Eu (não) estou aqui

Horta Seca, Lisboa 20 Maio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or estes dias, andei meio perdido na adolescência. Um dos meus liceus, agora vítima de curiosa vingança que o atirou para abandono semelhante ao do Cabo Ruivo de então, capitaneava margens esquecidas. De tempo e lugar. Os anos na Afonso Domingues, que de feminino pouco mais tinha além do nome (Escola Industrial), deram-me acesso a sítios que insuflavam de oxigénios a palavra aventura. Os territórios começavam logo ali, junto à linha do comboio, e desciam por azinhagas, de bruxas ou nem por isso, até à grande avenida dos velhos e britânicos autocarros de dois andares, com passe para patifarias e doidas corridas. Logo antes do rio onde brilhavam sombras até do império e o hidroavião, encostado ao labirinto de metais e cores, atracado a livros de cordel onde atlântico rimava com viagens e batalhas e as máquinas voadoras eram o passaporte para uma vida a sério. Estava na Afonso, em nome da força aérea, para que conste. Mais tarde, não muito, iria calcorrear os mesmo caminhos com atenções outras, de câmara na mão, a aprender a ver, sob a batuta do Luís Pavão, que animou na Afonso um clube de fotografia. Tenho que regressar a esses negativos, quase todos na cor precisa da memória, o preto e branco. Que olhos seriam os meus, no salto, óbvio para a idade, entre fantasia e real, entre astronáutica e consciência social?

Cá em casa, as ideias mastigam-se muito, mas estava longe de imaginar que o projecto do Bruno [Portela] de celebrar os 20 anos da Expo 98 com mergulho no oceano do seu arquivo acabaria comigo, depois de conversadas e excluídas várias outras hipóteses mais naturais, a legendar as suas fotos, que estão em exposição de grande impacto no próprio local. «Você (Não) Está Aqui» atirará, até Setembro, os incautos transeuntes para viagem no tempo. Bem distinta da minha. Este trabalho do Bruno (exemplo algures na página) resultou de uma encomenda, estava sujeita a constrangimentos, aspirava à totalidade do registo, mas originou olhar que resistiu ao tempo e nos permite acesso à metamorfose. A cidade desfazia-se aqui, entre desvario e tangível. A melancolia habitava o sítio e ficou na fotografia.

Para abrir, sugeri estas linhas, e falhei nas outras legendas abordar a minha púbere aviação. «Os lugares possuem um espírito. Mas o tempo não lhes permite que se mantenha para sempre o mesmo. Neste pedaço de Lisboa, qualquer coisa em hectares (340) como a extensão que vai do Terreiro do Paço a Entrecampos, morreram maneiras de fazer, de construir, modos de ir deixando andar, parte de um século. Paz à sua lama. A meio do século passado, uma certa vontade de desenvolvimento colocou às portas da cidade a refinaria de «ouro negro» que a alimentava, e à sua volta foram-se acumulando restos, matérias brutas, abandonos e abandonados, outras memórias. O século XX estava a acabar e a capital ignorava o seu oriente, quando a pretexto do encontro com outros orientes, resolveu fazer uma das maiores transformações urbanas do país. A regeneração do território foi, aliás, uma das principais razões para que Portugal ganhasse, há 20 anos, a organização da Expo 98 projecto, de par com a celebração da viagem de Vasco da Gama e ter escolhido os oceanos para tema. E assim aconteceu de modo único: uma das maneiras de aferir o sucesso da mudança está no apagamento da memória do que aqui foi. O trabalho bom do fotógrafo é captar espíritos. Ora Bruno Portela (Lisboa, 1966) estava, nos idos de 1994, no lugar exacto à hora certa para registar o fim de um ciclo. O seu percurso fez-se mais do documental. Por um lado, não ignora o humano nas estruturas, nas formas, nos restos e na poeira de que parece feita a paisagem. E por outro, coloca-nos no coração da vaga e sólida tristeza que se solta do tempo a passar. Uma cidade pode esconder outra: cuidado a atravessar.»

Mymosa, Lisboa, 25 Maio

Temos atrasos e temos atrasos dolorosos. A edição da Manuela Sousa Lobo tardou, mas vai resolver-se, a pretexto dos 130 anos de Pessoa. Há tantos anos lhe conheço os poemas, prodígio de criatividade, na língua, nas imagens que cria, no cruzamento de planos, perturbações, identidades. Sinto com a dor da injustiça este apagamento, mas isso pouco resolve. Almoçamos para acertar detalhes, para conversa solta, para isto e aquilo. De surpresa, aparece-nos o Patrak.

Há muitas luas, em programa na Rádio Universidade Tejo, juntei os dois, a Manuela e o Luís Carlos Patraquim, outro poeta enorme, sem que um soubesse do outro, para encontro de amigos ao vivo do microfone. A coincidência de os ter agora aqui, descombinadamente, anima-me, sem outra razão que a alegria. «Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.»

Já na abalada, vejo a Manuela a baixar-se com esforço para apanhar qualquer coisa que me havia escapado, missanga de máscara zulu, dobrão de ouro, a chave da arca do Pessoa, tecla de máquina de escrever. Não, era um parafuso, torto, que trazia em si a própria inutilidade. Diz a poeta em resposta à minha surpresa: «anda tanta gente a perdê-los que alguém tem de os apanhar». Nem perdi tempo a imaginar o museu, corri a apanhar uma caneta-íman que outra poeta me tinha oferecido, desconfio que para me chamar velho ou apenas apagar o meu fascínio pelo objecto. Doravante, não precisará dobrar-se, basta abrir a extensão telescópica e apanhar os parafusos perdidos.

Casa da Cultura, Setúbal, 1 Junho

Alimento para os olhos, que não a pintura de naturezas mortas, a Festa da Ilustração obriga-me invariavelmente a esforço de orientação na selva das imagens. As boas exposições, qualquer que seja o volume, fazem-se paragem de comboio, lugar onde saborear o tempo. Não encontro melhor exemplo que esta «Bricolage», do João [Fazenda], portentoso construtor de cidades e metáforas, o melhor dos transportes públicos. Encontramos «trabalhos de vários momentos, mas sobretudo dos anos mais próximos. Estão representados os suportes essenciais (livros, periódicos, cartazes, cadernos íntimos).

Melhor: estão os olhares e os gestos primordiais que fazem dele autor seminal, pois nele se vão mergulhando raízes para as mais vorazes experiências. Em cena no Palco estão actores, objectos e cenários dispostos como se obedecessem a encenador, urbanista, jogador de xadrez, que melhores peles pode o ilustrador vestir? Puro prazer se desprende do mecanismo, umas vezes literal, outras metafórico, sempre a atirar-nos para a viagem. Segue-se visita guiada ao Bairro, com trabalhos mais pessoais e narrativos sobre a cidade e as suas transformações.

Ternura no olhar que toca cada figura, entalada entre o banal e o excepcional, eis o que nos espera. Avancemos em direcção à Arena, onde se recolhem os rostos e os corpos do inferno político, social, mediático, nosso. Pode explodir o humor, mas sem que aconteça cartoon. Tudo nos encaminha para a Pista de Dança, onde Fazenda chama a si a figura do coreógrafo-bailarino: cada desenho faz-se movimento que rodopia em movimento e transformação contínua, abrindo-se espaço de liberdade e imaginação. Cada desenho logo se faz outro desenho, sendo todos momento dessa transformação. Ninguém lhos pediu, mas todo ele, desenhador compulsivo, os exigiu. Este movimento não está, em momento algum, ausente das milhentas imagens que criou. A que deu vida. Mal voltem costas, tudo continuará a mexer-se, acreditem.”

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