Paisagens que não existem

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ei bem como fui deixando que acontecesse, as festas são apenas sinónimo de mais afazeres. Faltou-me tempo para lamber mais uma cria: Poesia I – Odes Modernas e Primaveras Românticas, o primeiro volume de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental muito laboriosamente preparada pelo Luiz Fagundes Duarte. A todas as suas outras qualidades, devo acrescentar o entusiasmo com que foi recebendo as propostas gráficas do Miguel Macedo. Sem desrespeitar o lado científico, a opção foi colocar algum aparato ao serviço do poema. Sabendo dos cuidados de ex-tipógrafo que punha nas suas edições, agrada-me sobremaneira a elegância da mancha, usando pela primeira vez a Gazeta, a fonte de Ricardo Santos, bem como o papel diferente nas páginas do aparato crítico. O alto-relevo no Antero da capa dá-lhe carácter, com o fundo azul a fazer regressar as primeiras edições. Tudo somado, as mãos não querem largar o objecto e os olhos lêem nele paisagem. E depois há o logótipo. Não sei se sabem, a abysmo não se fixou num logótipo, antes convidando cada designer ou ilustrador a interpretar a palavra. A brincadeira virou um caso e temos agora dezenas de identidades. Nos estudos preparatórios, o Miguel descobriu-a nos manuscritos de Antero. Deixou-lhe ficar uma vírgula, a pausa que se torna a sua marca de autor, e eis-me impante por ter para lá do tempo o poeta a dizer a editora.

CCB, Lisboa, 20 Dezembro (2016)

Ziguezague, os passos em volta estendem-se assim mesmo. Não se estranhe, não pedirei desculpa pelos saltos no tempo. Ao fim de mais de um ano de intenso trabalho e de uma mão-cheia de concertos, os No Precipício Era o Verbo subiram ao palco do pequeno auditório. O frio ficou fora e confirmou-se, para mim, o essencial: temos espectáculo. Encontro espessa coerência no alinhamento, na subtil encenação, feita sobretudo de luz, de chegadas à boca de cena e recuos para a escuridão, com o diferente grão das vozes e a melodia dos modos de dizer calibrados. Bom trabalho de grupo, sob respiração ansiosa do José Anjos. Escusado será dizer que o contrabaixo de Carlos Barretto se faz o eixo sobre qual tudo gira. Aqui, faz-se furacão e arrasta em remoinho palavras, corpos, gestos. Ali, faz-se farol atraindo olhares, desviando atenções. Não deixa nunca de ser feixe luminoso dirigido ao coração da palavra suspensa do corpo que a diz. Não há nada de novo nisto do espectáculo de poesia. Há qualquer coisa de novo neste. Não acho espectáculo a palavra exacta. Não sei ainda o que trazem de radicalmente novo os NPEV. Houve muita alegria, humor, densidade. Houve memória nos dias seguintes. Estão para as curvas.

Enquanto não chega o livro, cujo esboço da dupla André da Loba e Dulce Cruz anuncia ser entusiasmante, circula já o disco, embrulhado em cartaz onde quatro corpos dançam rodando sobre si nas coloridas cinzas de um vulcão por extinguir. Da Loba tem recolhido um conjunto de figurações que se alinham como letras de alfabeto criativo, seres dispostos a falar dos seus lugares no mundo. Estes quatro estão agora nessa paisagem que inclui jornais, paredes, impressões do mais variado tipo. A Dulce dobrou um origami que aconchega uma «bolacha» onde os corpos parecem peças de «puzzle», restos de branco boiando em negro com transparência. Sem os terem visto ao vivo adivinharam que muito disto resulta do namoro entre a luz e a obscuridade.

Horta Seca, Lisboa, 4 de Janeiro

A Associação para a Promoção Cultural da Criança pontua a sua programação anual com a edição, por esta altura, de um par de pequenos álbuns. Este ano o desafio foi uma visita ao seminal «Utopia», de Moore. A Inês Fonseca Santos juntou-se ao Nicolau para contar «Vincos», história na qual as marcas no corpo fazem anunciar possibilidades, onde os corpos podem até tornar-se mapas e as personagens caminham sobre as nuvens do sonho. Vi o pequeno álbum em tons laranja ir se desdobrando perante os meus olhos. E soube-me a tangerina. Naturalmente, pois está uma delícia.

O segundo coube-me a mim, que há muito não escrevia para os putos, independentemente da idade. O desgraçado que teve que absorver os meus atrasos de vida foi o Rui Rasquinho, que se desenrascou de modo notável, com ligeireza e elegância. Fomos ver do avesso das cidades, tocando-as com as mãos, até descobrirmos um velho marinheiro que fala de palavras e do modo como se tornam navalhas de rasgar impossibilidades. Este velho marinheiro, que prefere as paisagens que não existem, trouxe-me de volta o velho amigo Júlio Pinto. Saudades.

Passevite, Lisboa, 9 Janeiro

Dois anos depois do atentado ao Charlie Hebdo, e a pretexto do lançamento do fanzine Uppercut (stolen books), que reúne cartoons do André Carrilho, juntámo-nos coma Cristina Sampaio e o António Jorge Gonçalves, no atelier galeria do Rui Lourenço e cúmplices, para discutir se «somos todos charlie». Duas ou três conclusões breves de uma conversa rasgada. O humor é o lugar da absoluta irresponsabilidade. Somos melhor sociedade, mais oxigenada, se nos dermos esta liberdade. O humor gráfico nacional nunca foi punk e tempera a raiva com o apuramento estético. Estas conversas, em torno do ofício do desenho de opinião, deviam prolongar-se indefinidamente, talvez mesmo passarem a papel, em busca de mais olhos e ouvidos. Sugiro aqui fazermos nova edição do fanzine desenhando a conversa.

Os 300 exemplares (assinados e numerados) de Uppercut foram impressos em riso, essa nova técnica, barata, portátil, artesanal, algo primária, que reintroduz o erro humano na impressão. Quando os ecrãs brilham a ponto de esconderem o original, a maneira de o multiplicar faz de cada objecto caso único. Isto do regresso do erro diverte-me.

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