Aparelhado para gostar de passarinhos

Metro, Lisboa, 21 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue imagens nos podem ainda chocar se a cada segundo o horror sobe e desce nos ecrãs que se fizeram pele do mundo? Da Síria chega-nos a conta-gotas cada um dos sinais da catástrofe, mas a nossa indiferença responde como tão bem sabe: quieta. Habituámo-nos à guerra, na lonjura ou no íntimo. Há 60 anos, lembro-me como ontem, em manifestada marcha contra o armamento nuclear, nascia um símbolo que me está algures tatuado.

O designer e objector de consciência à II Guerra Mundial, insisto, na segunda das grandes, Gerald Holtom (1914-1985) achou que a Campaign for Nuclear Disarmament (CND) precisava de um sinal gráfico que dissesse não. Começou por pensar na omnipresente cruz, mas afastou a ideia por cheirar a cruzadas. O desânimo que experimentava trouxe-lhe Goya e o desespero do camponês enfrentando o pelotão de fuzilamento, braços no ar e, com eles, o grito suspenso, juntou-lhe a sinalética das bandeiras dos navios para dizer o N e D, para Nuclear Disarmament, logo a antena ganhou raízes no globo, e assim concebeu forma universal de dizer paz. Os hippies tomaram-no de empréstimo para assinalar o coração e não mais deixou de vociferar esperança. Pode um símbolo vencer a realidade?

Correntes d’Escritas, Vermar, Póvoa, 21 Fevereiro

Entrada a pés juntos no festival deste ano, com tripla função logo à chegada: entalada entre a gravação do Obra Aberta, com a Manuela Ribeiro trazendo infâncias e o Afonso Cruz nomadismos, e a esforçada tentativa de conversa, sob o mote «as palavras são música de ninguém», com o Valério [Romão] e Valter Lobo, intérprete à guitarra de virtual Mediterrâneo, deu-se o lançamento do muito esperado fecho da trilogia Paternidades Falhadas, do Valério, de par com Rua Antes do Céu, do José Luiz [Tavares]. Arménio Vieira concentrou o seu olhar no percurso do conterrâneo, pouco entrando em obra, que resulta, afinal e ironicamente, da leitura autor sobre o seu próprio amadurecimento. Eric Nepomuceno, do seu lado, compôs calorosa canção em torno do romance. No meio da confusão habitual de bar subindo a noite, rasgaram-se relâmpagos que revelaram carne e ossatura de duas vozes únicas, irmanadas na invencionática.

Correntes, Garrett, Póvoa, 22 Fevereiro

Nunca havia atravessado a fronteira de vidro, subido as escadinhas do palco, escuro nas costas, a luz de frente, também ela quase fronteira, a tombar negro sobre os rostos em face. Desta vez, o reóstato modulou a visão da sala e a temperatura do orador, tornando aquela mais visível, e outra mais quente. A organização conhecia-me e reescreveu o nome no verso da minha legenda, assim diminuindo o risco de me esquecer de quem era, no momento de falar precisamente do que nada sei: «Escrevo para dizer aquilo que não sei». Ao meu lado, as ondas dos parceiros fizeram-se e desfizeram-se em curiosos murmúrios de m, de mar, de moçambique, de memória, de música. Geometricamente, agora que a minha escrita vai sendo sobretudo texto de outrem, falei das linhas onde me lêem, do campónio labor semanal desta hesitante escritura, caminho de mãos na terra, fiel companhia nas eróticas solidões, modos de reescrever sentidos em terreno onde talvez não se dêem. (Veja-se a foto assinada pelo arquivo da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, embora me tivesse parecido ver fotógrafo.) Ainda me despi, para a câmara do mano Luís [Gouveia Monteiro], em pequeno filme no qual vou retirando de um saco a colheita de minutos breves incarnando à minha volta o respigador cansado de simbólicos desperdícios.

Queria que servisse de pano de fundo a exercício de improvisação sobre o suposto tema, tornado prática habitual no miradouro de autores em que me encontro, embora nublado nos últimos meses. Falhou-me a coragem ou o contexto para o usar. Adiante veremos. Limitei-me a desferir o ar com golpes de verbo que só disseram de faces da letra e da vida desarrumada. Nada que não estivesse de maneira melhor nesta pedra que é O apanhador de desperdícios, de Manoel de Barros, lido com sotaque de quem se deixa afundar no céu pelo peso da voz. «Uso a palavra para compor meus silêncios./ Não gosto das palavras/ fatigadas de informar./ Dou mais respeito/ às que vivem de barriga no chão/ tipo água pedra sapo./ Entendo bem o sotaque das águas/ Dou respeito às coisas desimportantes/ e aos seres desimportantes./ Prezo insetos mais que aviões./ Prezo a velocidade/ das tartarugas mais que a dos mísseis./ Tenho em mim um atraso de nascença./ Eu fui aparelhado/ para gostar de passarinhos./ Tenho abundância de ser feliz por isso./ Meu quintal é maior do que o mundo./ Sou um apanhador de desperdícios:/ Amo os restos/ como as boas moscas./ Queria que a minha voz tivesse um formato/ de canto./ Porque eu não sou da informática:/ eu sou da invencionática./ Só uso a palavra para compor meus silêncios.»

Correntes, Garrett, Póvoa, 23 Fevereiro

Podem os dias ser raio deste calibre, deslize que nos livra das amarras da realidade feita cais de sal. Ver a Isabela Figueiredo tornar revolução visceral, portanto ao pé de casa, o alegre resgate por cactos de floreira pública e abandonada. Tocar o encantamento na voz de Mû Mbana desfiando as canções da sua Guiné natal, acerca do peso da beleza ou da língua estrangeira da infância, sem conseguir evitar cantá-las. Ouvir o Valério contar de encontro «verdadeiro» com personagem sua, alguém que pressentia na esquizofrenia um acto de Deus e que capturou com a pele o insuportável escaravelho da existência. Saborear o Jorge de Sousa Braga a falar de versos e estranhezas das bocas do corpo. E por junto sentir perfumes. O cacto exala?

Coquelicot, Póvoa, 23 Fevereiro

Que enormes! são os braços da Carla [Craveiro], pois se neles cabem as múltiplas e abysmadas vozes da Inês [Fonseca Santos], do Carlos [Quiroga], do Renato [Filipe Cardoso], e do João [Rios], e do Luís [Carmelo], ou do José Luiz ou do Valério, estrumando poemas seus, ou mais que seus, em meio de delicatessen, como sendo-o, que são, autores e poemas. E que bem se aconchegam os livros naquela ameaçadora! floresta de sentidos e sabores! Não esquecerei, por escrevê-lo, nem os mimos nem o saboroso que resultou de assistir à surpresa do Arménio [Vieira] vendo a Filipa [Leal] atirar-lhe de cor um dos seus, que o próprio temeu ser dos piores: «Menos que a chama de um fósforo/ é quanto dura o teu orgasmo/ À tua colecção de vidas breves/ acrescenta o amor/e a borboleta». O contexto em perfume afirmava-o: impossível ser dos piores.

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