Tempo nenhum

Mymosa, Lisboa, 3 Maio

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]esito e já mudei umas vezes este princípio. Deve ou não convidar-se a morte para a mesa, para as nossas mesas? O flamenco parece-me resolvê-lo melhor que o fado, mas vou em busca de confirmação. Encontro com manos – sim, insisto nessa forma irritante de nos assinalarmos próximos –, distendido no terreno que vamos amanhando vale a rega, a paciência, e espera do fruto. Pessanha janta connosco e afinámo-nos na vibração que desconjunta o mundo. Mãe pode baralhar o cima e o baixo fazendo-se pano de fundo, que o colo se faz mundo. Pai pode rasgar degraus que dificilmente subirás, sem antes os descer. Carlos [Morais José] vem das pirâmides a falar do céu e da canoa que comunica. António [de Castro Caeiro] domesticou o tempo e trá-lo a fazer as necessidades na Bica. Ele apanha os dejectos (luminosos), não se aflijam. Mas discutimos pela razão, para mim simples, de que a tradição mística interrompe. Reconheço, mais ainda debatendo em supremo desequilíbrio na Calçada da Bica Grande, a enorme intuição de que devemos caminhar de costas para o futuro. A cada instante, mudando a resposta ao que formos sendo, índio, mas cobói, cavalo, mas comboio, bala, mas seta. E eis que acontece o acontecer, sempre nem nunca: kairos. Deus na sua forma incandescente de ser todos os tempos ou nenhum, diz ao ouvido, inscreve na carne, de um e não outro, poema que atira a narrativa para um nó (desfaz aí a História…). Princípio e fim, cima e baixo, longe e perto são coordenadas que na experiência do místico desfazem o sentido. Por instantes, a experiência mística ilumina o mundo ao realizar-nos. Logo nos apagamos: mártires. Provocação: ser, no tempo?

Mymosa, Lisboa, 10 Maio

Cada encontro com o José Alberto Marques, ainda que seja marcado pelo ritmo estúpido dos afazeres, transfigura-se em brincadeira de putos. Jardim infantil!, atiram os (bons) tolos. Não percas tempo. Uma mesa não pode ser apenas lugar de pousar papéis. Entornámos agora memórias de beijos, quentes nos lábios mais quentes do surrealismo; uma repetição para afirmar traços entre a palavra e um texto; um recorte que tiras da cartola; o disparate enquanto o garfo amanha o peixe; a convicção de que o livrinho está feito, excepto o acrescento doido do momento; uma chamada para pedir o whiskey; aquele pacato regresso de comboio a casa depois da revolução, quando tudo ardia.

Hoje Macau, 11 Maio

Subidas e descidas na cidade, noite e dia, assim se fazem. Páginas de jornal dobram-se barcos, origamam-se aviões e isto. «A diferença é no modo de olhar. Uma diferença que está sempre a constituir-se, porque a passagem do tempo cria uma alteração convulsiva em cada instante: antecipa-o para o ver cair para o presente, e do presente, empurra-o para o passado. Cada instante é uma projecção do tempo na sua totalidade. O tempo é sempre o mesmo na sua duração, no trânsito e na sua passagem. E de um instante para o outro pode perceber-se a estranheza da passagem do tempo, inexorável, mas como se nada se passasse na realidade. É como se tudo fosse exactamente o mesmo e não conseguíssemos apurar a diferença. E na identidade absoluta da realidade a própria realidade desagrega-se na passagem, na alteração dentro da identidade, na estranheza de perceber que as coisas se alteram e é estranho perceber-se a alteração, quando tudo aparentemente se mantém na mesma.» E se for o tempo a mirar-nos, estamos capazes de o olhar, olhos nos olhos, ainda os não tenha? Fechar o tempo na sua totalidade é escolher a poesia. Portanto, a dedicatória é desafio: não és homem não és nada!

Casa da Cultura, Setúbal, 11 Maio

Luiz Fagundes Duarte enche uma sala cheia. Conta do Antero conhecido e desconhecido, lê Antero, interpreta Antero. O romântico quis combater. O progressista emendava para poupar trabalho ao tipógrafo. O poeta usava a poesia para provocar e para seduzir. O poeta foi o seu tempo com tal intensidade que é agora o nosso.

Café Vitória, Porto, 12 Maio

Uma sala de vidro para ouvir Júlio Machado Vaz, Rui Reininho e João Paulo Meneses tecer loas aos aforismos da Inês [Menezes]. Estes «Amores…» davam filmes. Agora que estão escritos, são convites a entrar na brincadeira. Muito calor e flores que se prolongaram noite dentro.

Serralves, Porto, 13 Maio

Experimento ir e logo me apetece ficar «No Tempo Todo». Até por acontecerem mesas, deuses antigos, heróis. Afinal como nas outras linguagens, apesar das vigilâncias académicas, a pintura possui ainda alguns casos-limite, inclassificáveis, que resistem aos alinhamentos onde as historiografias os tentam arrumar, aquietar. Álvaro Lapa, portanto. Grande leitor, as suas aproximações ao texto são do território da chama, do fascínio, no modo como o integra, na jogo cómico e lúdico com o pensamento até ao ponto em que as letras se desfazem em formas, passam a ser corpos apenas, seres que esvoaçam de quadro em quatro. No gesto, nas cores, no olhar, algo de primordial acontece. E convida-nos a mudar maneiras. Veja-se este (aqui na página, por gentileza da Fundação Serralves): « – Em que pensas? / – No tempo todo.» O texto surge singelamente como mais uma forma do negro, na sucessão das manchas. Equilíbrios e desequilíbrios que umas lâminas de cor ajudam a compor. O tempo fez aqui das suas, afectou a matéria, deu ar acabado ao que parecia inacabado. Rasga-se aqui uma janela na qual podemos ver que subidas e descidas, cabeças e montanha. A noite e uma conversa. Grande, grande exposição, que brilhará na noite mais obscura, graças ao saber de Miguel von Haffe Pérez.

(Detalhe divertido, que o divertiria a ele, amante dos “materiais pobres”: um agrafo, no jargão museológico, passou a ser “elemento metálico”).

Adega Sports Bar, Porto, 13 Maio

Em boa companhia, vejo o Sporting soçobrar, desistir, sem chama. Aquele “frango” de Rui Patrício fica como o retrato da época na minha caderneta.

Pinguim Café, Porto, 13 Maio

«Quero risco, aventura, novidade.» Noite fria, meia dúzia de gatos-pingados sentiram na pele a voz marítima do João [Rios]. Sem solenidade falou do país, que é ele. «Conquistar é péssimo!» Neste dia tão particular, naquele sítio mítico, era dado início às comemorações oficial dos 25 anos da poesia de João Rios, que ainda não tinha feito as contas. Comissários oficiais: Mário Cesariny e Manuel António Pina (gatos).

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