Desenhar com lâmina

Horta Seca, Lisboa, 11 Julho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]bre anunciando-se sem nome ou corpo, mas não encontro na poesia contemporânea outra boca que diga assim corpo, uma forma de o ser inteiro pela palavra com que desenha e rasga. «Sou esta fenda extasiada que pensa/ e estou longe como uma ruína alta/ guiando palavras à minha vontade.» «1025 mg» (ed. Douda Correria), o livro mais recente de Cláudia R. Sampaio, é um torrencial monólogo em XVII poemas que vieram para pôr cores berrantes na raiva e novos sabores na lucidez. O discorrer dos versos faz no branco que sobra as sombras da carne. Subo-os como degraus de casa devoluta e digo-os em voz alta. Sobrevoam agora os telhados até encontrarem a carne onde se tatuar. Imagens encadeadas e incandescentes que vão e vêm, para marcarem com nódoas negras a nossa leitura, mariposas contra a lâmpada. A medicina que o título anuncia não atenua a dor, não se faz unguento, não acalma nem a ferida da vontade, não cura a doença de sermos para aqui assim. «Quem sabe se não é agora que/ possuo toda a loucura/ e me faço mulher// Eu que da cintura para cima sou triste/e daí para baixo uma praia/ a quem explodiram o mar/ para depois o transformarem em/ homem e em assombro também/ Eu que desfolhada em abismo/regressei à ânsia e aos mortos/ por lá se encontrarem os vivos».

Depois, a casa da voz da boca de um corpo sem nome ou substância está tão bem mobilada pela delicadeza da Mimi Tavares! Os nossos móveis possuem secretas e ingénuas convivências.

(Descobri no «Carlos Bica + Matéria Prima» (ed. Clean Feed) banda sonora inesperadamente apropriada).

Mymosa, Lisboa, 12 Julho

Pode um desencontro frutificar? Vou apostar (um almoço) que sim. Há uns meses, cansada do silêncio que irradio, a Joana Bernardo entregou-me maqueta que, de tão impressionante, era logo ali um livro. Sem tirar nem pôr. A ideia de «30 anos | 8 Dias» continha a mesma simplicidade elegante do desenho gráfico, abundante de brancos, sem nada gritar, desenrolando coisas e nomes e entradas de diário com suave delicadeza: «13 pessoas que vivem em Lisboa chegam agora aos 30 anos e descrevem, nestas páginas, 8 dias das suas vidas.» Quando lhe assinalei o meu interesse já estava em marcha o processo da autoedição, que achámos melhor não travar. Está feito, ainda que sem o logotipo abysmo. Acontece. De igual modo, acontecerá sequência. Tem qualquer coisa de solar esta preciosa cápsula do tempo. O futuro parece menos sombrio se contarmos com o presente desta geração, afinal, desenrascada, que insiste no que vai fazendo em neurociência, em design ou música, engenharia ou bailado. Difícil, precário e tal, mas haverá outro modo de se vestir o mundo? Ainda que «sem ambições literárias», descobrem-se textos brilhantes, por exemplo os de Catarina Vasconcelos, e o conjunto explode em variedade de tons e vozes e maneiras e temas sem perder equilíbrio. Espreitamos fragmentos de vidas, em momento algum banais, ainda que comuns. E que revolucionário pode ser o facto destes quotidianos serem usuais! Joana desenhou mais do que as páginas, escolheu notícias, sublinhou locais na pele de Lisboa, pediu e fotografou objectos, enfim compôs algo que rola como círculo virtuoso, LP em prato de gira-discos. Ou seja: livro, singelo e luminoso. Os 30 põem fim à juventude, diz ela. Talvez não, se depender deles.

(Pareceu-me boa companhia o som «único e delicado» dos Durutti Column, apresentado pela própria Joana, no seu «Álbum de Família», na Radar (https://radarpodcasts.podbean.com/))

Horta Seca, Lisboa, 13 Julho

Por mais que olhe nas múltiplas direcções, os dias continuam a atropelar-me na passadeira. Será por estar sentado quando devia correr? Receber peças do calibre de «Mutations», do mano João [Fazenda], significa, portanto, salvo-conduto para o máximo recolhimento. Na dedicatória vem um monociclista a fugir do traço encimado pela afirmação de que escrevo desenhos e invento livros. Comovo-me e travo a fundo enquanto o olhar se perde nas linhas impuras do prazer e da inteligência. Estes desenhos são lições de bem ver: uma pedra, uma paisagem, um corpo podem esconder inúmeros. Traços simples que despertam as formas adormecidas no branco, que as movimentam, que as misturam: pétalas são lascas de granito, cabelos soltos fazem nuvens, paisagens que crescem no vestido, um mineiro surge-nos da barriga, árvores viram tejadilho e locomovem-se. Podem ser apenas pensamentos pedindo a encenação do lápis ou corpos juntos pelo puro gozo do desenho. Na maior parte dos casos, vejo ideias, isto é, poemas. Riscos e pequenas nuvens de cinza a desdobrarem-se nas infinitas possibilidades do mundo que se vislumbram para lá destas portas-páginas. Bendito demiurgo, que até nas mais negras ideias, colocas o incêndio de um sorriso! Podia pegar em cada um destes poemas e lambê-lo com palavras, carimbá-lo com a desnecessária metáfora das sombras que ardem (como a que ilustra algures a página). Sabes bem que descrever as imagens são afagos no artista. Devia chamar-te ruy-belo-da-ilustração, e por aí fora, desde que poetas do mar e do vento e das inocências perdidas, até te irritares. Melhor ficar por aqui à procura da tristeza que há-de andar algures. Preciso de a alimentar.

(Eu reconheci o Tom Waits, mas puxei do «Espaces Baroques», do Frederic Galliano, e deixei-o desdobrar os recantos enquanto via).

Horta Seca, Lisboa, 14 Julho

Como no desenho do João [Fazenda] em que um gato faz de papagaio no meio dos pássaros com avião ao fundo, assim me senti eu hoje. Convergiram amigos que há muito não via. Difícil reconhecermo-nos no âmbar daquele olhar. Nenhum de nós é ainda aquele. Ou ainda algum fio nos prende aos gestos de um puto, de um jovem?

Baixa Chiado, Lisboa, 15 Julho

No metropolitano, pela primeira vez em muitos meses, mas mesmo muitos, todos os lances de escadas rolantes que ligam a Baixa ao Chiado estão funcionamento. As carruagens, essas, pelo menos na linha verde, continuam à pinha em qualquer hora do dia. Para memória futura.

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