Quando a capa se faz lugar

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] useu José Malhoa, Caldas da Rainha, 14 Abril
A tarde abriu enorme e coube ainda assim aconchegada pela conversa no edifício, primeiro pensado de raiz entre nós para ser museu, não-lugar do novo sagrado destinado a acolher paisagens e figuras de um espaço e um tempo que parecem já só existir aqui. Ainda nos arredores de Imaginário, quase a desmentir esta ideia de ruralidade que se dissipa, ou, pelo contrário, a confirmar fantasmas e dores, trouxemos «A Festa dos Caçadores», do Henrique [Manuel Bento Fialho]. As razões para o meu entusiasmo são múltiplas, mas devo conter-me, contê-lo, ao entusiasmo, lê-lo e relê-lo, afastar-me dele, procurar gralhas e melhor desenho de página, capa ou contracapa, e continuo a falar do entusiasmo. Este livro apresenta-se-nos carregado de livros nas entrelinhas, ou melhor: pejado de leituras. Cheguei ao Henrique por via das suas excelentes leituras, a conferir em Antologia do Esquecimento (https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/). O livro como objecto e entidade aparece aqui e ali, a evocar a sua condição de bom livreiro e portanto observador, olhando de esguelha certas relações com o bicho, e não tanto enchendo a prosa de citações, que também as há, embora na justa medida do bom tempero. Folheando, a Festa é uma colectânea de contos, uns morais, outros de prosa poética, parábolas aqui, anedotas além, relâmpagos luminosos de pensamento, frase ora despojada ora barroca, rica e variada, bem-humorada q.b., com música e várias infâncias a servir de fundo, além da omnipresente pitada de amargor, como agora se aplica à cerveja que abre caminhos. Será tudo isso, sem deixar de ser «retrato fragmentário da primeira geração de portugueses criada em democracia», diz o autor, que continua. «De um mundo rural em vias de extinção à deslocação urbana, acompanhada de sensações de exílio, solidão e desenraizamento, as personagens destes contos acabam por se fixar num lugar sem espaço nem tempo, nos “desastres de uma vida perdida algures pelo caminho como farrapos de roupa comidos pelo tempo”». Será a voz do narrador? Outro jogo, que aproveita com habilidade os farrapos narrativos que podem ou não agregar estes fragmentos, assenta nos saltos de lugar entre autor e narrador, entre a reflexão e o episódio, entre o íntimo e o disperso. Tanto estou na pele de Henrique como me vejo assistir à dissociação na mente das personagens, que duvidam em permanência do que lhes acontece. Além do amargor, a prosa perfuma-se muito de absurdo: talvez existamos apenas na cabeça de alguém, sonho de uma sombra. Parece-me, portanto, único este volume de 320 páginas de contos a acreditar que poderão ser outra coisa. E também por causa do tempo e outros detalhes maneiros: a areia, seu maior sinal. Ou o silêncio. Assim a própria, há por aqui torto e a direito grãos, suavizando ou incomodando, assinalando que mesmo a rocha maior se pode desfazer, que as mãos não conseguem segurar, que os rastros se apagam de um sopro, que o deserto cresce. Lá para o fim, reza assim o riso escondido nas vértebras das pedras: «Pedi desculpa por me estar a meter na conversa e reforcei que sabia do que ele precisava. Ele olhou-me com reprovação, as devotas olharam-me com desconfiança, olham-me sempre com desconfiança, e eu, agora metido num fosso do qual não teria saída, rematei: o senhor precisa de começar a beber e a fumar. E, já agora, precisa de uma mulher. Precisa de se divertir, O senhor precisa de esquecer que o mundo existe, precisa de esquecer-se de si próprio, precisa de criar na sua vida momentos de interrupção, precisa de ler e de escrever como se não houvesse nada mais importante sobre a terra, precisa de alimentar os seus medos e as suas frustrações com o veneno da indiferença, precisa de dizer adeus ao passado e, se lhe não for doloroso, ao próprio futuro. Precisa, desculpe-me a expressão, de cagar para o futuro e procurar no presente o riso escondido nas vértebras das pedras. Desculpe-me estar a fazer poesia, é defeito meu. Não dura muito. Já a seguir vem o silêncio, voltamos as costas uns aos outros e caminharemos, cada qual para a sua vida, como se arrastássemos o deserto inteiro atrás de nós. O senhor não precisa de mim, mas precisa ainda menos de si.»
O Henrique só conheceu agora, neste fim-de-semana prenhe de intensidades, anedotas e contos de moralidade difusa, o Sal [Nunkachov] que lhe encontrou o rosto exacto para o livro (algures nesta página), além de interstícios, galhos quebrados, rasgões, sinais que exigem atenção total ao objecto-livro. Quando ma mandou era contracapa tímida, mas a colagem dizia de tal modo caminho e corpo, natureza e espelho que me pareceu o lugar certo para dizer festa e silêncio. O tom sépia agrava a nostalgia.

Caixa de Brinquedos, Paredes de Coura, 21 Abril
No meio dos legos, em evento não anunciado e contra-corrente, antes mesmo do concerto dos Mata Ratos, com a Joana Bagulho a lança-los de cravo em riste e o António [Caeiro] a gritar juvenis entusiasmos sem temo, o Vitor [Paulo Pereira] introduziu uma História que cada um tem por contar, mas que o João [Rios] começou já. De fato-macaco azulão disse da alegria bruta, comoveu com os afectos que vão definem o corpo vital que somos e disparou, como areia para os olhos, cantilenas, cançonetas e modinhas: «não é grave ser português/ jogar a lágrima no bagaço/ perder lança e verso raro/ e soltar um touro às cegas/ contra a nossa pequenez// nem é assaz fatal a doença/ nem será adulterada a raça/ por ter-se sumido no nevoeiro/ a fé num milagre bem maneiro/ que nos enrijeceria de uma vez».

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio
Está sempre a acontecer-me, pelo que dará a ajuda na explicação da potência da canção, por mais tola. Mal me vejo soçobrar, meia dúzia de versos distendidos sobre a melodia logo me erguem pelos ombros. Raras são as vezes que consigo a leveza, donde momentos assim oferecem-me matéria de nuvem, raridade de sopro, rasgão mística. (Também podem advir em conversa, mas a música dá-lhes corpo distinto. Do mesmo modo, podem ser apenas som, mas algo se perde nos interstícios.) Willie Nelson navega por perto há muitas luas, por que raio haveria de duvidar da sua capacidade para me interpelar nesta sua idade? Last Man Standing veste o camuflado da banalidade competente, mas atira-nos à cara a simplicidade dos mais venenosos pensamentos sobre a morte, o quotidiano, a solidão. Não mais que uma pérola por tema, pronta a rodar nas nossas mãos algures em banco de jardim, em praça soalheira, no varandão, deixando que a tarde caia: «I been sittin’ around countin’ my blessings/ Thinkin’ of friends here and gone/ Recallin’ the smile across somebody’s face/ Whenever I’d sing her a song». Não cantei assim tantas canções, por mau jeito, mas chorei já a minha dose de amigos: o mundo sabe ser pouco mais que canção triste. «When you lose the one you love/ You think your world has ended/ You think your world will be a waste of life/ Without them in it// You feel there’s no way to go on/ Life is just a sad, sad song/ But love is bigger than us all/The end is not the end at all.» Até já, Jorge.

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