Vencer a gravidade

Possolo, Lisboa, 11 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]elder Macedo veio lançar o estimulante «Camões e Outros Contemporâneos» (Presença), mas ainda teve tempo de ir ao Obra Aberta e à Escola de Escritas do mano Luís Carmelo, onde dissertou sobre a demanda que fez dele ensaísta, ficcionista e poeta. Demanda em busca de si, com passagem pelo Gelo e pelo Império, e do outro, sobretudo o obscuro feminino. Helder transporta-nos ao avesso dos orgânicos movimentos da inteligência que podemos ver em acção, putos fascinados na torre do relógio. Algumas traduções bíblicas, descobriu ele, investiam na palavra moça o sentido de alma. A outra luz se lê o «Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe», de Bernardim. De corpo e alma, partiu ela. De alma e coração, fico eu a ouver Helder Macedo.

Horta Seca, 13 Fevereiro

A Companhia Nacional de Bailado, ainda sob direcção da Luísa Taveira, foi convidando um grupo heteróclito de poetas para dançar. Quer dizer, para se sentarem a ver. Chegou hoje a antologia de inéditos da temporada de 2016. O inevitável desequilíbrio em nada mancha a boa ideia, depositada agora nas cadeiras de quem arrisque deixar-se impressionar pelo sublime esforço. De Fernando Luís Sampaio, ressoam-me «as canções mais tristes/do meu tempo» (…) «Canções queimadas por mil vozes, onde a língua se precipita». E tocou-me a agreste melodia de Margarida Vale de Gato atirada à filha: «Peço de ti o que não te ocorre perguntar e tenho/para te apontar este mundo cheio de lapsos, é certo./O mundo está cheio de mortos que não chegam/a cair, o mundo está cheio de mortos que são vivos/com pouca sede (…)» Pelo meu lado, lá consegui erguer a fio-de-prumo tristonhos versos, depois de horas no escuro a ver corpos erguer-se muito acima. De si e destes dias rasteiros.

Teatro Nacional, Lisboa, 14 Fevereiro

Era questão de tempo. Estou sempre a perder o combate com a agenda e costumo atirar-me para cima dela na velha táctica de peso morto para suster a vaga de golpes, mas desta vez ultrapassei uma linha qualquer. Ontem vi-me à porta de um Nacional na semi-obscuridade das segundas-feiras. A conversa aprazada entre Carlos Fiolhais, Miguel Loureiro e Gonçalo Waddington, em torno de «O Nosso Desporto Preferido – Presente», há muito estava marcada para hoje, São Valentim. Como bem notou o arguto e divertidíssimo Carlos, melhor dia não haveria tendo em conta a proposta radical da peça para alcançar civilização de tipo superior: a abstinência sexual. Precisava, portanto, vencer, qual bailarino com a gravidade, a lei da física que me impedia de estar ao mesmo tempo em dois sítios diferentes, aqui e no lançamento do Helder. Não consegui, pelo que fiquei a ouvir o Miguel ler na perfeição excerto dos mais interrogativos, em páginas de torrencial poesia onde ecoam os gregos, essa natural raiz das coisas. A língua é desbragada e precipita-se. Uma cadeira arma-se em personagem principal. Temos deuses a insultar-se e um Michel, que só pode vir de Houellebecq. Ninguém como o Gonçalo usa em palco a ciência como instrumento de perguntar futuro, no caso a possibilidade de livrar a espécie humana das necessidades básicas. O Carlos soltou leitura desconcertante e erudita, em torno do cientista enquanto ladrão do fogo dos deuses, que será hoje a decifração final do código genético. Mas também na qualidade de pateta aprendiz de feiticeiro. Em ciência, a utopia acaba quase sempre em distopia, disse ele que sabe. Na peça, a experiência tem tudo para acabar mal. Por aqui, a conversa continua: é uma tetralogia…

Convento de Jesus, Setúbal, 15 Fevereiro

Não tinha ainda atravessado estas portas manuelinas para o interior da justa recuperação de Carrilho da Graça, dado voltas ao claustro onde Zeca e tantos outros cantaram, mirado as gárgulas a quererem soltar-se dos calcários. Detalhes, neles se encontra Deus e um espinho da coroa de Cristo ou um osso de S. Sebastião. Queria tanto tempo para me perder! Somos senhores de grandes tesouros e deles tão pouco usufruímos. Perderia horas prestando vassalagem a Santa Gerturdes, esta representação do mistério em corações inflamados, o olhar desejando a luz, os lábios ardendo em oração.

Ainda inebriado pelas visões, acabo em excelente companhia a usufruir de um divinal ensopado de pata-roxa, servido pelo castiço Luís Rebelo, n’A Casa do Peixe. Prosaicamente.

Horta Seca, 16 Fevereiro

Faz toda a diferença ver os originais do António Jorge Gonçalves para este seu livro que irradia «o esplendor dos corpos que dançam/Na órbita da morte», como escreve o Fernando Luís no seu poema. Em folhas de banal espessura e formato, desenhou a marcador em negativo. A cor acontece em folha separada com a transparência da aguarela. A combinação destes elementos aproxima a linguagem da gravura, mistura de tempos e tradições, fundo exacto para a dança da morte que coreografou. Cada imagem ganha peso de símbolo, abrindo para múltiplas leituras em jogo de espelhos. Mais um caso único, que merecia ser lido fora das fronteiras estritas do seu género.

Na inauguração, tivemos casa cheia, sobretudo com as gargalhadas de Novo de Matos, o desenhador de bisturi que lhe salvou a vida.

«A Minha Casa Não Tem Dentro», mas tem uma menina que desenha. E uma morte que anda com ela de comboio. Menina e morte as trouxeram de muito longe de regresso ao pai.

S. Luiz, Lisboa, 18 Fevereiro

Nisto, estou em palco rodeado de crianças a perceber que as minhas histórias para as mais disparatadas infâncias nascem do esforço de tudo e mais alguma coisa em ser outra coisa. Outra coisa um pouco mais que tudo. No Poesia-me, da Inês Fonseca Santos, circulou como arrepio a perguntinha: que queres tu? Pois, se o pretexto era o «Querer Muito», que tanto deve ao camaleónico talento do André da Loba. Às tantas, sobrou para mim. Costumo dizer a verdade do «astronauta», que me acompanhou longe no tempo, mas naquele instante quis ser «bailarina». Sem que tivesse dado por isso, sentada aos meus pés estava uma querídissima, de tutu e tudo. Ofereceu-se para dar lições, que começaram finda a sessão, ainda em palco para não perder minuto. Aprendi as três posições principais, mas não o nome dela. Tolo.

22 Fev 2017

Formas de dizer

Museu Picasso, Paris, 27 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rouxe lições desta riquíssima exposição, a primeira a cruzar olhares, obras e percursos, enfim, a amizade e os desencontros dos «monstros» Picasso e Giacometti. Não precisava, bastava o deleite de saltitar de uma forma para outra, da enormidade para o detalhe, do delírio para o pensamento, do mundo para o corpo. Esmagado percebi que artista será apenas aquele que tome por matéria-prima a energia e se deixe atravessar pelo raio do desejo. As vontades dionisíacas e primitivas destes colossos viraram as formas do avesso em vagas incessantes de criação. Nem a tristeza os travou. Em fundo, invariavelmente o eterno feminino abrindo-se em V de vitalidade, para se estender campo de batalha e principal soldado contra a morte, esse disforme enigma final. Na Baigneuse alongée, de Picasso, de 1931, braços e cabeça entrelaçam-se num nó que, abraçando o espaço, lança e recebe o resto do corpo feito mar. Na praia, onde o encontro incessante dos elementos sussurrará para sempre. Giacometti, em 1929, diz que uma Femme couchée qui rêve faz-se de ondas paralelas mantidas juntas e esvoaçantes um pouco acima da linha de terra por colunas, uma delas encimada por volume côncavo, talvez uma cabeça. O vazio, sempre ele a desafiar-nos, a conter-nos, a definir-nos. Como bem revela G. na série Femme (plate I) e depois sucessivamente (plate II) e (plate III): pelo nada somos definidos. Sublimes platitudes.

Ainda bem que fui a tempo, mesmo contra o tempo e o cansaço, sendo este primeiro sintoma daquele outro a roer-me, apertando cada vez mais nós. Na barriga, afinal onde, como dizia Manuel António Pina, deve ser o lugar do coração já que aí sentimos tudo, nervos como alegria, preocupação como desejo. Sofro de falta de tempo para me perder nele.

Santa Bárbara, Lisboa, 29 Janeiro

Nos anos 1930, Alberto G. compôs pequenas esculturas em palcos de branca fragilidade e fundos de silêncio, nos quais desenhou tensões e equilíbrios com sensibilidade a rasgar feridas, dando-nos a ver o gesto de as retirar à informe paisagem do ar com x-acto. (Note-se a ajuda que esta estranha palavra oferece com o cruzamento em alvo, chaga que acolhe a potência. E como nos faz falta o c para acentuar carnes). Uma delas chama-se Pointe à l’oeil: longa e orgânica forma cónica, afia-se em direcção ao exacto meio dos vazios que olhos ocupariam naquele pequeno crânio e costelas, esboço de corpo, espetado em solo níveo riscado de quadrícula e sulcos. Um prego negro de cabeça branca atravessa e sustenta a massa. Depois a luz dança de mil modos para não prejudicar as sombras que repousam. Quanta dor aqui se encerra e desvela?

Dirão que exagero, mas tant pis: incluo Paysage Après la Bataille, de Éric Lambé e Philippe de Pierpont, nesta bruta linhagem. Este P aponta-se-nos aos olhos, extraído ao branco com requintes de bisturi, P de paisagem e de perda. Com magistral gestão do ritmo, a batalha de uma mulher contra a morte da filha entrança-se, sob pesado manto de neve, com mão cheia de outras figuras a desfazerem-se no entorno. O pano de fundo sobre o qual evoluímos faz-se de amor e amizade e custa-nos negar à morte a possibilidade de fazer da paisagem beco sem saída. Corpos e fundos, nesta coreografia de encontrões se joga o essencial do labor de Éric. Nunca o silêncio foi tão bem desenhado. Nunca o branco foi tão negro. Mesmo quando a cor se junta à melodia com substância de personagem. Acontecem desenhos de estonteante pureza. Nada foi deixado ao acaso, basta conferir a rima entre a capa e as guardas, que alude à colecção de despojos que se diz vida. A narrativa longa estende-se sem perder, em momento algum, fulgores de verso. Algumas sequências agravam enigmas. E nunca deixam de brilhar as pequenas histórias de cada um dos actores, tratados com comovente ternura. Respira-se aqui humanidade. A leitura de «P» pode bem mudar-nos. Pena de quem não sabe.

Horta Seca, Lisboa, 2 Fevereiro

Perde-se no claro-escuro da desmemória o encontro com o trabalho de Jorge dos Reis, primeiro na sua qualidade de compositor de alfabetos, logo na de investigador atento das nossas artes tipográficas. Admiro muito o seu esforço de projectar atenção à obscuridade das oficinas quando a pele do mundo era de chumbo. E vibro com o divertido jogo com que faz das letras formas do olhar. A exposição, «Fragas Falantes», que celebra vinte anos e vinte tipos de letra, ergueu-se na faldas da serra, na Universidade da Beira Interior, mas veio ver o mar às paredes da abysmo galeria. O livro, com o mesmo título e grande formato, transpira saber e sabor. Foi feito em velhas máquinas, mas propõe mostruário de seres vivos, que outra coisa não são tais alfabetos. Cada página afirma-se poster, afirmação a um tempo subtil e gritada, útil e abstracta. Ajuntou-lhes pequenos comentários de gente do mesmo ofício, mas não apenas. Curiosa coincidência, vários dos convidados viram música nas suas composições. Também ouvi melodia na que me dedicou (na ilustração ao lado): Baco, que me surge inspirado em correntes de bicicleta. Percebo o deus desbragado, já as bicicletas… só se for metáfora para o esforço de locomover letras.

15 Fev 2017

Paisagem de mãos e rostos

Facebook, 23 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e Freitas, mano maneiro que maneja o post como farpa, assinou: «anda tudo muito preocupado com o Trump e o caraças mas era importante lembrar outros flagelos, por exemplo, gajos que tratam os amigos por “Mano”.» Tem razão. Não sendo novo, as redes amplificaram muito este modo de dizer proximidade, intimidade, fraternidade. Mastigado em tique, ganha a vacuidade da pastilha elástica. Limpa o hálito, sugere um ar cool, pode até aliviar os nervos, mas acaba cuspida. Custa-me ver atirada assim palavra com espessura. Gosto muito de companheiro, o que partilha o pão. Estou longe de desdenhar camarada, o que partilha a camarata. Mano, contudo, desdenha a realidade prática e activa os cegos afectos, os da absoluta liberdade. Ainda que contenha mão e portanto gesto. Desenvolvendo a manobra, mano-a-mano propõe ainda a igualdade básica dos diferentes. Confesso, portanto: ainda que cada vez mais preocupado com Trump, ou talvez por isso, continuarei a manusear o flagelo. Desculpa lá, mano novo, em dias de peste, só a fraternidade de punhos no ar evitará mais cadáveres. Os de corpo e os de alma.

Horta Seca, 25 Janeiro

Vestia sempre de verde, em vários tons, mas apenas detectado por olhar atento. A suave discrição camuflava-o com cores pastel de uma aparente normalidade. E no entanto o seu verde-arco-íris era uma afirmação gritante. Mário Ruivo foi dos poucos portugueses que viveu voltado para o sítio certo: o oceano. Cruzou ciência e política, teoria e prática, com notável ponderação, sempre ao serviço da revolucionária ideia de desenvolvimento sustentável. Tudo isto muito antes do ambiente se ter tornado moda e, portanto, pronto-a-vestir. Demoraremos, como de costume, anos a perceber a dimensão exacta da sua herança, a originalidade da sua perspectiva, a inteireza do seu serviço público. Recordarei a generosidade de inúmeras partilhas, invariavelmente de sorriso nos lábios. Sem ele, o mar seria bem mais descolorido.

Paris, 26 Janeiro

Não percebi logo que a edição do Liberation que me recebia era aquela toda ela ilustrada, o que acontece assim há décadas por ocasião do Festival de Banda Desenhada de Angoulême, ideia que importámos para o Público, nos idos anos 1990, e, mais recentemente, para o Diário de Notícias. Cena doméstica japonesa com gato, desta matéria se faz a primeira, assinada por Minetarô Mochizuki. Folheio com fastio sem que a actualidade me apanhe até que. Eric Lambé, animador do grupo Mokka com Alain Corbel, ambos velhos parceiros, dá-se em entrevista por causa do recente «Paysage après la bataille» (Actes Sud BD/FRMK), que desenhou sob influência do argumento de Philippe de Pierpoint. Só em França um diário de referência oferece este destaque à bd e se permite tratar obras assim desta maneira. A protagonista, uma mulher em luto pela perda de um filho, surge muitas vezes de costas e sem rosto, o que suscita a curiosidade do jornalista. Eric explica então que «até ao fim do livro me perguntei quem ela era e qual poderia ser o seu rosto na “realidade”. Talvez seja isso um livro, procurar um rosto, procurar uma pessoa…» Confessa ter pensado redesenhar todos os rostos no final, mas percebeu que aquela figura depurada fazia parte da criação e que assim deixaria espaço à imaginação do leitor. Rostos que se procuram na planície da página, para que mais serve o gesto de criar? A mesma dupla assinou um brutal e doloroso «Alberto G.» (Seuil/FRMK), em torno do genial Giacometti, que também assombrou esta minha estada.

Fundação C. Gulbenkian, Paris, 26 Janeiro

«O máximo de presença com um mínimo de gritos», assim definia Ângelo de Sousa o seu programa, cuja obra se apresenta pela primeira vez em França nesta fulgurante «La couleur et le grain noir des choses», que faz também ela jus à premissa, «o máximo de efeito com um mínimo de meios». A mão estende-se aqui paisagem a perder de vista, seja em desenho ou fotografia, pintura ou filme. Corpo e objecto, coisa útil, portátil e sempre disponível, à mão de semear no olhar do artista. Omnipresente ou apenas adivinhada. Signo maior do gesto, o que traça a linha, o que dispara o obturador, o que recorta as pequenas esculturas. Nunca me senti tão atraído e empurrado de um lado para o outro. O ordinário e o efémero, o lixo e o prosaico, ratos mortos e ruínas convivem brutalmente com a abstracção e o sublime movimento da cor na pele da tela e a dança das formas do aço tintado ou das orelhas postas em irrequieto sossego. Nunca o belo foi tão feroz. Apetece gritar. «Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto».

Fundação C. Gulbenkian, Paris, 26 Janeiro

Soou incómodo ouvir, e agora, de algum modo, escrever, mas de que serve o pudor, quando estamos sós? Na biblioteca lusófona do bd de La Tour Maubourg, pela mão dita de Anne Lima, da Chandeigne, falou-se, pela primeira vez, não em França, mas em público, do modo como a abysmo se vem fazendo centro de uma intrincada rede de autores, que vai muito para além do tornar livro. Para o melhor e para o pior, têm explodido por aqui encontros de vários graus, leituras em voz alta, projectos partilhados, opiniões discordadas, antologias recolhidas e interpretadas, ensaios dirigidos, mergulhos em apneia nos manuscritos – mesmo no computador, é a mão quem mais ordena – de uns e de outros. Já tinha acontecido, apenas em perfume, em contos do Valério Romão, afinal o pretexto que nos trouxe a este «rencontre de la bibliothèque», mas este ano passará a um outro nível quando alguns autores se tornarem personagens. Que rostos virão a ter, na realidade?

9 Fev 2017

Respiração das coisas

Bedeteca da Amadora, 19 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma caneta de tinta permanente, não a primeira, mas a mais viajada. Um rato de computador, antigo quanto baste, também não o inicial, mas com ele andei horas sem conta de mão dada na solidão da pradaria fluorescente. Um velho fio-de-prumo, gasto e sujo de cimento, este herança de pai que se gastou no moldar das pedras e no erguer das casas. Espero que seja suficiente para colocar a dúvida na meia dúzia de almas que passará os olhos por estes três objectos nas vitrinas, lado a lado com recortes de jornal com tiras impressas, notas rasuradas e esquemas coloridos. Um argumentista trabalha nas obras? Ao cabo de muitas dezenas de exposições sobre o trabalho dos outros, ser posto na qualidade de objecto deste «Banda Escrita: uma exposição em torno do trabalho do argumentista» perturbou-me. Mexer no passado põe-me a fazer contas de cabeça. Sem exageros, que é coisa modesta, como convém, em curva entalada entre o elevador e as lombadas. Amostra será, mas capaz de me fazer olhar, por primeira vez, para este somatório como corpo. Gosto de ver corpos, mas terá este as partes essenciais para se erguer do esquecimento, autor ou Frankenstein? Depois, basta folha velha para iluminar momento em que o caminho bifurcou. (Foram tantas as vezes, que duvido até do caminho.) Estava sublinhada a palavra importante? Ou urgente? Havia ali a possibilidade de outra vida? O passado continua promissor. Não nos levemos a sério. Só o puro gozo me empurrou para o terreno baldio das bandas desenhadas, algumas delas aqui e agora evocadas, por força do esforço desamparado (politicamente) do Pedro Moura. Duram um relâmpago mais, se alguma vez contiveram luz. O trabalho do argumentista resume-se ao despertar no desenhador o desejo de imagens, disse Benoît Peeters, o das frias cidades mentais. Mantenhamos o assunto atado à âncora volátil do desejo.

RTP 3 | Facebook, 20 Janeiro

Devo um obrigadinho a Trump, o despenteado mental. Para comentar a sua tomada de posse, António José Teixeira, velho amigo agora na RTP 3, encomendou 30 segundos aos Spam Cartoon, projecto de cartoon animado que partilho há anos com o André Carrilho, a Cristina Fazenda e o João Fazenda. A Cristina fez da criatura um boxeur desastrado que, em dança macabra, castiga tudo e todos até que a própria força o derruba. Visão esperançosa, bem entendido, mas pouco nos resta além disso: revolta, pensamento e… esperança. Não o podemos reduzir à caricatura que incarnou neste filme de série B com que nos atormenta, mas o riso e a raiva são o nosso trabalho, reclamando, pelo menos, a mesma liberdade que ele afirma para cuspir barbaridades. O mundo não pode limitar-se a ser saco de pancada. No momento em que escrevo, na métrica da contemporaneidade, i.e., no Facebook vai em 40 mil e tal partilhas, 5600 gostos e mais de milhão e meio de visionamentos. Curiosamente ou não, a maioria dos comentários defende-o com a energia do insulto.

Santa Bárbara, Lisboa, 20 Janeiro

A nossa casa cresceu. Primeira consequência de quando um gato toma posse. Chão é apenas começo e a descoberta da novidade não se fica pelas traseiras do sofá. O olhar felino define nas ombreiras e nas portas, nos interruptores e nos puxadores, nas estantes e gavetas, nas bancadas e mesas, até no tecto, sinais ocultos de respiração das coisas. Inúmeros lugares saltam à vista: bons de dormir, ideais para desaparecer, perfeitos para a provocação. O bicho tigrado preferia que lhe fosse roubar a bola com que se entretém desdobrando-se em múltiplos, o que atira e o que apanha, o que salta e o que rebola. Juro que os vejo em simultâneo. Onde antes havia tédio nasce enigma. Começámos por lhe chamar Pires, invocando a alma peluda de Rafael Bordalo Pinheiro, mas o puto insiste em comportar-se como Ivan. O frenético.

Livraria Miguel Carvalho, Coimbra, 21 Janeiro

Estava um frio de rachar convenções e até as hirsutas máscaras africanas me surgiram arrepiadas, quietas na paragem entre a ironia e o desdém. Impressão minha, elas não encarnam doutores. Pedro Serra partilhava leituras para «Beleza Tocada», uma bíblia roxa de tão negra na qual se conserva a voz singular de José Emílio-Nelson. Prometendo desenvolvimentos para breve, em começo de conversa propôs dois eixos, o da merda e o do ar, que cruzou depois com interpretações de obras de Manzoni, para afirmar a extrema materialidade em que assenta esta poesia: a alma esfuma-se com a morte, mas o corpo mantém-se como cadáver. José Emílio acendeu a verve e apresentou o seu programa: «escrever as últimas palavras possíveis antes de ser queimado em auto de fé». Exige que o pecado seja inscrito na normalidade e filia-se na danação. Em contínuo diálogo com a pintura, a música e o cinema, condenados a ecoar no luxuriante labirinto do catolicismo, os seus versos parecem desenhados a escopro em fragas ora de granito ora de mármore: «A Língua, beleza tocada, sopra em órgão, no escarlate martírio amortalhado / em frenético espasmo. ». Diz o poeta que o detalhe é a fissura, pelo que tenta a emenda até ao último suspiro, tendo quase enlouquecido Luiz Pires dos Reys, que desenhou com sublimes minúcias o volume de 726 páginas. Em volume antigo, «Pénis Pénis», composto ainda em chumbo, acrescentou à boca da máquina a palavra excremento para indignação do compositor. No volume impresso, saiu escremento. Confrontado, respondeu o velho tipógrafo: «deixe lá, sempre disfarça».

25 Jan 2017

Dias todos

Horta Seca, Lisboa, 9 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia que começa com correio é dia maior; ano que começa assim, espero que expluda. O próprio livrinho vestiu-se envelope, foi trazido pelo e teve que se abrir com corta-papéis. «O ano em que o calendário avariou» contém poema homónimo de Manuel António Pina interpretado pela M2N Press, dos queridos Marta Madureira e Pedro Amado, ou seja, «composto em caracteres móveis de 10 e 16 pt, de Grotesco corrente (Antiga Inglesa) e Bodoni itálico. Impresso em cartolina offset 315 e printeset de 50 g/m2 numa Adana HS2 em Dezembro.» Puro gozo. Os caracteres dançam no que dizem e no que figuram abrindo transparências delirantes, segundas leituras, divertimentos. E depois o verde surge segunda cor, que tinge também a linha que coze os cadernos. A mistura de tempos em que vivemos na arte das impressões em papel pode multiplicar a fauna no jardim das delícias. «Naquele ano espantoso/cada um podia ter à vontade/as suas manias/porque todos os dias eram os dias todos». Obrigadinho é que lhes desejo.

(Paradoxo por resolver: mando cada vez menos cartas.)

Assembleia da República, Lisboa, 10 Janeiro

Ao mesmo tempo impressionante e divertida, a mais comovente das despedidas a Mário Soares: povo que grita, «Soares é fixe!». A simplicidade constituiu-se assim moldura exacta para a solenidade das homenagens. O militante anti-fascista, o político e conspirador incansável, o bon vivant com sentido de humor, o grande leitor e apreciador de artes plásticas, atraído pelos mares, o ensaísta mais ou menos polémico, o cosmopolita bem relacionado, o estadista com causas, o ministro, o primeiro-ministro, o presidente da república, tudo e mais alguma coisa, que o homem foi do tamanho do século, tudo resumido numa frase de campanha, singela e quase banal, uma brisa de Verão. E depois regressei ao dicionário (Houaiss, 2003), como há anos fazia semanalmente, para ver o que se esconde na palavra e logo a surpresa: ajustado, que possui firmeza, confiável, dotado de inteireza, forte, que agrada. Mesmo o primeiro dos significados – rectângulo de madeira ou ferro destinado a sustentar locomotiva – faz sentido se pensarmos no tempo enquanto comboio. De alta velocidade.

Centro Cultural de Belém, Lisboa, 12 Janeiro

Ouvir uma conversa está longe de ser o mesmo que vê-la. A voz, só por si, concentra atenções. Creio que se perderá menos, portanto, do primeiro Obra Aberta quando for transmitido, dia 16, na Rádio Renascença. Ao vivo, em sala cheia, a Maria João Costa geriu, com a mestria que se lhe reconhece, o ritmo do dueto entre os brilhantes professores, tradutores, ensaístas, Frederico Lourenço e António de Castro Caeiro. E com que corpo estas vozes se apresentaram! Não podia ter começado de melhor maneira a primeira fase deste projecto, em boa hora acolhido por Elísio Summavielle. Uma seta disparada na direcção dos tristes pedagogos que dão o ensino da filosofia como tempo perdido, dispensável obstáculo na formação veloz e eficaz das novas gerações. Cada um a seu modo iluminou com cristalino pensamento o tempo que atravessamos. Além das obras respectivas – Novo Testamento (Quetzal), a ambiciosa tradução que marcou este Natal, no caso do Frederico, e para o António, Um Dia Não São Dias (abysmo), tentativa de discernir o modo como apercebemos o tempo –, pedimos aos convidados para atirarem ao lume da discussão outros títulos da actualidade, escolhas que incluíram Fédon, de Platão (Guimarães), a Obra Poética, de Sophia (Assírio & Alvim), Ser e Tempo, de Heiddeger (ed. bras. Unicamp), ou Doutor Fausto, de Thomas Mann (D. Quixote), entre outros. Destabilizadora, esta sabedoria que atravessa o tempo em baixo contínuo. Fiquei a matutar na leitura do António: haverá criação sem amor? «O Fausto da tradição em que assenta o de Goethe vende a alma ao Diabo para comprar tempo de juventude. Era um homem velho cheio de mundo e de vida, mas sem o amor que apenas tarde na vida lhe acena. O Fausto de Mann também vende a alma ao Diabo e é tempo a moeda de troca, mas é um jovem músico. O tempo que pretende é para a criação artística. E é por amor que o Diabo lhe exige precisamente não amar. O olhar do amor passa a ser para Fausto o olhar da perda e da morte. Tudo o que vê morre. Ganha 24 anos, mas pode trocar-se a possibilidade de amar pela possibilidade de criar?»

Desconhecia em mim o nervoso miudinho que me pregou à parede do fundo a jogar pingue-pongue de mãos nos bolsos.

Casa Fernanda Botelho, Vermelha, Cadaval, 15 Janeiro

O pretexto foi a entrega do Prémio Literário Fernanda Botelho dedicado ao conto, patinho feio da edição nacional. «Os portugueses não se interessam por contos…», dizem os nossos editores, como se não dependesse deles tentar fugir aos interesses, ou, pelo menos, expandi-los. E esquecendo Aquilino, Brandão, Herberto, Sophia, Sena, Mário de Carvalho, Cardoso Pires ou a própria Fernanda Botelho, cuja casa visitámos em seguida. Devido ao amoroso dinamismo da sua neta, Joana, tornou-se centro cultural que, além de preservar o espólio, em colaboração com o Centro de Estudos Comparatistas, irradia propostas de promoção de leitura e interpretações multidisciplinares da obra. Outro caso sério, capaz de afinar (em feminino) o nosso olhar sobre o século XX. Em breve, na abysmo.

19 Jan 2017

Paisagens que não existem

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ei bem como fui deixando que acontecesse, as festas são apenas sinónimo de mais afazeres. Faltou-me tempo para lamber mais uma cria: Poesia I – Odes Modernas e Primaveras Românticas, o primeiro volume de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental muito laboriosamente preparada pelo Luiz Fagundes Duarte. A todas as suas outras qualidades, devo acrescentar o entusiasmo com que foi recebendo as propostas gráficas do Miguel Macedo. Sem desrespeitar o lado científico, a opção foi colocar algum aparato ao serviço do poema. Sabendo dos cuidados de ex-tipógrafo que punha nas suas edições, agrada-me sobremaneira a elegância da mancha, usando pela primeira vez a Gazeta, a fonte de Ricardo Santos, bem como o papel diferente nas páginas do aparato crítico. O alto-relevo no Antero da capa dá-lhe carácter, com o fundo azul a fazer regressar as primeiras edições. Tudo somado, as mãos não querem largar o objecto e os olhos lêem nele paisagem. E depois há o logótipo. Não sei se sabem, a abysmo não se fixou num logótipo, antes convidando cada designer ou ilustrador a interpretar a palavra. A brincadeira virou um caso e temos agora dezenas de identidades. Nos estudos preparatórios, o Miguel descobriu-a nos manuscritos de Antero. Deixou-lhe ficar uma vírgula, a pausa que se torna a sua marca de autor, e eis-me impante por ter para lá do tempo o poeta a dizer a editora.

CCB, Lisboa, 20 Dezembro (2016)

Ziguezague, os passos em volta estendem-se assim mesmo. Não se estranhe, não pedirei desculpa pelos saltos no tempo. Ao fim de mais de um ano de intenso trabalho e de uma mão-cheia de concertos, os No Precipício Era o Verbo subiram ao palco do pequeno auditório. O frio ficou fora e confirmou-se, para mim, o essencial: temos espectáculo. Encontro espessa coerência no alinhamento, na subtil encenação, feita sobretudo de luz, de chegadas à boca de cena e recuos para a escuridão, com o diferente grão das vozes e a melodia dos modos de dizer calibrados. Bom trabalho de grupo, sob respiração ansiosa do José Anjos. Escusado será dizer que o contrabaixo de Carlos Barretto se faz o eixo sobre qual tudo gira. Aqui, faz-se furacão e arrasta em remoinho palavras, corpos, gestos. Ali, faz-se farol atraindo olhares, desviando atenções. Não deixa nunca de ser feixe luminoso dirigido ao coração da palavra suspensa do corpo que a diz. Não há nada de novo nisto do espectáculo de poesia. Há qualquer coisa de novo neste. Não acho espectáculo a palavra exacta. Não sei ainda o que trazem de radicalmente novo os NPEV. Houve muita alegria, humor, densidade. Houve memória nos dias seguintes. Estão para as curvas.

Enquanto não chega o livro, cujo esboço da dupla André da Loba e Dulce Cruz anuncia ser entusiasmante, circula já o disco, embrulhado em cartaz onde quatro corpos dançam rodando sobre si nas coloridas cinzas de um vulcão por extinguir. Da Loba tem recolhido um conjunto de figurações que se alinham como letras de alfabeto criativo, seres dispostos a falar dos seus lugares no mundo. Estes quatro estão agora nessa paisagem que inclui jornais, paredes, impressões do mais variado tipo. A Dulce dobrou um origami que aconchega uma «bolacha» onde os corpos parecem peças de «puzzle», restos de branco boiando em negro com transparência. Sem os terem visto ao vivo adivinharam que muito disto resulta do namoro entre a luz e a obscuridade.

Horta Seca, Lisboa, 4 de Janeiro

A Associação para a Promoção Cultural da Criança pontua a sua programação anual com a edição, por esta altura, de um par de pequenos álbuns. Este ano o desafio foi uma visita ao seminal «Utopia», de Moore. A Inês Fonseca Santos juntou-se ao Nicolau para contar «Vincos», história na qual as marcas no corpo fazem anunciar possibilidades, onde os corpos podem até tornar-se mapas e as personagens caminham sobre as nuvens do sonho. Vi o pequeno álbum em tons laranja ir se desdobrando perante os meus olhos. E soube-me a tangerina. Naturalmente, pois está uma delícia.

O segundo coube-me a mim, que há muito não escrevia para os putos, independentemente da idade. O desgraçado que teve que absorver os meus atrasos de vida foi o Rui Rasquinho, que se desenrascou de modo notável, com ligeireza e elegância. Fomos ver do avesso das cidades, tocando-as com as mãos, até descobrirmos um velho marinheiro que fala de palavras e do modo como se tornam navalhas de rasgar impossibilidades. Este velho marinheiro, que prefere as paisagens que não existem, trouxe-me de volta o velho amigo Júlio Pinto. Saudades.

Passevite, Lisboa, 9 Janeiro

Dois anos depois do atentado ao Charlie Hebdo, e a pretexto do lançamento do fanzine Uppercut (stolen books), que reúne cartoons do André Carrilho, juntámo-nos coma Cristina Sampaio e o António Jorge Gonçalves, no atelier galeria do Rui Lourenço e cúmplices, para discutir se «somos todos charlie». Duas ou três conclusões breves de uma conversa rasgada. O humor é o lugar da absoluta irresponsabilidade. Somos melhor sociedade, mais oxigenada, se nos dermos esta liberdade. O humor gráfico nacional nunca foi punk e tempera a raiva com o apuramento estético. Estas conversas, em torno do ofício do desenho de opinião, deviam prolongar-se indefinidamente, talvez mesmo passarem a papel, em busca de mais olhos e ouvidos. Sugiro aqui fazermos nova edição do fanzine desenhando a conversa.

Os 300 exemplares (assinados e numerados) de Uppercut foram impressos em riso, essa nova técnica, barata, portátil, artesanal, algo primária, que reintroduz o erro humano na impressão. Quando os ecrãs brilham a ponto de esconderem o original, a maneira de o multiplicar faz de cada objecto caso único. Isto do regresso do erro diverte-me.

11 Jan 2017

Saltar aos olhos

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or causa da Inês Fonseca Santos e do seu micro-gigante programa da RTP3, Os Livros, regressei a uma das minhas paixões: Nuno Bragança. Este cometa não compôs obra, desenvolveu uma criatura. Cada leitura revela novo livro, como se as bem esculpidas personagens, entretanto tornadas tipos, ficassem por ali a viver as respectivas vidas, a evoluir em pano de fundo tuga. A nossa leitura apanhou-os naquele momento, mas podia ser outro. Pode bem ser outro. Aprendemos tanto sobre «viver em nós nervosos sustos» em modo sempre à beira da dor. Continuam a chamar-lhes romances, mas para mim são ensaios autobiográficos, alguém que na escrita sem fronteiras se busca, questionando a norma e o óbvio, alcatifa poeirenta que calcamos. A escrita foi fazendo e desfazendo o Nuno, não apenas pela língua libertina e desenvolta, fresca e inesgotável, lúbrica e divertida, poética e minuciosa. Soube rasgar-se personagem de romper para cima, putativo rei militando contra a ditadura, católico a pensar-se. Rindo sempre, alarvemente. Eis isso mesmo: a língua de Bragança é uma gargalhada. De ponta e mola. Depois há Lisboa, a Lisboa que o tempo e suas turistagens vai pisando com distracções de fugir. Que escritor nos diz hoje das lisboas por debaixo? Dói de bela e sujidade, descalça de tão despida. Carne viva. E depois há Deus, ao desafio, como convém. Ainda mais carne e verbo. Tenho para mim que a literatura portuguesa do século XX faz-se de casos únicos, mergulhando, pois claro, raízes em tradições e movimentos, mas caderneta de cromos sem grandes equipas. Nuno Bragança surge como o mais vivo dos argumentos nesta tese de trazer por casa.

Facebook, 14 Dezembro

O Cabrita dedica-me, e ao Luís Carmelo, A Arca, um conto inédito que publica na revista online, Caliban (Shakespeare, sim, mas não apenas, também o Grabato Dias da minha primeira adolescência).

Como oásis, a sua escrita desfaz-se lugar de sombra e refrigério com a palavra a galopar atrás das mil ideias, mil imagens, mil sabores, mil perfumes. Tudo começa no momento em que o céu se declarou lotado, causando, no seu embaciado espelho, um tapete de catástrofes, do suicídio papal ao tumulto generalizado, porque «se passaram a confundir o real e o imaginário, o medo e a superstição, as expectativas e o delírio». Na sequência, alguém sonha e convoca, para Tombuctu¸ «uma comunidade cosmopolita e despojada de espírito nacionalista que combatesse fraternalmente contra verdadeiros problemas, terrenos, de ordem prática e física, fundando, a partir desse empenho no trabalho comum e no sacrifício, a dignidade de uma vida arredada do consumismo e os alicerces de uma refundação humanista que pudesse servir de exemplo para os demais homens.» Este teu convite, António, a alguém que já subiu e desceu as dunas côncavas e convexas da utopia, comove-me e diverte-me, cala fundo no coração adolescente. Mas e os lacraus?

Galeria António Prates, Lisboa, 27 Dezembro

Acontece-me muito. A querer fugir da feira de gado do social, evito as inaugurações e depois a agenda desgovernada faz-me andar aos trambolhões até perder o que não queria. Envergonho-me de o escrever, foi assim com o Escada na Fundação Gulbenkian. Por um triz, acontecia com esta Monster’s Ball, do Pedro Zamith, cujo percurso admiro e acompanho há muito. Bebo-lhe a energia explosiva, a irrequietude, o olhar viperino. Desta vez o alvo é a imbecil gourmetização do mundo, estando aqui à mesa a cozinha e a moda. Vai um exemplo ainda quente? O Público presenteou-nos no dia de Natal com a nova revista Culto, cuja matéria principal desafiava chefs a imaginarem a sua última refeição se fossem condenados à morte. Dá para acreditar? Com o Pedro sai tudo esturricado, não podia ser de outro modo. O pincel pop, de cores estridentes e perspectivas delirantes, faz-se faca de cerâmica afiadíssima para esculpir cenas (domésticas) da nova burguesia tardo-cosmopolita, parvo-cosmopolita. Como descreveria Nuno Bragança tais figurinhas? Algumas peças são tridimensionais, mas nem precisavam para nos saltar aos olhos. Arte a fazer o que deve, a obrigar-nos a engolir em seco. Monster’s Ball pode ser, no inglês urbano, clube nocturno cheio de «gente feia» ou a última refeição dos condenados à morte. Dancemos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Dezembro

A interessante Pato Lógico, do mesmo André Letria que já me iluminou, e a INCM juntaram-se para criar a Grandes Vidas Portuguesas, colecção que, com bom gosto escrito e ilustrado e paginado, procura apresentar velhos ilustres a jovens leitores. Alguns textos foram brutas desilusões, mas chega-me agora às mãos um belíssimo José Saramago – Homem-rio, da Inês Fonseca Santos e do João Maio Pinto, gente daqui do coração. Brutal dupla, esta! Quando a palavra desperta destas imagens, estamos feitos. A Inês vai namorando a metáfora, nascida em poema, com a delicadeza que lhe habita o peito para traçar o sensível retrato de um escritor que, afinal, respeitava as muitas infâncias. Convém dar atenção ao trabalho da Inês com os putos, longe que está de se esgotar na escrita. O João deu um passo em frente no seu estilo, em direcção à luxúria, mais rico em detalhe e com subtil gestão da cor e do preto e branco. Refrescante ou caloroso, consoante a estação em que nos sentemos/sintamos.

Mouriscas, 30 Dezembro

Devia estar a fazer balanços, que o ano, apesar de gordo em fracassos, também ofereceu alegrias. Não me apetece. Foi excessivo, como deveríamos viver sempre se aplicássemos os delirantes mandamentos de Bragança. Vou dormir a sesta, uma que valha pelos dias todos: bissexta.

4 Jan 2017

Língua suja

FACEBOOK, LISBOA, 13 DEZEMBRO

[dropcap]N[/dropcap]os terrenos da minha infância cresciam unas ervas esguias com tons de primavera e sabores invernosos. Depois das corridas e outras ocupações suadas, espremíamos o seu suco entre dentes. A sabedoria científica do bairro chamava-lhe azedas, mas a palavra não contém o arco-íris de sabores agridoces. Este poema-raio da Rita Taborda Duarte, que espremi, entre afazeres, soube-me a azeda. E fez chorar um gajo que nunca será mãe, e dificilmente será mulher, também pela razão simples de que tem saudades de filhos que não chegou a parir.

«QUANDO A MULHER SE TRANSFORMOU MÃE // As mães,/ azedas,/ transformam em leite/ tudo aquilo em que tocaram e/ aflitas / escavam uma cova funda no coração do útero.// Todos os meses têm mênstruos férteis/ e povoam o mundo com as saudades / dos lhos/ que não chegaram/ a parir// Só depois/ puxam como Arianes loucas/ o cordão dos lhos entrançado/ na meada da infância/ – dobam-no até à raiz do tempo –/ e guardam no ventre desabitado/ o novelo de uma imensa solidão»

EL CORTE INGLÉS, LISBOA, 13 DEZEMBRO

Mais uma sala cheia para ouvir Helder Macedo lançar preciosas pistas de navegação no alteroso oceano que é a obra de Shakespeare. Outro espectáculo subtil da inteligência, não apenas na análise das quatro obras, centrada em um conceito (culpa, em Hamlet; nada, para Rei Lear; traição, em Otelo; bond, i.e., vínculo, título de dívida, e mais…, para O Mercador de Veneza), mas nas múltiplas articulações com os nossos dias.

Interessa-me, aqui e para já, cometer a inconfidência da conversa ajantarada e avantajada. O Helder foi Secretário de Estado da Cultura de uma breve e exaltante experiência de governação, capitaneada pela carismática e saudosa Maria de Lurdes Pintasilgo, nos finais de 1970. Isso, de par com a sua posterior candidatura à Presidência da República, marcou o fim da minha infância, de complexa e azeda maneira. Tê-lo, à mesa, a testemunhar de um tempo que fez um nó no tempo, derrubou as paredes da sala e colocou-nos, também ao José Anjos e à Susana Santos, no meio de um filme, misto de Buñuel com Pasolini e pitada de Fellini. Muito do que agora se dá por adquirido na cultura de Estado, apesar das ameaças constantes, teve então gestos primordiais, que valia a pena revisitar. Como esse estranho episódio de interrupção da democracia por razões técnicas à maneira do canal único de televisão, cometido pelo governo que se lhe seguiu, liderado por Sá Carneiro, com Vasco Pulido Valente no lugar de SEC e onde surge – nas Finanças, claro! – a sombria figura de Cavaco: cada uma das medidas tomadas pelo governo Pintassilgo foram suspensas, nalguns casos até ao nível do despacho. Um deles autorizava a resolução de problema eléctrico no Museu de Arte Popular, que acabou por estar na origem do célebre incêndio que destruiu preciosa obra colectiva (Vieira da Silva, Pomar, João Vieira, entre muitos outros), na qual se celebrava o primeiro aniversário da revolução. Shakespeare, sempre tão próximo.

PASSEVITE, LISBOA, 17 DEZEMBRO

A polémica que por aqui lavra confirma o peso das palavras. O Ricardo Araújo Pereira disse que hoje seria difícil hoje fazer uma velha rábula com «anões, coxos e mariconços», que incluía também vesgos, fanhosos e atrasados mentais. A provar que tinha razão, explodiu uma troca de argumentos muito interessante. Ou quase. Eduardo Pitta, no seu blogue armou que «Ricardo Araújo Pereira lamenta não poder achincalhar os mariconços. Eu não sei o que é um mariconço.» Paulo Corte-Real, da Ilga, fez o curto-circuito aos crimes de ódio. “Conhecendo a dinâmica dos crimes de ódio como conheço, também conheço a sua ligação aos insultos.” Hoje, no Expresso, a deputada Isabel Moreira acrescenta uma aula de ciência política. «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?». A liberdade, diz ela, embora com nuances, é valor de direita. A esquerda é mais igualdade.

Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

A pele das palavras muda e é divertido imaginar que as conseguiremos limpar até ficarem brilhantes de tão puras. Velho tornou-se depreciativo? Chamemos-lhe sénior. Demos-lhe mais anos de vida? Anão passou a magoar? Tratemo-lo por indivíduo desproporcional ou de baixíssima estatura. Com isso cresceu?

Uma amiga contou-me da dificuldade que teve, ao longo de meses, em passar a tratar por clientes os deficientes com quem trabalha. A bem do rigor, foi banido o uso de utente, paciente, etc. Hesitei na palavra deficiente, mas melhora se a substituir por pessoa portadora de deficiência? Não creio que o combate vital à descriminação se resolva assim. E perigosa me parece esta deriva, em gente tão atenta aos detalhes da língua, que lê insulto no humor. Obviamente, o humorista não está livre de crítica e pode ignorá-la, mas também desaparecer por falta de graça. Ora uma das grandes conquistas da civilização, a duras expensas, foi a liberdade de expressão e do grito, por exemplo, no espaço polémico do desenho de humor, da caricatura. Como em inumeráveis atitudes e leis censórias, o argumento de defesa dos assassinos dos desenhadores do Charlie Hebdo foi a defesa da honra perante terrível ofensa, no caso, religiosa. Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

André Carrilho, que inaugurou ex- posição de brutais serigrafias (Uppercut, na Passevite, até 5 de Janeiro) feitas a partir dos seus cartoons (o que ilustra a crónica foi capa do DN na sequência do Charlie Hebdo), que se acautele: vai ter que emagrecer muito gordo, revestir muita careca e corrigir narinas. Ele tem histórias para contar.

HORTA SECA, LISBOA, 18 DEZEMBRO

Acabo de saber que, segundo um colega editor, as edições da abysmo são «apanascadas». Deu-me uma alegria redentora que nem vos conto.

21 Dez 2016

Língua suja

Santa Bárbara, Lisboa, 4 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] domingo havia já amarelecido antes do e-mail do Helder Macedo trazer comentário à morte de Ferreira Gullar, construtor desse alto lugar nesta nossa língua chamado «Poema Sujo» (Ulisseia). Brota tanta vida pelos poros dos versos que custa invocá-los a propósito da morte. Vejo-o a encolher os ombros ao ler isto. Então a morte faz parte do quê se não da vida, cara? Encontrei-o uma única vez, no Rio, com o Helder, fazendo da língua mesa de conversa, a convite da minha querida irmã zuca, Paula Ribeiro, para a revista UP, a maior ponte aérea alguma vez feita entre os dois lados do Atlântico. A inteligência surpreende-me sempre, tem qualquer coisa de navalha. Sem dor, se não incluirmos o desconforto de perdermos o chão.

Por causa dos assuntos estendidos entre nós, na casa onde os gatos disputavam a irrequietude às artes plásticas como no calçadão onde não deixou de responder às interpelações dos transeuntes, gravei com goiva a imagem cada vez mais perdida do intelectual, alguém que, livre, libertário, usa a língua para descobrir enigmas nos caminhos que rasga. Retiro da dita entrevista um exemplo apenas, agora que a culpa é bastante regada pelas cenas pós, tolhendo demais o pensamento, que, para o ser, obrigatoriamente se exige livre, libertário, sem destino marcado, como poema de Gullar.

«Eu fico imaginando o Brasil, sem o colonizador: seria o quê hoje? O índio brasileiro é da Idade da Pedra: não construiu palácios, faz umas palhotas; ia dar em quê? Sei que é chato falar dessas coisas porque tem que se ser contra o colonizador, mas eu estou-me lixando para esses conselhos. O Brasil que existe se deve ao colonizador, com as coisas boas e más. E não é verdade que mataram essa quantidade de índio aqui, é mentira. Até ao século XVIII, a língua que se falava no Brasil era tupi-guarani, a língua nacional, a língua geral do Brasil. Os nossos índios, a nossa civilização, era nómada, nómada não cresce. A humanidade só passou a crescer quando os caras se estabeleceram e viraram sedentários; aí criaram agricultura e tal. Nómada não cresce, é toda uma história inventada para amaldiçoar o colonizador. […] E porque é que falavam a língua geral do Brasil no século XVI? Porque o português que veio para cá – nenhum nobre queria vir para cá – era o cara que ia para a cadeia: “Quer ficar preso aqui ou quer ir para o Brasil?” Ia para o Brasil; chegava aqui não tinha mulher, não tinha nada, transava com a índia, fazia filho. Quem criava o filho era a índia, então ele virava índio e falava tupi-guarani, claro. O Matias de Albuquerque, quando foi chamado para acabar com a rebelião dos palmares em Pernambuco, não conseguia se entender com o governador que falava português e ele dizia que falava tupi-guarani, Matias de Albuquerque! [risos] Não é tão simples como o pessoal diz.»

Dói-me a falta de uma entrevista de vida. Pensando melhor, posso encontrá-la nas páginas de carne e sangue, de suor e merda, com que aumentou a nossa língua comum.

Mymosa, Lisboa, 6 Dezembro

Em almoço a despropósito com o Sérgio Godinho, a que se juntou o José Teófilo, acabámos falando de Elza Soares, um dos meus monstros íntimos, que passou recentemente por Lisboa. Apresento-lhes, percebi, o seu desafiante primeiro disco de inéditos, em mais de 55 anos, em A Mulher do Fim do Mundo, e que abre com poema Oswald de Andrade: «Coração do mar / É terra que ninguém conhece / Permanece ao largo/ E contém o próprio mundo / Como hospedeiro». E segue compondo retrato de mulher inteira, contando com indescritível energia e criatividade as histórias, suas e dos outros, como convém a um criador, com uma voz toda feita de carne, livre, libertária. Uma mulher do fim do mundo que, aos 86 ou 79 anos, pois não se sabe com rigor quando nasceu, canta «Meu temporal me transforma em loba/ Presa, você vai gemer/ Feito cordeiro entregue pra morte/ Seu sussurrar a pedir// Pra fuder, pra fuder, pra fuder, pra fuder.»

Nisto, o Sérgio atira para cima da mesa Carminho canta Tom Jobim. Usa até argumento ao qual não posso responder pois trauteia excertos de Sabiá. Corro, claro, que não se desperdiçam dicas de quem sabe, de cá e de lá. Fez-se logo banda sonora dos dias, embora àquela prefira de longe Retrato em Branco e Preto. Por estranho que pareça, a tristeza gritada do Fado encaixa com perfeição no alegre veludo da Bossa. Na nossa língua morrem com extrema e estrondosa elegância as ideias feitas.

Bar Irreal, Lisboa, 7 Dezembro

O mano Luís Carmelo dá-me a beber em voz alta Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar. Levanta-se bruscamente, esbraceja, esquece o microfone, segue o fio caudaloso, alteia a voz no momento preciso, para logo voltar à torrente e todo ele brilha. Parece um miúdo a desenrolar ali uma língua nova, sinuosa nas dores e intensidades, afinal tão comuns.

Estive quase para entrevistar Raduan, quando por instantes me julguei jornalista. Arrependo-me amargamente de o ter falhado. Aliás, arrependo-me tanto de ainda não ter descoberto o Brasil…

Cine-Teatro, Pombal, 9 Dezembro

Não terá sido exactamente o primeiro concerto de No Precipício Era o Verbo, projecto de palco no qual Carlos Barretto ilumina com o seu contrabaixo os poemas ditos, escritos, traduzidos e encenados por António de Castro Caeiro, André Gago e José Anjos, que também os sublinha com percussão. Mais foi a primeira vez que se atirou sem rede a uma cidade que pagou bilhete para assistir a um formato, como agora se diz, desconhecido. Resultado: uma sala que bebeu cada palavra ao longo de quase hora e meia. Experimentei no escuro da plateia um saboroso entendimento entre os quatro criadores, capaz de comover e interpelar e até fazer sorrir. Ouvi bastante, no final: por vezes, compensa sair da caixa.

14 Dez 2016

Irmãos esquecidos

Santa Bárbara, Lisboa, 27 Novembro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste exercício de andar à gandaia de sobras dos dias para compor em colagem nem sei bem o quê tem algo de perturbador. Se me pede avaliações, aqui e ali penosas, também me obriga a ser capaz de suspender toneladas de afazeres em atraso. A mão que escreve arrasta esse peso. E quando acontecer que nada tenha vivido ou visto ou lido que interesse, que nos interesse? E quando o cansaço me vencer? Este que rima com as marés.

Biblioteca Camões, 29 Novembro

Foi por mensagem que chegou o aviso da chegada do Carlos Quiroga, com quem tenho assuntos pendentes, que o mesmo é dizer livro no prelo. «Uma cerveja no inferno ainda presta.» Soou-me logo o sotaque, onde noto, vá-se lá saber porquê, nevoeiro e ternura. Descia da Finisterra para atirar de varanda de biblioteca A Imagem de Portugal na Galiza, em espelho com essoutra, de Carlos Pazos-Justo, A Imagem da Galiza em Portugal. Li de um fôlego o pequeno volume e dei-me conta de quão longe morava deste assunto. Sabia vagamente das causas, sobretudo em torno da língua que, apesar dos afastamentos, teima em dizer-se a mesma. Não tinha tomado consciência de que, como o Carlos logo explica a abrir, o seu assunto pedia que o outro fosse estrangeiro, o que não é o caso de Portugal para os galegos. Mesmo resolvida, com porosidades, a questão das fronteiras, «os laços de família por via da emigração e troca continuada», sobretudo mais a norte, fazem com que não haja a distância essencial para o retrato. Que irmão esquecemos no sótão? Que sabemos dele, mais do que nos foi dizendo Fernando Assis Pacheco? Desconfio bem que muito pouco. Solidamente sustentado em numerosas e variadas fontes, começa por tornar claro o óbvio: não nos podemos pensar sem eles, pedaço esquecido de uma mesma entidade, que a língua tanto ajuda a coser como a desatar. «Portugal para a Galiza ou é indiferente ou é uma espécie de Paraíso perdido. A Galiza, sendo Portugal, é o espaço-cabeça de um corpo crescido para o mar e sobre o mar que tem esquizofrenicamente saudades desse corpo, hoje separado. Uma parte da consciência da Galiza, pequena, teima em reverter as consequências de circunstâncias históricas concretas que a separaram de Portugal, que por outra parte e desde há séculos, criou novas cabeças, e acha ainda nessa ligação um ponto de apoio fundamental para construir a sua identidade.» De tão próxima, esta solidão afigura-se-me bastante ingrata. Alguém que nos lê, cultura e língua, com extremosa atenção e disso faz lugar de resistência merece mais, muito mais. Lá vociferava o Assis: «Indignar-me é o meu signo diário. / Abrir janelas. Caminhar sobre espadas. / Parar a meio de uma página, / erguer-me da cadeira, indignar-me / é o meu signo diário.»

Costa da Caparica, 30 Novembro

Acompanho Artur Henriques e a sua pequena tribo a um daqueles não-lugares, ao Centro Comercial O Pescador, para mais uma sessão em torno de livros organizado pela associação Gandaia, que é animada, entre outros, pelo meu velho amigo, de costela macaense, Ricardo Salomão. Goa, Ida e Volta, ao contrário do que o título parece sugerir, não reúne apenas memórias do serviço militar ali passado no final dos anos 1950 e de um regresso ansiado duas décadas depois. Em pinceladas impressivas e grande sentido da pequena história, também o meio publicitário e artístico e a própria cidade de Lisboa vão surgindo no retrato. Fascinante, o seu modo nonchalant de viver, continuamente de bem na própria pele, tomando o mundo por casa, como em canção de Françoise Hardy, mesmo quando o entorno se esboroava. Ele há gente assim, capaz de fumar um cigarro enquanto a polícia política lhe vasculha o atelier. E de, quando um agente lhe pede cigarro, responder “não posso, só tenho 19”. Na plateia, contudo, o interesse ia direitinho e por completo para Goa: como se vivia no quotidiano, como eram vistos os soldados ou tão só Portugal, e mais longuíssimo etecetera. Não me anima, por me parecer aquecido pelos lumes do politicamente correcto, esta tendência outono-inverno do pós-colonialismo, mas as questões da identidade continuam mais vivas que cardamomo em sarapatel. A Gandaia é um daqueles projectos que vivifica os não-lugares, gestos brutos de cidadania que nos vão empurrando para fora da mais salazarenta das heranças: a dependência absurda e claustrofóbica do estado. Sem alarde, estou em crer que esta federação de vontades vai ajudando a perceber o mais óbvio dos esquecimentos de Lisboa. Quantas capitais, no mundo inteiro, estão tão próximas da praia? Do oceano?

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

António Variações nasceu num destes dias (frios) no campo e a norte. Era excêntrico, que o mesmo é dizer, ousou-se. Hoje, até os concêntricos vestem extravagâncias, mas perderam o interesse. Que os move, se Nova Iorque se cruza com Braga? «A vida é sempre uma curiosidade / que me desperta com idade / interessa-me o que está para vir / a vida, em mim é sempre uma certeza / que nasce da minha riqueza/ do meu prazer em descobrir.» Ouvi-lo a cantar Amália (Povo que lavas no rio) e depois ouvir Camané a cantá-lo a ele (Quero é viver) pode bem tornar-se início de conversa sobre identidades.

Horta Seca, Lisboa, 4 Dezembro

Fidel Castro morreu. A sua importância histórica, se preciso fosse, pode medir-se nas enormidades ditas nestes dias, onde se deve incluir o gosto pelo vinho do Porto e ascendência galega. Edel Rodriguez, ilustrador cubano que lhe desenhou muitas vezes o rosto, escreveu, por dentro do assunto, uma perturbadora metáfora: «Tentei descobrir uma maneira de explicar a situação a alguém que a não viveu. Comparei, então, Castro a um pai abusivo, um monstro, que bate brutalmente nos filhos em casa e depois os leva a jantar ou brinca com eles em público. Toda a gente vê as boas acções, mas não percebe o que, de facto, se passa em casa. A não ser as crianças, que, por terem vivido assim o tempo todo, acham que é a única realidade. Até podem ir ao seu funeral e derramar algumas lágrimas, porque ele foi o único pai que eles conheceram.»

7 Dez 2016

O leitor cheira a tinta

El Corte Inglés, Lisboa, 21 Novembro

301116p16t1[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]omentos há em que temos de suspender a incredulidade, que o mesmo é dizer, acreditar. Parece ficção, uma sala de cinema com 242 pessoas em fim de tarde chuvoso para ouvir António Mega Ferreira em belíssima dissertação, de quase duas horas, em torno de Cervantes e do seu Quixote, apenas interrompida por tosse esparsa e as fulgurantes leituras de Pedro Lamares. Acredite-se, então, que os ouvintes serão leitores. Aqueles que Mega coloca no centro do jogo. «O texto é de uma generosa abertura ao mundo e ao leitor, e, por isso, preserva uma margem de indeterminação (o não-dito, o indizível, o possível, o imaginável), que é o traço inaugural da narrativa moderna. Veja-se, por exemplo, o capítulo 20 da primeira parte, em que, através de um engenhoso diálogo entre D. Quixote e Sancho, se levantam questões de técnica narrativa (a suspensão e continuidade da narração, a descrição exaustiva e o poder da elipse narrativa) que hão de estar no centro da estética romanesca ocidental nos séculos seguintes. Mais: ao abrir essa margem de indefinição, Dom Quixote não dispensa a participação de quem lê para fazer valer a sua verdade, que é feita de todas as verdades que lá queiramos encontrar. Ao mesmo tempo que se inventa como romancista, Miguel de Cervantes inventa um novo tipo de leitor, o que assume o papel de cúmplice do autor, destinatário e avalista da narrativa improvável.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro

A chegada de um livro abafa o resto. As urgências malditas, a inadiável pressão, o absurdo imediato, nada importa quando o cheiro a tinta nos exige febrilmente o objecto entre os olhos e as mãos. «A Minha Casa Não Tem Dentro», do António Jorge Gonçalves, veio para parar o tempo. Duas ou três linhas a abrir, negro tipográfico sobre branco, anunciam que o autor morreu e regressou à vida, em «acontecimento que atravessou espaço e tempo separando e unindo em simultâneo». Queria colocar a banda desenhada, que pela primeira vez edito, na Arranha-céus, chancela que vejo também como casa de imagens, onde está já a fotografia. Em decisão de última hora, optei pela abysmo, tal o enigma que «A Minha Casa …» contém. Mais do que narrativa, parece-me um poema gráfico, no lugar dos versos imagens fortíssimas, duras, mas sobretudo oníricas, de sonho e pesadelo, que mergulham raízes no grande oceano do imaginário, dos mitos fundadores, das representações da morte, da infância, do desenho e da música, enfim, da criação. Vejo uma mão, a do cuidado e da ameaça, a que se ergue da ruína e a que faz sombra, a mão do lápis. E vejo uma menina, uma Alice que descobre, por detrás de uma cortina de sangue, o peso da mão, uma cidade que se monta e o grande circo do espectáculo. Há anjos caídos no tecto. O trabalho sobre a cor faz dela outro protagonista. O desconcertante conjunto vai explodir ou, muito provavelmente, ser ignorado, como as nuvens no céu e na contracapa. Desafios assim têm a sua exigência e os dias não estão para isso, para que nos deixemos ficar comovidos a olhar para as nuvens. A capa, sem mais que um miúdo desenhando, não é macia, dá-se sem verniz nem plastificação, mas o miolo, tal a quantidade de tinta, ganhou um acetinado, uma segunda pele. Gosto de pensar os livros como segunda pele.

Bar Irreal, Lisboa, 23 Novembro

Nesta altura em que tanto sumo-sacerdote incensa nuns e vigia noutros uma suposta pureza poético-moral, ouvir o Helder Macedo pedir como quem exige, a meio de caóticas leituras da poesia de José Manuel Simões, um dos do Café Gelo, que os lessem sem os entronizarem, sem os sacralizarem, sem os imitar a destempo, aos da sua geração e a ele, que se «limitaram» a incarnar uma ética a partir do acto de recusa, de múltiplas recusas, caiu que nem tromba-d’água. E chovia mesmo. Na noite que Simões traduzia assim: «Do chão onde ontem enterrei / a noite irrompe como um garfo, / noite de hoje que eu não conheço / e todavia já / noite velha que sei de cor.»

Caldas da Rainha, 25 Novembro

Passo demasiado tempo à mesa, dizem-me. E logo os olhares comentam a barriga. Talvez passe demasiado tempo à mesa. Contudo, raras são as vezes em que me limito aos prazeres da dita. Não me sento para comer, entro em campo. Os gestores de topo jogam golfe. Os políticos da mediania vão ao futebol. A sociedade frequenta o ténis. Eu jogo-me à mesa. Quantos projectos acontecem de garfo na mão? Quanto de amizade estiquei, ou encolhi, já agora, de copo na mão? Não me interessa muito fazer essas e as outras contas. Mede-se demasiado nesta vida. Um editor deve cultivar a desmedida. Venha daí outra dose de lingueirão da «Casa Antero», em Caldas da Rainha, capital do meu oeste, para molhar o extraordinário pão com a Luísa, a Graça e o João. Ou de polvo à lagareiro com batatas a murro do «Cruzeiro», regado com Meandro, para saborear com o Carlos e o Jacinto. Nasceram ideias, talvez tenham morrido outras. Tenho por certo que uma refeição nos dá mais do que vida. E por aqui, onde desfearam paisagem e arquitectura, sabem prová-lo com a beleza do humor ao servirem-nos, à laia de ponto final, um pequeno falo de chocolate.

Bar Irreal, Lisboa, 25 Novembro

A cidade estava toda iluminada, mas de concertos num evento musical com nome de marca e mediatizado à náusea. Na exacta lonjura do centro, os «Não Simão» concertavam «reflexos de aventura». A ausência de palco permitiu estar em intimidades lado a lado com a bateria e a sentir na nuca cada nota dos sopros. A inteligência das composições, com a sinuosa variação de ritmos desfez a noite em puro gozo. E não teve nada a ver com a inclusão de um abat-jour no percurso da precursão.

30 Nov 2016

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 14 Novembro

[dropcap]M[/dropcap]ão amiga traz-me de S. Tomé e Príncipe umas barras de chocolate assinadas por Claudio Corallo. Não acho mesmo graça nenhuma à cada vez mais totalitária gourmetização das nossas vidas, mas o rolo compressor deixa despontar aqui e ali uma erva daninha. Como esta atenção aos produtos da terra e ao modo como dela os extraímos. Um chocolate extremamente amargo, que não esconde o sabor a chão, contém uma saborosa contradição. Rima com tanto destes meus dias…

Mymosa, Lisboa, 15 Novembro

Circula por aí o catálogo Ilustração Portuguesa 2016, que reúne, em cerca de 400 páginas, trabalhos de quase uma centena de ilustradores, um deles o Rui Rasquinho, que sentou um pensativo Pessanha em descansativo cemitério. O regresso desta montra aconteceu a pretexto da Festa da Ilustração, de Setúbal, em cuja equipa, agora mesmo e depois de hesitações várias, acabo de manter-me. Continuo espantado com o luxuriante jardim de criatividade que esta linguagem cultiva e rega e apara entre nós. Apesar da seca criada pelos mercados e seus feiticeiros de algibeira. Tem sabor de enigma, o modo como continuam a desmultiplicar-se em projectos, a alimentar cursos, a ganhar prémios internacionais, a reinventar suportes como ecrãs ou paredes, a mastigar livros. Curiosamente, ou nem por isso, várias foram as imagens que tomaram o livro por tema, que tiveram origem em capas, que dançaram com o texto. O João Fazenda (autor da ilustração ao lado), parceiro de tantos riscos e querido amigo, foi um dos que mais converteu o bicho em metáfora: fez dele fruto e casa, rosto e partitura, mesa de cozinha e mais, muito mais. Que gosto dá flanar nesta cidade, feita de lombadas e guardas, de lombos e cortantes, de baixos-relevos e vernizes mate! Sempre em mate, que o brilho fere os olhos.

Horta Seca, Lisboa, 17 Novembro

Orson Welles morreu sem o acabar. Ainda se consegue vislumbrar o que poderia ter sido. Terry Gillian há décadas que o persegue, e um documentário, que devia dizer dos bastidores, dá-nos perfume do impossível. Nenhum deles me parece capaz de se deixar amedrontar pelo suposto gigantismo da empresa, pela comprovada complexidade da personagem, menos ainda por tola maldição colada à pele de papel. Onde procurar, então, as razões para que soçobrem os filmes sobre o sempiterno D. Quixote? Tremo ao ler a notícia de que a Disney se vai atirar à bruta figura. O mais cruel aplainador de rugosidades da história da ficção cuspirá, estou em crer, um cavaleiro de desmedida sensaboria.

Horta Seca, Lisboa, 18 Novembro

O Oxford Dictionary escolheu para palavra do ano post-truth, pós-verdade. Não era nova, mas a campanha presidencial norte-americana colocou-a nas nossas bocas. Pior, nas nossas vidas. Como se vivêssemos no universo Disney, «os factos objectivos influenciam menos a formação da opinião pública do que apelos à emoção e a crenças individuais.» Ouviremos cada vez mais gente aparentemente sã de espírito afirmar que Obama criou o ISIS, Hillary Clinton desdobrava-se em duas. Melhor: que em democracia, cada um pode escolher a sua verdade. A democracia está cada vez mais fantasiosa, apesar de narrativa.

Rua Nova da Trindade, Lisboa, 19 Novembro

Já apagaram os carris do eléctrico? Bem sei que não os arrancam, afogam-nos em alcatrão, atirando para o futuro a leitura daquelas linhas. Houve tempos em que couberam dois sentidos ali e gosto de imaginar o chá nas canecas a fazer-se pequeno mar durante uma passagem simultânea. Dói-me não termos partilhado uma última refeição, que também as gostavas longas, mas talvez tivesse mesmo que ser assim, sem lugar para despedidas. A tua morte apanhou-me no torpor a que chamei, por fraqueza de vocabulário, férias. E agravou a crença de que talvez ainda possamos trocar umas ideias sobre o assunto, um qualquer: aguardente, pão, uma capa, a derradeira versão. A nossa última conversa foi ao telefone, quando resolveste saudar o aparecimento da abysmo da mais inusitada maneira: não queres comprar a Cotovia? Tinhas as contas feitas e os argumentos alinhados. Anos depois, percebo melhor que me querias poupar agruras. O preço era uma pequena fortuna, muito longe do que devia valer uma chancela admirável como a tua. Cuidei que brincavas, mas não. Era um preço de amigo. Demorei a perceber o gesto e só podes ter ficado sentido com a indiferença com que o recebi. Não foi por mal, foi por miséria. Quando a conversa acontecer, não voltaremos ao assunto, não vamos achatar o reencontro com conversa triste de ofício, sonharemos antes um empreendimento qualquer. Folgo em saber, pela Fernanda ainda agora, que as dores não te toldaram o sentido de humor. Chegaste com recorte de um jornal do Bombarral na mão. «Não quero a Servilusa. Detesto pequenos impérios. Já escolhi a funerária que vou querer.» No papel, anunciava-se, em corpo 12, a competência de 20 anos do gato-pingado, Carlos Nogueira: «Incontrolável em mim». Depois, em menor: «Decididamente fazer funerais é aquilo que eu mais gosto de fazer.»

Horta Seca, Lisboa, 20 Novembro

Somos excessivamente narrativos. Por exemplo, o ter passado a usar óculos, horas depois de fazer 50 anos, parece indicar o sentido óbvio do inexorável desgaste dos materiais. Mudaria alguma coisa se tivesse sido antes da data? Não, mas assim ganhou a intensidade de um sinal. O objecto acomodou-se ao corpo, quase faz parte dele. Não sem resistência, que o primeiro par logo se desfez. Os dias ganharam novas rotinas, que a limpeza tem que ser constante. Tanto pó, tanta gordura vem do que vou vendo? A escrita destas linhas faz-me viver os assuntos de outra maneira. Mas tiro pó ou acrescento gordura?

23 Nov 2016

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 12 Novembro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre em dúvida, sempre em dívida. Podia tatuá-lo no braço só para me poupar ao trabalho de responder à quotidiana pergunta: como vais? Ou nos cada vez mais frequentes debates sobre edição: defina lá o trabalho do editor independente, se faz favor. Independente tornou-se a minha segunda pele – ainda que não perceba de quê, tantas são as dependências –, do mesmo modo que abysmo passou a primeiro nome: abysmo de joão paulo cotrim.

Estaremos sempre em dívida para com os autores. Cabe-nos ajudá-los a apurar o veneno do texto, a desenvolver o invólucro certo capaz de inocular a potencial multidão dispersa. Não basta um qualquer, tem que ser o leitor: inteligente e conhecedor ou emocional e dedicado, se possível uma hábil mistura de ambos. Capaz de admirar a vanguarda, sem esquecer as tradições, esforçado para reconhecer a explosão das estruturas narrativas, ainda que aceitando dançar com a frase fulgurante, enfim, prazer e esforço algures no cruzamento de físico teórico com groupie ou de bailarina clássica com adepto de futebol. Além dos direitos, claro, no confronto da prática que dá corpo ao livro, esperam ainda que os ajudemos no despertar da vocação: levá-los à frase, ao género, ao tema em que se cumpram.

Duvidaremos sempre do caminho. Isto não é tanto um negócio, mas uma maneira de ver o mundo, de estar no centro das ideias, da criação, da discussão, das coisas. Duvidamos da estratégia, dos tempos, das parcerias. Se corremos contra o tempo, se não devíamos olhar para trás na vez de procurar o futuro. Duvidaremos se não haveria ainda mais uma volta a dar, se não deixámos escapar uma gralha (e deixámos, pois). Se o recusado não era merecedor de segunda alternativa. Se o editado não era merecedor de recusa. Duvidaremos sempre de que tenhamos feito tudo, de que os argumentos oferecidos eram exactos, se estavam afiados como x-acto.

Servirá isto para alguma coisa? Azar. Se estamos, como Wile E. Coyote, no meio do precipício, o melhor é seguir em frente na vez de olhar para baixo. E cair.

A Tout Livre, Paris, 23 Setembro

As rentrées tendem a ser infernais. O ano passa a correr e parece que uns bons dez meses se espatifam contra a montra do Natal. O ano dos livros há anos que dança a mesma dança. Dos pleonasmos, portanto, uma das mais graves maleitas do mundo editorial. Esta reentrada foi quente como bólide celeste rasgando a atmosfera. Contudo, não poderíamos ter tido melhor maneira de comemorar cinco anos de abysmo do que a edição da Chandeigne, por via do empenho da Anne Lima, da bela tradução de Autismo, do Valério, assinada por Elisabeth Monteiro Rodrigues. Foi muito bem recebido pela crítica, nomeado para o Prix Femina, que só não venceu, confirmado por várias fontes, devido às movimentações politicamente correctas que o entregaram a um jordano. Os prémios vivem bastante de correntes de ar, e constipam-se. Saltemos.

Este contacto com o sistema editorial francês, que lançou por esta altura quatrocentos e tal romances e mais de uma centena de romances, sublinhou-me mais as fragilidades do português. Descontemos por ora a diferença estrondosa de um país que gosta de livros, campeonato que Portugal perdeu há anos. Ali, veja-se, os distribuidores e os livreiros lêem os livros. Em Maio, em encontro dos editores com as principais distribuidoras, todas ao barulho, grandes, médias ou pequenas, foram apresentadas as novidades, algumas delas já impressas. Autisme circulou em pdf, mas foi o suficiente para tocar a parte fria da cadeia antes de chegar aos entusiastas: os livreiros. A eles se deve, estou em crer, a fortuna que o romance está a ter [a entrar em segunda edição, por estes dias]. Fui testemunha de um exemplo desse entusiasmo, logo no dia do lançamento, em conjunto com novos títulos do Gonçalo M. Tavares e do Valter Hugo Mãe, mas basta percorrer, no mural das Editions Chandeigne as inúmeras fotos de montras e dos coup-de-coeur, um pouco por todo o país, para perceber que não foi caso único. As apresentações de Quentin Shoëvaërt-Brossault foram de uma profunda simplicidade. Era apenas um leitor, em modo partilha. Fazem-nos tanta falta os leitores.

Centre Pompidou, Paris, 24 Setembro

As filas já eram grandes, mas agora são enormes para garantir que não levamos kalashnikovs para os museus, enfim, além das que já lá moram. Pensei que a exposição pop, Beat Generation – New York, San Francisco, Paris, acrescentaria ainda mais culpas do que Magritte, a sua parceira no andar mais rente ao céu, na mais bela panorâmica da cidade. Pisamos os telhados antes de entrar nos subterrâneos da arte, parece-me programa. Estava errado. As multidões abarrotavam as salas do Magritte, afinal pop. Paris reconciliou-se com o ignorado de há umas décadas? Que poder de atracção possui este óbvio inimigo do óbvio? As imagens dizem muito mais do que mostram e inteligência pode bem ser espectacular e lúdica. Que prazer ler primeiro os títulos e procurar a copa a partir desta raiz! Ou vice-versa.

A Beat apresentava-se com um eixo em torno do qual orbitava tudo o resto, que foi muito e variado: On the road, de Jack Kerouac, feito estrada sobre uma mesa. Ao longo de dezenas de salas podíamos atender telefones e ouvir Giorno, ver filmes com Dylan, gastar horas nas legendas das fotografias de Ginsberg, ler e ouvir Burroughs, Ferlinghetti, Corso, passear por instalações, pinturas, documentários, cartazes, fanzines, colagens, cut ups, perder o olhar nas fotos de Robert Frank, até à Dreamachine, de Brion Gysin, que nos põe a sonhar acordados. Desde o dadaísmo, mais coisa, menos coisa, se pensarmos em movimento literário temos que contar com as outras linguagens. E que cada uma conte as outras.

S. Luiz, Lisboa, 13 Novembro

Arnaldo Antunes em concerto. A energia é arrebatadora e o tom metálico estica os sentidos da língua tuga até altos penhascos. De súbito, uma declaração de amor ao leitor: «Se sou voraz, me sacie./Se for demais, atenue./Se fico atrás, assobie./Se estou em paz, tumultue.//Você é que me continua.»

16 Nov 2016