Respiração das coisas

Bedeteca da Amadora, 19 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma caneta de tinta permanente, não a primeira, mas a mais viajada. Um rato de computador, antigo quanto baste, também não o inicial, mas com ele andei horas sem conta de mão dada na solidão da pradaria fluorescente. Um velho fio-de-prumo, gasto e sujo de cimento, este herança de pai que se gastou no moldar das pedras e no erguer das casas. Espero que seja suficiente para colocar a dúvida na meia dúzia de almas que passará os olhos por estes três objectos nas vitrinas, lado a lado com recortes de jornal com tiras impressas, notas rasuradas e esquemas coloridos. Um argumentista trabalha nas obras? Ao cabo de muitas dezenas de exposições sobre o trabalho dos outros, ser posto na qualidade de objecto deste «Banda Escrita: uma exposição em torno do trabalho do argumentista» perturbou-me. Mexer no passado põe-me a fazer contas de cabeça. Sem exageros, que é coisa modesta, como convém, em curva entalada entre o elevador e as lombadas. Amostra será, mas capaz de me fazer olhar, por primeira vez, para este somatório como corpo. Gosto de ver corpos, mas terá este as partes essenciais para se erguer do esquecimento, autor ou Frankenstein? Depois, basta folha velha para iluminar momento em que o caminho bifurcou. (Foram tantas as vezes, que duvido até do caminho.) Estava sublinhada a palavra importante? Ou urgente? Havia ali a possibilidade de outra vida? O passado continua promissor. Não nos levemos a sério. Só o puro gozo me empurrou para o terreno baldio das bandas desenhadas, algumas delas aqui e agora evocadas, por força do esforço desamparado (politicamente) do Pedro Moura. Duram um relâmpago mais, se alguma vez contiveram luz. O trabalho do argumentista resume-se ao despertar no desenhador o desejo de imagens, disse Benoît Peeters, o das frias cidades mentais. Mantenhamos o assunto atado à âncora volátil do desejo.

RTP 3 | Facebook, 20 Janeiro

Devo um obrigadinho a Trump, o despenteado mental. Para comentar a sua tomada de posse, António José Teixeira, velho amigo agora na RTP 3, encomendou 30 segundos aos Spam Cartoon, projecto de cartoon animado que partilho há anos com o André Carrilho, a Cristina Fazenda e o João Fazenda. A Cristina fez da criatura um boxeur desastrado que, em dança macabra, castiga tudo e todos até que a própria força o derruba. Visão esperançosa, bem entendido, mas pouco nos resta além disso: revolta, pensamento e… esperança. Não o podemos reduzir à caricatura que incarnou neste filme de série B com que nos atormenta, mas o riso e a raiva são o nosso trabalho, reclamando, pelo menos, a mesma liberdade que ele afirma para cuspir barbaridades. O mundo não pode limitar-se a ser saco de pancada. No momento em que escrevo, na métrica da contemporaneidade, i.e., no Facebook vai em 40 mil e tal partilhas, 5600 gostos e mais de milhão e meio de visionamentos. Curiosamente ou não, a maioria dos comentários defende-o com a energia do insulto.

Santa Bárbara, Lisboa, 20 Janeiro

A nossa casa cresceu. Primeira consequência de quando um gato toma posse. Chão é apenas começo e a descoberta da novidade não se fica pelas traseiras do sofá. O olhar felino define nas ombreiras e nas portas, nos interruptores e nos puxadores, nas estantes e gavetas, nas bancadas e mesas, até no tecto, sinais ocultos de respiração das coisas. Inúmeros lugares saltam à vista: bons de dormir, ideais para desaparecer, perfeitos para a provocação. O bicho tigrado preferia que lhe fosse roubar a bola com que se entretém desdobrando-se em múltiplos, o que atira e o que apanha, o que salta e o que rebola. Juro que os vejo em simultâneo. Onde antes havia tédio nasce enigma. Começámos por lhe chamar Pires, invocando a alma peluda de Rafael Bordalo Pinheiro, mas o puto insiste em comportar-se como Ivan. O frenético.

Livraria Miguel Carvalho, Coimbra, 21 Janeiro

Estava um frio de rachar convenções e até as hirsutas máscaras africanas me surgiram arrepiadas, quietas na paragem entre a ironia e o desdém. Impressão minha, elas não encarnam doutores. Pedro Serra partilhava leituras para «Beleza Tocada», uma bíblia roxa de tão negra na qual se conserva a voz singular de José Emílio-Nelson. Prometendo desenvolvimentos para breve, em começo de conversa propôs dois eixos, o da merda e o do ar, que cruzou depois com interpretações de obras de Manzoni, para afirmar a extrema materialidade em que assenta esta poesia: a alma esfuma-se com a morte, mas o corpo mantém-se como cadáver. José Emílio acendeu a verve e apresentou o seu programa: «escrever as últimas palavras possíveis antes de ser queimado em auto de fé». Exige que o pecado seja inscrito na normalidade e filia-se na danação. Em contínuo diálogo com a pintura, a música e o cinema, condenados a ecoar no luxuriante labirinto do catolicismo, os seus versos parecem desenhados a escopro em fragas ora de granito ora de mármore: «A Língua, beleza tocada, sopra em órgão, no escarlate martírio amortalhado / em frenético espasmo. ». Diz o poeta que o detalhe é a fissura, pelo que tenta a emenda até ao último suspiro, tendo quase enlouquecido Luiz Pires dos Reys, que desenhou com sublimes minúcias o volume de 726 páginas. Em volume antigo, «Pénis Pénis», composto ainda em chumbo, acrescentou à boca da máquina a palavra excremento para indignação do compositor. No volume impresso, saiu escremento. Confrontado, respondeu o velho tipógrafo: «deixe lá, sempre disfarça».

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