Pontapés na bicicleta

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] orreu o Manel [Reis] (1947-2018), inventor sem registo de patente, senhor da liberdade. Vem dali vento, voo, escorre dali maré, descubro. Noite rimará doravante com cidade, conta sílabas e descobre o gosto, o gesto. Senta para ver, comenta, desdobra o horizonte, que não será nunca engomado, e colha o fruto por haver, a surpresa não pode ser nódoa, siga a elite construindo farol com medo da solidão, a querer um cheiro, antes do perfume. Sou de nenhures e ainda assim me custa vê-lo a atear fogos despropositados e tristes na louca pradaria de trufa da opinião a pedir mais e sempre mais ardências, despontando deslugar deslassado, carne mole de não lugar, coisa que não se pisa a não ser pelo dedo e olho, que ao mesmo tempo esfarela as palavras a fingir que não agridem, mas que depois risca a giz no ecrã o lugar que marca identidade e tribo como castelo de onde partir a partir, além de louças onde comer, as canelas que fazem o andar. Não entendo nem uns nem outros, que se fecham no arremessar dizeres fingindo que pensam, granito feito palavra. Agora que o intelectual se tornou insulto, a «ideia» virou pedra de calçada. Quanto mais escrevo, melhor percebo que despertenço, que falhei no modo de ser grupo, que logo me disperso indo e vindo, maré a compor praia em noite fria. Nem da minha tribo creio que sou. Ponto. (E ao nada empresto a realidade.) Posso ser, apenas, brilhando, ou morando baço? Posso, em querendo. Os estilhaços do gozo de ir indo e acendendo hão-de atingir alguém, dos quietos dos moribundos, dos apagados. Foi de sem querer. O Manel alargou apenas as possibilidades. Sem desenhar fronteiras, sem ferir. Dando os bons dias, acolhendo as boas noites. Só porque sim. Entenda quem possa. Pare de explicar quem o respeite.

 

Bica do Sapato, Lisboa, 2 Abril

De tão bons intérpretes da vida, alguns lutos não param a festa. Estava cinza o rio, gerundiando em rima com o céu. Contudo, diferença se fez a maré de amigos convocados para assistir de pé à Inês [Meneses] brilhar enquanto explicava de que modo podem ser os «Amores (Im)Possíveis»: pela palavra, esticada ao além, por gozo e alegria. «Ela lembrou-lhe que o amor é fogo que arde sem se ver, e ele deu-lhe uns óculos.» As frases-projéctil parecem-me isso mesmo, óculos que nos fazem ver as ardências das aproximações e afastamentos que, em cada momento, nos definem. Vemos mais longe, também com a lente aberta do sorriso que se solta destas tiradas, colhidas no seu habitat natural, o facebook, de modo a tornarem-se objecto. Para o malabarismo de palavras e ideias, a Elisabete [Gomes] criou um palco ao baixo, de apenas duas cores e suas variantes, plantando ênfases e aumentando corpo de letra, respondendo com movimento à dinâmica das ilustrações-metáfora do Tiago Galo, figuras que nascem de massas de cor em jogos de ternura e confronto. Ainda por cima, ergueu as mãos à dimensão de personagens, das que dançam. Não me canso de folhear o livrinho, que cresce muito para além da sua dimensão, de tanta subtileza que esconde. Uma frescura.

 

São Luiz, Lisboa, 3 Abril

Para celebrar os 30 anos da Cotovia, a Fernanda [Mira Barros] organizou ciclo de conversas, no vizinho jardim de inverno onde as únicas plantas são pessoas. Calhou a de hoje tratar da sobrevivência das pequenas editoras. Serviu logo o pretexto para reencontrar o Vasco [Santos], da Fenda, que há muito não nos encontrávamos. Ficou por matar a saudade, pois a ocasião não pedia fado. Apesar do competente esforço da Mariana Oliveira, não aconteceu novidade ou conversa, com a Adriana C. Oliveira, da Flop, e o António Guerreiro, cronista do Público. De tão simples, o assunto fez-se complicado: são poucos os que lêem, menos ainda os que compram. A Flop usa a angariação de fundos para a «altíssima literatura» edita. A Fenda aconselhou o assalto aos bancos, mas não creio que o pratique. O resto foi o habitual negrume analítico do António Guerreiro expondo o dilúvio de lixo que enche o mercado. Não há saída, só esforço. Cansa-me que nos deixemos aprisionar pelas minúcias das finanças, sem nos concentrarmos na recorrente ausência de estratégias e colaborações.

Sem querer, o dia foi salvo pelo golo de Ronaldo na baliza de Buffon: sem desistir da jogada, vai à linha de fundo recuperar uma bola que parecia perdida, faz o passe e logo corre para a receber no lugar onde ludibria os defesas e vence a gravidade aos 2,40 metros para marcar com pontapé de bicicleta digno de um bailado. E o estádio da Juventus, rendido, aplaude-o. De mão no peito, o enorme jogador agradece. A Cotovia, em 30 anos, fez elegantíssimo trabalho de edição dos clássicos gregos onde se celebram heróis.

 

Horta Seca, Lisboa, 6 Abril

A chuva pesa no hoje, encerra-o em si, não abre o espaço à fruição, oferece tristezas líquidas, incómodos, restrições. Cá dentro, brilham singulares fulgores. Como bom Caleidoscópio (ilustração a propósito nas redondezas), um ligeiro movimento muda cores e perspectivas, sugere formas, outras leituras. Momento e movimento. O próprio conceito da exposição evoluiu e se deixou encaixar no demais que fazemos, nas pressas e adiamentos. O João [Fazenda], parceiro de tantas andanças, abre rasgos nas paredes como há muito não fazia. Traz uma pasta negra e pesada, como o dia, mas mal se abre muda o mundo, com perfumes e fauna e paisagens e corpos e flora e começos de história e ritmo e nada, tão só o resultado dos gestos sobre os materiais. Por um triz não nos atrasámos, de tanto e saboroso tempo gasto na escolha e encenação dos originais. Urbanita que é, muita atenção espraia pelas ruas, pelos mercados das cores que se juntam às vozes, pelos jardins onde os corpos se confundem com as plantas. Mas os interiores são palcos portáteis, uma cena banal só pelo prazer do traço, ou composição com outra densidade retratando alguém que esculpe. Gosto de imaginar este desenhador incansável a desenhar o chão que pisa, sem rectas, movediço e inconstante, somente feito de cruzamentos, de rotundas, de encruzilhadas, de entroncamentos, enfim, de multiplicadores de possibilidades. O João desenhou-se maestro de visões, condutor de olhares, manipulador de camas de gato, domador de espelhos e prismas. Mas o tema da exposição acontece ser o estilo: ao figurativo, a cor e desenhado com a cor ou a preto e branco, junta-se o abstrato em pastel, em grattage, a lápis de cor, a pincel. Na sua gramática, o vaivém entre linha fina e traço grosso ganha aqui a vantagem dos que correm mais rápido. Manchas, nuvens, incisões, traços, formas soltas que ocupam o espírito dos que se atrevem a olhar, a alinhar em confundir-se com paisagem, em ser paisagem. Parece que oiço na pele o discorrer do papel, o absorver da tinta de tão sensorial se faz o conjunto, a escolha das cores, a organização das linhas. Nas suas composições, o João costuma exercitar uma elegância explosiva, um conforto que nos atrai e pede para ficar, solar. Nalgumas destas indefinidas deixa entrar diferente energia, desequilíbrios de plástica bruteza, plúmbeas. Lá fora parou de chover.

 

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