Fica para outra vez, agora não tenho tempo

Horta Seca, Lisboa, 28 Outubro

[dropcap]R[/dropcap]ecebo de boas mãos, com costumeiros valor e estima, o cuidado e volumoso «Tutti Frutti» (ed. Turbina), onde se recolhem as pranchas diárias do Marco [Mendes] para o Jornal de Notícias, espaço de respiração tão atípico quanto necessário se os nossos jornais ainda respirassem. Acabou abruptamente, e ao que parece não muito bem, esta coluna que se afirmava sinal de resiliência sob inúmeros pontos de vista, do estético ao político. O pressuposto era mais da diarística do que do comentário à actualidade, ainda que esta se impusesse com contornos de protagonista, motivando pranchas de grande intensidade. Conserva-se, para memória futura, um fragmento do quotidiano, não apenas nessa cronologia das catástrofes que marcaram à navalha a segunda metade de 2018, mas nas minudências do dia-a-dia de uma geração e de uma cidade, de um pintor e de um professor, de uma família (alargada). Com humor ou um esgar de nojo, com ternura e desprendimento. O estilo, sendo figurativo, espraia-se por modulações de expressionismo que sublinha bem o carácter poético de muitos momentos, tantas vezes dispensando palavras: uma cidade que amanhece, a mesma a entardecer, ressumando nos gestos banais de quem a habita. Surpreende a atenção ao mar, em ondas sucessivas, apenas visuais, reflexivas ou como pano de fundo para o horror. Muito natural, a atenção à pintura e ao processo criativo, ampliando minúcias, convocando reflexões, jogando sempre, que a ironia está omnipresente. Veja-se a prancha de 10 de Outubro de 2018 com «lição» sobre o tempo, esse vazio entre quadrados que na banda desenhada se torna um absoluto. Não apenas pela sugestão de movimento entre instantes, mas por nos permitir imaginar possibilidades. Estas micronarrativas não se limitam a contar do real, mexeram com ele, sobretudo em papel de jornal, estou certo. De igual modo, o Marco que começou a desenhar este «Diário Rasgado» acabou outro. Assim o explicam os auto-retratos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Outubro

A escuridão monta agora mais cedo pela tarde, e a chuva agrava a sensação de que a noite invadiu gentes e lugares agravada por ser segunda-feira. A esfuziante alegria criativa do Pedro [Proença] abre rasgos solares no ambiente taciturno. As suas explicações em torno da criatura Sandralexandra, senhora que inventa paisagens no cruzamento postal de palavras e ícones da viagem, brilham no escuro. E o Pedro gargalha, conta do nascimento, do percurso, destaca pedaços, descobre poemas antigos que dá a ler. Fervilha o pensamento, como se cozinhasse em lume branco. E logo passamos aos mitos, sem levantar a mão da folha, unificando cada momento com a linha de um irrequieto ecocardiograma. O passo atrás para ver melhor, logo se torna tese sobre o uno e múltiplo. (Continua).

Barraca, Lisboa, 31 Outubro

O ritual do lançamento da edição centésima, este «As Orelhas de Karenin», do duo dinâmico, Rita [Taborda Duarte] e Pedro [Proença], talvez merecesse festa mais rija. As circunstâncias impuseram estados de espírito, digamos, alternativos, mas cumpriu-se a função, em ampla companhia e boa disposição, com leituras (comentadas) da Inês [Fonseca Santos], com o comentário (lido) do Paulo [José Miranda], os sublinhados da autora e as torrenciais interpretações do artista, tudo em álacre comunhão. Deixo-me levar pelos pormenores, o do logótipo desta edição, entre copo-vulva e orelha-vórtice, noto que as orelhas do livro ficaram acanhadas e levantam ligeiramente a capa, dando a ver o dito (mise en) abysmo. E quedo-me, meditabundo, na ficha técnica onde brilha incandescente o #100.

Uso parágrafo para o salto. Constato que, sem plano além do horizonte movediço de cada dia, temos quase metade de lombadas sacrificadas à poesia. Excluamos, por agora, as que se dedicam a pensá-la, sem por nunca a abandonar. Resistimos o que pudemos à ideia seca, gasta pelo sol das novas experiências de leitura, de colecção, mas acabei cedendo no caso das traduções, para já marcadas pela língua castelhana, sem descurar atenção que nem seta aos clássicos, tão contemporâneos um (Píndaro) como outro (Trakl). E na portátil «Mão Dita», que acolhe canções, esboços, breviários e alguns que nem tanto (veja-se «Tratado», de Luís Carmelo). Aliás, nada parece estável por estas bandas. O «Anastasis», do Carlos [Morais José], apesar de versejar, cuida de viagens ao âmago, e portanto foi para o devido agrupamento. A pensar em classicismos, temos três volumes de antologias, duas ensaísticas, outra testamental. Falo de Helder Macedo e Levi Condinho, além do José Manuel Simões. E acolhemos Antero [de Quental], com a Poesia Completa tratada com o se jardim fosse, com saber e sabor, pelo Luiz [Fagundes Duarte]. Excepção e regra.

Aplica-se aos que combinam a leitura e a música com a voz dizendo, e falo dos projectos, «No Precipício Era o Verbo» e «Lisbon Poetry Orchestra», em torno dos quais se anunciam novas tempestades, sem saber se o formato se manterá, tal o alento gráfico do André [da Loba] e do Daniel Moreira. Noto, por via do trabalho com outros operários do livro, que alguns autores se foram arrumando em formato muito seu, mais ou menos ilustrado, mexendo no objecto ou apenas procurando a relação mais duradoura com a imagem. Não gosto assim tanto dos livros penteados na estante, mas se obrigasse a biblioteconomia a uma qualquer ginástica, imagino lado a lado as edições da Inês [Fonseca Santos], do Paulo [José Miranda], do José [Anjos], do José Luiz [Tavares], até o inclassificável José-Emílio Nelson, cada um com a sua altura e respectiva largura.

Em tempos, há dias, fui amargamente criticado por dar demasiada atenção ao cadinho em que mergulhava texto, ilustração, objecto, quando a ânsia de qualquer autor exige constância, leia-se, imediata publicação. Contudo, ainda são estes os processos do editor em contramão, atire quem possa desde já os telhados de vidro do futuro. Mas sendo fácil, facilitei, que também preciso, pelo que estacionei em redondo no rectângulo onde se acumularão os mais urgentes, por aflições e quejandos. Sobram os soltos da luxúria, o «NÆvus», do Rui Baião, quando este acreditava que a editora seria a dos seus desejos, uma antologia doida a fazer correr de par poetas e ilustradores, outro livrinho a citar Celan no corte e a arder no esplendor da Bárbara Fonte ou o primevo «Má Raça», nado e criado para os desenhos nocturnos do Alex Gozblau. Cem não representam grande coisa, grãos de areia no sorvedouro do ó do abysmo, a escorrer no funil do ípsilon, mas para cada um deles guardo o que contar, o que fez dele diferente, insubstituível, vivo. Fica para outra vez, agora não tenho tempo.

Santa Bárbara, 1 Novembro

Dia da Santa Saudade do México. Nunca a vanguarda mergulhou raízes tão fundas na tradição, mas isso pouco importa. Eis a banda sonora da minha tristeza, alegria tanta do passado: https://youtu.be/EM008zcvKg0

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