Contar o tempo

Horta Seca, Lisboa, 28 Junho

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho pelo menos um leitor. A pensar em noites desinspiradas como esta, fui atirando notas para uma página. E sendo a tendência escrever mais do que a medida, ali arquivei entrada excedente sobre desarrumação. Usei-a algures em Março, não a apaguei e esqueci-me. Voltei a usá-la agora. Um leitor fez o favor de mo assinalar. Veio-me à memória o que se projectava durante palestra de conferencista distraído: «verificar a conexão da fonte e o modo de entrar».

Mymosa, Lisboa, 29 Junho

Coube-me o terceiro dia nesta criação em torno dos «vinte anos de prática projectual em design gráfico» de Jorge_dos_Reis. Sete dias, cada um com um tipo de peças (cartazes, letras, livros e publicações, catálogos, identidades gráficas, esboços e finalmente pinturas) desenham esta «Terra Plana», assim se chama a exposição, patente na Casa da Cerca, em Almada, e o deslumbrante catálogo que o Jorge agora me entrega enquanto solta gargalhadas que enchem o lugar. Impressiona o rigor com que duas décadas de trabalho se apresentam, de modo visceral, mas arrumado em lúdicas geometrias. Impressiona o deleite com que se apresenta, nos detalhes, nos diferentes papéis, no formato. Cheguei ao Jorge pelo lado da investigação sobre tipografia e só depois descobri o criador, que invocava invariavelmente uma paisagem de serras que me foi próxima, ao serviço de curioso programa: «páginas à procura de uma lombada, homens à procura de uma morada». Aquela sua pesquisa em torno dos caracteres móveis tocava-me por conter muito de labor poético, que abordei erguendo-me em esforço do magma de confusão destes meus dias, cada vez mais esboços do indistinto.

«Daqui, de onde o vejo, até com as mãos, encontro uma peculiar estranheza no corpus do Jorge_dos_Reis. Lúdica e confortável, mas estranheza. Simplesmente porque […] combina opostos e diferenças de maneira única: vejo máquinas e mecanismos e peças, mas logo encontro jardim do mais orgânico esplendor vegetal; uma linha irregular, risco distraído no papel que se transfigura em simetrias e rigor geométrico; tem tanto de abstracto como estruturante, formas de puro deleite ou sinais que emitem informação; faz-se paisagem e habitada por pequenos seres, quase sempre paisagem de papel e pequenos seres de tinta, mas pode dar-se o contrário; elementos oriundos do passado distante a conviverem com pixéis latentes de ecrã; o conforto do reconhecível e o assombro do novo.»

Se se pudessem arrumar décadas de trabalho irrequieto, teria que ser assim, abrindo com o azul petróleo de uma qualquer «materica acqua». Entra o Raquesh, que espalha gentileza, paga uma rodada e grita: «É o fim!». Nada disso, vamos lá tratar de habitar esta «Terra Plana».

Mymosa, Lisboa, 30 Junho

Sento-me à mesa de mais um projecto com o António Eloy, velho companheiro de lutas que nos pareciam ganhas. Erradamente, como a sempiterna energia nuclear, um desvario maior da gula energética das sociedades contemporâneas. Nem sei a razão do desvio, mas deu-nos para folhear álbum (in)comum de amores e ódios, causas e nomes, mestres, personagens, amigos ou nem por isso. A sua passagem pelo Partido Radical, projecto libertário assaz peculiar de Marco Panella, falecido no ano passado, motivou inúmeras histórias. Muito para além da porno-deputada Cicciolina… Nem me lembrava da proposta de colocar Ghandi no logótipo, à qual Eloy e a maioria de uma qualquer assembleia se opôs, até que o carisma de Panella inverteu a tendência. Pelo meu lado, recordo os esforços transnacionais para a legalização das drogas. Tenho para mim que não valorizamos devidamente o memorialismo, e, em resposta, criámos, na Arranha-céus, colecção que acolhe textos que queiram testemunhar do vivido. Lancei desafios dos quais espero ansiosamente resultados. Para cortar no tempo.

São Julião, Lisboa, 30 Junho

As Festas da Cidade dão-se por findas, mas nada mais enganoso. Em Lisboa, as festas são um fado, uma tatuagem, um acaso da geografia, um resultado da meteorologia. Este ano erguemos um arco de papel com a EGEAC e editámos a preto e branco, para adultos e nem tanto colorirem, algumas das ilustrações com que o Nuno [Saraiva] tintou as festas, do ano passado e deste (um exemplo, nesta página). Uma brincadeira, dir-me-ão. Sim, mas quem afirmou a nossa seriedade? O gesto de colorir acalma os nervos, faz passar o tempo, exercita o músculo estético. Faz-nos ainda regressar a uma qualquer infância, o que se justifica sobremaneira para quem vive (em festa) aqui e usa os transportes públicos. Brincadeira, claro, mas se olharmos com atenção estes desenhos encontramos, a traço fino, um retrato da cidade que somos. Há anos que anda a povoar lisboas, e nos últimos tempos, até pelas paredes conta histórias. Invariavelmente fazem dos corpos um palco. Não por acaso, no caso revisita a obra do enorme Rafael [Bordalo Pinheiro]. Não deixámos ainda de ser nem zés nem povinhos. Em fundo musical, está alinhada, qual desfocada foto na parede da colectividade, uma galeria de personagens do mais transversal e transgressor cosmopolitismo genético. Fui ver e diz que «um ente geométrico é transversal quando o seu sentido é oblíquo em relação a determinado referente». Somos partes em recomposição, identidades sem bilhete nos apertos de um metro veloz. A cegonha acaba em pernas com meias de renda, sim a que enfia o bico do mito na garganta da raposa-PA. O DJ toca pratos, mas de chouriço e sardinha. As varinas são tatuadas, usam piercing e marcham de estilete, os marujos saltam para dança gay-pop, chinesas partilham arco e balão com um rajá das índias profundas do Martim Moniz. Siga o baile, desde que com selfie na ponta do pau. Depois ainda têm muito que contar os manjericos, em desfile de seres que são também comentários aos tiques e aos estereótipos alfacinhas. Isto e mais está deslavado em formato generoso à espera da cor de cada um.

Em aperto de simbólica, marcámos o lançamento para o fim do mês, perto da Praça do Município, em plena exposição das sardinhas, essoutra brincadeira que se tornou fenómeno internacional, com cardumes cada vez mais numerosos a redesenhar o popular bicho, levando o ícone popular à exaustão. Não apareceu quase ninguém, o que nos deixou de lápis coloridos na mão. A escolha de dia e hora para atiramentos é ciência que não se deixa dominar. Os fregueses deviam estar distraídos algures num arraial. Vai daí, fomos à festa.

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