abreu e cerveja com Lima de Freitas. E a dançar no Bristol com Carlos Barradas. Mas também vale a pena voltar para nos vermos ao espelho do que fomos, do que vestimos ou comemos. E do que ainda somos, seguidores cegos do progresso, crentes ingénuos nas propriedades salvíficas da moda. Quase acredito que um telefone nos pode salvar da solidão e do perigo.

Horta Seca, Lisboa, 18 Junho

Há atrasado, o Ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, considerou em entrevista que «temos pequenos editores que fazem um trabalho notável… a Língua Morta, a Abysmo. Fazem um trabalho importante e publicam autores importantes de poesia, mas não têm a distribuição que deveriam ter.» Agradecemos a atenção, algo distorcida, e apesar da companhia, não tanto pelos livros, mas pela doença do editor. Mas eis que, na altura em que podiam ajudar, as autoridades se negam com argumentos falaciosos. Talvez até tenhamos autores importantes, e até traduzidos para castelhano, mas, pelos vistos, não possuem suficiente sex appeal. Vem isto a propósito de novo bocejo. A comitiva portuguesa à Feira do Livro de Guadalajara, hoje anunciada, confirma aquele mais do mesmo que se faz costume: só o que é mediático é bom.

4 Jul 2018

Ponha-se no seu lugar

Parque das Nações, Lisboa, 9 Junho

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]em sempre os dias coincidem com as datas. Desmentindo Junho, o dia amanheceu cinza e chuvoso. Nem por isso impediu que se cumprisse a anunciada abertura de exposição que acaba sendo sobre um fecho. Raramente me encontro nas horas, aliás, assim sendo, faça-se fotografia: daquelas onde estamos sem fazer nada, apenas sendo. «Você (Não) Está Aqui» aproveita as fotografias do Bruno [Portela] para mostrar restos de não-lugar algures na encruzilhada entre o industrial lento, o rural perene, e o nada, simplesmente. Em sete sítios, estrategicamente colocados ao longo do que acabou sendo, há vinte anos, a zona de intervenção da Expo ‘98, os velhos slides iluminam-se para abrir cortes no tempo. O fotógrafo capturou o espírito, sobretudo com expediente de alto poder simbólico: ao compor as imagens usa amiúde dois planos, um próximo, e outro mais afastado, desfocando até um ou outro. O tempo capta-se melhor assim, suscita contraste entre o aqui e o longe, o parado e o movimento, coloca-nos em perspectiva. Pede-nos para avançar, para ganhar horizonte. Em qualquer direcção. A zona oriental de Lisboa, com e sem intervenção, ser-me-á continuadamente íntima.

Até Setembro ainda terei tempo de lá voltar para afiançar do impacto em advérbio das imagens, mas desta não consegui aproximar-me do Trancão que tanto atravessei, atravesso. Força maior colocava-me no hospital de S. José a cruzar, de autocolante no peito, a azáfama de desgraças confirmadas em voz alta, impudores expostos, macas desprezadas aguardando corpos de ocasião, despedidas chorosas, pensos de branco a brilhar nas partes dos corpos indefesos, gritos tesos e mudos, risos e ternuras, actos clínicos de passagem e olhos fechados a mentir descanso, mãos tocando-se como piano. Até chegar ao meu velho pai irritado por não lhe deixarem fazer a barba e, pior, lhe terem tirado o relógio com que governa o seu dia. No hospital estamos sempre sós, por mais companhia que tenhamos. E temos as horas todas e em peso.

Não se erguem os dias sem a argamassa da coincidência. Acabo de conhecer, pelas boas razões do encontro, o gentil Jean-François Revah, autor de curioso estudo dedicado aos condutores dos transportes colectivos, ainda para mais estabelecendo nexos com o meu estimado «Discurso Sobre a Servidão Voluntária», de Etienne de La Boétie: «Le discours de la solitude volontaire – lien social et conflictualité dans les metiers de conduite du transport collectif». Inúmeras são as questões abordadas a partir da identidade e da aprendizagem, da importância da profissão na construção de um sujeito activo, na relação deste com os que rodeiam, profissionais ou não do mesmo ofício, com o autor a tentar perceber o essencial das angústias de quem transporta a responsabilidade de transportar outros. Fiquei-me pelo belo início da viagem, que continua depois para lugares mais específicos e úteis. «Independentemente da situação objetiva de ser privado de companhia, o sentimento de solidão interior desperta ansiedades arcaicas relacionadas com a mais completa de todas as experiências vividas: ser entendido. A nostalgia de ser entendido deriva, então, do sentimento depressivo de ter sofrido a perda irreparável de uma situação outrora gratificante na qual a comunicação e a segurança eram obtidas sem o uso da palavra.» Escusado será escrever que o meu pai foi, entre outras identidades, condutor. De eléctricos que desciam as colinas em velocidades líquidas. De autocarros de dois pisos que ainda percorrem as minhas zonas orientais.

Liga dos Combatentes, Lisboa, 9 Junho

Lisboa possui ainda destas rarezas: na exacta curva da rua, a porta abre para encenação de memórias, uma travagem brusca na fluidez do tempo, na sala os ecos dos combates, a janela atira vistas para O Século, desaguando o conjunto, como de costume, no rio pessoano. Antes, enquanto fumávamos a espera com o mano mestre do tempo, el António [de Castro Caeiro], pássaros indistintos atiravam-se suicidas contra o muro da colina abaixo do Conservatório penetrando o concreto cinzento de Juan Gris. Estamos como se vivêssemos em uma das colagens do Felipe Benítez Reys, pedaços contra o cenário de autor, e vemo-nos, de súbito, no lugar exacto para ouvir as suas incursões pessoanas recolhidas à chuva em «Privilégio de Penumbra», que o Vasco [Gato] soube tornar transparentes. «Estou cansado de sentir./ De sentir até esses sentimentos/ que deixei há algum tempo de sentir/ e que regressam do passado como um eco/ para que eu os sinta sem os sentir.» Como uma nuvem cubista de Almada navegando a fingir pensamentos, nestes dias, não larguei a singela plaquete, que, apesar de um ou outro sublinhado de imperfeição (as colagens deveriam ter sido noutro papel, uma deles escureceu como tarde de Inverno, a gralha grasnou), me agrada sobremaneira. Ou não fora Lisboa um dos mares que navega. Um dos poemas pertence ao mais recente, «Ya la sombra», que o Felipe generosamente acaba de me oferecer (batota com sentido) fazendo-o matéria dos dias adiante (mais batota que o tempo desmentirá) e prendendo-me mais ainda nas volutas melancólicas da sua espiral, da sua minuciosa investigação em feiras da ladra da memória perseguindo as rodas dentadas do mecanismos do tempo. E portanto da morte, esse sombra a fingir-se lugar. «Que trace la noche el mapa/ del sitio em el que no estoy./ Que vengo de donde no estuve./ Que soy tan sólo el huido./ Y yo no tengo un lugar.» O meu lugar são versos. Será a noite verso teu, Felipe?

Galeria do 11, Setúbal, 9 Junho

Não consigo correr a tempo de outra exposição da Festa, cujo título se me fez programa: «A vida é engraçada, mas eu levo-a muito a sério», dedicada a Tóssan. Nos últimos meses, fui testemunha do maravilhamento crescente do Jorge [Silva], ignorando até o princípio da realidade que nos escraviza, com a investigação em torno desta figura sui generis. António Fernando dos Santos (1918-1991) continua a fazer sorrir, percebemos nós. Quem com ele contactou continua a celebrar uma disposição e abertura à vida que se revela plenamente nas suas línguas: escrita, desenho, design. Sei que perderei festa emocionante, na qual se celebrará, sobretudo, a amizade e a alegria de viver. E a memória. Apesar das sombras. Tenho na mão o livro-nuvem que prolongará o essencial. Com formato generoso de álbum, evitámos a capa dura e experimentámos, até na gramagem do papel, algo mais ligeiro, sem a transparência perturbasse a fruição. Resultou mais lúdico, afastando-o da praga dos coffe table books. Em modelo que andamos a apurar há algum tempo, oferece-se mormente imagens, com pequenos textos de enquadramento, muito saborosos, como o Jorge diz não saber fazer mas desmente a cada passo, e que se revelem transparentes na simpatia pelo seu tema. Recolhem-se nestas páginas algumas delícias, muita informação e um sem número de inéditos. Podia ater-me ao desenho de miúdos, perdoe-se a pedofilia, a série Cão Pêndio, certa capa expressionista, a coluna Lógica Zoológica, que misturava texto e desenho, magníficos ambos, e de que me recordo de o bisnau, ou as aventuras do detective Pararraios. Fico-me, às tantas, por ilustração de 1959, algures na página, que levava por título «Solidão ai dão, ai dão». E um dos poemas (inéditos), que o Jorge escondeu (com ponto de fora) nas badanas: «O escritor/escreve um livro/ de tantas páginas./ A páginas tantas,/ essas páginas/ são editadas pelo editor./ Mas do livro,/ não se vende uma página!/ A páginas tantas/ morre o Escritor./ Esgota-se o livro./ E com a indigestão/ de tantas páginas,/ a páginas tantas/ morre o Leitor./ E o Editor/ Como já não tem páginas/ morre às tantas.»

10 Junho

Termina a Feira do Livro de Lisboa em enorme bocejo, que só me consome caracteres. Panorâmica de done sobre filas e filas: para o autógrafo dos da televisão, para o bolo de caco e o sumo biológico, para as selfies com o Presidente da República. Nem vou ali, nem venho já.

27 Jun 2018

Afinal

Horta Seca, Lisboa 26 Maio

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]al conhecia a pintura de Lisa Santos Silva. Nos últimos meses, sucessivas vicissitudes indisciplinaram as conversas, no que parece ter-se tornado o meu novo normal, mas ainda assim e por via da sua paciência e generosidade, consegui aproximar-me sem me queimar. Ou queimando aquele tudo-nada que permite o conhecimento. Na exposição que hoje inauguramos, afinal pretexto para o lançamento do fulgurante «Apaga Tudo, Não Esqueças Nada», a Lisa disse algo que ecoará duradoiramente. Uma vez perdida a infância africana, descobriu, no Prado, que a sua pátria era Goya. Nunca havia pensado nele como pátria. Não sabia que a tinha. O seu texto, a classificar na estante dos inclassificáveis, ajuda muito a perceber como cabe a cada um construir a respectiva pátria-vida, mesmo sobre ruínas, sempre sobre brasas. E resulta ser testemunho raro e pungente acerca deste nosso tempo, certa África mais ou menos mítica, a relação íntima com as imagens e a memória, as afinidades electivas. O que estas paredes sustentam são fotografias, marcadas pelo coração, pela caveira, pela sujidade da tinta. Apesar disso, percebo melhor a força dos olhares que queimam na pintura de Lisa Santos Silva. Preciso voltar à série Ecce. Preciso escrever ainda acerca desse Lobito que me persegue.

Horta Seca, 30 Maio

Não fui a nenhum dos debates, não li os dossiers publicados, não comprei nenhum hors-série, não folheei sequer os livros, polémicos ou nem por isso, sobre o assunto, mas Maio de 1968 marcou indelevelmente a minha maneira de ver o mundo. Soprou por ali um vento de liberdade, apesar do dito e do não feito, a despeito das razões ou dos protagonistas. O presente não me deixou regressar ao passado. Como de costume, afinal, voltarei atrasado noutro mês qualquer. Para perceber melhor.

Setúbal, a cidade-imagem, 2 Maio

Dia longo, a saltitar de exposição em exposição na Festa da Ilustração, com destaque inevitável para a Ilustração Portuguesa. Encontro quase sempre razões de entusiasmo, sofro de optimismo galopante. Parece uma selva, tanta a cor, diverso o estilo, surpreendente a fauna, luxuriante a flora. Nas narrativas de aventura cada detalhe conta: a surpresa, a ameaça, a fuga. Mas e a ternura? E uma ideia à solta, talvez até selvagem, como se ilustra? De tudo se encontra neste jardim tropical, que nem sequer está completo, firme, acabado. Pouco se notam idades, tamanho e peso do trabalho, o nome. Os mesmos de sempre limitam-se a pisar o terreno do costume, ou talvez não. Aquele arrisca saltar de suporte, experimentar, sem perder terreno. E os novos que florescem, sem pedir licença, a brincar como deve ser, a assustarem com cores e perspectivas e enquadramentos e figuração a empurrar cada limite? Dá para inventar percursos, em busca de rostos, ou de gestos, um toque de dedos e seio, um pé na bicicleta, um miúdo que escreve empoleirado na árvore, o toque de outro em tronco maior. Ou correndo atrás da dança das manchas, cinza sobre negro, corpo manchado de azul a pegar no cor-de-rosa, e nuvens, que aparecem nuvens por todo o lado. Nuvens que não tapam sol nenhum.

A imagem com que o João [Fazenda] iluminou o acontecimento (algures na página) brilha de tão loquaz. Uma mulher pendura uma nuvem, enquanto um homem pinta o sol e outro traça o mar a lápis. A disciplina que celebramos serve para isto mesmo, para desenhar a paisagem que habitamos. Sem ela, éramos, afinal, mais cegos.

A noite fecha (ou terá aberto?) com concerto no qual os ilustradores desenham com instrumentos. O frio foi afastado à força pela electrónica cool do Gonçalo Duarte, pela guitarra atmosférica do João Maio Pinto, pela eléctrica improvisação do Miguel Feraso Cabral, pela energia poética dos Bruxas/Cobras e pela explosiva criatividade dos Jibóia. Sem esta paisagem, éramos, afinal, mais surdos.

Facebook, 8 Junho

Tocou-me como a um próximo, esta morte do Anthony Bourdain (1956-2018). Não lhe admirei apenas a aventurosa liberdade, a criatividade nos modos de contar, o hedonismo militante, mas a capacidade de entender, ou pelo menos, a de ir em direcção ao outro sem perder o olhar crítico, a dançar sempre entre o irónico e o sarcástico. Aquela esfusiante celebração da vida estava, afinal, tintada com o veneno puro da morte. E o gesto possui uma explosiva naturalidade que não pode deixar de nos abalar. Na única nota de suicídio que me foi dirigida, a minha amiga fazia um pedido, impossível de cumprir: não procures razões.

Diário de Notícias, 8 Junho

Telefonema de véspera pediu-me um depoimento sobre Felipe Benítez Reyes e o seu Privilégio de Penumbra (pessoana) que lançaríamos por estes dias, no âmbito da Noite da Literatura Europeia, a maratona de leituras que procurar agregar continente à deriva. O dia não foi fácil, os dias não andam fáceis, mas consegui alinhavar estas linhas, que pensei irem de par com texto mais jornalístico tendo acabado por sair desgarradas na página de opinião.

«Nem no fado nos é permitido ceder à facilidade de achar que uma palavra basta para invocar os seus múltiplos sentidos, matéria ou sombra. Exemplo? Destino. Bastaria dizê-la, escrevê-la para que algo acontecesse? Não basta desenhá-la no ar, há que saber os caminhos que percorre entre nuvens e calçada. Um livro de poesia desvela-se na dança entre mãos e olhos, esse o palco maior onde acontece o mistério. O bom verso não se limita a dizer gabardina, terá que me entregar o cheiro a chuva. Sirva isto de entrada a pés juntos para dizer ao que venho: a publicação, que resulta ser a sua primeira em português, de Privilégio de Penumbra, de Felipe Benítez Reyes, poeta, narrador, ensaísta, tradutor, enfim, homem de letras (que não desdenha a imagem), nascido em Rota, Cádis, nos idos de 1960. Queria convencer-vos, cumprindo o prazer maior do editor, a entrar por estas páginas adentro, e com isto quero dizer cidade, no caso Lisboa, o porto dos portos para o transeunte perdido, lugar das partidas e chegadas, onde se faz, como em nenhum outro lugar, a contabilidade dos destinos. Porquê? Por ser Lisboa uma página manuscrita do poeta múltiplo: «Esta cidade, enfim, não a contemplas: lê-la/ na caligrafia oblíqua de Pessoa.» As colinas são, doravante, as letras desenhadas pela mão, olhos e mente de Fernando Pessoa. E de agora em diante por se transfigurar em futuro que toca o nosso presente a caminho do passado, ou vice-versa. Ou seja, Pessoa percebeu que a cidade do desassossego é a da nostalgia e do cansaço que faz de nós seres entediados do nosso tempo. Lisboa fez-se todas as cidades, em correspondência com as de tantos outros criadores ou filósofos. Cada um de nós é um homem perdido. Felipe passeia como ninguém, como flâneur, por estes lugares feitos de esquinas e montras, portanto, de ilusão. Para chegar a lugar nenhum, afinal a conclusão alguma. «Se pudesse reescrever a minha vida, rectificar os seus adjectivos/ e os seus tempos verbais, de que premissa partiria, de que tom?» As suas colagens, que ilustram o singelo volume, parecem querer responder. Somos também o viajante portentoso, «recipiente de todas as lendas e o depositário orgulhoso/ de todos os prodígios», aquele que avança sem medos. «O receio do futuro dissolve-se num copo mal lavado.» Somos nada, é certo, mas «eu, que não fui nada, fui por vezes o universo.»»

20 Jun 2018

Eu (não) estou aqui

Horta Seca, Lisboa 20 Maio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or estes dias, andei meio perdido na adolescência. Um dos meus liceus, agora vítima de curiosa vingança que o atirou para abandono semelhante ao do Cabo Ruivo de então, capitaneava margens esquecidas. De tempo e lugar. Os anos na Afonso Domingues, que de feminino pouco mais tinha além do nome (Escola Industrial), deram-me acesso a sítios que insuflavam de oxigénios a palavra aventura. Os territórios começavam logo ali, junto à linha do comboio, e desciam por azinhagas, de bruxas ou nem por isso, até à grande avenida dos velhos e britânicos autocarros de dois andares, com passe para patifarias e doidas corridas. Logo antes do rio onde brilhavam sombras até do império e o hidroavião, encostado ao labirinto de metais e cores, atracado a livros de cordel onde atlântico rimava com viagens e batalhas e as máquinas voadoras eram o passaporte para uma vida a sério. Estava na Afonso, em nome da força aérea, para que conste. Mais tarde, não muito, iria calcorrear os mesmo caminhos com atenções outras, de câmara na mão, a aprender a ver, sob a batuta do Luís Pavão, que animou na Afonso um clube de fotografia. Tenho que regressar a esses negativos, quase todos na cor precisa da memória, o preto e branco. Que olhos seriam os meus, no salto, óbvio para a idade, entre fantasia e real, entre astronáutica e consciência social?

Cá em casa, as ideias mastigam-se muito, mas estava longe de imaginar que o projecto do Bruno [Portela] de celebrar os 20 anos da Expo 98 com mergulho no oceano do seu arquivo acabaria comigo, depois de conversadas e excluídas várias outras hipóteses mais naturais, a legendar as suas fotos, que estão em exposição de grande impacto no próprio local. «Você (Não) Está Aqui» atirará, até Setembro, os incautos transeuntes para viagem no tempo. Bem distinta da minha. Este trabalho do Bruno (exemplo algures na página) resultou de uma encomenda, estava sujeita a constrangimentos, aspirava à totalidade do registo, mas originou olhar que resistiu ao tempo e nos permite acesso à metamorfose. A cidade desfazia-se aqui, entre desvario e tangível. A melancolia habitava o sítio e ficou na fotografia.

Para abrir, sugeri estas linhas, e falhei nas outras legendas abordar a minha púbere aviação. «Os lugares possuem um espírito. Mas o tempo não lhes permite que se mantenha para sempre o mesmo. Neste pedaço de Lisboa, qualquer coisa em hectares (340) como a extensão que vai do Terreiro do Paço a Entrecampos, morreram maneiras de fazer, de construir, modos de ir deixando andar, parte de um século. Paz à sua lama. A meio do século passado, uma certa vontade de desenvolvimento colocou às portas da cidade a refinaria de «ouro negro» que a alimentava, e à sua volta foram-se acumulando restos, matérias brutas, abandonos e abandonados, outras memórias. O século XX estava a acabar e a capital ignorava o seu oriente, quando a pretexto do encontro com outros orientes, resolveu fazer uma das maiores transformações urbanas do país. A regeneração do território foi, aliás, uma das principais razões para que Portugal ganhasse, há 20 anos, a organização da Expo 98 projecto, de par com a celebração da viagem de Vasco da Gama e ter escolhido os oceanos para tema. E assim aconteceu de modo único: uma das maneiras de aferir o sucesso da mudança está no apagamento da memória do que aqui foi. O trabalho bom do fotógrafo é captar espíritos. Ora Bruno Portela (Lisboa, 1966) estava, nos idos de 1994, no lugar exacto à hora certa para registar o fim de um ciclo. O seu percurso fez-se mais do documental. Por um lado, não ignora o humano nas estruturas, nas formas, nos restos e na poeira de que parece feita a paisagem. E por outro, coloca-nos no coração da vaga e sólida tristeza que se solta do tempo a passar. Uma cidade pode esconder outra: cuidado a atravessar.»

Mymosa, Lisboa, 25 Maio

Temos atrasos e temos atrasos dolorosos. A edição da Manuela Sousa Lobo tardou, mas vai resolver-se, a pretexto dos 130 anos de Pessoa. Há tantos anos lhe conheço os poemas, prodígio de criatividade, na língua, nas imagens que cria, no cruzamento de planos, perturbações, identidades. Sinto com a dor da injustiça este apagamento, mas isso pouco resolve. Almoçamos para acertar detalhes, para conversa solta, para isto e aquilo. De surpresa, aparece-nos o Patrak.

Há muitas luas, em programa na Rádio Universidade Tejo, juntei os dois, a Manuela e o Luís Carlos Patraquim, outro poeta enorme, sem que um soubesse do outro, para encontro de amigos ao vivo do microfone. A coincidência de os ter agora aqui, descombinadamente, anima-me, sem outra razão que a alegria. «Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.»

Já na abalada, vejo a Manuela a baixar-se com esforço para apanhar qualquer coisa que me havia escapado, missanga de máscara zulu, dobrão de ouro, a chave da arca do Pessoa, tecla de máquina de escrever. Não, era um parafuso, torto, que trazia em si a própria inutilidade. Diz a poeta em resposta à minha surpresa: «anda tanta gente a perdê-los que alguém tem de os apanhar». Nem perdi tempo a imaginar o museu, corri a apanhar uma caneta-íman que outra poeta me tinha oferecido, desconfio que para me chamar velho ou apenas apagar o meu fascínio pelo objecto. Doravante, não precisará dobrar-se, basta abrir a extensão telescópica e apanhar os parafusos perdidos.

Casa da Cultura, Setúbal, 1 Junho

Alimento para os olhos, que não a pintura de naturezas mortas, a Festa da Ilustração obriga-me invariavelmente a esforço de orientação na selva das imagens. As boas exposições, qualquer que seja o volume, fazem-se paragem de comboio, lugar onde saborear o tempo. Não encontro melhor exemplo que esta «Bricolage», do João [Fazenda], portentoso construtor de cidades e metáforas, o melhor dos transportes públicos. Encontramos «trabalhos de vários momentos, mas sobretudo dos anos mais próximos. Estão representados os suportes essenciais (livros, periódicos, cartazes, cadernos íntimos).

Melhor: estão os olhares e os gestos primordiais que fazem dele autor seminal, pois nele se vão mergulhando raízes para as mais vorazes experiências. Em cena no Palco estão actores, objectos e cenários dispostos como se obedecessem a encenador, urbanista, jogador de xadrez, que melhores peles pode o ilustrador vestir? Puro prazer se desprende do mecanismo, umas vezes literal, outras metafórico, sempre a atirar-nos para a viagem. Segue-se visita guiada ao Bairro, com trabalhos mais pessoais e narrativos sobre a cidade e as suas transformações.

Ternura no olhar que toca cada figura, entalada entre o banal e o excepcional, eis o que nos espera. Avancemos em direcção à Arena, onde se recolhem os rostos e os corpos do inferno político, social, mediático, nosso. Pode explodir o humor, mas sem que aconteça cartoon. Tudo nos encaminha para a Pista de Dança, onde Fazenda chama a si a figura do coreógrafo-bailarino: cada desenho faz-se movimento que rodopia em movimento e transformação contínua, abrindo-se espaço de liberdade e imaginação. Cada desenho logo se faz outro desenho, sendo todos momento dessa transformação. Ninguém lhos pediu, mas todo ele, desenhador compulsivo, os exigiu. Este movimento não está, em momento algum, ausente das milhentas imagens que criou. A que deu vida. Mal voltem costas, tudo continuará a mexer-se, acreditem.”

13 Jun 2018

«As recordações ajudam a esquecer»

Cervantes, Lisboa, 14 Maio

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeço com demasiada facilidade. Se a poeira pouco importa, algumas migalhas dos dias mereciam repousar na conserva da memória. Para digerir mais tarde. Foi um dia forrado a urgências e agitação, que não lembro, embora me tenham até impedido este exercício diarístico.

Podia ter nevado que o esqueceria de igual modo. No fim da tarde dou comigo sentado em mesa posta perante plateia, como em segunda tremenda adolescência, tremendo. Que desejei eu para merecer estar ali na companhia de Luis García Montero, do seu tradutor, Nuno Júdice, do pintor Juan Vida, e de Chus Visor, desmesurado editor? As capas negras da colecção Visor (50 anos, mais de 2000 títulos de poesia) escondiam a potência do desejo, claro.

Júdice despertou apetites adolescentes com prosa inesperada, sim. García Montero iluminou longas tardes na Andaluzia onde aprendi sinuosidades do coração, pois. E creio que chegámos a ele por Lorca e Alberti, seus companheiros, talvez meus, se me atrevo. Mas o encontro devo-o por completo ao versado em desejo, Javier [Rioyo], que orienta a conversa exemplarmente, despida de formalidades, aberta às ondas dos que se fazem presentes e podem afirmar, contar, lembrar. Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.

Em voo, que parte de 1982 e percorre nove livros até 2017, com «À Porta Fechada», a antologia apresenta bem este labor que faz do quotidiano superfície, uma pele, na aparência transparente, que esconde/revela as convulsões que são a sua matéria, a sua carne. «Em lembrança/ do seu assombroso odor a sobrevivência,/ quero atravessar a casa/ e despir-me às escuras,/ sem incomodar,/ sem acender sequer as luzes do espelho,/ para não me perguntar/ de que serve um oásis,/ se o coração conhece os desertos/ e sabe que o esperam/ como pegadas antigas que já vão à frente.» (de «Nocturno»).

As escolhas de Nuno desenham um percurso de maturidade que nos põe a andar, com o autor, no fio da navalha e de costas para o futuro, como mandam os clássicos. Uma antologia assim, que propõe distintos caminhos torna-se lanterna. Os versos com os quais o poeta foi experimentando o tempo, o natural, a cidade, a memória e a palavra ajudaram-me de imediato a andar sobre estes dias movediços. Não que seja a função, mas sucedeu. Apanhemos os ossos do cadáver do tempo nas ondas desfeitas. Senti-me um pouco menos estrangeiro da minha intimidade.

Terei aprendido a lição? «Estrangeiro na própria intimidade,/ não conhecem o meu nome/ nem as margens da plenitude,/ nem o cadáver do tempo escondido nas ondas./ Mas entendem a forma dos meus passos/ na areia que cai,/ se confundo o relógio com o deserto/ ou vigio a casa tal como ao horizonte,/ e na minha taça de dúvidas cabe o mundo,/ e no valor encontro cobardia,/ nos olhos a noite com a sua luz/ e o coração da criança/ numa alma de antigas corrupções.» Também acontece mundo e até política, essa arte de saber construir casas que nos abriguem, dúvidas onde caibam o mundo, e desejos que poderão sempre afundar-se.

De «Meia estação»: «Contra o meu corpo,/ o seu passado e as suas razões,/ a história devolve-me/ o repto de viver/ como numa segunda adolescência.// Volto a temer aquilo que desejo,/ outro luxo encantado nesta parte/ de minhas horas tardias. Não preciso do mundo/ que discute e ama e transborda/ com as suas regras alheias/ no andar de baixo.// Quero a minha residência, embora a casa/ seja uma árvore doente. Aqui estão a memória/ de ter sido, os anos de anseios,/ a chuva do caminho em cada livro/ que ainda guardo e a janela/ para aquela cidade que só existe/ dobrada com a minha roupa.» Falo mais do que devia, como no verso que dá título à crónica, roubado ao poema que rompe todas as regras e sobre quase até ao corte, rompendo as regras, para sussurrar «nos unen mis recuerdos y sus ojos cerrados.»

Na sessão, García Montero teve gesto de comovente generosidade, ao ler belíssimo ensaio sobre as afinidades que encontrava na poesia do seu tradutor. Outra lição que te fico a dever, Javier. Somos vizinhos da cidade que existe nas dobras.

Mymosa, Lisboa, 15 Maio

Recebo a mesa (quase) completa da noite anterior em visita de cortesia e amizade. Encontro-os cansados de tanta cultura e património e passeio, levo-os à sala de estar para assistir em directo à barbárie: em Alcochete anunciavam o desmando com fragmentos de imagens. Tentávamos a todo o custo trazer a conversa para poetas, leituras, antologias possíveis e impossíveis, comentários soltos, mas era impossível. Foi chegando gente, como se o plenário voltasse a ter assim, de Moçambique, de Macau, aqui do lado, mas era impossível. Estávamos em plena peça de absurdo, Ubu era imperador e desinteressante, usava barba e gritava às riscas.

Museu Bordalo Pinheiro, Mercado Santa Clara, Lisboa, 18 Maio

Corrida entre lado e outro para apresentações falhadas. O Museu sentiu-se incomodado com a opinião da apaixonada, Isabel [Castanheira], no seu «Una Piccola Storia d’Amore». Sou capaz de perceber, quando se troca carne por papéis, tendemos a perder noção do sangue. Mas não me caiu bem a deselegância de convidar e depois pedir desculpa por isso, em público. Aprendi a estimar mais quem coleciona sabendo do que quem pensa sem arriscar.

Logo a seguir, o que parecia mal-entendido modernaço – convocar lançamento para a hora de jantar – reveliu-se arrogância de senhores para quem a criatividade se faz meio de fortuna. Era mesmo ali, no meio do nada, fosse hora ou sítio, que «O Sono Desliza Perfumado», em torno da publicidade ilustrada, do Jorge [Silva] devia ser apresentado. Como se não bastasse, ainda tivemos que ouvir o histérico dono do microfone a tentar correr com quem estava em lugar nenhum. Saudade dos pianistas de bordel.

  1. José, Lisboa, 21 Maio

Deveria escrever hospytal de tantas vezes te visito? De qualquer modo, preparo-me com Garcia Montero, e atente-se no fulgurante título, «A Ausência é uma Forma do Inverno»: «assim dói uma noite,/ com esse mesmo inverno de quando tu me faltas,/ com essa mesma neve que me deixou em branco,/ pois de tudo me esqueço/ se tenho de aprender a recordar-te.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Maio

Na minha parede pobre brilham traços de negro, morse de expansiva alegria, uma mulher de braços levantados. Júlio Pomar (1926-2018) entrou em mim pelos livros, como tantas outros, oriundos do Círculo de Leitores, iluminando textos de José Cardoso Pires, que, não fora a minha inépcia, poderia ter sido abysmado. Temos para um século de carnes e superfícies por desvendar. Não consegui ir, também por insanável melancolia, ao novo mausoléu oficial dos sem-basílica, o Teatro Thalia. (Quem o baptizou de mausoléu foi o saudoso Diogo Lopes, que, após assinar a recuperação, logo o inaugurou nessa triste função de forma do inverno, tendo sido depois seguido pelo vanguardista, Manel Reis.)

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Desmonto em ápice inglório os originais irregulares (exemplo algures na página) da Cláudia R. Sampaio, a que demos, trocando mensagens e por causa de maiúsculas espontâneas, o título de «NÃO ESTAVA A GRITAR». Para mim, a pintura da Cláudia levanta sempre a voz, mas a das plantas e das flores, um jardim bonsai de ervas daninhas e iluminuras e anjos. E seres, dos que se soltam das palavras. E de nós. A jardineira faz selfies, ora ruivas, ora com palavras, mas que precisa sempre do enquadramento vegetal. Diz-nos que muito crescer tendo nós como epicentro da horta: asas, olhos, pétalas, fuste, cabelos, seios, coração, mesmo que seja «coração prefácio à espera de ser escrito».

6 Jun 2018

Tempo nenhum

Mymosa, Lisboa, 3 Maio

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]esito e já mudei umas vezes este princípio. Deve ou não convidar-se a morte para a mesa, para as nossas mesas? O flamenco parece-me resolvê-lo melhor que o fado, mas vou em busca de confirmação. Encontro com manos – sim, insisto nessa forma irritante de nos assinalarmos próximos –, distendido no terreno que vamos amanhando vale a rega, a paciência, e espera do fruto. Pessanha janta connosco e afinámo-nos na vibração que desconjunta o mundo. Mãe pode baralhar o cima e o baixo fazendo-se pano de fundo, que o colo se faz mundo. Pai pode rasgar degraus que dificilmente subirás, sem antes os descer. Carlos [Morais José] vem das pirâmides a falar do céu e da canoa que comunica. António [de Castro Caeiro] domesticou o tempo e trá-lo a fazer as necessidades na Bica. Ele apanha os dejectos (luminosos), não se aflijam. Mas discutimos pela razão, para mim simples, de que a tradição mística interrompe. Reconheço, mais ainda debatendo em supremo desequilíbrio na Calçada da Bica Grande, a enorme intuição de que devemos caminhar de costas para o futuro. A cada instante, mudando a resposta ao que formos sendo, índio, mas cobói, cavalo, mas comboio, bala, mas seta. E eis que acontece o acontecer, sempre nem nunca: kairos. Deus na sua forma incandescente de ser todos os tempos ou nenhum, diz ao ouvido, inscreve na carne, de um e não outro, poema que atira a narrativa para um nó (desfaz aí a História…). Princípio e fim, cima e baixo, longe e perto são coordenadas que na experiência do místico desfazem o sentido. Por instantes, a experiência mística ilumina o mundo ao realizar-nos. Logo nos apagamos: mártires. Provocação: ser, no tempo?

Mymosa, Lisboa, 10 Maio

Cada encontro com o José Alberto Marques, ainda que seja marcado pelo ritmo estúpido dos afazeres, transfigura-se em brincadeira de putos. Jardim infantil!, atiram os (bons) tolos. Não percas tempo. Uma mesa não pode ser apenas lugar de pousar papéis. Entornámos agora memórias de beijos, quentes nos lábios mais quentes do surrealismo; uma repetição para afirmar traços entre a palavra e um texto; um recorte que tiras da cartola; o disparate enquanto o garfo amanha o peixe; a convicção de que o livrinho está feito, excepto o acrescento doido do momento; uma chamada para pedir o whiskey; aquele pacato regresso de comboio a casa depois da revolução, quando tudo ardia.

Hoje Macau, 11 Maio

Subidas e descidas na cidade, noite e dia, assim se fazem. Páginas de jornal dobram-se barcos, origamam-se aviões e isto. «A diferença é no modo de olhar. Uma diferença que está sempre a constituir-se, porque a passagem do tempo cria uma alteração convulsiva em cada instante: antecipa-o para o ver cair para o presente, e do presente, empurra-o para o passado. Cada instante é uma projecção do tempo na sua totalidade. O tempo é sempre o mesmo na sua duração, no trânsito e na sua passagem. E de um instante para o outro pode perceber-se a estranheza da passagem do tempo, inexorável, mas como se nada se passasse na realidade. É como se tudo fosse exactamente o mesmo e não conseguíssemos apurar a diferença. E na identidade absoluta da realidade a própria realidade desagrega-se na passagem, na alteração dentro da identidade, na estranheza de perceber que as coisas se alteram e é estranho perceber-se a alteração, quando tudo aparentemente se mantém na mesma.» E se for o tempo a mirar-nos, estamos capazes de o olhar, olhos nos olhos, ainda os não tenha? Fechar o tempo na sua totalidade é escolher a poesia. Portanto, a dedicatória é desafio: não és homem não és nada!

Casa da Cultura, Setúbal, 11 Maio

Luiz Fagundes Duarte enche uma sala cheia. Conta do Antero conhecido e desconhecido, lê Antero, interpreta Antero. O romântico quis combater. O progressista emendava para poupar trabalho ao tipógrafo. O poeta usava a poesia para provocar e para seduzir. O poeta foi o seu tempo com tal intensidade que é agora o nosso.

Café Vitória, Porto, 12 Maio

Uma sala de vidro para ouvir Júlio Machado Vaz, Rui Reininho e João Paulo Meneses tecer loas aos aforismos da Inês [Menezes]. Estes «Amores…» davam filmes. Agora que estão escritos, são convites a entrar na brincadeira. Muito calor e flores que se prolongaram noite dentro.

Serralves, Porto, 13 Maio

Experimento ir e logo me apetece ficar «No Tempo Todo». Até por acontecerem mesas, deuses antigos, heróis. Afinal como nas outras linguagens, apesar das vigilâncias académicas, a pintura possui ainda alguns casos-limite, inclassificáveis, que resistem aos alinhamentos onde as historiografias os tentam arrumar, aquietar. Álvaro Lapa, portanto. Grande leitor, as suas aproximações ao texto são do território da chama, do fascínio, no modo como o integra, na jogo cómico e lúdico com o pensamento até ao ponto em que as letras se desfazem em formas, passam a ser corpos apenas, seres que esvoaçam de quadro em quatro. No gesto, nas cores, no olhar, algo de primordial acontece. E convida-nos a mudar maneiras. Veja-se este (aqui na página, por gentileza da Fundação Serralves): « – Em que pensas? / – No tempo todo.» O texto surge singelamente como mais uma forma do negro, na sucessão das manchas. Equilíbrios e desequilíbrios que umas lâminas de cor ajudam a compor. O tempo fez aqui das suas, afectou a matéria, deu ar acabado ao que parecia inacabado. Rasga-se aqui uma janela na qual podemos ver que subidas e descidas, cabeças e montanha. A noite e uma conversa. Grande, grande exposição, que brilhará na noite mais obscura, graças ao saber de Miguel von Haffe Pérez.

(Detalhe divertido, que o divertiria a ele, amante dos “materiais pobres”: um agrafo, no jargão museológico, passou a ser “elemento metálico”).

Adega Sports Bar, Porto, 13 Maio

Em boa companhia, vejo o Sporting soçobrar, desistir, sem chama. Aquele “frango” de Rui Patrício fica como o retrato da época na minha caderneta.

Pinguim Café, Porto, 13 Maio

«Quero risco, aventura, novidade.» Noite fria, meia dúzia de gatos-pingados sentiram na pele a voz marítima do João [Rios]. Sem solenidade falou do país, que é ele. «Conquistar é péssimo!» Neste dia tão particular, naquele sítio mítico, era dado início às comemorações oficial dos 25 anos da poesia de João Rios, que ainda não tinha feito as contas. Comissários oficiais: Mário Cesariny e Manuel António Pina (gatos).

30 Mai 2018

Quando a capa se faz lugar

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] useu José Malhoa, Caldas da Rainha, 14 Abril
A tarde abriu enorme e coube ainda assim aconchegada pela conversa no edifício, primeiro pensado de raiz entre nós para ser museu, não-lugar do novo sagrado destinado a acolher paisagens e figuras de um espaço e um tempo que parecem já só existir aqui. Ainda nos arredores de Imaginário, quase a desmentir esta ideia de ruralidade que se dissipa, ou, pelo contrário, a confirmar fantasmas e dores, trouxemos «A Festa dos Caçadores», do Henrique [Manuel Bento Fialho]. As razões para o meu entusiasmo são múltiplas, mas devo conter-me, contê-lo, ao entusiasmo, lê-lo e relê-lo, afastar-me dele, procurar gralhas e melhor desenho de página, capa ou contracapa, e continuo a falar do entusiasmo. Este livro apresenta-se-nos carregado de livros nas entrelinhas, ou melhor: pejado de leituras. Cheguei ao Henrique por via das suas excelentes leituras, a conferir em Antologia do Esquecimento (https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/). O livro como objecto e entidade aparece aqui e ali, a evocar a sua condição de bom livreiro e portanto observador, olhando de esguelha certas relações com o bicho, e não tanto enchendo a prosa de citações, que também as há, embora na justa medida do bom tempero. Folheando, a Festa é uma colectânea de contos, uns morais, outros de prosa poética, parábolas aqui, anedotas além, relâmpagos luminosos de pensamento, frase ora despojada ora barroca, rica e variada, bem-humorada q.b., com música e várias infâncias a servir de fundo, além da omnipresente pitada de amargor, como agora se aplica à cerveja que abre caminhos. Será tudo isso, sem deixar de ser «retrato fragmentário da primeira geração de portugueses criada em democracia», diz o autor, que continua. «De um mundo rural em vias de extinção à deslocação urbana, acompanhada de sensações de exílio, solidão e desenraizamento, as personagens destes contos acabam por se fixar num lugar sem espaço nem tempo, nos “desastres de uma vida perdida algures pelo caminho como farrapos de roupa comidos pelo tempo”». Será a voz do narrador? Outro jogo, que aproveita com habilidade os farrapos narrativos que podem ou não agregar estes fragmentos, assenta nos saltos de lugar entre autor e narrador, entre a reflexão e o episódio, entre o íntimo e o disperso. Tanto estou na pele de Henrique como me vejo assistir à dissociação na mente das personagens, que duvidam em permanência do que lhes acontece. Além do amargor, a prosa perfuma-se muito de absurdo: talvez existamos apenas na cabeça de alguém, sonho de uma sombra. Parece-me, portanto, único este volume de 320 páginas de contos a acreditar que poderão ser outra coisa. E também por causa do tempo e outros detalhes maneiros: a areia, seu maior sinal. Ou o silêncio. Assim a própria, há por aqui torto e a direito grãos, suavizando ou incomodando, assinalando que mesmo a rocha maior se pode desfazer, que as mãos não conseguem segurar, que os rastros se apagam de um sopro, que o deserto cresce. Lá para o fim, reza assim o riso escondido nas vértebras das pedras: «Pedi desculpa por me estar a meter na conversa e reforcei que sabia do que ele precisava. Ele olhou-me com reprovação, as devotas olharam-me com desconfiança, olham-me sempre com desconfiança, e eu, agora metido num fosso do qual não teria saída, rematei: o senhor precisa de começar a beber e a fumar. E, já agora, precisa de uma mulher. Precisa de se divertir, O senhor precisa de esquecer que o mundo existe, precisa de esquecer-se de si próprio, precisa de criar na sua vida momentos de interrupção, precisa de ler e de escrever como se não houvesse nada mais importante sobre a terra, precisa de alimentar os seus medos e as suas frustrações com o veneno da indiferença, precisa de dizer adeus ao passado e, se lhe não for doloroso, ao próprio futuro. Precisa, desculpe-me a expressão, de cagar para o futuro e procurar no presente o riso escondido nas vértebras das pedras. Desculpe-me estar a fazer poesia, é defeito meu. Não dura muito. Já a seguir vem o silêncio, voltamos as costas uns aos outros e caminharemos, cada qual para a sua vida, como se arrastássemos o deserto inteiro atrás de nós. O senhor não precisa de mim, mas precisa ainda menos de si.»
O Henrique só conheceu agora, neste fim-de-semana prenhe de intensidades, anedotas e contos de moralidade difusa, o Sal [Nunkachov] que lhe encontrou o rosto exacto para o livro (algures nesta página), além de interstícios, galhos quebrados, rasgões, sinais que exigem atenção total ao objecto-livro. Quando ma mandou era contracapa tímida, mas a colagem dizia de tal modo caminho e corpo, natureza e espelho que me pareceu o lugar certo para dizer festa e silêncio. O tom sépia agrava a nostalgia.

Caixa de Brinquedos, Paredes de Coura, 21 Abril
No meio dos legos, em evento não anunciado e contra-corrente, antes mesmo do concerto dos Mata Ratos, com a Joana Bagulho a lança-los de cravo em riste e o António [Caeiro] a gritar juvenis entusiasmos sem temo, o Vitor [Paulo Pereira] introduziu uma História que cada um tem por contar, mas que o João [Rios] começou já. De fato-macaco azulão disse da alegria bruta, comoveu com os afectos que vão definem o corpo vital que somos e disparou, como areia para os olhos, cantilenas, cançonetas e modinhas: «não é grave ser português/ jogar a lágrima no bagaço/ perder lança e verso raro/ e soltar um touro às cegas/ contra a nossa pequenez// nem é assaz fatal a doença/ nem será adulterada a raça/ por ter-se sumido no nevoeiro/ a fé num milagre bem maneiro/ que nos enrijeceria de uma vez».

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio
Está sempre a acontecer-me, pelo que dará a ajuda na explicação da potência da canção, por mais tola. Mal me vejo soçobrar, meia dúzia de versos distendidos sobre a melodia logo me erguem pelos ombros. Raras são as vezes que consigo a leveza, donde momentos assim oferecem-me matéria de nuvem, raridade de sopro, rasgão mística. (Também podem advir em conversa, mas a música dá-lhes corpo distinto. Do mesmo modo, podem ser apenas som, mas algo se perde nos interstícios.) Willie Nelson navega por perto há muitas luas, por que raio haveria de duvidar da sua capacidade para me interpelar nesta sua idade? Last Man Standing veste o camuflado da banalidade competente, mas atira-nos à cara a simplicidade dos mais venenosos pensamentos sobre a morte, o quotidiano, a solidão. Não mais que uma pérola por tema, pronta a rodar nas nossas mãos algures em banco de jardim, em praça soalheira, no varandão, deixando que a tarde caia: «I been sittin’ around countin’ my blessings/ Thinkin’ of friends here and gone/ Recallin’ the smile across somebody’s face/ Whenever I’d sing her a song». Não cantei assim tantas canções, por mau jeito, mas chorei já a minha dose de amigos: o mundo sabe ser pouco mais que canção triste. «When you lose the one you love/ You think your world has ended/ You think your world will be a waste of life/ Without them in it// You feel there’s no way to go on/ Life is just a sad, sad song/ But love is bigger than us all/The end is not the end at all.» Até já, Jorge.

9 Mai 2018

Amor e atitude

Praça da Fruta, Caldas da Rainha, 14 Abril

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]vancemos pelo resto, ainda nos arredores de Imaginário. Os encontros que perturbaram a tepidez caldense tiveram os livros por mesa e cadeira, circunstância e pretexto. As nuvens na manhã de sábado não cumpriram a ameaça, permitindo-nos trocar a bela mas exígua capela de S. Sebastião pelo átrio do posto de turismo. Haveria melhor lugar para enfrentar «O Processo de Camilo» do que esta antiga cadeia? E melhor leitor do que juiz dado à escrita e amante da História? Temos pois, em breve volume da colecção Fósforo, a que mais nos tem crescido, retrato literário de Camilo Castelo Branco pintado a partir dos seus principais biógrafos, com Aquilino, Agustina e Pascoaes à cabeça, antes de entrarmos nos detalhes do auto que julgou o escândalo de um amor.

Juiz desembargador, agora na Relação do Porto, o Carlos [Querido] encena pequena peça que inclui como personagens advogados, juízes e demais autoridades, seja o rei D. Pedro V, cujas visitas ao escritor acaba por lhe transformar a prisão em hotel. O Porto, escandalizado com o adultério, vê-se provocado ao estupor pelos passeios ostensivos do amante de Ana Plácido. «Então era verdade», escreve Aquilino a propósito dos «murmúrios» que atravessavam a cidade, «que havia outra soberania além da do dinheiro? Fazer livros tinha mais mérito do que vender o riscado e o cordovão, lançar uma conta no deve e haver, gerir uma sapataria?» Camilo escreve desalmadamente, mas contra o desespero da situação e a ansiedade pelo desfecho. Ana está, também ela presa, e não apenas dos seus desejos. De tão sintético, Carlos escreveu entrada de dicionário, mas permite-se o comentário, ainda que ligeiro, dos que se apaixonam pelo objecto da investigação. «Na sua pluralidade semântica, os autos, para além de narração processual, podem ser peças dramáticas.» O último acto será o julgamento, com todos os ingredientes do drama romântico, a que não faltam evacuações de sala, desfalecimentos, apuramento de linhagens genéticas por especialistas de renome. O júri acaba por absolver os amantes. Não em nome do amor livre e legítimo que, percebe-se, comove o autor do ensaio, mas com o argumento jurídico de que a prova não foi feita. Camilo, que não se dava mal com o conforto do quarto, só abandona obrigado a Cadeia da Relação, hoje Centro Português de Fotografia, origem da carte de visite que acolhe o leitor nas primeiras páginas. A pose será clássica, mas o olhar algo perdido conserva uma tristeza que nem o ondulante bigode esconde.

Gracal, Caldas da Rainha, 15 Abril

Mais simbólica (haverá algures terra assim baptizada?): entre vetustas impressoras, nas vísceras da gráfica com pergaminhos que o imprimiu, apresentamos à sociedade objecto especialíssimo, mesmo não tendo como suplemento o azulejo do Mário [Reis] no qual dois gatos praticam o yin e o yang (exclusivo da edição especial). «Una Piccola Storia d’Amore – Rafael Bordalo Pinheiro e Maria Visconti», da Isabel [Castanheira], que revela os detalhes de outro amor proibido, possui qualquer coisa de peça de cerâmica quebrada. Mas que reencontrou a unidade graças a ancestrais saberes. A Isabel recolheu com extremoso cuidado, não apenas documentos inéditos, por exemplo, as cartas de Visconti que atestam, de uma vez por todas, a conjugalidade do par, mas cada uma das peças de cerâmica, dos objectos, vinhetas, desenhos ou fotografias que testemunham a paixão de Rafael pelo teatro, primeiro, pelas mulheres, depois, e, antes do mais, pela actriz que representa o papel principal. Descreve, transcreve, contextualiza. Arrisca interpretações, sorri, indigna-se, aproxima-se, espreita. Comove-se. Vem o Miguel [Macedo] recolher os fragmentos e compor melodia gráfica feita de rigor e pormenor. Escolhe o vermelho paixão para comentário e também costura do caderno, que este traz cicatriz no lugar de lombada. Abre cortantes, na frente e no verso, para que as badanas revele os rostos fotográficos dos amantes. Alinha depois, com regular cadência, os despojos que a respigadora coligiu e cola-os ao texto criando um nexo que explode em minúcias, que brilha no conjunto, álbum portátil, caderno de recortes e memorabilia. Não consigo parar de o folhear, de me perder nos manuscritos facsimilados, nos desenhos de vida e de morte, nas assinaturas, na mudança das fontes, no trabalho dos corpos. Em fundo, como um rio, a história. E o amor, os amores.

Paredes de Coura, 21 de Abril

Subo na tentativa, só ali concretizada, de REALIZAR:poesia. Na bagagem, três novos títulos da colecção Mão Dita que, somados ao primeiro, já lhe definem um rosto. Isto das colecções, em tempos, terá sido argumento de venda, modo de prender o leitor a um conjunto, mais do que à unidade, invariavelmente dada à soltura, à perdição. Hoje, com o desvario de títulos, surge-me quase só como modo de organizar a cabeça dos organizadores, dos editores. Haverá coleccionadores, bem sei, mestres supremos da obsessão e do método, mas estão longe de ser comuns leitores. O lugar e a ocasião têm muito que se lhe diga, com a estimulante culpa desta «genética desobediente da criação e da poética» atribuível ao Isaque [Ferreira] e equipa, bem como como ao Vítor [Paulo Pereira], o carismático e irrequieto presidente. Imagine-se que, doravante, os ofícios camarários terão por rodapé pequenos poemas de autores contemporâneos: Fernando Guimarães, Jorge Sousa Braga, Pedro Mexia, Ricardo Marques, Rui Lage, Nuno Moura e Vasco Gato. Chamaram à ideia, no ano em que o punk foi convidado de honra, «Poesia Oficial». A atitude desafiadora não tem pertença ou filiação, não precisa ser gritada, não se faz seita, não carece de guardiões do templo, apenas se chega à frente sendo. Na cerimónia fundadora, coube-me em sorte aquele que traz, de Fernando Guimarães, a «INSCRIÇÃO// Escuta a voz/ que traz a harmonia/ dos rios que prolongam/ em nós a poesia.»

Vila Lisa, Mexilhoeira, 28 Abril

Anda por aqui um norte que levanta as folhas caídas desta Primavera travestida de Inverno: o Tondela derrotou o Benfica, o Sporting venceu o Portimonense aqui tão ao lado que me pareceu ouvir as alegrias do golo. Em excelente companhia viemos saudar esta dupla imbatível, seja na defesa como no ataque. Rezou assim e por ordem o cardápio das singelezas, com o Vila por perto e o Lisa ao comando do navio: Batatas de cu para o ar, alhada de raia, lula ovada, canja de conquilhas, choco com batata-doce e ervilhas, carne de porco com miga gata e, grand finale, sopa de rabo de boi com grão. À laia de posfácio, conte-se as energéticas bolas de figo com amêndoa e a levíssima aguardente.

3 Mai 2018

Exorcismos de Inverno

Facebook, 1 Abril

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda não fiz as contas do que devo à televisão. Não conto pagá-las, apenas dar de beber à curiosidade. Na lista teria de incluir Steven Bocho (1943-2018), muito por causa dos policiais onde os polícias eram humanos, nada óbvio em tempos de juvenil exaltação. Hill Street Blues tinha qualquer coisa de reportagem entretecida nos fios da narrativa. Vieram depois outras séries, talvez mais apuradas e sempre tendo em fundo o melancólico azul, como NYPD Blue, mas as primeiras vezes não perdem aquele sabor a infância. Os detectives que Dennis Franz interpretou em ambas conversam amiúde comigo. Saravah, Steven da minha criação.

Facebook, 13 Abril

Muitas imagens despontam no acanhado quintal da memória. E queria partir agora mesmo em direcção a Goya, companheiro maior na peregrinação das sombras. Gosto de imaginar o circunflexo invertido pássaro a pousar no nome de Miloš Forman (1932-2018), bombeiro dançarino para quem a loucura normal pode ser um nó na garganta dos dias. Chorei Voando Sobre Um Ninho de Cucos, gigante cartaz anunciando a liberdade, o poder do afecto e da ternura, os actores que se tornam árvores do humano, desde que deviamente regadas. Saravah, Miloš da criação.

Horta Seca, Lisboa, 9 Abril

Como voltar a dizer o mesmo vezes sem conta? Por milhentas circunstâncias, migalhas e missangas, escolhos e encolhos, fui praticando o desporto de preguiçosas perícias, a procrastinação, e vi-me com a bomba nas mãos. Pior: a minha costela maternal afeiçoou-se e dou por mim a gostar do atraso, a beijá-lo com mil ainda que urgentes cuidados. Algo se perderá nesta terra húmida, potenciando o nascimento da flor do erro, mas na minha horta amanha-se assim o sol, sendo agora tarde para mudar de manhã. Andei doido a terminar projecto de anos. Bartoon, a coluna deitada do mano Luís [Afonso] ergue-se há 25 anos no Público e queríamos celebrar a data soprando alma. Pedimos a outras tantas figuras, amigas, cultas, ridentes, que nos escolhessem exemplos do bom humor, da lógica extrema, da aguda crítica, da amarga tirada para depois a colou em andamento de páginas regido pelo Jorge [Silva]. Cruzei caminhos com o Luís há tantos caminhos e sóis que não sei se somos índios da mesma tribo ou cobóis em duelo de fim de contas.

Confirmo apenas, como escrevi a primeira vez que o expusemos aqui em tratos de abertura da galeria e a contar já com este livro, que «o seu pequeno mundo mantém um capital explosivo que nem sempre é fácil de explicar. A simplicidade é, talvez, o principal dos componentes. Não procurou o autor o esplendor gráfico, apenas uma cadência minimal repetitiva que serve de baixo contínuo para as inúmeras e pirotécnicas variações da palavra escrita. Nada nos perturba nos minutos, se tanto, que demora o despertar da gargalhada. Com extremo cuidado ético, quase sempre levando ao máximo as consequências do que é dito na esfera mediática, acentuando de modo único o absurdo dito sobretudo pela política, afinal o satélite mais querido da tal esfera. Mas aquela simplicidade deixa esconder um jogo, de linguagem claro, mas que usa um sem número de personagens, orquestrada pelo barman, que estimula, provoca e comenta (também com corpo mínimo).

Desenho e língua, tudo neste palco de papel se ajusta em mecanismo de relojoeiro para nos atirar do material mais explosivo que a criação possui: uma ideia.» Nisto, aconteceu turbilhão de noites sem dormir e viçosas ânsias que durou até ao último e adiado ao máximo instante, para desespero de quem sofre os polés da produção. Não estão a bem ver. Por razões que nem sei explicar, ainda que a culpa me pertença, laborámos até à última hora em formato que não era o combinado, desesperei por respostas por chegar, desencontrei-me das que tinha há anos, ia-me esquecendo de recolher os frutos de outras sementeiras. No rol dos milagres, acrescentei mais um.

Por saboroso acaso, no meio disto e por com ele ter enchido as madrugadas, entrei na carne do novo álbum do Sérgio [Godinho], Nação Valente. Embirro com o título, por desgosto com a noção de nação e desprezo pelas valentias de capoeira, mas desponta ironia que me escapava. De igual modo, não me soava bem o nome da brutal canção de abertura, Grão da mesma mó, descobrindo-lhe ruralismo serôdio de quem vive na cidade moendo fascínios pelo campo. Ouvi melhor o que começa apenas dizendo e depois corre a cantar antes de regressar ao dizer caminhando. Canta alto o tempo, este que mói, fala de porções da vida, dos dias em que nada acontece, fazeres e afazeres. Desfazeres. «Vê lá o que fazes, há/ tanto a fazer/ Fazes que fazes/Ou pões sementes a crescer?», diz o coro grego antes do remate: «E as palavras tornam-se esparsas/ Assumes/ fazes que disfarças/ Escolhes paixões, ciúmes/ Tragédias e farsas/ E faças o que faças/ Por vales e cumes/ Encontras-te a sós, só/ Grão a grão acompanhado e só/ Grão da mesma mó/ Grão da mesma mó». E se o grão não for de trigo, cevada ou centeio, mas fragmento de pedra, minuto de granito ou segundo de quartzo? O barman tem semeado restos de cotão, talvez mais, nos bolsos dos que caminham. Por querer mais que a vida. Todos os dias.

Cruzes, Caldas da Rainha, 13 Abril

O plano muda e estamos no meio de um arremedo de serra, certamente a recuperar de fogos antigos, a digerir aquelas mesmas palavras do Sérgio. Estamos – a [Maria do] Céu [Santos] e o Carlos [Querido] mais o António [de Castro Caeiro] – e a digerir ainda faustoso almoço, um festival de carnes como só a Tabena do Manelvina por ali é capaz de fornecer. Acontecia a Abysmo a (des)organizar o seu exorcismo de Inverno, na boa definição do mano [José] Anjos. Explico-me. Na sequência do convívio com o Jacinto [Gameiro] e a Cecília, do Casal da Eira Branca, projecto que converte turismo rural em arte de bem acolher, resolvemos alargar os vários encontros que o modesto Oeste nos tem proporcionado aos mais díspares lugares, museus e colectividades, capelas e antigas prisões, gráficas e bibliotecas, escolas e lojas.

Começámos por convocar alguns dos autores da casa, mais ou menos conhecidos, da ficção como do ensaio, da poesia como da ilustração e da fotografia, mas em busca de interacção com a cultura e os seus actores locais, propondo-nos ainda ir ao encontro de faixas da população alheadas, de costume, destas iniciativas.

Abysmo nos arredores de Imaginário, que assim se chamou para homenagear fantástico nome de terra, gastou três dias com feira do livro (com alguns pouco vistos), debates, sessões de poesia dita e musicada, concertos, lançamentos exclusivos (alguns de autores da região), performances e o mais que a imaginação alcançou. (A ilustração desta página saltou do cartaz e assina-se Mantraste, também ele autóctone, e que diz de raízes nas plumas, pés nas plumas e fragmentos que se articulam para apontar e dizer).

Resultado: a) o António [Caeiro] mudou vocações em sessão a partir do verso de Píndaro que diz sermos sonho de uma sombra em auditório cheio com centenas de jovens interessados e interessantes; b) não existe a viagem mas sem número de mameiras de a fazer em busca do nosso lugar, pessoal e intransmissível; c) atirar o barro à parede de museu de modo a capturar moscas de cerâmica e falhar resulta em aforismo: há cerâmica viva; d) ele há artistas capaz de explicar sorrindo as paisagens fazendo do castelo o espelho do poço; e) há quem faça centenas de quilómetros por amizade para dizer que as cores podem ser escritas; f) a máquina de fumos cria excelentes ambientes de cultivo mais ainda se a banda vocifera metal rural; g) a chuva intensa não perturba ou molha os maduros que na alta madrugada discutem a morte; h) o palco de uma biblioteca pode vorazmente acolher quem suba degraus para dizer; i) os encontros multiplicam-se em luxúria de sedas e cores e fazendas e generosidades se nos dermos a isso. O resto foram livros.

25 Abr 2018

Pontapés na bicicleta

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] orreu o Manel [Reis] (1947-2018), inventor sem registo de patente, senhor da liberdade. Vem dali vento, voo, escorre dali maré, descubro. Noite rimará doravante com cidade, conta sílabas e descobre o gosto, o gesto. Senta para ver, comenta, desdobra o horizonte, que não será nunca engomado, e colha o fruto por haver, a surpresa não pode ser nódoa, siga a elite construindo farol com medo da solidão, a querer um cheiro, antes do perfume. Sou de nenhures e ainda assim me custa vê-lo a atear fogos despropositados e tristes na louca pradaria de trufa da opinião a pedir mais e sempre mais ardências, despontando deslugar deslassado, carne mole de não lugar, coisa que não se pisa a não ser pelo dedo e olho, que ao mesmo tempo esfarela as palavras a fingir que não agridem, mas que depois risca a giz no ecrã o lugar que marca identidade e tribo como castelo de onde partir a partir, além de louças onde comer, as canelas que fazem o andar. Não entendo nem uns nem outros, que se fecham no arremessar dizeres fingindo que pensam, granito feito palavra. Agora que o intelectual se tornou insulto, a «ideia» virou pedra de calçada. Quanto mais escrevo, melhor percebo que despertenço, que falhei no modo de ser grupo, que logo me disperso indo e vindo, maré a compor praia em noite fria. Nem da minha tribo creio que sou. Ponto. (E ao nada empresto a realidade.) Posso ser, apenas, brilhando, ou morando baço? Posso, em querendo. Os estilhaços do gozo de ir indo e acendendo hão-de atingir alguém, dos quietos dos moribundos, dos apagados. Foi de sem querer. O Manel alargou apenas as possibilidades. Sem desenhar fronteiras, sem ferir. Dando os bons dias, acolhendo as boas noites. Só porque sim. Entenda quem possa. Pare de explicar quem o respeite.

 

Bica do Sapato, Lisboa, 2 Abril

De tão bons intérpretes da vida, alguns lutos não param a festa. Estava cinza o rio, gerundiando em rima com o céu. Contudo, diferença se fez a maré de amigos convocados para assistir de pé à Inês [Meneses] brilhar enquanto explicava de que modo podem ser os «Amores (Im)Possíveis»: pela palavra, esticada ao além, por gozo e alegria. «Ela lembrou-lhe que o amor é fogo que arde sem se ver, e ele deu-lhe uns óculos.» As frases-projéctil parecem-me isso mesmo, óculos que nos fazem ver as ardências das aproximações e afastamentos que, em cada momento, nos definem. Vemos mais longe, também com a lente aberta do sorriso que se solta destas tiradas, colhidas no seu habitat natural, o facebook, de modo a tornarem-se objecto. Para o malabarismo de palavras e ideias, a Elisabete [Gomes] criou um palco ao baixo, de apenas duas cores e suas variantes, plantando ênfases e aumentando corpo de letra, respondendo com movimento à dinâmica das ilustrações-metáfora do Tiago Galo, figuras que nascem de massas de cor em jogos de ternura e confronto. Ainda por cima, ergueu as mãos à dimensão de personagens, das que dançam. Não me canso de folhear o livrinho, que cresce muito para além da sua dimensão, de tanta subtileza que esconde. Uma frescura.

 

São Luiz, Lisboa, 3 Abril

Para celebrar os 30 anos da Cotovia, a Fernanda [Mira Barros] organizou ciclo de conversas, no vizinho jardim de inverno onde as únicas plantas são pessoas. Calhou a de hoje tratar da sobrevivência das pequenas editoras. Serviu logo o pretexto para reencontrar o Vasco [Santos], da Fenda, que há muito não nos encontrávamos. Ficou por matar a saudade, pois a ocasião não pedia fado. Apesar do competente esforço da Mariana Oliveira, não aconteceu novidade ou conversa, com a Adriana C. Oliveira, da Flop, e o António Guerreiro, cronista do Público. De tão simples, o assunto fez-se complicado: são poucos os que lêem, menos ainda os que compram. A Flop usa a angariação de fundos para a «altíssima literatura» edita. A Fenda aconselhou o assalto aos bancos, mas não creio que o pratique. O resto foi o habitual negrume analítico do António Guerreiro expondo o dilúvio de lixo que enche o mercado. Não há saída, só esforço. Cansa-me que nos deixemos aprisionar pelas minúcias das finanças, sem nos concentrarmos na recorrente ausência de estratégias e colaborações.

Sem querer, o dia foi salvo pelo golo de Ronaldo na baliza de Buffon: sem desistir da jogada, vai à linha de fundo recuperar uma bola que parecia perdida, faz o passe e logo corre para a receber no lugar onde ludibria os defesas e vence a gravidade aos 2,40 metros para marcar com pontapé de bicicleta digno de um bailado. E o estádio da Juventus, rendido, aplaude-o. De mão no peito, o enorme jogador agradece. A Cotovia, em 30 anos, fez elegantíssimo trabalho de edição dos clássicos gregos onde se celebram heróis.

 

Horta Seca, Lisboa, 6 Abril

A chuva pesa no hoje, encerra-o em si, não abre o espaço à fruição, oferece tristezas líquidas, incómodos, restrições. Cá dentro, brilham singulares fulgores. Como bom Caleidoscópio (ilustração a propósito nas redondezas), um ligeiro movimento muda cores e perspectivas, sugere formas, outras leituras. Momento e movimento. O próprio conceito da exposição evoluiu e se deixou encaixar no demais que fazemos, nas pressas e adiamentos. O João [Fazenda], parceiro de tantas andanças, abre rasgos nas paredes como há muito não fazia. Traz uma pasta negra e pesada, como o dia, mas mal se abre muda o mundo, com perfumes e fauna e paisagens e corpos e flora e começos de história e ritmo e nada, tão só o resultado dos gestos sobre os materiais. Por um triz não nos atrasámos, de tanto e saboroso tempo gasto na escolha e encenação dos originais. Urbanita que é, muita atenção espraia pelas ruas, pelos mercados das cores que se juntam às vozes, pelos jardins onde os corpos se confundem com as plantas. Mas os interiores são palcos portáteis, uma cena banal só pelo prazer do traço, ou composição com outra densidade retratando alguém que esculpe. Gosto de imaginar este desenhador incansável a desenhar o chão que pisa, sem rectas, movediço e inconstante, somente feito de cruzamentos, de rotundas, de encruzilhadas, de entroncamentos, enfim, de multiplicadores de possibilidades. O João desenhou-se maestro de visões, condutor de olhares, manipulador de camas de gato, domador de espelhos e prismas. Mas o tema da exposição acontece ser o estilo: ao figurativo, a cor e desenhado com a cor ou a preto e branco, junta-se o abstrato em pastel, em grattage, a lápis de cor, a pincel. Na sua gramática, o vaivém entre linha fina e traço grosso ganha aqui a vantagem dos que correm mais rápido. Manchas, nuvens, incisões, traços, formas soltas que ocupam o espírito dos que se atrevem a olhar, a alinhar em confundir-se com paisagem, em ser paisagem. Parece que oiço na pele o discorrer do papel, o absorver da tinta de tão sensorial se faz o conjunto, a escolha das cores, a organização das linhas. Nas suas composições, o João costuma exercitar uma elegância explosiva, um conforto que nos atrai e pede para ficar, solar. Nalgumas destas indefinidas deixa entrar diferente energia, desequilíbrios de plástica bruteza, plúmbeas. Lá fora parou de chover.

 

18 Abr 2018

Paisagem e desequilíbrio

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]arraca, Lisboa, 23 Março

«Comecemos pela porta de entrada, esse laço incerto que quebra pragas e que quase une o desavindo com que a terra se faz oscilação, ilha, escora de magma, rua, céu, habitação, telhado, enfim: paisagem proscrita para que o poema desequilibre pelo menos uma parte essencial do mundo.» Abre (quase) assim a interpretação do Luís [Carmelo], lida com o fulgor habitual no lisboeta atiramento de de «Rua Antes do Céu», do José Luiz [Tavares]. Paisagem proscrita para que o poema desequilibre pelo menos uma parte essencial do mundo. Paisagem e desequilíbrio. De facto, vejo o Zé Luiz a subir e descer escarpas, tantas vezes em queda, de lugares muito seus, muitos céus, muito de costas para o mar, muita terra de dar gente. Descubro nos seus versos, a cada leitura, aguçada humanidade, que tanto fere como acaricia, feita de linguagem e consciente de uma obra, seja casa sem telhado. «Intentar o voo e estatelar no chão./ Do avesso, recolher de si e do mundo/ a parte perdida — assim se engendra/ um livro, nas sonoridades desajustadas,/ num enfrentamento que reclama/ a mão soberana no domar dos relinchos/ do monstro vivo que é a obra.» Este era um primeiro Umbral, depois substituído pelo publicado que se ouviu na voz gravada do Renato [Filipe Cardoso], chamando os amigos à função de celebrar esta parte essencial do mundo: «E é dos tropeços da vida// dos sonhos que só tinta/ da queda em seco/ a um sol/ sem mais aquelas/ que aos puros nus/ destapa// e como um verão de procelas/ desata/ o rapaz que foras tu/ entre rogos riso e praga». Paisagem, desequilíbrio mas também infância, que a pátria da inocência se desvela nesta epopeia que tropeça. Percorrer caminhos inóspitos ou alcatifados em contínuo estremecimento, recolhendo de si e do mundo partes perdidas, surge-me neste exacto momento como sinónimo do desconchavado trabalho de editor, arado e antena. Recomecemos.

Arquivo, Leiria, 24 Março

Uma sala cheia acolhe o Valério [Romão], cheia não apenas de gente, mas de interesse, com leituras feitas e opiniões por partilhar. Ternura, até. A Susana [Neves] distribuiu jogo com grande habilidade e aquele saber que só desponta em quem gosta e gosta de partilhar. O pretexto era «Cair Para Dentro», pelo que se esticou a família como pano de fundo, além do recorrente refrão da habilidade do autor para esculpir figuras femininas. Ouviram-se também, em toada habitual, aplausos para a capa do Alex [Gozblau], cujo trabalho se celebra e expõe, por este estes dias, em Paris, por iniciativa da Anne Lima, da Chandeigne. Cada capa da trilogia «Paternidades Falhadas» acabou sendo um caso, de acerto, digo eu. A de «Autismo» por nada conter além de brinquedo de pernas para o ar. Muitas desgraças nos foram anunciadas, por causa dessa mudez, e nem a lombada que, de tão grossa, gritava o título em parangonas, as minorava. O leitor, coitado, não seria capaz de perceber… Em «O da Joana» simulava-se um rasgão, com o branco-buraco a causar estranheza e dúvida. Esta mais recente tem rosto a desfazer-se, do mesmo modo que tantos se desfazem em elogios. Destoa, claro, mas não pretendemos outra coisa. (Algures nesta página uma primeira versão, ainda com título provisório.) Também as quatro ilustrações, que abrem sempre os volumes desta colecção, são distintas compondo simples e engenhosa narrativa. Depois de brinquedos e de lugares, temos finalmente figura humana: um rosto feminino que se apaga para deixar surgir outro. Dificilmente se encontraria melhor maneira de dizer ao leitor ao que irá, o ambiente que encontrará, a sugestão das personagens, se não mesmo o essencial do jogo.

Horta Seca, Lisboa, 25 Março

Morreu o Manuel Reis (1947-2018), inventor de noites e cidades. Em jornal seu, escrevi em tempos prosa dedicada a Cesariny, que agora lhe dedico, por ser também ele lugar de lugares. E por me faltar a palavra exacta.

«Algumas figuras crescem de modo assustador até se tornarem lugares. Pode chegar-se a Cesariny de muitas maneiras, mas a mais absorvente e nacional não haja dúvida que será esperar sentado que nos atinja de um golpe. Países há onde mar e mar os fazem ir e voltar, e só isso explica que haja países a dar a volta ao mundo atropelando escolhos e tédio e mortes. […]

Cesariny vem de um tempo em que viver era rasgar possibilidades, Mário, e as contas não foram ainda feitas, de Vasconcelos, pelo que não sabemos quanto lhe devemos em desejo e ventania, em confusão e lucidez, em verticalidade e camisolas de alças, inteireza e veludo com nódoas. Afiou cada âncora como palito, de maneira que os dentes acabaram por se tornar estrelas. Lugares irrequietos onde só se vislumbram regressos, como este, fazem-se difíceis de atracar aos mapas e só com muita sorte e acaso se conseguem indicações capazes de levar o viajante ao encontro da sua perdição, aquela que buscamos com íntimo desespero ao fugir-lhe. […]

Voltemos à paisagem de Cesariny atravessando como funâmbulos o fio do arame da voz por sobre os infernos e os outros. Sei que nada é preciso, nem navegar, nem respirar, menos ainda dançar ou fornicar, pelo que não teria sido necessário ouvir a sua voz como a ouvi escorrer aqui e além: quebradiça e cristalina, embaraçada e embaraçante, pendular e rastejante, áspera e cuspida, esculpindo nuvens ou arrepiando caminho. Não mais que uma palavra, um verso, vá, desde que impresso, no papel húmido ou na cassete pirada, funciona como chave, vá lá, para vencer as cores, as estações, as sombras, as distâncias, os medos. A melodia oscilante das palavras que cobrem o chão de Cesariny soa como gatos, uma pieira que resulta de estar entalada entre o grito e o sussurro, um nó na garganta da alegria como da tristeza. Um nó na garganta, vejo agora e oiço aqui, poderia ser uma pátria gigantesca. Como a língua, uma língua viscosa e vermelha que se agite da boca para fora numa careta kamikaze da vontade mas que cospe desafios ao bem-estar, ao bem-viver e ao bem-pensar. Faz-se desta carne uma rebeldia que bebeu na tradição do brinco e da perna de pau o riso escaninho e a respiração dos prazeres maldosos. Oiçamos bem o que foi recolhendo da vida esta asma conspirativa a ponto de se fazer uma terra. Quero ir passar uns tempos à terra, que sou de Cesariny. Esta altura que não está feita de beijos na boca, a voz cesarínea dizendo ou pintando ou escrevendo serve inutilmente para quebrar algumas nozes do mundo, para detectar o curto-circuito que liga em relâmpago as mãos e as coisas, para interpretar as letras com as quais dizemos uns aos outros a solidão, para trautear as canções-moscas com que alimentamos as plantas carnívoras, para engrossar o mijo com que vamos regando aos esses os cogumelos venenosos da floresta de enganos. Temos que entrar descalços a correr por esta noite escura sangrando os pés no bruto diamante cesaríneo.»

5 Abr 2018

Regras e pedras

TSF, Lisboa, 21 Março

 

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hamemos-lhe coincidência. Há anos que não estreitava o Fernando [Alves], assim de braços e mãos (as mão dele mexem que nem ramos), mas sobretudo de conversa, até que a poesia, no seu dia mundial, que também diz ser da árvore, fez-se pretexto para vir às torres de onde se divisa o trânsito, que parece bombear e ser bombeado pelo coração da cidade.

Talvez a metáfora se ajuste, mas custa-me a crer que seja o dos carros o movimento que vivifica Lisboa. Por um dia que seja a circulação de versos, muito para além deste concreto noticioso do lançamento dos Poetas Portugueses de Agora, versão dita e musicada pela Lisbon Poetry Orchestra.

O reencontro foi solar e energético, apesar de tintado pela melancolia, e temo não ter estado à altura do inquérito sempre desvelado e delicado do Fernando. Continuarão comigo dia afora alguns versos do Paulo José Miranda, ditos pelo [André] Gago: «a marcha/ o ritmo que nos é imposto/ o tudo que há para fazer/ tanto que não chegamos a horas/ os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dúvidas». Não matei as saudades.

Jardim da Parada, Lisboa, 21 Março

Corro para a montagem a Feira do Livro de Poesia, que a Casa Fernando Pessoa organiza no bairro cujas regras foram ditadas pelo [Fernando] Assis Pacheco. Reza uma delas: «não deixes nunca de contrastar os homens sobre as pedras». Os livros são boas pedras de contraste. No jardim não encontrei pedras que não as de calçada. Homens circulavam ou assentavam em minúcias de alheamento. Este ano, por via da chegada ao bairro do Espaço Llansol, a escritora sobrevoou a praça. Na véspera, ignorando que, para ela, «a ideia da poesia é a prosa», escolhi para levar apenas os livros de poesia e fiquei surpreendido: já enchem uma barraca. Queria pôr sobre a mesa negra apenas um livro por dia e convidar quem passava a entrar. Não era boa ideia, logo a realidade mo explicou. E depois também acrescentámos, a pedido, prosa e ilustração. Isto anda tudo ligado. Ou desligado: os folhetos ignoram as editoras e os livreiros que alinharam. «Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros, mesmo os inúteis», diz o Assis Pacheco.

Templo da Poesia, Oeiras, 21 Março

No cume do Parque dos Poetas desponta «Templo» que ainda não tinha visitado. Vista esplendorosa, horizonte esticado a verso do engenheiro, bizarra arquitectura cruzando insecto e nave, um vento de nos atirar para longe. Trocámos por miúdos o livro a que vínhamos, o navio dos de agora da LPO, para jornalistas curiosos e plateia rendida, prestes a zarpar. Andei por ali às voltas a tentar perceber a estranheza do lugar. Ecoou outra regra, tão boa, do Pacheco. «Saboreia os teus trajectos com uma paixão minuciosa».

Auditório Ruy de Carvalho, Carnaxide, 21 Março

Perante uma plateia calorosa, assistimos à dança, por vezes combate, das altas vozes com a música luxuriosa, enriquecida para a ocasião com o quarteto de cordas Naked Lunch. São variadas as paisagens sonoras, permitindo e até solicitando a dureza, a suavidade, a interpelação daas leituras, quando um corpo se desloca do escuro para chegar à frente e dizer. Aqui e agora, vestem-se os diseurs de personagens principais, primordiais leitores. Os poetas recolheram-se ao silêncio criador, depois de terem respondido às melodias lançadas, ainda assim conservando o que possuem de único, o que acrescentam ao hoje das letras. E acrescentam bastante: pensamento, ritmo, crueza, experiência. Dita aqui e assim, para palco e auditório, a palavra, o verso, o poema transfigura-se, ganha tonalidades, formas, um corpo distinto. Prevejo até que vá mudando de concerto para concerto, de uma audição para outra, mesmo em casa. Daí o diálogo que o livro procura estimular, com convite ao desenho, à colagem, às notas, ao constante regresso. (A foto de Vitorino Coragem reúne os «criminosos»).

CCB, Lisboa, 22 Março

Neste Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta), gerido desta vez pela Dina Soares, cruzaram-se o [António] Valdemar, a interpretar Almada Negreiros como se de cidade se tratasse, desenhando com absoluta liberdade as personagens que a habitam, e a Aldina Duarte trauteando o luto e o amor e a espiritualidade a partir de Llansol (e outros), sem perder a raiz do fado. Gente assim, cruza tudo, merece um bairro de íntegros cidadãos onde se possa aplicar nova regra assispachequiana: «Vive direito. Vive claro. Evita enganar-te neste ponto.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Março

Manda-me o José Luiz [Tavares] relatos de triste episódio triste, passado com ele à porta da Casa Fernando Pessoa. Disparei mensagens na vã tentativa de impedir que se alastrasse o mal-entendido, que outra coisa não poderá ter sido.

«Passados instantes entrevi, afirma um Zé Luiz travado na entrada quando se preparava para ouvir versão da Tabacaria em crioulo «uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança…». […] Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cuja tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. […] Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues.

Foi no bairro de Campo de Ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.» A sensibilidade não se ensina, cultiva-se. Lá diz o mestre, «pratica a arte da boa vizinhança: estás numa terra pequena, não sejas opaco».

Titanic Sur Mer, Lisboa, 22 Março

Quando me encontro perdido, não procuro orientação, mas jazz. Nenhuma sustância me explica o modo como as coordenadas da percepção se desdobram (para baixo?, para cima?) em sólido alicerce. De ponte ou arranha-céus. Arrasto vários pesos, o das tarefas cumpridas, o das inacabadas e insatisfeitas, o da chuva que por acaso me dissolve, o dos gestos neutros que escondem na sombra a agressão, o das contas e navalhadas por ajustar. Não tenho aqui o meu whiskey, deixei no bengaleiro o parco carisma, abanco de olhos na linha de terra do palco, no Titanic demasiado acima do gelo, e espero que passe, na paragem certa, a do autocarro, os Lokomotiv, do Carlos [Barretto], do José Salgueiro e do Mário delgado, mai-lo seu comemorativo «Gnosis», título roubado ao [José] Anjos.

Percebo de imediato a bússola, pois tocam com o corpo. O instrumento dissolve-se em cada qual para subir ao palco, este que desafia, que chama a si o outro, com arranques e riffs e batidas, usando as mãos, os braços, os lábios para definir o etéreo. «Cair com Mãos nos Bolsos» (todo um programa intransmissível), ou o «Porta Líquida» podem servir para começo de conversa. Eles riem e o diogo do sorriso logo se torna corda a ressoar a cumplicidade, gozo, desafio, o andalá que tudo resolvia nos tempos da rua. Mal me apanho a deixar-me ir, o rock ergue-se sacrificando à energia, desbaratando a dita, beliscando a pele que pede repouso.

Na noite longa longuíssima dos que partem tudo com um sopro, a boa criação dos malcriados que inventam céu quando o ar lhes falta, que descobrem degrau quando o chão se move, em escuridões deste calibre precisamos mais uns dos outros. A arte feita trampolim, a âncora de súbito evola-se nuvem.

28 Mar 2018

Geometrias variáveis

[dropcap style=’circle’] F [/dropcap] acebook, Lisboa, 10 Março

O uso das fotos de perfil no livro das caras merecia umas horas de reflexão mais ou menos divertida. A mim interessa-me o gozo de compor suposta identidade da forma mais disparatada, comentando, representando, homenageando, espelhando, jogando, revelando, escondendo. Tenho repetido amiúde leões e agora volto a chamar Peyroteo ao rosto. Faria cem se fosse vivo, o jogador recordista de golos que gostava de ópera, coisa só assinalável nesta época de tão rica carestia (tanta oferta, tão pouco desejo). O Peyroteo continua a jogar comigo em conversas sem conta, tanto que gostava de lhe publicar biografia a sério, assim à maneira de Ruy Castro. Chamaram-lhe stradivarius, por ser o mais letal dos Cinco Violinos. Que instrumento gostaria de ser se fosse grande?

 

Horta Seca, Lisboa, 10 Março

Felinos escondem-se no verde da paisagem, em belo desenho da Inês Machado, logo na primeira página. Mais adiante a banda desenhada e mais desenhos, além de poema e texto solto. «Abyssal», revista de edição limitada e impressa em risografia, será o resultado mais duradoiro da primeira Festa Abyssal, uma mini-feira que queremos periódica, e neste querer incluem-se as vontades do Gonçalo [Duarte] e do Xavier [Almeida]. Além editores e/ou autores de projectos afins, como a Triciclo, a mostrarem os seus trabalhos de ourivesaria gráfica, teremos exposição convidada, no caso foi o Bruno Borges, com as suas massas dançantes, concertos e o mais que nos aprouver. Por exemplo, cerveja, numa proposta da Trevo, do João [Brazão] que alegrou a tarde chuvosa. «Abyssal» deu que ver, dá para ler e pode-se beber. Dura apenas um dia de cada vez.

 

Musicbox, Lisboa, 10 Março

Ainda não tinha tido oportunidade de ouver Beat Hotel, o projecto do André [Gago] em torno da poesia da Beat Generation. O trocadilho justifica-se pelo lado performativo do concerto, com a imagem a somar-se à voz e aos outros instrumentos, navegando ondas alterosas de rock, o propriamente dito, além do progressivo e do sinfónico, mas ainda de blues e jazz. Os poemas de Kerouac, Corso, Ginsberg, Ferlinghetti e Burroughs chegam quase a ser cantados, numa dança que me põe a pensar na geometria variável que a poesia dita vai desenhando. Onde começa a canção? Muita riqueza anda a acontecer por aqui. E pensar rima com dançar.

 

  1. Jorge, Lisboa, 16 Março

Ao contrário do que planeara, consegui apenas, e a muito custo, ir à sessão de competição das curtas portuguesas da Monstra, sinal maior da vontade do [Fernando] Galrito em nos pôr a ver animação. A qualidade do trabalho nacional não é nova para mim e este lote, sobretudo na variedade, comprova-o. A surpresa deu-se nos temas: a solidão e o trabalho infantil, a doença nas crianças, a agorafobia, a desertificação ou a crise económica foram alguns dos assuntos abordados, com mais ou menos densidade, com mais ou menos humor. O premiado «A Sonolenta», da Marta Monteiro, e a menção honrosa, «Água Mole», de Laura Gonçalves e Xá, são excelentes exemplos. Um conto de Tchekhov serviu para a Marta desenvolver uma narrativa encantatória e sensível sobre vidas condenadas desde cedo ao trabalho. O final não é feliz. «Água Mole» parte do real, as vozes, para contar da resistência ao esquecimento do nosso interior. Um careto tornado personagem acendeu-me uma esperança, a de que somos ainda capazes de revisitar a nossa tradição. Ainda me emocionei com o «Surpresa», do Paulo Patrício, também ele partindo de uma voz real para desenvolver fantasia gráfica sobre doença, hospitais e afecto. Noto agora que os sons foram presença forte, muito por causa de «Das Gavetas Nascem Sons», de Vitor Hugo Rocha, que fez sonoplastia da memória. «Razão Entre Dois Volumes», da Catarina [Sobral], compõe personagem que perde uma memória, um pensamento, uma emoção. Trata-se do sr. Cheio, parceiro do sr. Vazio que não encontra nada que preenche e por isso parte em viagem. Será menos real que as outras, esta história?

 

Horta Seca, Lisboa, 17 Março

Vou vivendo vários livros ao mesmo tempo, a pensar na cadência da frase, na profundidade de uma observação, a conversar com personagens, a dialogar, em silêncio ou não, com o autor, a vislumbrar a sombra do objecto. Matuto ainda no detalhe, nas inúmeras combinações a convocar para que se torne material um espírito volátil suscitado pelas letras. Depois, a urgência obriga-me a mergulhar como âncora em um apenas, aquele e não outro. Nos últimos dias foi «Poetas Portugueses de Agora», da Lisbon Poetry Orchestra. Primeiro foi a música do Tiago Inuit, Luís Bastos e Filipe Valentim, capitaneada pelo Alex Cortez a partir de busca da voz dos poetas, Cláudia R. Sampaio, Daniel Jonas, Filipa Leal, Paulo José Miranda e Valério Romão. Seguiu-se a harmonização das vozes deles com a dos diseurs, Paula Cortes, Nuno Miguel Guedes, André Gago e Miguel Borges. Muitas afinações depois, o papel começava a ser horizonte desenhado pelo Daniel Moreira, através de aproximações esboçadas em objectos e seres fragilizados pelo lápis, fragmentos de natureza, minerais e madeira, paisagens melancólicas, céus e paredes com sujidades, correcções a branco (exemplo algures na página). O livro chegou ontem, também ele concebido pelo Daniel como caderno de campo, diário de viagem, com páginas em branco para serem desenhadas pelos leitores a partir da experiência dos inúmeros concertos anunciados, ou do cd com vozes e música ou das palavras ou do silêncio. Hoje celebramos a exposição, não apenas de desenhos, mas da ideia que os sustentam, móveis que permitem aos que queiram sentar-se, ouvir, ler, desenhar. Uma janela apenas abre para outras linguagens, uma caixa com vista para a oficina do artista. , «Caderno de um Mundo Inacabado», assim se chama. O Daniel interpretou bem a força que se solta desta fragilidade, a palavra como ferida no joelho nascida do tropeção durante a corrida. Desenhou sobre o abysmo uma montanha que se pode tocar, subir com os dedos.

 

Horta Seca, Lisboa, 18 Março

O Ricardo [J. Rodrigues] que há muito me desafiara, resolveu em semana de aniversário extrair-me «lições de vida», coluna da Notícias Magazine hoje publicada. Perturba sempre qualquer coisa encarar a nossa imagem reflectida no olhar dos outros. A banda desenhada fez-se segunda pele da qual não mais me livrarei. Não me incomoda e atrevo-me a achar que percebo. O ziguezague do meu percurso não permite grandes conclusões, a não ser esta em me encontro e à qual cheguei para desbloquear crise da meia-idade: o editor no olho do furacão, ponto impróprio da geometria descritiva, que faz convergir no infinito os paralelos do aqui e agora.

 

21 Mar 2018

Papéis no parapeito

Horta Seca, Lisboa, 3 Março
O fecho da Pó dos Livros, em Lisboa, e da transferência da livraria do Miguel Carvalho do centro de Coimbra para o nenhures da internet, anunciados no mesmo dia, suscitaram intervenções abrindo talvez um debate. O tom de Pacheco Pereira (https://www.publico.pt/2018/03/03/culturaipsilon/opiniao/o-combate-civilizacional-pelos-livros-e-pela-leitura-1805167) vem tintado de catastrofismo, a que António Guerreiro (https://www.publico.pt/2018/03/09/culturaipsilon/opiniao/o-saudavel-odio-aos-livros-1805548) acrescenta uma pincelada de tremendismo anarquista. Muitos assuntos se embrulham neste, a suposta morte do objecto livro, a crise da leitura ou uma indústria escrava das armadilhas económicas em que se deixou enredar. Dou-lhes razão aqui e ali, sobretudo na crítica às análises preguiçosas, à ausência de estratégias colectivas, do estado e não apenas, às ideias feitas que se propagam à velocidade da luz.
«O problema não é substituir os livros por um ecrã de um telefone inteligente ou de um tablet – o problema é o mito perigoso de que a “leitura”, mesmo numa forma diferente, está a emigrar de um meio para outro, porque não está», diz Pacheco, que continua. «O que se está é a ler diferente, pior e menos, como se está a “saber” demasiado lixo – meia dúzia de performances rudimentares com as novas tecnologias – e pouco saber. A morte das livrarias é um aspecto desse soçobrar no lixo, mas infelizmente estão demasiado acompanhadas pela morte de muitas outras coisas, do valor do conhecimento, do silêncio, do tempo lento, da leitura, da verdade factual, e da usura da democracia.» Contudo, a democracia deu passos importantes para ir apagando o ódio à cultura da ditadura. Basta pensar na rede pública de bibliotecas, ou na outra de bibliotecas escolares, que deram passos enormes na defesa daquilo a que Pacheco chama valor civilizacional: «caminhar do fim do analfabetismo para uma qualificação da leitura como modo de dominar melhor o mundo e a vida de cada um.»
Perdida que foi a lentidão e o silêncio, editam-se títulos de mais, com tiragens cada vez mais reduzidas. Tem razão, Guerreiro: «não é o livro que está em perigo (esse, é produzido em abundância); o que está em perigo (e não faltam no últimos anos os gritos de alarme, um pouco por todo o lado) é precisamente o sector da literatura, do ensaísmo, da ciência e das humanidades, que foi, até ao momento em que a edição seguiu o modelo do consumo e da produção industrial, o tronco da actividade editorial. Tanto livro, tanto livro, mas a maior parte do património literário está completamente ausente da edição e, ainda mais, das livrarias. Podemos dizer que os livros gozam hoje de um prestígio que, na generalidade, já não merecem; e que não há maior injustiça do que o triunfo deste canibalismo do lixo editorial que, ainda por cima, se alimenta do capital simbólico daqueles que ele devora.» E sugere então, à maneira de Bakunine, «destruição que faça tábua rasa da ordem existente. Aguardamos com impaciência e pouca esperança um assalto total perpetrado por grandes destruidores.» Contudo, ainda há quem se esforce por construir património e memória, mesmo sendo difícil colocá-lo nas livrarias-vampiros de novidades, que são sempre a mesma habitualidade. E a edição tem conseguido manter-se algures lugar de resistência e laboratório de pensamento. Ainda que se esteja a ler pior, em país que não ama os livros, não creio que a solução seja baixar os braços, mas procurar criativamente, e usando as tecnologias, formas de encontrar leitores para os livros que interessam. Sim, não basta ser livro para ser bom. O embaratecimento da oficina gráfica e a democratização do ensino fez explodir a vontade de cada um se ver publicado. Eis um dos múltiplos charmes do livro, a ilusão de posteridade. Por outro lado, têm surgido algumas livrarias, apesar dos pesares, como a Leituria, a Tigre de Papel, a Menina e Moça ou a da Cossoul, para citar quatro, só em Lisboa, de personalidades bem distintas. Será um combate, e, por mim, destruía já a figura da consignação, mas também não acredito na ideia romântica de grandes destruidores. Não me rendo e por isso continuarei a contar a anedota da diferença entre o optimista e o pessimista. O primeiro acredita que este é o melhor dos mundos. O segundo também teme que sim.

Horta Seca, Lisboa, 5 Março
Pela mão amiga da Ana [Matos] sou recebido por um pequeno catálogo cheio de céu azul. E nuvens! «Luz Cega», do Cláudio [Garrudo], catálogo da exposição homónima na Travessa da Ermida, traz ainda uma edição especial, a 13/50, de um altocumulus a estender-se horizonte sobre o qual projectarei os dias seguintes. Este azul contém uma intensidade que nos interroga, que nos perturba, que nos humaniza. Nem o céu nos limita. A matéria da nuvem toca-me, de tão concreta.

Casa Fernando Pessoa, Lisboa, 7 Março
Esperava pela reunião e o dia estava chuvoso, mas o relâmpago aconteceu ali dentro. A meu lado, com a discrição e minúcia do ourives, brilhava o pequeno desenho no qual Mário Botas faz atravessar banqueiro careca e caixa d’óculos de anarquismos vários, um cavalo, uma casa, a cadeira de cerimónia, documento ou jornal debaixo do braço, um chapéu-de-chuva, inclinando-o em resposta à gravidade da situação. Veio do passado o momento em que conheci o anartista, em exposição de Pessoas seus, na Biblioteca Nacional onde entrei clandestino, por ser menor, para me extasiar a ponto de pedir autógrafo. Anda por perto, o singelo postal, cópia do original que agora me perturba. Por, de súbito, me surgir como possível retrato meu no papel de doido empreendedor? Espreitei outras peças do acervo da casa múltipla escolhidas pelo António Viana para «Os Deuses Debruçam-se do Parapeito da Escada», mas só aquela continuou a vibrar em mim.

Casa da Cultura, Setúbal, 9 Março
Antes de subir à sala José Afonso, para conversa animada pela Rosa [Azevedo] sobre as quedas para dentro do Valério [Romão], tive tempo para experimentar a peça que a Estelle [Valente] encenou para rosto-palco da Carla [Maciel]. Não custa explicar a ideia por detrás de «Carla no Papel»: a actriz faz de outras actrizes, Marilyn, Marlene e Greta, personagens suas. (Exemplos nesta página.) Diz a Carla que foi «procurar nestes rostos míticos, que ascendem ao inatingível, a verdadeira essência destas heroínas.» Custa um pouco mais explicar a beleza explosiva disto. Os grandes formatos apresentam-se muito simplesmente, em jogo de espelhos, como ícones: estão ali os corpos e as almas daquelas figuras. Não tanto por força da máscara, da pose ou de qualquer outro artifício, mas pelo trabalho de personagem e a entrega da Carla que o olhar cúmplice da Estelle captou para esculpir com luz. Uma actriz pode bem ser fotografia, o papel onde deixa que se imprima o rosto das suas personagens, um céu de ler destinos. Carla no papel de Greta, de Marlene ou de Marilyn diz ainda que o abstracto tende a acontecer onde menos se espera.

14 Mar 2018

As mãos que tocam a luz

Santa Bárbara, Lisboa, 17 Fevereiro

Tinha passado há dias, na RTP2, mas quem ainda vê tevê na hora da emissão? «Un vrai faussaire», de Jean-Luc Léon sobre Guy Ribes, justifica mais do que um visionamento, tantas são as nuances, pinceladas no retrato do protagonista, marteladas na construção do mercado da arte, subsídios para as técnicas de imitação dos mestres. Bastariam logo os primeiros socalcos da biografia para o verdadeiro falsário se erguer personagem, com infância espraiada em bordel e cinema familiar, disciplinada pintura de tecidos e vivência de rua em Lyon, mas a gigantesca e cuidada produção e o complexo jogo de relações e modos de fazer confirmam que se tornou, ironicamente, artista.

Tout court. Enquanto desvelava, de pincel na mão e com líquida facilidade, um Matisse, que prometeu destruir uma vez acabado, foi discorrendo sobre o tempo de estudo e preparação que investia, acerca do cuidado com materiais e gestos que aprendeu de experiência, além da fulcral criação do seu próprio gosto, onde pontuava Chagall.

(Terei gasto namoro à volta de um falso?) A quantidade e a qualidade do que foi imitando e, sobretudo, o entendimento da mecânica (quântica) do sistema de certificação dos vários valores, sendo o artístico o menos importante, contaminou o sacrossanto mercado de tal modo que se estabeleceu estranho consenso: não apurar até às últimas consequências o que pertence, de facto, a quem. Por medo de tremendo cataclismo. Afinal, como Ribes bem afirma, é o falsário quem nos dá o que desejamos. Ao nosso preço.

Horta Seca, Lisboa, 1 Março

Outro traço se interrompeu. Artur Correia (1932-2018), de tão modesto, deixa-nos frames antes de receber o Prémio Sophia de Carreira pelo seu contributo para o desenvolvimento do cinema de animação. Pena tenho de não o ter chegado a homenageá-lo da maneira que me parece melhor: mostrando e pensando obra. Conservo religiosamente os ensinamentos da Família Prudêncio e, agricultor que nunca fui, uso os pesticidas com cuidado, (https://youtu.be/e7TfXfJrueQ). Em querendo desencantar memórias sobre o que foi o 25 de Abril de 1974, ajuda sempre uma releitura de «O País dos Cágados», que Artur desenhou para o texto de António Gomes Dalmeida. Há uma edição recente da Bertrand, mas prefiro a original, no mesmo preto e branco dos Prudêncio, coisa prévia. Saravah!

Chiado 8, Lisboa, 1 Março

Muito pelo esforço de João Miguel Barros, também ele fotógrafo com exposição no CCB (Photo-Metragens), e que encontrou na Ana [Fontoura], da Fidelidade, a melhor das interlocutoras, Lisboa virou sala panorâmica da fotografia chinesa contemporânea. Chegou a vez de Yank Yankang, que pendurou na Chiado 8, O Espelho do Alma e assim transfigurou a galeria em porto de abrigo, o palacete em capela. Em pleno bulício transnacional, cegueira turística, corrupio urbano-depressivo, abrem-se visões para o Tibete íntimo dos praticantes do budismo, para o bailado da fé com o natural, janelas para a neve, a nuvem, a montanha e o pássaro.

A ideia de clássico assenta neste rasgar de passagens entre os tempos, do ontem que perdurará no amanhã. Este preto e branco apresenta-se-nos cheio de cores e vozes. E temperaturas do espírito. Um monge, de costas para quem o veja, enfrenta o vale que se desfaz em sucessivos horizontes de cinza, com as vestes ondulantes a confundi-lo mais com a paisagem.

Na mão direita, um cajado rude ergue-se sinal único do humano. Aquele braço é a fé. Crianças-monge praticam a Dança do Dharma, diz a legenda, mas são quatro putos a brincar à apanhada com as sombras. Apenas o mais próximo de nós agarrou a sua com o pé, os outros voam presos nas gargalhadas. E são tantos os pássaros que perturbam os céus e os corpos a quererem sê-los. E a luz, onde Yankang tão bem os sabe conservar.

Sobre mesa minúscula, uma criança-monge assenta os Sutras que recita. Do outro lado de uma luminosa diagonal, monge (águia ou falcão ou emberiza-das-neves?) mais velho toca o tecido. A sombra resguarda-se na luz, que permite a aproximação de cada uma das nossas idades através do olhar (nesta página). Qual o lugar da fé?

Barraca, Lisboa, 2 Março

Considere-se atirado às feras leitoras o novo do Valério [Romão], concerto de fragmentos para duas vozes em desagregação sinfónica: «Cair Para Dentro». Na cadência dos avanços e recuos, nas cavalgadas interiores ou na dança dos diálogos, no compasso da poesia, nas descidas ao mais íntimo, nas cenas de identificável exterior, estende-se em pano de fundo o perfume da musicalidade.

Talvez atonal ou minimal ou impressionista, seguramente jazzística. Quando muitos esperavam uma qualquer pirotecnia na abordagem ou na construção, o Valério apurou o que tem de melhor e aplicou-o a um tema temível (assuntos aterradores são uma das suas melhores escolhas): alzheimer.

E nele se jogou por inteiro, brincando com a filosofia que aprendeu, fazendo do verso ferramenta, sem nunca perder o humor, mas deixando em aberto um final. Inevitável. Valério pede mais leitores que banhistas da narrativa. Na magnífica apresentação, Eric Nepomuceno, para além de assinalar as qualidades do «puta romance!», inscreveu-o no coração de íntima reflexão.

Dizia ele que, sem a memória, morreria. Viu amigos próximos esquecerem-se de si, presos por filamentos de afectos, um gesto, uma canção, um poema. Que bom seria ter crítica assim, capaz de fazer íntimo o assunto do que lê, sempre à distância do conforto. Depois houve festa. E tantas, mas tantas conversas interessantes que merecia ter ficado aboborando uns dias. E escrevê-las para não esquecer. Esqueci tanto, esqueço tanto, que chego a duvidar que viva.

Horta Seca, Lisboa, 4 Março

À minha volta, cada papel diz afazer, resposta por dar, ansiedades em ferida, atrasos gritantes, resolutas irresoluções. A magia da procrastinação acontece em todo o seu esplendor de derivas, de possibilidades, de leituras sem nexo, de ideias a pedir poda e rega. Parar o rodopio, afastar-me do feicebuque, calar os papéis um a um, de modo a permitir que outra respiração se instale custa cada vez mais. Por vezes, a música ajuda.

Noutras faz-se cavalo e planície, velocidade e acolhimento, convidando à viagem. Um dos encontros deste Correntes foi o Mû Mbana, perfil de príncipe e voz cava, de onde escorre a noite. (Aliás, aconteceram-me mais vozes: a do José Luiz [Tavares], em versão morna; a do Renato [Filipe Cardoso] trocadilhando em grave a palavra-armadilha; ou a do João [Rios], ripostando e ribombando).

O seu álbum Iñén corre em loop a baralhar-me as coordenadas, alargando espaços, dando nós ao tempo. Entre o sussurro e o grito, percorre altas profundidades descalço à flor da terra, com enorme riqueza de instrumentos, muitos deles recuperados ao esquecimento, por si tangidos da mesma maneira que a voz nos toca a nós: com delicadeza e fogo. Eis que o ponto de partida acontece ser esse meu velho fascínio: mãos, «as mais poderosas ferramentas que temos».

7 Mar 2018

Aparelhado para gostar de passarinhos

Metro, Lisboa, 21 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue imagens nos podem ainda chocar se a cada segundo o horror sobe e desce nos ecrãs que se fizeram pele do mundo? Da Síria chega-nos a conta-gotas cada um dos sinais da catástrofe, mas a nossa indiferença responde como tão bem sabe: quieta. Habituámo-nos à guerra, na lonjura ou no íntimo. Há 60 anos, lembro-me como ontem, em manifestada marcha contra o armamento nuclear, nascia um símbolo que me está algures tatuado.

O designer e objector de consciência à II Guerra Mundial, insisto, na segunda das grandes, Gerald Holtom (1914-1985) achou que a Campaign for Nuclear Disarmament (CND) precisava de um sinal gráfico que dissesse não. Começou por pensar na omnipresente cruz, mas afastou a ideia por cheirar a cruzadas. O desânimo que experimentava trouxe-lhe Goya e o desespero do camponês enfrentando o pelotão de fuzilamento, braços no ar e, com eles, o grito suspenso, juntou-lhe a sinalética das bandeiras dos navios para dizer o N e D, para Nuclear Disarmament, logo a antena ganhou raízes no globo, e assim concebeu forma universal de dizer paz. Os hippies tomaram-no de empréstimo para assinalar o coração e não mais deixou de vociferar esperança. Pode um símbolo vencer a realidade?

Correntes d’Escritas, Vermar, Póvoa, 21 Fevereiro

Entrada a pés juntos no festival deste ano, com tripla função logo à chegada: entalada entre a gravação do Obra Aberta, com a Manuela Ribeiro trazendo infâncias e o Afonso Cruz nomadismos, e a esforçada tentativa de conversa, sob o mote «as palavras são música de ninguém», com o Valério [Romão] e Valter Lobo, intérprete à guitarra de virtual Mediterrâneo, deu-se o lançamento do muito esperado fecho da trilogia Paternidades Falhadas, do Valério, de par com Rua Antes do Céu, do José Luiz [Tavares]. Arménio Vieira concentrou o seu olhar no percurso do conterrâneo, pouco entrando em obra, que resulta, afinal e ironicamente, da leitura autor sobre o seu próprio amadurecimento. Eric Nepomuceno, do seu lado, compôs calorosa canção em torno do romance. No meio da confusão habitual de bar subindo a noite, rasgaram-se relâmpagos que revelaram carne e ossatura de duas vozes únicas, irmanadas na invencionática.

Correntes, Garrett, Póvoa, 22 Fevereiro

Nunca havia atravessado a fronteira de vidro, subido as escadinhas do palco, escuro nas costas, a luz de frente, também ela quase fronteira, a tombar negro sobre os rostos em face. Desta vez, o reóstato modulou a visão da sala e a temperatura do orador, tornando aquela mais visível, e outra mais quente. A organização conhecia-me e reescreveu o nome no verso da minha legenda, assim diminuindo o risco de me esquecer de quem era, no momento de falar precisamente do que nada sei: «Escrevo para dizer aquilo que não sei». Ao meu lado, as ondas dos parceiros fizeram-se e desfizeram-se em curiosos murmúrios de m, de mar, de moçambique, de memória, de música. Geometricamente, agora que a minha escrita vai sendo sobretudo texto de outrem, falei das linhas onde me lêem, do campónio labor semanal desta hesitante escritura, caminho de mãos na terra, fiel companhia nas eróticas solidões, modos de reescrever sentidos em terreno onde talvez não se dêem. (Veja-se a foto assinada pelo arquivo da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, embora me tivesse parecido ver fotógrafo.) Ainda me despi, para a câmara do mano Luís [Gouveia Monteiro], em pequeno filme no qual vou retirando de um saco a colheita de minutos breves incarnando à minha volta o respigador cansado de simbólicos desperdícios.

Queria que servisse de pano de fundo a exercício de improvisação sobre o suposto tema, tornado prática habitual no miradouro de autores em que me encontro, embora nublado nos últimos meses. Falhou-me a coragem ou o contexto para o usar. Adiante veremos. Limitei-me a desferir o ar com golpes de verbo que só disseram de faces da letra e da vida desarrumada. Nada que não estivesse de maneira melhor nesta pedra que é O apanhador de desperdícios, de Manoel de Barros, lido com sotaque de quem se deixa afundar no céu pelo peso da voz. «Uso a palavra para compor meus silêncios./ Não gosto das palavras/ fatigadas de informar./ Dou mais respeito/ às que vivem de barriga no chão/ tipo água pedra sapo./ Entendo bem o sotaque das águas/ Dou respeito às coisas desimportantes/ e aos seres desimportantes./ Prezo insetos mais que aviões./ Prezo a velocidade/ das tartarugas mais que a dos mísseis./ Tenho em mim um atraso de nascença./ Eu fui aparelhado/ para gostar de passarinhos./ Tenho abundância de ser feliz por isso./ Meu quintal é maior do que o mundo./ Sou um apanhador de desperdícios:/ Amo os restos/ como as boas moscas./ Queria que a minha voz tivesse um formato/ de canto./ Porque eu não sou da informática:/ eu sou da invencionática./ Só uso a palavra para compor meus silêncios.»

Correntes, Garrett, Póvoa, 23 Fevereiro

Podem os dias ser raio deste calibre, deslize que nos livra das amarras da realidade feita cais de sal. Ver a Isabela Figueiredo tornar revolução visceral, portanto ao pé de casa, o alegre resgate por cactos de floreira pública e abandonada. Tocar o encantamento na voz de Mû Mbana desfiando as canções da sua Guiné natal, acerca do peso da beleza ou da língua estrangeira da infância, sem conseguir evitar cantá-las. Ouvir o Valério contar de encontro «verdadeiro» com personagem sua, alguém que pressentia na esquizofrenia um acto de Deus e que capturou com a pele o insuportável escaravelho da existência. Saborear o Jorge de Sousa Braga a falar de versos e estranhezas das bocas do corpo. E por junto sentir perfumes. O cacto exala?

Coquelicot, Póvoa, 23 Fevereiro

Que enormes! são os braços da Carla [Craveiro], pois se neles cabem as múltiplas e abysmadas vozes da Inês [Fonseca Santos], do Carlos [Quiroga], do Renato [Filipe Cardoso], e do João [Rios], e do Luís [Carmelo], ou do José Luiz ou do Valério, estrumando poemas seus, ou mais que seus, em meio de delicatessen, como sendo-o, que são, autores e poemas. E que bem se aconchegam os livros naquela ameaçadora! floresta de sentidos e sabores! Não esquecerei, por escrevê-lo, nem os mimos nem o saboroso que resultou de assistir à surpresa do Arménio [Vieira] vendo a Filipa [Leal] atirar-lhe de cor um dos seus, que o próprio temeu ser dos piores: «Menos que a chama de um fósforo/ é quanto dura o teu orgasmo/ À tua colecção de vidas breves/ acrescenta o amor/e a borboleta». O contexto em perfume afirmava-o: impossível ser dos piores.

28 Fev 2018

O assentar dos tijolos

CCB, Lisboa, 8 Fevereiro

Convém ouvir, orelha no chão, o pulsar da botânica, que soa hoje como cavalo-de-ferro. Antes entrar sussurrante por este Obra Aberta – que viu o Tónan Quito ser substituído à última hora pelo Miguel Castro Caldas, a pretexto dos clássicos e da Oresteia em cena – a solidão do Sandro William Junqueira acompanhou a minha por estes dias. Quero dizer: habitei os não-lugares comuns de «Quando as Girafas Baixam o Pescoço» (ed. Caminho). No coração do betão que construiu pulsa um sangue de personagens cujo nome resulta ser característica-ferramenta, com que faz e desfaz o entorno, com a qual se auto-desmontam para nos dar a ver o dentro, em bricolage de largo espectro. Parecem pequenos contos, de título pesado, significativo («Um pai atravessado na garganta»), tendo apenas a partilha do síto como fio de ligação. Parecem pequenos contos, mas são pinceladas de uma tela maior e caleidoscópica, de um romance que parece temer sê-lo, que se aproxima do real pelo avesso. Será este o mais estranhamente neorrealista dos romances contemporâneos? As personagens ganham a carne da proximidade e a narrativa enche-se de episódios e momentos, embrulha-se em novelo, ora de lã, ora de arame farpado. A prosa apresenta-se terreno húmido de subtilezas, de observações incandescentes, de atenção à natureza das coisas, à Natureza, de uma poética que nos explode algures (nas mãos?, nos olhos?): «A rosa é um fio de terra que se levanta». O Sandro trouxe o Manoel de Barros, esse «aparelhado para gostar de passarinhos», com interesse em falar da sua Poesia Toda (ed. Caminho) e acabou fazendo dele chave-de-fendas para o seu próprio texto, para o seu olhar sobre as palavras. E a leitura. Sandro calcorreia escolas e bibliotecas e outros lugares, talvez de betão, a dizer das vidas que se ganham e perdem no jogo da leitura. Da planta que se folheia, que se rega, que cresce. Uma inutilidade, sabemo-lo bem: «o que nos fode é a inteligência.» (Quem nos manda aceitar a utilidade para governo das nossas vidas?) Sobra por aqui muita melancolia. No finzinho do conto final, o Velho deita-se no canteiro de arma na mão e diz à laia de tenho dito: «Seja como for, estamos sempre sós./ Já ninguém ouve as rosas.» Não preciso comprar arma, tenho livro. Velho que sou, procuro canteiro.

 

Horta Seca, Lisboa, 11 Fevereiro

Tão pouco nos conhecemos que só posso rasgar aqui lamento. Culpa minha. Falámos de Stuart, longamente, de livros, por causa de bibliotecas, umas feitas, mudadas, vividas, mexidas, outras por fazer. Nunca falámos do José Gomes Ferreira, que iluminou e continua cada uma das minhas infâncias-lego. Perdeu-se inocências na tradução das gerações. Perde-se tanto no não falarmos. Partilhámos amigos, amigos queridos, gostos, batalhas, dores, lugares. Falámos tão pouco, por exemplo de. Arquitectura, sim, talvez possa ser, fio-de-prumo, o primevo contorno no mundo, bater de asas na neve, maceta e escopro na pedra bem escolhida, assentar do tijolo ainda que burro, cálculo do arco, leitura do espaço e aconchego. Não conheço mais humana casa da cultura do que a de Beja, desenhada nos múltiplos cruzamentos da tradição e da engenharia, ao gosto popular e com as visões do pensamento, seios que se amamentam da via láctea. Raul Hestnes Ferreira, discreto escultor do betão, deixou hoje de desenhar.

 

Instituto Industrial, Lisboa, 14 Fevereiro

Livrerso: o Pedro [Proença], aranhiço dos múltiplos sentidos, tem travestido como ninguém a rede em teia. Quantos dias passaram sem que produzisse projecto, exposição, palavra que me escapa, conceito que já foi, além daquele que mais interessa agora: livro no lugar nenhum e todos do em linha? Um dos seres ali nados e criados, John Rindpest (acessível no issuu), ganhou as dimensões do passeável em versão livro expandido e lá fomos ouvir a versão amiga do artista a dissertar acerca do vinil sobre parede, meia dúzia de pontos de não retorno a responder ao eterno Kafka e um mala de couro, chamada «Fuga», pronta a partir («poetry as art as poetry» na  Fundação Portuguesa das Comunicações, em parceria com a Galeria Bessa Pereira, até dia 23). O Pedro mastiga as artes (e o mundo) à velocidade do pensamento, pelo que não será de fácil digestão esta sua arte combinatória. Custa aceitar que o kairos pode acontecer em versão Ikea, pendurada em frases, armadas em inteligentes. «O que nos fode é a inteligência.» A ideia de livro que o Pedro tem abordado em cruzamento de espeleólogo e neurocirurgião merecia o exagero de uma Cordoaria para que também a sua mão talentosa pudesse servir a três dimensões esta visão crítica do universo das artes plásticas, desenvolvesse até ao máximo a contaminação entre texto e imagem, e mais entusiasmante, prolongasse o jogo que cria universos a partir do objecto-livro, respectiva gramática, pensadores ou artesãos.

 

Horta Seca, Lisboa, 15 Fevereiro

«Azul em jaguar turquesa», o Daniel [Lima] apareceu meio de surpresa para me trazer os papéis que resultaram das exposições perdidas por estes olhos que a terra há-de comer. «Figurasavulsas», na biblioteca de Viana [do Castelo], e a de Guimarães, da qual usei nome em abertura de parágrafo. A tarde desfez-se em camadas, planos, figuras, modos de representar na nossa conversa os assuntos. Montaram-se projectos, pedi empurrões em amigos, recolhi informações de nada sobre as experiências vividas a Norte. A visão e o modo de operar do Daniel, de tão literários, perturbam as nossas monotonias, insistem em parar a corrida para que possamos absorver, interpretar, deixar assentar. Na televisiva feérica pele do mundo, as suas composições rasgam um palco no qual o teatro é apenas uma das personagens (o cinema outra), mas tudo cosido pelo desejo de ficção (veja-se nesta página exemplo para «Por Mão Própria», de Luís Carmelo, ed. Abysmo). Nem todas as ilustrações são lanterna, algumas rasgam janelas.

 

Horta Seca, Lisboa, 17 Fevereiro

O Mário [Reis] mãos-de-barro reduziu, assim tornando pessoal e portátil, a banheira termal das Caldas da Rainha, um formato de ressonâncias romanas ou apenas romanescas. Pediu-me texto para inscrição na peça, desconhecendo o fascínio que dedico às águas. O desafio tocou na pele com estilete, suscitando com singular rapidez palavras de pó: «as nuvens pousam na quietude/ sob tal superfície perco corpo/ o banho tomou-me e o navio quedo se vai// verso ou sarcófago?»

 

CCB, Lisboa, 18 Fevereiro

O jeito que me dava acabar assim, na entrada anterior. Contudo, experimentei em palco a Isabel [Abreu] no palco da Oresteia a fazer-se o mais carnal dos insectos, corpo esticado ao limite da plasticina, voz de barro no coro do bom senso (não são todos?), ser transcendido a fio de palavra, a estender-se ao sopro dos elementos, mulher esquecida e amante, mãe assassina por mor de uma dor, mãe vítima de vingança óbvia (não são todas?), carne das trevas no plástico do negro. Actriz, que modo mais visceral há de dizer mulher?

21 Fev 2018

A Sul de nenhum Norte

Almodôvar, 6 Fevereiro 2018

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m habitual mastigação de projectos, atravesso o Alentejo com o Bruno [Portela], riscando o frio que mal se nota com um sol olímpico como só por aqui acontece, definindo o contorno de cada folha nos ramos, despertando a orquestra de cores, erguendo-se cenário para o fausto da terra. As más notícias parecem sinos a ressoar por mais tempo em dias destes, dos que fazem sentir o vento do juízo nos ossos. Saciada a fome com pão, azeitonas mal talhadas e outros frutos do lugar cumprimos a função nem sei se bem ou mal. Sabia-o de outras viagens, mas o Rui Cortes disse-mo com livro, parte de exposição vagabunda, agora no Museu Regional de Beja: a mais antiga escrita da Hispânia riscou a pedra neste Sudoeste há 2550 anos para esconjurar a morte. «Escrita no Baixo Alentejo – das origens aos nossos dias» apresenta o lavrar do caracter nos mais distintos suportes, xisto, mármore, cobre, pergaminho, papel, ecrã, fixando assuntos de administração, de direito, um pouco de vida, além da morte omnipresente. Brilha a grande altura a Estela do Guerreiro, oriunda de uma necrópole da Idade do Ferro, ma qual um homem em armas se mostra encerrado em quadrado de signos. Mantém-se fechada em enigma a escrita tartéssica, ao contrário das notas de Fialho de Almeida correndo linhas de agenda para médicos, na página que sugere píxides de caoutchouc endurecido para pulverizações à garganta. Ou do latim da lápide, de 663 d.C. que chora em mármore o passamento de uma «flor rara que mal fizera quinze anos»: «Aproximai-vos vós todos, igualmente lamentai comigo, porque morrer não é coisa nova! Chorai comigo todos quantos a causa da dor e a aflição da morte profundamente atingem!»

Mymosa, 8 Fevereiro 2018

Anseio, é sabido, por vida de gato, passear em dorso insinuante a enorme vantagem de apenas ser, com pelo e garras e susto e curiosidade. Respiro projectos, demasiados não ganharão corpo fora da nuvem que rego à grande távola dos encontros. Antes assim, a carne do real perde sempre um degrau na subida que imaginamos juntos. Uma nuvem-gato, fixo agora mesmo a figura do meu poder vir a querer ser. Falhado que foi o astronauta. Apesar da sombra de um desencontro maior, os dias da miséria não deixam de me oferecer encontros, que me enchem as mãos de raro. Rui [Cascais], já nos tínhamos sentado à mesa do tempo com tempo? Personagem de muita aventura por escrever, que não por contar, o Rui deposita-me, após viagem aos orientes e às etimologias, às traduções e aos corpos, às temperaturas e às interpretações, ao verbo ser nas múltiplas cores da geografia, deposita-me, na única forma bancária do termo que me interessa: nas mãos, o seu livro. Flâneur das línguas, em «Returning Home Dirty With The Light» (ed. COD, portanto, macaense) o Rui recolhe poemas em língua inglesa e portuguesa, estes mais enraizados no músculo do pensamento, os outros na observação dos movimentos do quotidiano ( …Could it all be about this/drop of sweat picking up… ), como copas de árvores ao vento, unidos todos, línguas e versos, na estrelar inscrição de estelas. O livro desfaz-se pérola a cada releitura, e regresso a casa sujo de luz. Pérolas de Não Saber: «De onde vem esta carne, que desconhecemos mal/ entre rápidos bons-dias? Como trazê-la para a mesa/ ou mostrar-lhe pela primeira vez lençóis brancos?/ Na noite, pedimos à carne que fale connosco/ enquanto a morte a cozinha sobre ossos e/ experimentamos com a consciência/ (a câmara em circuito fechado)/ o seu crescimento, o mistério das nascentes/ a sua queda. / Que privilégio este encontro. Como remunerá-lo/ encher suas mãos de raro?»

Horta Seca, 9 Fevereiro 2018

Um fio, isso nos liga, pouco mais nos sustenta. Os últimos anos, e no que ao estado cabia, riscaram no território inúmeras redes, as que nos sustentam, na única forma económica do termo que me interessa: bibliotecas, museus. A Câmara de Famalicão desfiar a sociedade civil a inventar maneiras de gastar bem orçamentos participativos. O olhar estratégico do António [Gonçalves] convidou-nos a convidar ilustradores que abrissem montras nas paredes dos lugares de memória da cidade. O livro que editámos, desenvolvido pela Cristina Lamego, logo se fez eixo colorido, de modo a fazer rodar ideias e potencialidades e reflexões e o mais que possa ainda vir a ser. Na contracapa, a mão da Bárbara R. puxa o fio que mexe, sem querer, com o íntimo dos que procuram, sem descanso, ligações. E a exposição extraída de «Ligados em Rede» visita por instantes Lisboa, que a vai ignorar com a devida sobranceria. Nada aqui excita os jornalismos, não possui sexydade suficiente, não verte sangue, a não ser o deste pulsar de olhares sobre património que, embora a Norte, pertence à comunidade rectangular. Ou assim não será com a Guerra Colonial, o automóvel, o surrealismo ou Camilo Castelo Branco? O André [Carrilho], com o seu fulgor habitual, fez do cachecol do escritor um esvoaçante palimpsesto, fio que nos agasalha. Um museu não tem que ser frigorífico, pode bem produzir máquinas de desejo, como as inventadas pela Marta [Madureira] (nesta página). Sociedade incapaz de criar e de preservar o criado acabará estéril. Um museu dá tesão. Imagem se ligados à corrente, em rede…

Barraca, 9 Fevereiro 2018

As circunstâncias são seres indomáveis. Para o autor, o editor tem, ainda assim, a obrigação de fazer o contorcionista operar, o cirurgião correr, o leão voar e a cobra contar. Não consegui nem metade para «Ninguém Sabe Onde Está», do Luís [Maio], livro de que gosto tanto por ser a bagagem sobrante das suas viagens, posta em prosa apuradíssima, inteligente, perfumada e riquíssima de detalhe. Faz-se ainda, belo ensaio sobre a literatura de viagens, esse ramo mastigado pela «exigência de instruir o leitor de malas aviadas e a sedução do passageiro dos sonhos». Fomos lançá-lo a Óbidos, no novel festival Latitudes, em sessão na qual os turistas nos atravessavam como projecções holográficas. A distribuidora começou então a falhar ainda mais e a bela capa do Rui [Garrido] não brilhava com a intensidade devida nas livrarias. As leituras supostamente críticas ignoraram o veterano do bom jornalismo e nem as revistas onde colabora habitualmente lhe deram a esmola de uma atenção. E nisto andámos até este tardio atiramento que se quis festa. Dançou-se, claro, logo depois do Jorge Lima Alves anunciar o que estas (quase) canções do Luís entoam: «viajar é ler o mundo e prestar tanta atenção aos outros como a nós próprios, o que nem sempre acontece no nosso dia-a-dia. Confessional, autobiográfico, o livro está-se nas tintas para a linearidade cronológica, preferindo transportar-nos através de múltiplos territórios e emoções, num encadeamento fluido de associações de temas muito caros ao seu autor. (…) Nem toda a gente tem um ponto de vista singular. Aliás, muito poucos o têm. Uma das qualidades do Luís, a par da sua insaciável curiosidade, é o facto de ter um ponto de vista que é só seu. Dele podemos dizer, com propriedade, que vê mundo como mais ninguém.» O resultado deste seu Para Cá e Para Lá não merecia perder-se, a não ser, talvez, nas idas e voltas daquele que toca o mundo com os pés: «Para lá metade das conversas são invenções e exageros. Para cá é (quase) tudo verdade. Para lá decido que quando voltar hei-de mudar de vida e talvez mudar o mundo. Para cá faço figas para voltar a encontrar tudo na mesma.”

14 Fev 2018