A Sul de nenhum Norte

Almodôvar, 6 Fevereiro 2018

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m habitual mastigação de projectos, atravesso o Alentejo com o Bruno [Portela], riscando o frio que mal se nota com um sol olímpico como só por aqui acontece, definindo o contorno de cada folha nos ramos, despertando a orquestra de cores, erguendo-se cenário para o fausto da terra. As más notícias parecem sinos a ressoar por mais tempo em dias destes, dos que fazem sentir o vento do juízo nos ossos. Saciada a fome com pão, azeitonas mal talhadas e outros frutos do lugar cumprimos a função nem sei se bem ou mal. Sabia-o de outras viagens, mas o Rui Cortes disse-mo com livro, parte de exposição vagabunda, agora no Museu Regional de Beja: a mais antiga escrita da Hispânia riscou a pedra neste Sudoeste há 2550 anos para esconjurar a morte. «Escrita no Baixo Alentejo – das origens aos nossos dias» apresenta o lavrar do caracter nos mais distintos suportes, xisto, mármore, cobre, pergaminho, papel, ecrã, fixando assuntos de administração, de direito, um pouco de vida, além da morte omnipresente. Brilha a grande altura a Estela do Guerreiro, oriunda de uma necrópole da Idade do Ferro, ma qual um homem em armas se mostra encerrado em quadrado de signos. Mantém-se fechada em enigma a escrita tartéssica, ao contrário das notas de Fialho de Almeida correndo linhas de agenda para médicos, na página que sugere píxides de caoutchouc endurecido para pulverizações à garganta. Ou do latim da lápide, de 663 d.C. que chora em mármore o passamento de uma «flor rara que mal fizera quinze anos»: «Aproximai-vos vós todos, igualmente lamentai comigo, porque morrer não é coisa nova! Chorai comigo todos quantos a causa da dor e a aflição da morte profundamente atingem!»

Mymosa, 8 Fevereiro 2018

Anseio, é sabido, por vida de gato, passear em dorso insinuante a enorme vantagem de apenas ser, com pelo e garras e susto e curiosidade. Respiro projectos, demasiados não ganharão corpo fora da nuvem que rego à grande távola dos encontros. Antes assim, a carne do real perde sempre um degrau na subida que imaginamos juntos. Uma nuvem-gato, fixo agora mesmo a figura do meu poder vir a querer ser. Falhado que foi o astronauta. Apesar da sombra de um desencontro maior, os dias da miséria não deixam de me oferecer encontros, que me enchem as mãos de raro. Rui [Cascais], já nos tínhamos sentado à mesa do tempo com tempo? Personagem de muita aventura por escrever, que não por contar, o Rui deposita-me, após viagem aos orientes e às etimologias, às traduções e aos corpos, às temperaturas e às interpretações, ao verbo ser nas múltiplas cores da geografia, deposita-me, na única forma bancária do termo que me interessa: nas mãos, o seu livro. Flâneur das línguas, em «Returning Home Dirty With The Light» (ed. COD, portanto, macaense) o Rui recolhe poemas em língua inglesa e portuguesa, estes mais enraizados no músculo do pensamento, os outros na observação dos movimentos do quotidiano ( …Could it all be about this/drop of sweat picking up… ), como copas de árvores ao vento, unidos todos, línguas e versos, na estrelar inscrição de estelas. O livro desfaz-se pérola a cada releitura, e regresso a casa sujo de luz. Pérolas de Não Saber: «De onde vem esta carne, que desconhecemos mal/ entre rápidos bons-dias? Como trazê-la para a mesa/ ou mostrar-lhe pela primeira vez lençóis brancos?/ Na noite, pedimos à carne que fale connosco/ enquanto a morte a cozinha sobre ossos e/ experimentamos com a consciência/ (a câmara em circuito fechado)/ o seu crescimento, o mistério das nascentes/ a sua queda. / Que privilégio este encontro. Como remunerá-lo/ encher suas mãos de raro?»

Horta Seca, 9 Fevereiro 2018

Um fio, isso nos liga, pouco mais nos sustenta. Os últimos anos, e no que ao estado cabia, riscaram no território inúmeras redes, as que nos sustentam, na única forma económica do termo que me interessa: bibliotecas, museus. A Câmara de Famalicão desfiar a sociedade civil a inventar maneiras de gastar bem orçamentos participativos. O olhar estratégico do António [Gonçalves] convidou-nos a convidar ilustradores que abrissem montras nas paredes dos lugares de memória da cidade. O livro que editámos, desenvolvido pela Cristina Lamego, logo se fez eixo colorido, de modo a fazer rodar ideias e potencialidades e reflexões e o mais que possa ainda vir a ser. Na contracapa, a mão da Bárbara R. puxa o fio que mexe, sem querer, com o íntimo dos que procuram, sem descanso, ligações. E a exposição extraída de «Ligados em Rede» visita por instantes Lisboa, que a vai ignorar com a devida sobranceria. Nada aqui excita os jornalismos, não possui sexydade suficiente, não verte sangue, a não ser o deste pulsar de olhares sobre património que, embora a Norte, pertence à comunidade rectangular. Ou assim não será com a Guerra Colonial, o automóvel, o surrealismo ou Camilo Castelo Branco? O André [Carrilho], com o seu fulgor habitual, fez do cachecol do escritor um esvoaçante palimpsesto, fio que nos agasalha. Um museu não tem que ser frigorífico, pode bem produzir máquinas de desejo, como as inventadas pela Marta [Madureira] (nesta página). Sociedade incapaz de criar e de preservar o criado acabará estéril. Um museu dá tesão. Imagem se ligados à corrente, em rede…

Barraca, 9 Fevereiro 2018

As circunstâncias são seres indomáveis. Para o autor, o editor tem, ainda assim, a obrigação de fazer o contorcionista operar, o cirurgião correr, o leão voar e a cobra contar. Não consegui nem metade para «Ninguém Sabe Onde Está», do Luís [Maio], livro de que gosto tanto por ser a bagagem sobrante das suas viagens, posta em prosa apuradíssima, inteligente, perfumada e riquíssima de detalhe. Faz-se ainda, belo ensaio sobre a literatura de viagens, esse ramo mastigado pela «exigência de instruir o leitor de malas aviadas e a sedução do passageiro dos sonhos». Fomos lançá-lo a Óbidos, no novel festival Latitudes, em sessão na qual os turistas nos atravessavam como projecções holográficas. A distribuidora começou então a falhar ainda mais e a bela capa do Rui [Garrido] não brilhava com a intensidade devida nas livrarias. As leituras supostamente críticas ignoraram o veterano do bom jornalismo e nem as revistas onde colabora habitualmente lhe deram a esmola de uma atenção. E nisto andámos até este tardio atiramento que se quis festa. Dançou-se, claro, logo depois do Jorge Lima Alves anunciar o que estas (quase) canções do Luís entoam: «viajar é ler o mundo e prestar tanta atenção aos outros como a nós próprios, o que nem sempre acontece no nosso dia-a-dia. Confessional, autobiográfico, o livro está-se nas tintas para a linearidade cronológica, preferindo transportar-nos através de múltiplos territórios e emoções, num encadeamento fluido de associações de temas muito caros ao seu autor. (…) Nem toda a gente tem um ponto de vista singular. Aliás, muito poucos o têm. Uma das qualidades do Luís, a par da sua insaciável curiosidade, é o facto de ter um ponto de vista que é só seu. Dele podemos dizer, com propriedade, que vê mundo como mais ninguém.» O resultado deste seu Para Cá e Para Lá não merecia perder-se, a não ser, talvez, nas idas e voltas daquele que toca o mundo com os pés: «Para lá metade das conversas são invenções e exageros. Para cá é (quase) tudo verdade. Para lá decido que quando voltar hei-de mudar de vida e talvez mudar o mundo. Para cá faço figas para voltar a encontrar tudo na mesma.”

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