Dar nós no horizonte

CCB, Lisboa, 3 Novembro

 

[dropcap]O[/dropcap] novo poiso do Obra Aberta, a sala Ribeiro da Fonte, deixa que o olhar parta rio afora, acompanhando as ondas que a conversa lança, do lado de cá do vidro. Desta, convocados estavam o Pedro Mexia e o João Paulo [Esteves da Silva], que levou obras de e sobre Pessoa, com passagem por Mário Cesariny mai-lo seu Virgem Negra, que desconsidera como escarninho menor. Oiça quem possa, no útil podcast, que o Pedro, do seu lugar de grande leitor, também acrescenta sempre perspectiva. Serve o intróito para registar a metáfora que por ali se instalou e nos acompanhou na breve viagem sob chuva, ali do quase-foz até ao quase-centro. Pessoa enquanto buraco negro que suga a energia que o rodeia, que apaga as estrelas que se avizinhem. E confidenciou que, em certas Quintas de Leitura, orquestradas pelo João [Gesta] em torno dos Poetas do Desassossego, e enquanto acompanhava ao piano inúmeros poetas fortes, mal se agigantou o Lisbon Revisited, logo o resto se apagou ou, pelo menos, acinzentou. Estranha quântica, esta. O João Paulo contou que só agora e a medo foi regressando ao poeta múltiplo, após fase antiga em que (quase) nada mais leu, deixando contaminar as suas múltiplas expressões. Pranto-me quedo a ouvir os seus álbuns (sem palavras), em busca do que de pessoano possam conter. E perco-me com facilidade nestas paisagens que nunca por nunca se fazem agrestes, mesmo nas asperezas de certos nós, de ritmos incertos, cadências a desfazerem-se, a multiplicarem-se. «Ó macio Tejo ancestral e mudo,/ Pequena verdade onde o céu se reflecte!/ Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!/ Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta./ Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…/ E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!» Apesar da extrema solidão, não estamos sós da mesma maneira, isto conservo das conversas sobre a toalha da timidez que vou tendo e de raspão com o João Paulo. Vejo na sua recolha poética mais recente, «O Coração de Adão» (ed. Douda Correria), a unidade ser sacrificada em prol da variedade jazzística habitual, do encontro bruto com o quotidiano, do esforço para capturar o espiritual, da investigação incessante da palavra e de composição da métrica. A estafada e tão desperdiçada, por estes dias, expressão «Ser do Contra», ergue-se título de poema, no interior do qual lavro trilho. «Compara-se a vida/ a um caminho;/ percebo a ideia./ Mas, por algum motivo, recuso,/ sinto o contrário, sinto/ a vida como um não caminho;/ antes um fundo latejante,/ de frequência altíssima/ a tender para o infinito/ sobre o qual os caminhos se abrem/ com passos de morte.»

Horta Seca, Lisboa, 6 Novembro

A surpresa ganha forma de um anel e nunca assim tinha visto um arco-íris feito jóia, como deviam ser todas. Há uns três anos, uma amiga anunciava-me a paixão pela joalharia e logo se atreveu a medir-me os dedos com papel. O papel impresso enquanto medição dos passos e do horizonte parece ser território comum, agradou-me o momento no reboliço de feira literária e esqueci-me. Acontece-me bastas vezes o esquecimento, forma sagaz de sobreviver. Voltou agora mesmo com singelo embrulho que acamava um anel.

E estas linhas pertencem ao espanto: o objecto mudou-me a mão e portanto o mundo. Vários círculos de tonalidades prateadas, cavalgando-se em redondo e plano, com espessuras dissonantes a desassossegarem-se no fecho, marcam-me doravante o médio da mão direita. Diz a Ana [Castro] que partiu do ípsilon e do que nele encontrou de profundidade, escuridão, mistério, e ofereceu-se na mesma frase para limar arestas. Desnecessárias. A peça aconchegou-se que nem ser vivo e marca-me os dias com presença inusitada. Pego no copo com a mão direita e logo vejo o entrançado a comunicar-me uma força que vou perdendo. Tamborilo na mesa a melodia e um certo toque assinala mais do que a carne muda. Dou por mim a rodá-lo com os dedos da mão esquerda enquanto penso, a modos que sintonizando. E se fecho as mãos em apoio de cabeça há um perfume acre que me atinge. Dois pontos vizinhos no círculo interior que toca a pele estabelecem meridianos com ligações sensíveis às veias, as que nos irrigam mesmo em tempo de deserto.

Trago as páginas aos olhos com estes dedos, pousado o livro na mão esquerda. Como afectará a leitura as sombras que do anel se emanam? Depois, e por exemplo, a mão entrando no bolso pede mais cuidado, sinal de que possuo saliência extra. Poderia continuar, fascinado por nunca me ter ocorrido que o metal trabalhado nos poderia afectar assim. E conter retrato (sinuoso).

Aeroporto, Pisa, 7 Novembro

Detesto viajar. Melhor, detesto o absurdo vazio de tempo e espaço em que transfiguraram os hiatos entre cada lugar. À chegada ao aeroporto de Lisboa, notícia agreste quase me faz ficar. Arrisco impotente, deixando para trás parte de mim. Não quero enumerar as muitas peripécias antes e durante o voo em lata de sardinhas confirmando esta minha sensação de que sou árvore da qual são voarão sementes. Que brilhe, então, o momento quando atravessando como qualquer passageiro frio e chuva chego à Toscânia e sou travado pela farda: de onde vem?, para quê?, quanto dinheiro traz? Hesitei em beijá-la na boca para saber o gosto da guarda e do castigo, mas fiquei-me cobardemente. Há sempre uma fronteira para malfeitores como este vosso criado, nem que seja de giz.

Palazzo dei Congressi, Pisa, 8 Novembro

O beijo na face, por aqui, começa-se da esquerda para a direita. Diverte-me, o embaraço com que começam os encontros desencontrados.

Ergo o capacete colonial saudando a Valeria Tocco, que isto de feiras e festivais tem o seu quê de selva e areias movediças, versão Salgari, no caso. (Eis um que, sem sair do sítio, tanto fez viajar). Logo se perfilam Marco Bucaioni e Riccardo Grego na qualidade de editores de risco, a domar demónios em nome de uma paixão exaltante pela língua portuguesa que se ergue como praça medieval. Do lado de lá edificam-se os tradutores, Vincenzo Barca, Roberto Francavilla, ou a Francesca Leotta, e de par, oriundos de uma academia com invejável dinâmica, pontuam a Valeria, o Andrea Ragusa ou o Giorgio De Marchis. E os lados não se tocam apenas, sobrepõem-se, misturam-se, festejam-se. Na companhia do gentilíssimo Almeida Faria e do não menos afável Luís Cardoso entrámos ecossistema adentro. O chão que se pisou foi sempre o da avassaladora paixão pelo português, que merecia política de língua capaz de a amplificar. Vi salas cheias a sofrer explicação meticulosa sobre acessos institucionais, a beber cada palavra dos escritores que se entregaram com sabedoria. Quase me comovi com os tradutores do Valério [Romão] a partilhar dificuldades, a revelarem-se evangelistas da prosa de um «mondo disperato». Ouvi discutir equivalências de sericaia para evocar planícies do sul. E estou preparado para testemunhar que os apoios oficiais são seiva essencial nesta floresta. Percebi ainda a falta de exploradores da dimensão de um Antonio Tabucchi, apesar dos herdeiros.

Palazzo dei Congressi, Pisa, 9 Novembro

A última sessão, repetindo protagonistas, mas orientados pelo Giorgio, tinha a intenção de pintar futuros para a literatura portuguesa. Preferia um qualquer lirismo, beato que fosse, ao tecnicismo tristonho acerca do mercado, da ausência de curiosidade, da morte dos embaixadores em que nos deixámos cair. Até que o moderador trouxe, com a ajuda sempre fértil de Bruno Munari, a metáfora perfeita para o assunto da edição, dos livros, da literatura: «una poltrona scomoda» (imagem na página).

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