A ironia é um passaporte

 

Fidalgo, Bairro Alto, Lisboa, 2 Agosto

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]erto e sabido: não nos encontramos na refeição apenas para comer. Celebramos Gaia. Por breves momentos, somos matéria afinada, ser e planeta, absorvendo a vida que dele resulta para a prolongar nos modos que soubermos. A arte da mesa fez-se sinal enorme de civilização, um gosto atento aos detalhes, capaz de retirar de cada grão o essencial. Não distingo nisto, nem a amizade, maneira de criar chão e céu vencendo a solidão a que somos destinados, nem a cultura, a ferramenta com que operamos a mais cirúrgica das funções: sabedoria.

Na prateleira, a mancha de texto distingue bem a garrafa das restantes. Palavras a vestir o vinho. Juntou-se, em rótulo de vinho exclusivo de restaurante com os pergaminhos do Fidalgo, o desenho original à pena de autor desconhecido, mas oriundo de uma redacção qualquer do velho Bairro Alto, um texto de Ateneu a explicar a cadência das refeições, devidamente traduzido e enquadrado pelo mano António [de Castro Caeiro], tudo sob a batuta gráfica do mano José Teófilo [Duarte]. Testemunho simples de gestos talvez complexos: à mesa se celebra o começo e o fim dos dias. O negro dança sobre fundo branco e o vinho é da região de Lisboa. Aconselha-se vivamente.

Santa Bárbara, Lisboa, 5 Agosto

A nossa casa ergue-se em largo lugar com o nome da santa que, na tradição cristã e por via de martírio violentíssimo com final dramático, se tornou protectora contra tempestades e relâmpagos e padroeira dos artilheiros, mineiros e outros trabalhadores do fogo. Oiço a reza da minha avó, santa bárbara dos trovões, enquanto fechava tesouras e alinhava talheres para que não atraíssem o raio.

O chão escalda-me e por isso fujo cobardemente das notícias sobre o país que arde. Fecho as páginas-tesouras. As imagens só agravam mais a ferida da impotência. Em poucas áreas da nossa vida comunitária teremos, há várias décadas, uma tal produção de pensamento tido e havido sobre a nossa floresta, outra forma de dizer, a nossa ruralidade. Basta acompanhar as incansáveis investigações e as intervenções de figuras como o estimado biólogo e professor da Universidade de Coimbra, Jorge Paiva, para o confirmar. Não apenas as ideias jamais foram postas no terreno como se caminhou na direcção oposta, a da fogueira. Arde nisto também uma forma de fazer política, a da universal cedência aos interesses, à cupidez e ao encolher de ombros, na qual a governação não se ergue da mediocridade e os actos de cidadania activa não abandonam as mesas de café. O meu próprio cansaço me queima. Nem Santa Bárbara nos vale.

Diário de Notícias, 7 Agosto

Moro por estes dias em montanha russa, sem saber onde me encontro, se no pico antes da queda se no esforço da subida. Encontro bálsamo no Folhetim de Verão do Diário de Notícias, narrado com a mestria habitual do Ferreira Fernandes, e ilustrado pelos corpos irónicos do Nuno [Saraiva] (ilustração nesta página). A soma das partes ainda há-de resultar noutro objecto, um livro, está bem de ver. Foi nascendo nas mesas da vizinhança, por entre conversas e gargalhadas, em delírio, mas dos que podem ser a notícia a qualquer momento. O cronista maior do reino esconde grande conhecimento das curvas e contracurvas da história, de quem conduz nas suas estradas, dos que foram sendo atropelados, das paisagens e das suas árvores. Há que conferir com as figueiras-benjamim e os loendros rosa. Deram por isso? Leva por título, «Lisboa, Capital do Mundo», mas esconde na ironia a ideia de porto de abrigo. Parte da plausível ideia de que Trump poderia bem despejar a sede da ONU, por razões venais e simbólicas, a qual, por via das típicas manipulações da alta política, aterraria em Lisboa. Afinal, daqui «partiram as naus que fizeram o mundo juntar-se». Não há ponta de inverosimilhança na narrativa que vai discorrendo com a leveza de gin and tonic, nem na composição das personagens, menos ainda no retrato da política, com os seus cálculos e ligeireza. O fato da ficção, embora talhado à medida, não esconde o músculo e as gorduras da realidade. E depois, sob o manto diáfano da fantasia, mora um belo amor por Lisboa.

Nova do Almada, Lisboa, 8 Agosto

Passaporte morto, passaporte posto. Já perdi um bom quarto de hora a mirar e remirar o livrinho de rasgar fronteiras. Conheço o pânico de não o ter à mão nos olhares e gestos do poder absoluto. Recordo a febre adolescente de encher as páginas de carimbos, troféu inefável do sítio que não se conhecerá nunca, apesar de visitado. Não gosto de viajar, consigo agora sabê-lo. Verifico as minhas características e confirmo a minha identidade, na qual falta o essencial, o peso. Eles lá sabem. Antigamente também contava a cor dos olhos. Nesta edição, a ilustração que complica as falsificações diz dos monumentos, da fauna e da flora, da guitarra e do cante que faz agora a identidade do rectângulo. Também se esconde muita tecnologia nisto que se dá a ver, dizem. Tanto esforço para garantir a estrangeiros que somos mesmo este nado e criado aqui.

Metro, Lisboa, 9 Agosto

Se a Maria [Keil] fosse viva, muito provavelmente iríamos celebrar os seus 103 anos ali para o Príncipe Real. Subiria a rua com ar ladino, a parar para comentar a roupa estendida, o motard ruidoso, o reflexo do sol na fruta ou aquele azulejo. Trazia sempre a ironia de ponta e mola, mas não amanhava com ela o peixe. Trocaríamos as mais recentes dos gatos e duas ou três lamentações. Os azulejos dos Anjos têm as volutas meio apagadas da sujidade do passar, do tempo e das gentes, mas brilham de cada vez que as olho.

Le Monde du Dimanche, 11 e 12 Agosto

Sophie Calle conta da sua Histoire de Amour com o gato de irónico nome Souris (rato). O nome de alguém que mais vezes pronunciou. Conta detalhes habituais para os que celebram o que contém de vida esta inquietação a que chamamos gato. Mas inusitada e perturbadora resulta a foto do Souris em pequeno caixão e mortalha. Com estranheza, revela-se melhor o pequeno deus que nele habitou. Não achas, Manuel [António Pina]? «Há um deus único e secreto/ em cada gato inconcreto/ governando um mundo efémero/ onde estamos de passagem.// Um deus que nos hospeda/ nos seus vastos aposentos/ de nervos, ausências, pressentimentos,/ e de longe nos observa.// Somos intrusos, bárbaros amigáveis,/ e compassivo o deus/ permite que o sirvamos/ e a ilusão de que o tocamos.»

16 Ago 2017

Ventos de Verão

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lgures, 27 Julho

Podes vir, que não tenho chacais no quarto. Anda ver à tua volta. Não são chacais que rondam a cama. Nem são de lobo os passos que ecoam nos corredores. Vem à vontade que tens sítio onde ficar, pergunta por mim. Não são hienas quem ri ao subires as escadas na dúvida. Chama pelo meu nome cada vez que desejares, não é um leopardo que se esconde atrás das portas. E todos responderão. Acredita, não são babuínos que se dependuram dos candeeiros. Vem e fica à vontade, bem sei que não estamos sós, mas os olhos que brilham são companhia autêntica. Claro que não, que tubarão caberia na banheira? Ratos na cozinha, que ideia!? Anda daí, instala-te, abre as malas, sacode o pó, dobra os mapas, arruma os medos. Todos os selvagens que recolheste das paisagens são aqui em casa animais electrodomésticos. Uma casa não é um motel.

Santa Bárbara, Lisboa, 28 Julho

A minha biblioteca está feita um deserto. Desdobro o mapa e percebo que percorro a Jornada del Muerto. Sam Shepard morreu ontem e só saberei amanhã, mas desde então procuro os seus livros e neles os vestígios de areia dos meus passos. Será maldição que as paisagens do nosso imaginário sejam tão América? Mas se a raiva e solidão encaixam tão bem nelas

Horta Seca, Lisboa, 31 Julho

Também esta semana continuará a ser rasgada por conversas em torno de projectos, consigo adivinhá-lo, mesmo que não estivesse a escrever mais tarde: o spam cartoon vai regressar; um programa de tv a crescer em nós; o «Obra Aberta», que continuará e desdobrado finalmente em papel; novas geometrias de gente a dizer em voz alta; a série insana de participações da abysmo, que queremos radicais, em festivais e afins; o folhetim de Verão, do Ferreira Fernandes e do Nuno [Saraiva], que hoje começa no Diário de Notícias. E livros, muitos livros, assim resolvamos a infindável lista de atrasos. Livros, que são afinal o meio caminho de ideias estendidas no tempo: resultam da criação e partem em busca de quem deles fará mapas de mais viagem. Um bom livro não se esgota em si, mesmo esmagado alimenta crias. O músculo do editor está, por estes dias, em mantê-lo vivo, em fazer dele festival de Verão, temporada de ópera, época de teatro, ciclo de cinema, consultório das mais variadas especialidades e canivete suíço. Sem nunca o descaracterizar, sem lhe arrancar as páginas, sem o perfumar, sem o mascarar de calço para mesas mancas.

Enoteca de Lisboa, Belém, 1 Agosto

Aquele que depois de ter perseguido a luz se fez o maior criador de corvos da cidade, o Mário [Caeiro] desafiou-me. Sento-me, não vejo outra resposta a um desafio. À mesa, claro, com a Paula Ferreira e o Eduardo Jorge Fernandes, do impressivo projecto Travessa da Ermida: a vontade individual a tornar capela do séc. XVIII abandonada em pólo de fruição estética e de pensamento, com um restaurante e ateliers na mesma rua (mas que viaja já pelo país). Não deixo de me surpreender com o que pode conter uma rua de Lisboa. «Vicente», assim se chama o pretexto-corvo que há oito anos por ali voa, e dá agora origem a intensa conversa, que entrou vida dentro. Ganho asas em encontros assim.

CCC, Caldas da Rainha, 3 Agosto

Brutal notícia quase me impedia de ir atrás dos «No Precipício Era o Verbo» a mais uma queda, desta vez no regaço de pequeno auditório da cidade que se torna cada vez mais íntima. Fui a custo e dou graças. Ponho de parte o caloroso acolhimento dos amigos, aliás, tão regular quanto incansável, para me concentrar em dois ou três momentos.

Se nos deixarmos tocar, acontece beleza da que fere por nos colocar no sítio. Das geometrias complexas e inextricáveis. Ver o bailado do mano José [Anjos] a dispor tripés e pedais e pratos e tambores e pandeiretas e outras peles tensas prepara-nos para o encantamento. Arrumadas as peripécias da luz e os afinamentos do som, dos quais muito haveria a dizer, pode bem despontar diálogos. Na quase escuridão, pontuada por vozes e manobras dos irrequietos bastidores, o contrabaixo desafia a percussão para passeio, o sangue a chamar o coração, a arrepiar outras peles e mais caminhos, que os toques desviam, enterrando pés ou pulando às alturas do corvo. Chão e céu deixaram assim de se apresentar no cima e baixo habitual, disponibilizando no cubo forrado a negro de Cornucópia, para quem as soubesse colher, as geometrias complexas e inextricáveis. A improvisação liderada pelo mano Carlos [Barretto] naquele fim de tarde parou o azamboar das coisas. Por essa altura andava o André [Gago] a investigar negrumes de outra dimensão no palco do grande auditório. Estava a preparar-se para depois cantar comoções sobre cada entalhamento que faz a barroca grandeza de um palco de teatro: os quartos em que se divide, os painéis que giram para acolher específico som, o modo como propaga a voz gritada ou em sussurro, a maquinaria que o estica, a teia que o sobrevoa e por aí fora, por aqui dentro. Ainda só titubeávamos no desconcerto.

A menina Graça [Ezequiel] apanhou o depois como ninguém (foto nesta página). Descubram o grão da voz, o suor dos gestos, e as sombras que se multiplicaram sem que saiba se partem das palavras ou nelas se desfazem. O mano António [Caeiro], com as duas mãos no microfone, ergueu e a sala e fê-la rodar sobre si até que as estações se entrançassem em nó na garganta. As cordas não deixaram nunca de invocar a tensão dos graves.

«O vento de Verão continua a soprar. O nosso corpo está como dentro de água e ainda assim está na atmosfera. Para os antigos a variação de elementos era determinada pela densidade e pela rarefacção. Estava-se sempre dentro do ar, como dentro de água. (…)

O calor é como um campo de algodão que envolve os corpos e cria contacto entre os corpos e entre o vazio que há entre os corpos e entre os vazios que se propagam como arcos excêntricos na água percutida por uma pedra. Há um prelúdio que ecoa. O som é fluvial ou marítimo ou oceânico.

A Lua lavou o sangue das cobras bífidas e dos lacraus rabudos e dos animais ferozes. Cobras, lacraus e animais ferozes que são a sombra radiante e luminosa do que existe no Sol: no interior intrínseco da combustão a explodir e a abrasar. Os morcegos são pirilampos que voam com o espírito das corujas, que precisam da escuridão para encontrarem o seu elemento.

O vento de Verão continua a soprar. Precisa de corpos para se fazer ouvir e vem em ondas que não dependem de um único plano, mas de várias geometrias complexas e inextricáveis.»

Dou comigo, transpirado, ansiando por um sopro e a pensar que tenho de resolver a minha suspensa questão com Deus.

9 Ago 2017

Pode o corpo ser destino?

Abysmo galeria, Lisboa, 19 Julho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] brimos portas a uma boa ideia. «All About» faz nascer de definição de dicionário um conjunto, entre o solto e o selvagem, de ilustrações. Neste primeiro, seis autores cavalgam «Horses»: Mantraste (que perdeu o Lord), Gonçalo Duarte e Ricardo Passaporte são os mentores e convidaram Tomba Lobos, Luís Alegre e Tiago Evangelista. A edição tem apenas 100 exemplares, assinados e numerados, sendo que pelo meio dos copos ao fim da tarde ainda se venderam originais. Começar por um sinal maior de liberdade, elegância e velocidade pareceu-me ajustado, soltando a ilustração de qualquer amarra, sendo o texto apenas mote. E os cavalos que cavalgam as pradarias do absurdo são bastante antropomorfizados e citadinos. Tomba Lobos deitou-me abaixo da montada umas duas vezes.

Horta Seca, Lisboa, 24 Julho

Comprei finalmente a Granta que nos propõe «Comer e Beber» e é servida com as ilustrações do André [Carrilho], que volta agora mesmo a ser pai: saravá! A capa vem no estilo a que nos habituou, sugerindo hiper-realismo para deixar que se espalhem as sombras da fantasia. Vais engolir essas palavras, parece dizer a cena de um homem que se prepara para devorar um balão da fala. No menu há muita memória e da familiar: a má de Richard [Zimler] («A pior refeição da minha vida»), que envolve com cortante frieza um salmão e a morte de um irmão; a boa da Alexandra [Prado Coelho] («Bolos entre ruínas»), que descobre sensíveis infâncias nos lanches, domingos e verões; ou a para além do bom e mau sabor de Ricardo J. Rodrigues («Então a carne»), que me apresenta comovidamente um pedaço da minha cidade e, sobretudo, dos seus anónimos construtores. Depois há o mano Luís [Afonso] a escrever com requinte e em vórtice uma curta-metragem negra. E hilariante. A ilustração do André (algures nesta página) não perde na comparação. Conta tudo sem revelar grande coisa: com um dinamismo de rasgar representa os chefs da actualidade no lugar de grandes mestres da pintura. Mais metafórica ou literal, mais tétrica ou irónica, em grande plano ou em contra-picado, nenhuma cai mal, claro. Registo o gozo com que experimentou maneiras que lhe são novas, usando trama para a todas dar um carácter intenso, dramático… saboroso. E mais real, ainda que afastado do verismo.

Horta Seca, Lisboa, 25 Julho

As lágrimas ao telefone despertaram novas tempestades, trouxeram ventos e os incêndios são agora em ti, o atentado do dia, cada afogado na travessia, cada má notícia acontece de súbito em ti. A desgraça de cada dia faz-nos ainda mais sós. Perdes o pé e só te apetece o disparate. A única cama onde talvez repouses chama-se gargalhada. Ao telefone, as lágrimas são vidro moído na tua colher de sopa. E tatuas em cada gesto: vai correr tudo bem. Fechas a porta, todas as portas. E corres a atirar-te ao chão. O riso é um colchão duro. O chão não te sustenta.

Mymosa, Lisboa, 28 Julho

Tenho à minha frente o Joaquim Soares da Costa, duplo vizinho (como se a casa não nos fosse escritório…) e enorme editor, com quem, muito estranhamente, retiro gozo a falar dos piores aspectos da oficina de editar. (O nosso leitão não sofreu com isso.) Diz-me que quando aprendeu a andar de mota passou a distinguir o que era sombra. E nunca mais caiu. Brilha nele amiúde o diamante de uma memória assombrosa, que tanto evoca detalhe sobre os bastidores das «Líricas Portuguesas», com Jorge de Sena como personagem, ou da correspondência trocada com Roland Barthes, e mais, tanto mais, que logo esqueci. Assalta-me velha dúvida: como viver sem memória?

Mapa, Algures, 30 Julho

O eterno fez 50 anos no dia 11 de Julho. Corto Maltese, nativo de gato, esse perdido signo do zodíaco, tem o perfil do século XX e custa-me que se lhe aplique agora o castigo de ser desenhado por outro que não o seu criador, Hugo Pratt. Não se trata do que poderia ser homenagem ou artística revisitação, mas do velhíssimo mecanismo do capital. E a menorização de uma linguagem artística, que por ter sido popular se vê na contingência de abdicar da autoria. Talvez Corto apreciasse desfazer-se algures nessa bruma, grafito na parede, rabisco nos mapas vincados pela viagem. Mas eu não. Os mapas, em Corto, são feitos do concreto dos lugares, do desenho dos sonhos, e, acima de tudo, das personagens, centenas, oriundas da fantasia como do real. E surgiram a traço e aguarela nascendo em HP e com ele se confundindo.

Ainda nem conferi com que rosto o interpretaram agora? Não me apetece. Revisito os que conservo em papel e ideia. Corto tem barba quando surge/nasce, personagem secundária, em pleno Pacífico atado a uma cruz, pirata condenado. Mas o registo que o marca no mármore será um perfil, dança de espessuras de negro, com chapéu e patilhas longas, brinco e, por vezes, uma arma. Perfil do lado esquerdo do rosto, olhar fixo no horizonte, quero crer, da aventura. Um ícone. Que se repete um pouco por todo o lado: enfrentando o leão do Arsenal, em Veneza, na Amazónia, nos múltiplos Orientes. Quando enfrenta o seu duplo, em plena revolução russa, mais um prenúncio de morte, está tenso ou indiferente? Acabaremos por o ver, mais tarde, aguarelado, difuso. O século começou por ser a preto e branco, mas HP pensa agora mais líquido. Vemo-lo de piroga, na selva, de remo e cigarro navegando em todas as direcções. Encontramo-lo sentado, de casaco, mas com o chapéu nas ervas, junto a um cruzamento helvético tintado de verdes sombrios. A morte não anda longe, enfim, nunca o deixou. Surge-nos magnífico em cruzamento de Buenos Aires, onde nos olha nos olhos cortante simplicidade, duas luas dançando. Dá-se bem nos cruzamentos, não desdenha as danças. Gosto particularmente de quando HP o despiu de contorno, só cores contra um enfiamento de paredes mediterrâneas desembocando no rectângulo azul do mar, que sustenta o resto de azul do céu. O marinheiro que nunca perdeu as graças do mar desfaz-se aqui em fragmentos de cor, de branco e sombras. Diviso o que podem ser duas mulheres, mas não tenho a certeza. Corto abriu mares, desfez cores e certezas, no meio de senhores da guerra, aves literatas, miseráveis e milionários, loucos da mais diversa espécie, mulheres fatais, dançarinos e poetas. Gente atravessada pelo riso e pelo drama. Gente que desenha à navalha o humano. No seu corpo-destino.

2 Ago 2017

Cadeiras que não se sentam

 

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]acebook, nenhures, 15 Julho

Morreu Martin Landau, mas não morrerá nunca o comandante John Koening, da base lunar Alpha, que continuará eternamente a navegar nas galáxias da infância a enfrentar o diferente, o estranho, o obscuro, o enigmático, o colorido, o fantasioso. A morte dele faz as vezes do acidente que libertou a Lua da monotonia da órbita terrestre, na série «Space: 1999». Desataram a surgir das mais insuspeitas idades as memórias selvagens: os primeiros telemóveis, a arma de ergonómico desenho, os impolutos uniformes, a mais simbólica das naves, as figuras do beato erotismo, a omnipresente tecnologia. A série nem durou assim tanto, mas espantou-me a quantidade de gente que de imediato saltou para o recreio sentado das redes sociais.

Interessa-me muito que Landau seja um fracassado, apesar do êxito. Que papel representou com artística relevância? Um ou outro na série Missão Impossível? O de Judah, para o Woody Allen de «Crimes e escapadelas»? O fracasso conserva uma potência, uma energia por acontecer: capaz de desviar órbitras ou de nos obrigar a rever as ideias feitas sobre os trilhos do sucesso.

(Noutra vida, tratarei de investigar as relações, nos efeitos especiais e cenografia, entre o «2001: Odisseia no Espaço», de Kubrik, e a série. Além do dois-pontos, o sinal que anuncia sempre mais, uma janela, uma porta.)

Nisto das memórias, interessa menos a qualidade da obra que as desperta que a sua capacidade de nos atirar para as pradarias da brincadeira, de activar a insaciável capacidade de imaginar, de prolongar em nós as histórias, de as experimentar logo ali, antes do lanche. Por falar nisso, a sempre atenta Biblioteca Nacional de Portugal inaugura, em breve, exposição sobre «Os Cinco», de Enid Blyton. Voltaremos ao assunto, enquanto comemos scones.

Horta Seca, Lisboa, 17 Julho

A incansável Isabel Castanheira tirou do forno mais um colorido azulejo com que anda a forrar (colorir e proteger) a vida farfalhuda do criador do Zé Povinho. Desta vez, «Rafael Bordalo Pinheiro à Sombra dos Plátanos» (ed. Gazeta das Caldas) recolhe as referências ao ceramista nas páginas da Gazeta das Caldas, dos anos de 1925 a 1927 (mais uns anexos que, além do tema primeiro, definem o lugar exacto em Lisboa onde Rafael nasceu, para não deixar propagar dúvidas). Daqui se retira, se preciso fosse, que não é de hoje a atenção da terra ao artista, nas suas mais variadas facetas, a do empreendedor fabril, a do desenhador de humor ou a da personalidade pública, desde cedo objecto de culto. Curioso, o modo como aqui e ali a reflexão sobre o mestre contamina outros artistas locais, como Herculano Elias. O período justifica-se pela inauguração do busto (15 de Maio de 1927) com que Teixeira Lopes o imortalizou. Não deixa de ser divertido imaginar com que traços pintaria o humor bordaliano este nosso fascínio por monumentos e solenidades e homenagens.

Mymosa, Lisboa, 18 Julho

Recebo das mãos do autor e à mesa, como convém, «O Inspector da Pide Que Morreu Duas Vezes», que sublinha com subtítulo para soltar com clareza o perfume: «E Outras Gaffes, Triunfos e Episódios Memoráveis do Século XX na Imprensa Portuguesa» (ed. Planeta). O Gonçalo [Pereira Rosa] anda a escrever, em blogue (https://ecosferaportuguesa.blogspot.pt/) e agora em dois volumes, uma saborosa história do jornalismo nacional. Sabemos que a dita História já não se faz assim, exige o olhar de deus, em panorama, sobre o movimento dos grandes e invisíveis modos, que ora se faz vertiginosamente vagaroso ora pesadamente galopante. Sem perder o demónio dos detalhes, das vozes, das figuras, dos conceitos, das palavras, que também se recolhem ao esquecimento ou se afiguram novas. A frescura deste olhar está na escolha, sem a preocupação de, neste momento, lhe dar outro sentido que não o da: curiosidade jornalística (vede acima a justificação para o uso de dois pontos aqui em baixo). Através da leitura de fontes ainda vivas, da recolha de documentos antes mortos, da fora de moda conversa com protagonistas, o rigor fica assegurado. Depois vem o cumprimento escrupuloso das vetustas regras que ajudavam a leitura, sem perder o mistério, e servem a limpidez de uma escrita ainda assim aventurosa. Entramos nas redacções, nas cabeças, na mão de enormes repórteres, de grandes directores e também de alguns canalhas, que desta massa se molda o humano. E nada sei de mais humano que o jornalismo. Enervo-me com a cegueira da figura sinistra, que espreita: a censura. Apesar do sobejamente divertidos que são casos como «Não se mistura Salazar com o ié-ié». O ditador moribundo não pode conviver na proximidade gráfica de uma manchete sobre a música da juventude, do mesmo modo que está proibido de se mostrar velho ou de bengala. Divirto-me com as mortes e romances e esqueletos inventados pelo Repórter X, afinal mais escritor, Reinaldo Ferreira. Comovo-me com a viagem a Chiapas, e primeiríssima entrevista ao Comandante Marcos, do grande (e mal esquecido) Luís Alberto Ferreira. Todos criticamos o jornalismo que se vai fazendo, mas Gonçalo não diz, antes trata de fazer.

Salgadeiras, Lisboa, 20 Julho

Vejo na cadeira uma das grandes criações humanas. Um corpo que se sabe sentar desenha-se degrau exacto para ligar terra e céu. Um corpo que se sabe sentar mexe-se melhor, vai mais longe, ainda que não saia nunca dali, de si. Bem me diziam o Cláudio [Garrudo] e a Ana [Matos], vizinhos dos próximos, que a sua Galeria das Salgadeiras estava irreconhecível com esta viagem fotográfica (e de instalação) do Antoine Pimentel em torno do «ciclo de vida de uma ideia» a que chamou «Internato». (Exemplo na página e mais em www.salgadeiras.com). Que há de mais livre que uma ideia? Prendê-la no circuito fechado de um internato, quaisquer que sejam as razões, de reeducação política e aprendizagem moral, por exemplo, será sempre crime inútil. Somos avisados disso mesmo com um quadro que enquadra apenas uma maneira baça de ver, sem conseguir evitar a transparência. Um lençol nuvem em vermelho que nos ameaça com a queda e outro negro que avisa da inutilidade das paredes enquadram o tremendíssimo drama que por ali acontece. Uma cadeira descobre que o chão que pisa em queda se desfaz em cor. Uma cadeira inclina-se na sombra. Enquanto se passa tudo isto no nosso olhar, outra cadeira está suspensa e presa por paralelos e meridianos às quatro paredes. E se os objectos fossem ideias? A exposição fica a atormentar até Setembro. Ainda dá tempo.

26 Jul 2017

Desenhar com lâmina

Horta Seca, Lisboa, 11 Julho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]bre anunciando-se sem nome ou corpo, mas não encontro na poesia contemporânea outra boca que diga assim corpo, uma forma de o ser inteiro pela palavra com que desenha e rasga. «Sou esta fenda extasiada que pensa/ e estou longe como uma ruína alta/ guiando palavras à minha vontade.» «1025 mg» (ed. Douda Correria), o livro mais recente de Cláudia R. Sampaio, é um torrencial monólogo em XVII poemas que vieram para pôr cores berrantes na raiva e novos sabores na lucidez. O discorrer dos versos faz no branco que sobra as sombras da carne. Subo-os como degraus de casa devoluta e digo-os em voz alta. Sobrevoam agora os telhados até encontrarem a carne onde se tatuar. Imagens encadeadas e incandescentes que vão e vêm, para marcarem com nódoas negras a nossa leitura, mariposas contra a lâmpada. A medicina que o título anuncia não atenua a dor, não se faz unguento, não acalma nem a ferida da vontade, não cura a doença de sermos para aqui assim. «Quem sabe se não é agora que/ possuo toda a loucura/ e me faço mulher// Eu que da cintura para cima sou triste/e daí para baixo uma praia/ a quem explodiram o mar/ para depois o transformarem em/ homem e em assombro também/ Eu que desfolhada em abismo/regressei à ânsia e aos mortos/ por lá se encontrarem os vivos».

Depois, a casa da voz da boca de um corpo sem nome ou substância está tão bem mobilada pela delicadeza da Mimi Tavares! Os nossos móveis possuem secretas e ingénuas convivências.

(Descobri no «Carlos Bica + Matéria Prima» (ed. Clean Feed) banda sonora inesperadamente apropriada).

Mymosa, Lisboa, 12 Julho

Pode um desencontro frutificar? Vou apostar (um almoço) que sim. Há uns meses, cansada do silêncio que irradio, a Joana Bernardo entregou-me maqueta que, de tão impressionante, era logo ali um livro. Sem tirar nem pôr. A ideia de «30 anos | 8 Dias» continha a mesma simplicidade elegante do desenho gráfico, abundante de brancos, sem nada gritar, desenrolando coisas e nomes e entradas de diário com suave delicadeza: «13 pessoas que vivem em Lisboa chegam agora aos 30 anos e descrevem, nestas páginas, 8 dias das suas vidas.» Quando lhe assinalei o meu interesse já estava em marcha o processo da autoedição, que achámos melhor não travar. Está feito, ainda que sem o logotipo abysmo. Acontece. De igual modo, acontecerá sequência. Tem qualquer coisa de solar esta preciosa cápsula do tempo. O futuro parece menos sombrio se contarmos com o presente desta geração, afinal, desenrascada, que insiste no que vai fazendo em neurociência, em design ou música, engenharia ou bailado. Difícil, precário e tal, mas haverá outro modo de se vestir o mundo? Ainda que «sem ambições literárias», descobrem-se textos brilhantes, por exemplo os de Catarina Vasconcelos, e o conjunto explode em variedade de tons e vozes e maneiras e temas sem perder equilíbrio. Espreitamos fragmentos de vidas, em momento algum banais, ainda que comuns. E que revolucionário pode ser o facto destes quotidianos serem usuais! Joana desenhou mais do que as páginas, escolheu notícias, sublinhou locais na pele de Lisboa, pediu e fotografou objectos, enfim compôs algo que rola como círculo virtuoso, LP em prato de gira-discos. Ou seja: livro, singelo e luminoso. Os 30 põem fim à juventude, diz ela. Talvez não, se depender deles.

(Pareceu-me boa companhia o som «único e delicado» dos Durutti Column, apresentado pela própria Joana, no seu «Álbum de Família», na Radar (https://radarpodcasts.podbean.com/))

Horta Seca, Lisboa, 13 Julho

Por mais que olhe nas múltiplas direcções, os dias continuam a atropelar-me na passadeira. Será por estar sentado quando devia correr? Receber peças do calibre de «Mutations», do mano João [Fazenda], significa, portanto, salvo-conduto para o máximo recolhimento. Na dedicatória vem um monociclista a fugir do traço encimado pela afirmação de que escrevo desenhos e invento livros. Comovo-me e travo a fundo enquanto o olhar se perde nas linhas impuras do prazer e da inteligência. Estes desenhos são lições de bem ver: uma pedra, uma paisagem, um corpo podem esconder inúmeros. Traços simples que despertam as formas adormecidas no branco, que as movimentam, que as misturam: pétalas são lascas de granito, cabelos soltos fazem nuvens, paisagens que crescem no vestido, um mineiro surge-nos da barriga, árvores viram tejadilho e locomovem-se. Podem ser apenas pensamentos pedindo a encenação do lápis ou corpos juntos pelo puro gozo do desenho. Na maior parte dos casos, vejo ideias, isto é, poemas. Riscos e pequenas nuvens de cinza a desdobrarem-se nas infinitas possibilidades do mundo que se vislumbram para lá destas portas-páginas. Bendito demiurgo, que até nas mais negras ideias, colocas o incêndio de um sorriso! Podia pegar em cada um destes poemas e lambê-lo com palavras, carimbá-lo com a desnecessária metáfora das sombras que ardem (como a que ilustra algures a página). Sabes bem que descrever as imagens são afagos no artista. Devia chamar-te ruy-belo-da-ilustração, e por aí fora, desde que poetas do mar e do vento e das inocências perdidas, até te irritares. Melhor ficar por aqui à procura da tristeza que há-de andar algures. Preciso de a alimentar.

(Eu reconheci o Tom Waits, mas puxei do «Espaces Baroques», do Frederic Galliano, e deixei-o desdobrar os recantos enquanto via).

Horta Seca, Lisboa, 14 Julho

Como no desenho do João [Fazenda] em que um gato faz de papagaio no meio dos pássaros com avião ao fundo, assim me senti eu hoje. Convergiram amigos que há muito não via. Difícil reconhecermo-nos no âmbar daquele olhar. Nenhum de nós é ainda aquele. Ou ainda algum fio nos prende aos gestos de um puto, de um jovem?

Baixa Chiado, Lisboa, 15 Julho

No metropolitano, pela primeira vez em muitos meses, mas mesmo muitos, todos os lances de escadas rolantes que ligam a Baixa ao Chiado estão funcionamento. As carruagens, essas, pelo menos na linha verde, continuam à pinha em qualquer hora do dia. Para memória futura.

19 Jul 2017

Viver as paisagens

Alportel, 3 Julho

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esço, em boa companhia, à serra algarvia ao encontro do crocodilo-mor, João de Azevedo. Fomos recolher as cores fortes, primárias, solares que assombrarão a galeria nos próximos dias. Acabadinho de cumprir meio século a pintar com diletante militância, o seu percurso não se resume ao trabalho sobre a cor, ainda que ela tenha a importância de um mergulho nas raízes, de um encontro com os primitivos de sempre e de agora, os que procuram o sabor do orvalho, o poiso do olhar da aurora nas coisas. As cores, bebidas das muitas paisagens onde se desfez, começando pelo mar natal, servem temas de sombra e assombro: os barcos, os barcos logo carregados de refugiados, os barcos-caixão, o corpo, nossa paisagem portátil, erotismo, o rosto, autorretratos, o garrote, depois ícaro, sinal maior das utopias onde se fez e desfez, depois os crocodilos, por causa de Timor e de um regresso à pintura largamente simbólico. Agora, e também isso mostraremos, regressam os empurrados da vida, mas em fundo negro, corpos atirados para a frente, com as mulheres nuas a rasteirar quem foge (ilustração algures na página).

Sentámo-nos a mesa, de que outro modo podia ser?, a mastigar paisagens, a das ervas aromáticas que temperaram a noite, outras de verduras vizinhas, mas sobretudo as das muitos lugares (Níger, Moçambique, Holanda, Itália, Timor) e pessoas onde foi montando tenda. E semeando, que trabalhou muito com sementes. Juntou-se a nós um velho professor, o comum amigo Eduardo Campos Martins, que quase me empurrava para as sociologias, há muitas luas. Tantas luas e tantas vidas perdidas pelo caminho. Andámos desencontrados, por ser ele também da tribo dos nómadas, sendo eu mais árvore. E refrescado limoeiro me senti a beber os ventos naquela noite do princípio dos tempos.

Joaquim Casimiro, Lisboa, 5 Julho

São as coincidências que nos governam. O Pedro [Salgado], que anima o Grupo do Risco, em viagens de olhos e mãos atentas às paisagens de selvagem natureza, oferece-me o resultado da expedição mais recente, em Junho de 2016, ao Príncipe. E que contém o volumoso álbum além das ilustrações de aves e caranguejos, de pássaros e árvores, registos dos que caminham sobre a atenção? O mangal, em todo o seu sombrio esplendor. Ora, por estes dias, ando encantado com Ponta Gea, o mais recente – que dizer, romance? Talvez, mas não explica tudo. Livro de viagem a um lugar chamado infância? Memórias do que só agora existe? – de João Paulo Borges Coelho. Um dos fragmentos relata a travessia do… mangal, lugar onde a terra e o mar se cruzam de um modo tal que deixam de ser um ou outro! Deslumbrante viagem iniciática, contada como se de ilustração científica se tratasse, sendo a ciência aqui a da aventura e ao nível de um Melville ou de um Stevenson. Não há por ali moral, claro, mas tomo nota que somos obrigados a atravessar as movediças paisagens para descobrir o rosto da morte. Desencontrei-me do João Paulo, por exemplo, em Moçambique, aqui há atrasado, mas a elegante Maria Helena convocou-nos para a sua mesa. Falámos, conversámos, historiámos. Recuperámos, quem sabe, algum do atraso. O dia vinha tintado de tristeza, mas a noite mudou-lhe o tom.

CCC, Caldas da Rainha, 9 Julho

Naquele tempo, não via necessidade de fazer colecções na abysmo. Ei-las que surgem, de modo orgânico, ou não se tratasse de silvestre jardim. Na capa, o Sal [Nunkachov] coreografou pequena e desfocada dança de corpo nu e ramo. Ajudou a fazer um programa. Não a nomeámos, mas existe doravante, esta dedicada aos micro-contos, e existe mais ainda por se iniciar com Insanus, do Carlos (duplamente) Querido. Ou talvez seja nome seu a epígrafe roubada a Flaubert, afinal, a entrada para «livro» do seu Dicionário das Ideias Feitas: «Quel qu’il soit, toujours trop long.» Este livro vai durar, vaticino, de tão longa que será a sua permanência nos leitores. Nestas peças de relojoaria onde nada sobra ou falta, o absurdo toma as vezes de pano de fundo para o encaixe em movimento das personagens. Breves, mas intensas. Gente que consegue viajar no tempo, tornar-se invisível, perder as palavras, enlouquecer por via de um quotidiano gesto. As minhas segundas leituras floresceram no horto do absurdo, com plantas e jardineiros como Beckett ou Henrique Leiria, Jarry, Camus ou Mário de Carvalho. Descobrimos que o dito cujo cresce como espelhos de circo da nossa relação com o mundo. Por ele acedemos à matéria primeira dos objectos e dos gestos. Com a subtileza da maresia, sente-se ainda a ruralidade, essa peculiar atenção à terra, a rimar ironicamente com um Deus que protege quem se aproxima das margens, dos precipícios, dos abysmos. O Carlos, sendo mais homem bom que juiz, foi sendo, nos andamentos mais recentes, um verdadeiro mecânico de paisagens. Curiosamente, ou nem por isso, com ele os timbres mais graves da liberdade. Personagens e autores, andam presos pelo umbigo, bem o sabemos. No conto «Sombras», sublinho, portanto regressando a uma das muitas infâncias: «Fazíamos os mesmos gestos, em simultâneo, numa harmonia sem arestas, até que um dia comecei a perceber de que era ela quem tomava a iniciativa. Percebe o que lhe digo? A minha sombra movia-se, e eu imitava-lhe o movimento.»

Imitar o movimento das sombras, não será vocação para um editor?

Horta Seca, Lisboa, 10 Julho

Começo a semana de costas, a mirar a que passou. A minha-terra-agenda fez-se confluência de rios-projectos, ao mesmo tempo adubada de desilusões e amarguras. Clássicas tragédias cheias de futuro de par com contemporâneos do risco, fotografia e ensaio, talvez ensino. Dá-me jeito a melancolia, nas manhãs de segunda… E Lucebert, traduzido por Jos van den Hoogen, que desceu, com Daniel Rocha, de outra serra ao meu encontro: «o abraço deixa-nos num jogo desesperado/com o vazio/ por essa razão procurei /a língua na sua beleza/ onde ouvi que de humana não tinha mais/ do que os defeitos de pronúncia da sombra/ da luz ensurdecedora do sol».

12 Jul 2017

Contar o tempo

Horta Seca, Lisboa, 28 Junho

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho pelo menos um leitor. A pensar em noites desinspiradas como esta, fui atirando notas para uma página. E sendo a tendência escrever mais do que a medida, ali arquivei entrada excedente sobre desarrumação. Usei-a algures em Março, não a apaguei e esqueci-me. Voltei a usá-la agora. Um leitor fez o favor de mo assinalar. Veio-me à memória o que se projectava durante palestra de conferencista distraído: «verificar a conexão da fonte e o modo de entrar».

Mymosa, Lisboa, 29 Junho

Coube-me o terceiro dia nesta criação em torno dos «vinte anos de prática projectual em design gráfico» de Jorge_dos_Reis. Sete dias, cada um com um tipo de peças (cartazes, letras, livros e publicações, catálogos, identidades gráficas, esboços e finalmente pinturas) desenham esta «Terra Plana», assim se chama a exposição, patente na Casa da Cerca, em Almada, e o deslumbrante catálogo que o Jorge agora me entrega enquanto solta gargalhadas que enchem o lugar. Impressiona o rigor com que duas décadas de trabalho se apresentam, de modo visceral, mas arrumado em lúdicas geometrias. Impressiona o deleite com que se apresenta, nos detalhes, nos diferentes papéis, no formato. Cheguei ao Jorge pelo lado da investigação sobre tipografia e só depois descobri o criador, que invocava invariavelmente uma paisagem de serras que me foi próxima, ao serviço de curioso programa: «páginas à procura de uma lombada, homens à procura de uma morada». Aquela sua pesquisa em torno dos caracteres móveis tocava-me por conter muito de labor poético, que abordei erguendo-me em esforço do magma de confusão destes meus dias, cada vez mais esboços do indistinto.

«Daqui, de onde o vejo, até com as mãos, encontro uma peculiar estranheza no corpus do Jorge_dos_Reis. Lúdica e confortável, mas estranheza. Simplesmente porque […] combina opostos e diferenças de maneira única: vejo máquinas e mecanismos e peças, mas logo encontro jardim do mais orgânico esplendor vegetal; uma linha irregular, risco distraído no papel que se transfigura em simetrias e rigor geométrico; tem tanto de abstracto como estruturante, formas de puro deleite ou sinais que emitem informação; faz-se paisagem e habitada por pequenos seres, quase sempre paisagem de papel e pequenos seres de tinta, mas pode dar-se o contrário; elementos oriundos do passado distante a conviverem com pixéis latentes de ecrã; o conforto do reconhecível e o assombro do novo.»

Se se pudessem arrumar décadas de trabalho irrequieto, teria que ser assim, abrindo com o azul petróleo de uma qualquer «materica acqua». Entra o Raquesh, que espalha gentileza, paga uma rodada e grita: «É o fim!». Nada disso, vamos lá tratar de habitar esta «Terra Plana».

Mymosa, Lisboa, 30 Junho

Sento-me à mesa de mais um projecto com o António Eloy, velho companheiro de lutas que nos pareciam ganhas. Erradamente, como a sempiterna energia nuclear, um desvario maior da gula energética das sociedades contemporâneas. Nem sei a razão do desvio, mas deu-nos para folhear álbum (in)comum de amores e ódios, causas e nomes, mestres, personagens, amigos ou nem por isso. A sua passagem pelo Partido Radical, projecto libertário assaz peculiar de Marco Panella, falecido no ano passado, motivou inúmeras histórias. Muito para além da porno-deputada Cicciolina… Nem me lembrava da proposta de colocar Ghandi no logótipo, à qual Eloy e a maioria de uma qualquer assembleia se opôs, até que o carisma de Panella inverteu a tendência. Pelo meu lado, recordo os esforços transnacionais para a legalização das drogas. Tenho para mim que não valorizamos devidamente o memorialismo, e, em resposta, criámos, na Arranha-céus, colecção que acolhe textos que queiram testemunhar do vivido. Lancei desafios dos quais espero ansiosamente resultados. Para cortar no tempo.

São Julião, Lisboa, 30 Junho

As Festas da Cidade dão-se por findas, mas nada mais enganoso. Em Lisboa, as festas são um fado, uma tatuagem, um acaso da geografia, um resultado da meteorologia. Este ano erguemos um arco de papel com a EGEAC e editámos a preto e branco, para adultos e nem tanto colorirem, algumas das ilustrações com que o Nuno [Saraiva] tintou as festas, do ano passado e deste (um exemplo, nesta página). Uma brincadeira, dir-me-ão. Sim, mas quem afirmou a nossa seriedade? O gesto de colorir acalma os nervos, faz passar o tempo, exercita o músculo estético. Faz-nos ainda regressar a uma qualquer infância, o que se justifica sobremaneira para quem vive (em festa) aqui e usa os transportes públicos. Brincadeira, claro, mas se olharmos com atenção estes desenhos encontramos, a traço fino, um retrato da cidade que somos. Há anos que anda a povoar lisboas, e nos últimos tempos, até pelas paredes conta histórias. Invariavelmente fazem dos corpos um palco. Não por acaso, no caso revisita a obra do enorme Rafael [Bordalo Pinheiro]. Não deixámos ainda de ser nem zés nem povinhos. Em fundo musical, está alinhada, qual desfocada foto na parede da colectividade, uma galeria de personagens do mais transversal e transgressor cosmopolitismo genético. Fui ver e diz que «um ente geométrico é transversal quando o seu sentido é oblíquo em relação a determinado referente». Somos partes em recomposição, identidades sem bilhete nos apertos de um metro veloz. A cegonha acaba em pernas com meias de renda, sim a que enfia o bico do mito na garganta da raposa-PA. O DJ toca pratos, mas de chouriço e sardinha. As varinas são tatuadas, usam piercing e marcham de estilete, os marujos saltam para dança gay-pop, chinesas partilham arco e balão com um rajá das índias profundas do Martim Moniz. Siga o baile, desde que com selfie na ponta do pau. Depois ainda têm muito que contar os manjericos, em desfile de seres que são também comentários aos tiques e aos estereótipos alfacinhas. Isto e mais está deslavado em formato generoso à espera da cor de cada um.

Em aperto de simbólica, marcámos o lançamento para o fim do mês, perto da Praça do Município, em plena exposição das sardinhas, essoutra brincadeira que se tornou fenómeno internacional, com cardumes cada vez mais numerosos a redesenhar o popular bicho, levando o ícone popular à exaustão. Não apareceu quase ninguém, o que nos deixou de lápis coloridos na mão. A escolha de dia e hora para atiramentos é ciência que não se deixa dominar. Os fregueses deviam estar distraídos algures num arraial. Vai daí, fomos à festa.

5 Jul 2017

Noites todos os dias

Joaquina, Lisboa, 13 Junho

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e vez em quando, mergulho em apneia no grande oceano da música brasileira. As redes permitem pescar com fartura e nas profundezas do passado. Se feito ao desafio, como há um ano e muito por culpa da Elza Soares, então as agruras ganham o perfume da dama-da-noite. Incontáveis vozes femininas cantam em veludo os desamores e as pedras da calçada do quotidiano. E ao serviço de letras que constroem sabiamente contos, crónicas, poemas, aforismos. Cresceu-me o introito a propósito de uma daquelas noites que só o Junho alfacinha contém. Na Rua Joaquina, vila sobranceira a uma das minhas colinas preferidas, ainda que sejam muitas as dilectas, costuma acontecer festa rija e fado solto. Desta vez, na ressaca da noite sacrificada ao santo, estamos postos a celebrar a amizade, que o André [Gago] acaba de fazer comovida pelo discurso aniversariante. Eis que o puto Gaspar [Varela Silva], bisneto de Celeste Rodrigues, com primeiro concerto anunciado para Novembro, pega na viola portuguesa, deixa assobiar o vento nos caracóis, e ali mesmo celebra Dolores Duran, pois adora «A Noite do Meu Bem»: «Eu quero toda beleza do mundo/ Para enfeitar a noite do meu bem/ Ah! como este bem demorou a chegar/ Eu já nem sei se terei no olhar/ Toda pureza que eu quero lhe dar». O talento ouve-se a olhos vistos, mas custa a crer na força de vontade que prende o Gaspar às cordas. Pureza enfeitando a noite.

Feira do Livro, Lisboa, 18 Junho

Sob sol inclemente e com o país mergulhado na tragédia, fecha mais uma edição da Feira. Por mais voltas que dê, vejo-lhe os modos e as maneiras a moribundar. Mais do que momento anual de ter ao alcance do entendimento e da bolsa o catálogo completo de cada editora, o armazém tornado montra, o rosto a vislumbrar-se muito para além da marca, aquilo está disforme venda de saldos ao ar livre. Tudo entalado entre isto e aquilo. A maltosa passeia, mas já não disfruta. Vai para comprar o barato, mais do que livro. Praças inteiras de maduros, mais ou menos anónimos, à espera de quem lhes reconheça o autógrafo. Barracas de farturas e fartura de barracadas. Talvez não haja volta a dar, apenas subir e descer. Sem dispensar uns encontrões, que andamos sem ver onde pôr os pés.

Horta Seca, 19 Junho

Acabo a «Marquesa de Alorna» contada aos pequenos, e nem tanto, pela Luísa Paiva Boléo e pelo André [Carrilho], minha vizinha na colecção «Grandes Vidas Portuguesas». O conto espraia-se sem floreados, acreditando bem a Luísa que a personagem se agiganta só com o estender dos factos. «Querida Leonor» foi grande figura, não restam dúvidas, antes páginas. Prometo visitá-las. O mister do André usa o esboço nos cenários de um modo que parece história, sugerindo apenas para que completemos nós. (Confira-se com a ilustração do terramoto de 1755, algures nesta página) Leonor surge de rosto definido em detalhes e de corpo enchendo o tempo e os lugares. Entre cenário e corpo, dá-se a aventura.

Horta Seca, Lisboa, 21 Abril

Sem variação, mas com variantes, cada um que entra na minha oficina se espanta com a aparente desarrumação das mesas e das estantes. Não, o plural não é gralha, que são várias as mesas onde acumulo, sobretudo livros, mas também revistas e jornais e revistas, a repetição não é gralha, e cartazes e documentos, enfim, papel e pó. Esta acumulação resulta de um processo único, próximo do zen, desenvolvido com preguiça e argúcia ao longo dos anos: se não estiver perto, esqueço. Por folha estará ao menos uma ideia, cada monte contém infinita potência de leitura ou de projecto. Preciso sopesar formatos, respirar grafismos, tocar a haste da letra, beber a imagem, mergulhar no pensamento, enfim, achar que posso ler, a qualquer momento. Esta proximidade define horizontes e estruturas, sem as colunas em altura desmorono, sem a visão dos tons infinitos e movediços do papel paraliso. Moro nos antípodas do origami, ess’arte de, com dobras engenhosas, domesticar o espaço. Para que o mundo e as suas formas caibam na mão. E assim encolher o tempo. Aqui o caos parece congelar o tempo, propondo-lhe um labirinto. Não morro menos por isso.

Belém, Lisboa, 22 Junho

O Filipe [Raposo] deixa-me nas mãos uma «Inquiétude» em tons de amarelo. Os dias seguintes caminharão sobre pianos. As composições, quase todas suas, resultam de dois anos de aprendizagens várias em Estocolmo, pelo que nos chegam com as marcas da viagem, pedaços de paisagem nas botas, as malas cheias de elementos, água e vento, fogo e céu. E palavras. Há voz, ligeira, que se toca como instrumento, pois não são canções. Contudo, este jazz das planícies (interiores, ainda que lá fora) tem, no que parece ser uma constante no trabalho do Filipe, fortíssima ligação à poesia. Ténue como corda de funâmbulo. A cada tema corresponde um poema, mesmo que seja só frase, no desdobrável que acompanha o disco, entre os quais o de Louise Bourgeois que forneceu o acertado título, metendo estudo nisto do desassossego. Logo me desperta o jogo de ler o poema e ir tentar descortinar as notas que cosem relações. Surge uma Leonor, acontece Grabato sobre o Cosmos página branca, e «coisas deixadas para trás» a pretexto de um haiku: «Enquanto com a manga/ varro a minha cama/ e me sento nela/ à tua espera/ a lua já se pôs». São degraus, estas teclas.

Hoje Macau, 23 Junho

Saravá, António, que agora trazes novas tonalidades a estas páginas. Nós, os escravos do tempo, te saudamos ó grande intérprete das faldas e sinuosidades. Deixa ainda acrescentar que se fez pedra no charco o teu, tão breve quanto intenso, «É Um Clássico», na RTP2, aos sábados, pelas 21h22, mas a qualquer hora, como se vê agora televisão. Até te perdoo as mãos nos bolsos, se continuares a desfiar melancólica clareza com a perfumada alvura das manhãs que se sucedem às noites alfacinhas de Junho.

Horta Seca, 25 Junho

Vejo desta coluna a semana que passou e são tantos os sítios onde gostaria de ter estado sem o conseguir que me arrisco a perder assunto, a perder o pé: as leituras que a Rita [Taborda Duarte] organizou na Leituria, o lançamento da Patrícia [Portela], a inauguração do Jorge [dos Reis], a festa dos vizinhos na rua Joaquina, a homenagem ao Bernardo Sassetti, que será doravante também uma sala-jardim, o Nuno [Saraiva] a mostrar originais das Festas, a visita guiada do Jorge [Silva] ao Pavia. Verdade fique dita, o social dói-me sempre algures.

28 Jun 2017

Tempos e lugares

Setúbal, 10 Junho

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]emos como se estivéssemos em pleno acontecer, mas não será nunca assim. A esta distância percebo que o dia maior da Festa da Ilustração, a segunda leva de inaugurações, será marcado pelos tempos, até os contratempos, além das geografias e dos lugares. Tem-se pouca noção da quantidade de trabalho exigido, do esforço envolvido, das horas perdidas, dos milhentos acertos e vontades que precisam coincidir para que o milagre aconteça. Este ano, por inúmeras razões, foi particularmente difícil. Justifica-se, também por isso, mais a festa.

Por coincidência, o país celebra-se em dia mítico, torturando Camões e torturado pelo calor, que se abate sobre nós com desejada brutalidade. A jornada começa pelo futuro, a meio da tarde, no Convento de Jesus, onde a metade ainda em obras se abriu para acolher a «Ilustração Portuguesa». Cenário apropriado, portanto. Ano após ano, continuo surpreendido com a biodiversidade nacional: paisagens, palcos, experiências, desenvolvimentos, cores e corpos, abstrações e perspectivas, gestos e retratos, reflexões e deslumbramentos. Estranho e maravilhoso país, este.

À beira-mar, no Cais 3, está ancorada uma fatia de passado, entre 1895 e 1969: grande selecção, feita pelo Jorge [Silva], a partir da sua ímpar colecção de publicações, de anúncios ilustrados pelos melhores artistas portugueses (de Lima de Freitas a Fred Kradolfer, de Alonso a Jorge Barradas, de Cottinelli Telmo a Roberto Nobre, de Carlos Botelho a Bernardo Marques, de Maria Keil a Piló, de Luís Filipe de Abreu a Lázaro e tantos outros). O armazém contém, em altas torres, «Anúncios Classificados», essas inúmeras variantes de que é feito o horizonte mirífico do desejo de saúde e bem-estar, de beleza e prazer, de comida e bebida, de cultura e progresso. O humor está omnipresente, bem como a ideologia. Além do delirante conjunto de imagens, testemunho gritante de outros tempos. Dá gozo ver quem vê a exposição, com os seus comentários e sublinhados, com as suas gargalhadas e indignações.

A tarde finda-se virada a sul. «O Alentejo do Espanto e do Sonho» será, muito provavelmente, a maior e mais animada das (poucas) retrospectivas dedicadas a Manuel Ribeiro de Pavia (ilustração ao lado), cujo centenário do nascimento se celebra, enquanto, ao mesmo tempo, se lamentam os 50 anos passados sobre a sua morte, no mesmo exacto dia 19 de Março. Fica bem vincado o carácter onírico do trabalho de Pavia, o seu olhar sobre o feminino e a paisagem, todas as formas irmanadas em ondas e massas, momento e movimento. Uma parede inteira de capas de livros, na sua grande maioria de autores neo-realistas, abrem curiosa janela. Não se consegue escapar à tragédia e ao mito criado, com a revista Vértice a celebrar na morte o que não soube fazer em vida. Diria Eugénio de Andrade: «Morreu o Manuel Ribeiro de Pavia. Levou-o uma pneumonia que o foi encontrar depauperado por uma vida quase de miséria. Passava fome! Tinha uma única camisa! Não pagava o quarto há imenso tempo! E nós a falarmos-lhe de poesia…»

Feira do Livro, Lisboa, 11 Junho

A Inês [Fonseca Santos] entrevistou dezenas de escritores em busca de resposta para a pergunta: «Vale a Pena?». O pequeno volume, da prolixa Retratos da Fundação, outra das preciosas colecções dirigidas pelo António [Araújo] para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, contém afinal mais interrogações, mas que permitem retrato breve e dinâmico do panorama literário nacional, sobretudo nos seus aspectos mais funcionais. Pretexto para conversa, em tarde quente, com a autora, Mário de Carvalho e Paulo José Miranda, acerca dos lugares onde foi arrumando os criadores: começa pelo nevoento e disperso do intelectual na actual praça pública, com o desaparecimento do diálogo crítico, entra depois quarto adentro, sítio maior da indispensável solidão, avança pela aprendizagem, depois pelo dinheiro, sua importância e quase ausência, para chegar ao mercado, subtil tirano. Não haverá por aqui consensos, e estranho seria se assim fosse, mas há muitas concordâncias. Estará a vida literária ameaçada pela extinção, seja da voz activa do intelectual, de um lado, e a do olhar-leitor, do outro? A vocação, a impossibilidade de sobrevivência sem o uso da palavra e da imaginação, parece impor-se a cada vicissitude mais ou menos prática, mais ou menos filosófica. O resto, em ideia cara ao Paulo [José Miranda], terá que resolver-se com a leitura criativa, ao alcance de qualquer um: ler criticamente, partilhadamente, acaloradamente, cada vez mais livros, velhos ou novos. Mas afinal não se edita demais?

Largo de S. Sebastião, S. Brás de Alportel, 15 Junho

Temo que seja ignorado, este «Escrytos», volume que reúne os ensaios do Paulo Pires, programador e criador completo, tocando tão bem a escrita como o acordeão, sobre cultura contemporânea, com que inauguramos a colecção Doença Crónica, na Arranha-céus. Tenho pena, pois as suas reflexões, por exemplo sobre leitura ou programação cultural (autárquica), são muito desafiantes. Pensam a partir de uma prática quotidiana, cruzam-se com as leituras mais diversas, praticam a cultura como o fole vital do acordeão: respirando. Quase uma centena de pessoas enfrentaram a canícula em pleno Largo de São Sebastião, sob os auspícios das palavras de Roberto Nobre e à sombra mínima do busto de Bernardo Passos, cuja poesia tenho que visitar, para ouvir Ana Isabel Soares enquadrar com sabor e saber: «Escrever, fixar o vocabulário do pensamento, é uma atitude de resistência ao adormecimento cultural ou à aceitação das sucessivas crises (que sempre vêm). Paulo Pires, escrytor, oferece aqui o seu contributo para contrariar aquilo a que, em Vocabularies of the economy, Doreen Massey chamou a “hegemonia do neoliberalismo”, nas pérfidas consequências que impõe às várias formas de manifestação cultural dos povos.»

Feira do Livro, Lisboa, 17 Junho

Suo as estopinhas, na boa companhia do Pedro [Lourenço], para apresentar à sociedade uma senhora das sombras: Dona Antónia. Inclui-se na colecção Vidas Portuguesas, parceria da Imprensa Nacional, do Duarte [Azinheira], com a Pato Lógico, do André [Letria], modos de fazer que se unem, o do património ao de laboratório, passados e futuros. Foi custoso de processos, mas acabou sendo prazeroso nos finalmentes, com o Pedro a desenvolver metáforas visuais e cores que até no escuro deixam brilhar o lado solar das encostas do Douro. Sabemos pouco sobre a figura, quanto baste para acender o fascínio. Teremos chegado perto?

21 Jun 2017

Paisagens dispersas

Horta Seca, Lisboa, 4 Junho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ceifeira continua o seu trabalhinho, passou por Marraquexe e levou Juan Goytisolo, aos 86 anos. Dançaram logo à minha volta as bruxas-saudades do desafiante desassossego, do pensamento insaciável, da mística curiosidade, da fracturante narrativa, da carpintaria identitária, da ternurenta solidão de mais um dos derradeiros intelectuais, no velho e explosivo sentido da palavra. «La libertad y aislamiento serán la recompensa del creador inmerso hasta las cejas en una cultura múltiple y sin frontera, capaz de trashumar a su aire al pasto que le convenga y sin aquerenciarse a ninguno.» Vou à estante e colho Makbara, para me acompanhar nos dias próximos. Os livros são excelentes ressuscitadores.

S. José, Lisboa, 6 Junho

A subida da colina de Santana tornou-se rotina. Gosto deste pedaço da cidade, onde se cheiram outras épocas, de versos à maneira de Cesário, onde as ruínas possuem alma. Não durará muito, bem sei. Lisboa tem no corpo mistérios, como um cemitérios dos prazeres, ou de insistir em fazer coincidir hospital e miradouro, um dos mais belos, por não sacrificar apenas ao mar da palha. Na cama, o meu pai insistia em localizar-se. Sem se mexer, estava perdido. Com a patética condescendência com que tratamos os doentes, insistia em explicar-lhe as geografias enquanto piscava o olho à Senhora do Monte. Não, não estava no inexplicável Campo Grande, nem o mais perceptível S. Sebastião da Pedreira. «Sabes, filho», disse-me, «a minha cabeça tem andado por paisagens dispersas».

CCB, Lisboa, 8 Junho

As últimas sessões do Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/) foram brilhantes na sua diferença. Nada de substancial, que o terreno de ambas foi o da inteligência, melhor, da lucidez, se uma foi tintada de negro, estoutra mais recente fez-se solar que nem dia de praia, mas dos meus, feitos e conversa e sombra à beira-mar. Isto mesmo eram as nossas pretensões para o programa, conversa solta sobre livros, os seus temas, o que eles em nós suscitam, mudam, provocam, isto é: leituras.

O historiador António Araújo quis falar do Gulag, de Alexander Soljenítsin, sem esquecer o nazismo, já que trouxe ainda o texto de Hannah Arendt sobre Eichmaan, esse relato da presença do supremo carrasco na cidade que se ergueu sobre as vítimas. Pairou uma ideia essencial: não há anormalidade no horror, qualquer um de nós, nas circunstâncias exactas, pode tornar-se algoz. O escritor de origem judaica, Richard Zimler, dialogou a partir de um propósito ético da literatura, mas brilhou com a diatribe contra essa aparente excrescência do homem comum que se chama Donald Trump.

Gerida pela Maria João Costa, a segunda conversa juntou Sérgio Godinho e Isabela Figueiredo num distendido elogio à literatura, à imaginação, enfim, ao modo como a escrita permite aceder ao mundo, torná-lo maior e ao mesmo tempo acessível. Mas nunca domesticado. Em qualquer dos casos, aconteceram testemunhos na primeira pessoa de quem acredita no valor redentor da palavra. Com uma autenticidade que me parece rara e sem esta pompa que não consigo escovar da frase.

Horta Seca, Lisboa, 8 Junho

A galeria está impossível, parece o anticiclone dos Açores, o cruzamento das mais díspares correntes de ar. Pode até parecer exagero, mas fixa comprovado nos rostos de quem se confronta com a luxuriante inocência dos cartazes de Bráulio Amado (Almada, 1987). Há vozes e silêncios, gritos e sussurros, rostos e membros, corpos e olhos, murros e carícias, música electrónica e punk rock, fanzines e revistas de arte, a opinião e um convite, festas e tristezas, vastas paisagens e detalhes mínimos, décadas distantes e o dia de ontem, tudo a acontecer em simultâneo, apenas porque se imprimiram em grande formato estes posters. Afixam, não tanto uma qualquer circunstância, mas a contemporaneidade. Esta é a pele dos nossos dias. Como o próprio conta, no Bráulio Amado 2016, que a Stolen Books editou por estes dias, os cartazes eram uma perturbadora encomenda de uma amiga para um clube nova-iorquino de house/techno que tinha que ser feito no dia de fecho da Bloomberg Businesseweek, da qual era art director. O resultado era apressado, muito influenciado pela música que mais ou menos desconhecia, pela vontade de experimentar e pelo humor. E assim nasceu um estilo. Surpreendente na diversidade; inteligente na combinação dos elementos, na inserção da tipologia, muito dela manuscrita; divertido no uso das cores. Revejo-me neste cabeçudo (ao lado), imenso balão branco, preso à âncora de um rosto tombado. Digam-me porquê ou encham-me de cor.

Horta Seca, Lisboa, 9 Junho

Faz meio ano que comecei estas linhas arrevesadas. A princípio, era apenas outro afazer em lista atulhada até aos impossíveis. Depois tornou-se exercício, de ganhar músculo, de voltar a andar. O fim da tarde de terça, deste lado do globo, assinalava-se com a chegada do pdf. Dei por mim a lamentar a quantidade de quartas-feiras que foram feriado em lugar tão distante. Agora, a minha semana não é sem este ponto da situação. Estranhamente, não estendo este diário com entradas para a gaveta, mais íntimas. Esta semana, por exemplo, sofri duas conversas, dolorosas chamadas à realidade, que justificariam isso mesmo. Ainda não dei esse passo, provavelmente não darei: entre gaveta e preguiça, escolherei sempre a segunda. Mas surgiu-me isto a propósito do sortilégio do papel. O mano António [de Castro Caeiro] cometeu a gentileza de trazer da sua incursão macaense um exemplar do Hoje Macau. Raios! Que diferença, poder desdobrar os 25 x 38,5 cm de papel de jornal. Não há brilho, não consigo ampliar detalhes, mas os olhos percorrem o filete, param nas cabeças, regressam ao título, descansam no branco, penduram-se nas colunas, sentem-lhe os dentes. As mãos erguem o lençol em busca de luz. O toque parece transmitir o cinza leve do fundo. A tinta rima com o mundo. (E depois ao lado estão os clássicos Ruis, o Cascais da palavra, e o Rasquinho da imagem, com quem aprendo sempre e até parece que acertamos assunto, são assim os clássicos e mereciam edição, meus caros.) Sou, concluo, duplo cronista, o do ecrã e o da folha.

14 Jun 2017

Sombras e vento frio

Metro, Lisboa, 29 Maio

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda no REALIZAR:poesia, durante o lançamento de Vertem-se Bíblias em Quimbundo (ed. Miasoave), o João Paulo Esteves da Silva explicou muito explicadinho a origem do volume: um amigo hebreu e poeta ofereceu-lhe um tablet e ele pôs-se a «andar pela cidade com os polegares». Usei os meus para tomar nota no telemóvel, mas desnecessariamente, pois não me esqueci. O livro traz ainda um cd com as canções de um outro projecto, Crime, mas os poemas iniciais têm pouco a ver, a não ser no que indica uma epígrafe: na luta diária, os nossos gestos poderiam cometer crimes. Ainda assim, aqueles percursos pelo quotidiano são compostos no modo narrativo da voz off de um qualquer filme noir, com os olhos a fazer a vez dos polegares no tocar da cidade. Muita sombra perpassa, não sei se melancólica, nas descrições falsamente fotográficas do que se faz e desfaz, da chuva e das árvores, tantas árvores, do vazio e de Deus, mas também de memórias e de anseios, por outro sítio ou por neve. Longos versos a dizer em baixo contínuo de cortante singeleza. Falho paragens no metro atulhado com a voz off a empurrar-me, de súbito flanêur de filme noir na cidade branca. Branca por que raio? «Claro que preciso do apoio dos livros, empilho-os, encosto-me, descanso/Pouso-os na mesa, sombras benfazejas, anjos sentinelas//Às vezes, tenho a mão sobre um enquanto leio outro/Acompanho com toques mais ou menos ritmados//Agrada-me escrever em contraluz, virado de frente para o livro/ A ver o lado mais sombrio das formas, iluminadas por trás (…)».

Cemitério da Paz, Setúbal, 30 Maio

Interrogações. De que espécie era a pequena árvore que nos refrescou naquele deserto, sobreiro ou oliveira? De onde vinha e para que apontava o arbusto que se erguia do vazio da gigantesca cabeça tombada, céu ou terra? De que mineral nasceu a cabeça tombada, lioz ou granito? Sabe o coração que os seus batimentos desenham paisagens, montanhas e fossas? Que lonjura e profundidade deve ter o traço para fazer um destino?

Facebook, Lisboa, 1 Junho

Leio notícia da morte de Armando Silva Carvalho (quantos dos citadores instantâneos e lamentadores terá comprado um dos seus livros?). Não consigo relembrar-me da última conversa sobre Deus. Ou seria morte? Será possível falar daquele sem esta? Qual espelha o quê? «Entrego estes frutos minerais/tardios./ Envolvo numa sombra a mão/ que mos recebe. / A isso chamo eu mundo./ Entrego mais e mais, amei falsificando,/ e ajeito o pescoço à lâmina/dos dias./ Com os olhos bem abertos abarco/ toda a queda./ Eu sei, é o outono.» (De Canis Dei, incluído em O Que Foi Passado a Limpo, ed. Assírio & Alvim, volume que sobreviveu com marcas à inundação). Sopra na cidade, mal anoitece, um vento frio.

Horta Seca, Lisboa, 1 Junho

Apesar do vento, fez-se festa, esta finissage. Como nas boas receitas, a qualidade de cada ingrediente foi-se encaixando para fazer mais, muito mais, do que a soma das partes nesta edição especial de «Desenhar Em Cima da Conserva», caixa com livro e latas de conserva. Surjam agora mãos-leitoras que o usem para se apoiar. A ideia do mano Tiago [Ferreira] de convocar ilustradores capazes de ocupar, com imagens, um vazio desenvolveu-se, à mesa, para cadáver esquisito em banda desenhada que contasse mais uma história de marinheiros e sereias. Aconteceram encontros mensais, na loja da Conserveira de Lisboa, para assistir ao desenho ao vivo até que o Museu do Trabalho, antiga conserveira de Setúbal, acolheu há um ano, uma primeira mostra do conjunto dessas obras, enquanto o André [Carrilho] encerrava a histórica com épica baleia. Outro mano, José Teófilo [Duarte], com ajuda do João Silva, desenhou o objecto com o peso exacto de cor e modo, antes de ser passado a caixa, de modo a conter duas latas Tricana, cuja imagem aproveitaria personagens da Susana [Carvalhinhos] e do Pedro [Brito]. E estou longe de esgotar a lista de competentes contributos. Outro dos casos, portanto, em que as páginas dos livros se transfiram em ramos de árvore abrindo espaços na paisagem e tocando mundos e fundos. Por exemplo, neste dia fez-se toalha para dispor os sensíveis e delirantes amuse-bouche da Ingrid [Correia], tão bem acompanhados pelos espirituais Syrah, Viosinho e Touriga Nacional, da Quinta do Gradil, gentileza da Ana Matias. Tenho até carinho por caixas, sobretudo de cartão, mas não tinha nas estantes que vou construindo nada com esta luxúria bruta. A bd dentro vive de brincar entre o negro e o branco, seja traço ou mancha. Cada vez que a folheio encontro tranquilidades e tempestades, o delírio e o medo, além do amor. E depois o mar, em (pro)fundo.

Casa da Cultura, Setúbal, 2 Junho

O rosto da Festa da Ilustração soma, este ano, ao grafismo sólido do José Teófilo [Duarte] a fluidez do desenho do António Jorge [Gonçalves]: figura que corre, com lápis na vez a perna, traçando o chão que pisa. Preciso aqui desmontar a metáfora como se fosse prótese?

Pelas zero horas, estamos, os organizadores, tolhidos pela quase solenidade no meio dos seus desenhos que são quase só traços. Dizem, com pujante energia, que somos isso, afinal, linhas, vestígios. Com método, leu a Casa da Cultura e instalou três momentos do trabalho que vem fazendo, começando pela ampliação dos seus inseparáveis cadernos do registo imediato de gente sentada viajando de metropolitano nos cinco continentes. Ao que se segue o trabalho de desenho ao vivo de par com música, teatro ou dança, para acabar em A Minha Casa Não Tem Dentro, com o essencial do seu livro mais recente, de toque abysmático. Disse três momentos? Erro. São quatro, pois a improvisação é componente essencial do seu modus operandi: a vida prolonga-se nas páginas do caderno onde assenta notas, sejam desenhadas ou escritas, ou ambas as coisas. E dali frutificam depois para o que der e vier. Havia uma parede cega na Casa da Cultura, a caminho dos Desenhos Éfemeros, a tal onde às escuras assinala a parte do seu trabalho com a luz. Faça-se da parede folha de caderno (veja-se foto ao lado), com perguntas e desenhos ou perguntas desenhadas. «Respondo-me ao perguntar? Desenho porque desejo-te? O medo mata? O medo salva?» Obrigado por perguntares: «Como te sentas hoje?»

7 Jun 2017

Angústia do não conseguir

CIAJG, Guimarães, 20 Maio

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ubo para ajuizar, na companhia do Jorge [Silva] e da Margarida Noronha, os candidatos ao Prémio Nacional e Revelação da novíssima Bienal de Ilustração de Guimarães, neófito que se saúda, com a originalidade de atribuir prémios pecuniários, os que resultam da concurso como o de carreira. Aguardemos por Outubro para saber mais, de projecto gizado pelo mano Tiago [Manuel], com o apoio do Rui Bandeira Ramos.

Habituei-me a ser surpreendido a torto e a direito pelo Norte, não tanto pela arquitectura ou pelo modo como as gentes se fazem casa, não apenas pelas comidas e bebidas ou pela maneira como as pessoas se dão comendo e bebendo, nem sequer pelos carvalhos ou os freixos ou pela forma como os sujeitos se erguem na paisagem. Surpreendem-me na singeleza com que fazem acontecer. Naturalmente, como se criar tivesse alguma coisa de natural. Bato no peito e grito por me mexer tão pouco. Recolho a papelada que posso para passeios de dedo e olho, coisa mental. Alimento para a quotidiana angústia do não conseguir. Perdi «Teatro da Alma, uma peça de dor e de sonho a partir de Raul Brandão», escrita e encenada por João Pedro Vaz, apresentada como assombração do teatro popular: «de espada em riste, à procura de Deus e do Homem». Pouso a espada, mas interessa-me este teatro, que «não é nem para jornalistas nem para burguesas serigaitas. É para toda a gente», dizia Brandão. Invejo a programação do Teatro Oficina em torno do imenso autor de Húmus. Conservo ainda os ecos da leitura encenada do poema homónimo de Herberto, pelo Paulo Campos dos Reis, na última noite da vida de um solar em Paredes de Coura. Momentos telúricos, de andar descalço pelas ruínas. «Ouve-se/ a dor das árvores. Sente-se a dor/ dos seres/ vegetativos,/ ao terem de apressar a sua/ vida lenta.» Nem na ida, menos ainda na vinda, consegui espreitar a exposição «Raul Brandão: 150 anos», que abria as portas na Casa Guerra Junqueiro e na Biblioteca Municipal do Porto, pela mão sabedora do Vasco [Rosa]. Esta não posso perder. A ignorância também se faz fábrica de muita surpresa. Desconhecia a doravante indispensável «Guimarães», revista semestral que vai no quarto número, este com «paisagem» dentro. Lá volto a entusiasmar-me com as ideias do João Pedro Vaz e a irritar-me por ver tão pouco, por subir tão pouco. Bato no peito e reencontro Brandão, com o Vasco a contar da nossa maneira descuidada de sermos, das décadas que foram passando sem que este autor sublime fosse devidamente editado. Vais sendo agora a injustiça reparada. Percebo que nunca visitei a Casa do Alto, nem que fosse para aquilatar fantasmas. Para meu deleite, ainda posso ouver as «Dissonâncias» do João Alexandrino aka JAS, cujas exposições recentes em Lisboa perdi (é dele a ilustração ao lado), bem apresentadas pelo Daniel Jonas: «nesta dança macabra, a peça exibida é anatómica e participa desse modo do silêncio espectral das coisas que confessam em silêncio. É um tipo de urna, de sarcófago, uma espera numa câmara frigorífica.»

Casa da Cultura, Setúbal, 23 Maio

Conferência de imprensa para apresentar a Festa da Ilustração ’17. Na boa companhia do Pedro Pina, vereador capaz da loucura de encher uma cidade de ilustrações, e do mano orquestrador-mor, José Teófilo [Duarte], perco-me em números. Manuel Ribeiro de Pavia, o ilustrador clássico que será homenageado este ano, nasceu há 117 anos e morreu 50 anos depois, no mesmo dia, a 19 de Março, na miséria. Neo-realismos cá dos nossos. Preparemo-nos, que oiço Zeca: «Tenho muitos anos para sofrer/ Mais do que uma vida para andar/ Bebo o fel amargo até morrer/ Já não tenho pena sei esperar».

Horta Seca, 24 Maio

«”E coisa mais preciosa no mundo não há”. Falamos de canções, certo? Não vejo maneira de crescer sem elas, miopia minha, que não distingo o longe horizonte sem degrau mínimo, este íntimo à mão de semear. As paisagens que fomos construindo no último século, hesitando ou correndo, sentados no passeio ou comendo alcatrão, seriam impossíveis de percorrer sem estes seres particulares. Chamemos-lhe canções, para facilitar, embora sejam bastante mais do que isso, síntese letal de poder que invoca diamantes e granadas. Não conheço melhor maneira de cruzar ciência e poesia, pensamento e prazer, quotidiano e intemporalidade do que nestes nós que nos acompanham vida fora, por causa do verso estilhaço ou da melodia tatuagem. Os dias deixam-se oxidar, amarelando sensaborões até que a batida nos invade, aquela que sendo de todos parece apenas nossa. E logo Lisboa amanhece. Ou o Porto fica perto. Tão fácil falar de lugares comuns! Lá está, se se tornaram comuns devemo-lo a autores como Sérgio Godinho. E se estamos neste texto habitamos tal nome.

Década após década, SG fez-se gigante construtor de canções que traçaram pontes, ruas e túneis, aliás, mapas entre gerações e géneros, temas e estilos, personagens e imagens. Foram relâmpagos que continuam acontecendo à medida que vivemos, para nos ajudar a perceber a dimensão exacta do que fomos mal o ouvimos, mal ouvimos as canções. Esta arte do Sérgio assenta na peculiar atenção ao que fica do que passa; na raiz mergulhada na experiência pessoal mas de um modo tal que rima com universal; nas coreografias com que a palavra arrasta os ritmos. Nisto e nos enigmas da curiosidade que recolhe, mistura, amadurece e atira. Para voar e nos levar também.»

Não consegui desenvolver estas ideias, impressas muito antes do Dylan feito Nobel ou vice-versa, a tempo de alinharem na fotografia feita pela exposição e catálogo, que agora me chega às mãos e com que a Câmara de Grândola celebrou vida ímpar: «Sérgio Godinho – Escritor de Canções». Desconsegui. Calquemos o detalhe, que ainda haverá tempo para lá ir, à vila morena, reconhecer a banda sonora dos meus dias. Não se contam pelos dedos, as alegrias que o Sérgio me foi dando, desde que me conheço a torcer destinos, sendo a mais vibrante uma recente fraternidade de projectos partilhados. «Dias úteis/mesmo se a dor nos fizer frente/a alegria é de repente/ transparente/quem a não receberia?/ Mesmo por pretextos fúteis/a alegria é o que nos torna/os dias úteis.»

Rodrigues Sampaio, 25 Maio

Reunião para fecho de contas anual com o Vitor [Couto], parceiro de há tantos anos, ali pertinho da Smarta, cidade da ilha chamada Natália Correia. Tão triste a paisagem, tão entediante o assunto. Os números cantam-me sempre a mesma canção. «Dias úteis/ são tão frágeis, as verdades/ que se rompem com a aurora/ quem as não remendaria?»

1 Jun 2017

Afinar os acasos

Horta seca, 15 Maio

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muito que deixei de ser dono da agenda. Fico quedo a mirar o animal indomável, a afastar-se da minha vontade, a rir dos meus desejos, a desprezar as minhas necessidades. Faz-se bruta de granito, mas esperneia como potro, rasga que nem tigre, apaga-se qual camaleão. Em resultado, levo ao limite a paciência de uns e outros, esbanjo oportunidades, falho com estrondo, descumpro, atiro guloseimas ao monstro da ansiedade dos autores e, pior, saboreio talvez menos o âmago do instante. Por acaso, a vida não quer ser arrumada. Por acaso, preciso arrumar a minha vida.

Horta Seca, 16 Maio

Reparem bem: no fundo negro, boiando por entre linhas brancas, estão quatro figuras reduzidas ao mínimo denominador comum de cabeça, par de mãos, dois pés. Por timidez, André [da Loba] não se incluiu na capa deste «No Precipício Era o Verbo», ideia da qual passou a fazer parte ao trazer a ilustração na vez de voz ou instrumento. (Nota a desenvolver no futuro: Da Loba vem compondo, até nos trabalhos que resultam de encomendas, uma gramática sensível de formas e cores, um corpus de formas que vai muito para além da prática sanguínea da ilustração). Acrescentou maravilhoso hibridismo ao projecto de poesia dita em palco, com coreografia de silêncios e afinamentos, sempre com o contrabaixo do Carlos [Barretto] a fazer de cenário, mas que intervém, que comentta, toma corpo de actor. Na preciosa companhia da Dulce [Cruz], André ouviu cada voz, perseguiu o contrabaixo, abriu as entranhas a cada verso, dos densos e dos soltos, navalha e nuvem: «há sangue arterial no abate diário do sol» (ilustração correspondente em grande). Aos momentos, um por um, aplicou cadências, desenvolveu imagens elegantes que prolongam o dito, o sussurrado, o cantado, o gritado. Interpretam e criam. Os quatro ventos confluem e empurram os bailarinos que percorrem as subtilezas da cor, omnipresente em contrabaixo contínuo. Esta sucessão delicada e enérgica de palavras e imagens, antes do cd que acrescenta o som e a voz, não reproduz nem comenta o espectáculo, até agora a forma cabal de sentir a experiência, antes o amplia e reflecte. Bailarinos que dizem e tocam ao espelho. Este livro fez-se tão mais que isso!

Convento da Trindade, Lisboa, 17 Maio

Dou uma saltada ao Festival do Clube de Criativos, uma festa do engenho mais ou menos aplicado. Éramos recebidos pelo jornal «Anúncios Classificados», afinal exposição portátil que recolhe «grande seleção de anúncios ilustrados pelos melhores artistas portugueses (1895-1960)», feita pelo Jorge [Silva] a partir da sua inesgotável colecção, e que continuará, em breve e de outros modos, a suscitar exclamações de surpresa ou raiva. Sendo o algoritmo, resulta refrescante este flic-flac à rectaguarda. Mas o assunto era deliciosamente apresentado, não sem nostalgia, na exposição comissariada pelo Ricardo [Henriques], «Os clientes que gostaram deste produto também gostaram de…». Se os «meandros algorítmicos da comunicação estão a transformar os computadores em pequenos ditadores que dizem às marcas como vender e às pessoas como comprar», porque não recuperar a «informatável natureza da criação». E vimos «menos html e mais pincel» no painel de azulejos da Susana [Carvalhinhos] e no jingle do Tiago [Albuquerque]. Até ao terraço dos encontros e das cervejas à borla (ai, Lisboa dos ais), ainda aconteceram experiências do ver com as fotos red&blue do Sal [Nunkachov] ou, na Ilustra33, toda dedicada a cartazes, o do João [Maio Pinto] para o Sabotage, cuja abstração me toca. Aliás, por acaso, o Carlos [Guerreiro] atirou-me aos olhos o mais recente caderninho do exuberante projecto «Chapéu» (www.chapeushamuitos.com), cuja capa luxuriante, orgânica, barroca pertence ao João. It’s Alive. Por vezes, os jardins dão-se onde menos se espera.

Guilherme Cossoul, Lisboa, 18 Maio

Hesito entre preocupar-me ou celebrar. Tem acontecido muito, por estes dias, o pensamento em voz alta atirar-me para o modo fascínio do espectáculo. Voltou a acontecer no tardio lançamento, acolhido pelo Reverso 3, da tradução do mano António [Castro Caeiro] das «Odes Olímpicas», de Píndaro, com a marcante apresentação de José Pedro Serra, pelo que disse e no como disse. O encontrão começou antes, logo ao jantar, e entrou noite dentro com conversa e poemas ditos, nem sei mesmo se, ali na circunstância, outros nados e logo regados. Riso e comoção dançaram por ali até altas horas. Defendamo-nos: talvez a ventania que perpassa tenha apenas a ver com a Grécia antiga, que o ofício seja de incorpóreas arqueologias, não se aplicando ao que queremos para os nossos dias, quotidiano triste do olhar para tudo sempre da mesma maneira. A ideia de destino, refrão de fado, sulco marcado no para além do tempo e do qual nenhum humano se poderia afastar sem atrair a fúria divina não passa, afinal, de confortável falsidade. Para o grego, uma afinação de acasos pode resultar num destino, naquele destino, um destino só nosso. Precisamos, para tanto, de extrema atenção ao que nos surja. Ora, a poesia ajuda a ler cada momento, por banal que seja. O poeta tem a festa como dever ético, que a celebração define o perfil do herói, enquanto fornece acessos, vias, escapatórias. Se para tudo se pode encontrar sentido, não há absurdo na Grécia Antiga. Nas ilhas não havia becos sem saída. Se até o mar se faz horizonte… Depois, temos que amar o nosso próprio destino. Por um instante, achei que vivia.

Horta Seca, Lisboa, 19 Maio

Curiosa convenção, esta que manda apagar as editoras nas notas biográficas de um escritor. Não creio que o leitor médio, essa figura mítica, habitante dos lugares comuns e presa dos marqueteiros, mesmo em época de marcas, seja tocado com profundidade pelo nome das casas editoras. Mas não será informação de relevo incluir a singela coordenada? Qual será a razão: cá em casa não se fala dos outros? O leitor confunde-se se souber que há mais do que uma? Será demasiado intelectual? Tem pouca importância quem fez do texto um livro? Perde-se o recado simples ao futuro: este título nasceu ou recolheu-se, inventou-se ou recriou-se no lugar tal feito de papel e letras. Vem isto a propósito de ter tropeçado em outro praticante do apagamento, tão mais estranho por ser revista literária e pertencer a editora de referência: «Granta».

24 Mai 2017

Gastar mundos

Latitudes, Óbidos, 29 Abril

[dropcap style≠’circle’]Ó[/dropcap]bidos, feita de tempo parado, abriu as portas aos viajantes e suas viagens. Nada parece fazer mais sentido, de tão gastas as ruas pelo arrastar dos pés dos visitantes, se até as casas parecem amaciadas pelo correr das câmaras, cada vez mais elas, que os olhos vivem presos aos ecrãs. O gesto temerário de lançar o novo festival «Latitudes» deve-se ao eixo do «Folio», a vereadora Celeste Afonso e o José Pinho, com a incansável Julita Santos, e abriu engalanado pela ilustração, o que se saúda por milhentas razões. As paisagens do André [Carrilho] possuem textura que há-de obrigar a parar e a ver de outros modos. Turismo vai sendo cada vez menos viagem, aproxima-se mesmo da patologia. Valham-nos os livros, que, a pretexto, atirámos dois, ambos com capas do Rui [Garrido], travestindo falsos cadernos com títulos rasgados a pincel. O de Luís Maio, que, desconfio, marcará estes dias ao conter, além dos saborosos relatos, fortíssima reflexão acerca da «natureza das viagens e ao acto de viajar – desde sempre uma metáfora popular para os dilemas da vida, em particular os que advém da inquietude e da demanda existencial». Em «Ninguém Sabe Onde Está» há tanto para fruir como para pensar e gostei tanto de ouvir o autor apresentar-se como aquele que caminha. Muito além do acumular de milhas, do coleccionar de lugares, é definido pelos passos dados. Enquanto o dizia, turistas atravessavam-nos qual etéreo cenário. O Brasil do puto Luís [Brito], contado em «Oi?» vem pintado de carnes. A sua escrita surge atirada para a frente, em permanente desequilíbrio, levando-nos em passo de corrida, pelos lugares, mas sobretudo pelas pessoas com que se cruza, que toca. Vemo-lo, também a ele, autor que caminha, constante e candidamente desnudo em 24 arrepios e algumas cicatrizes. Não há sítios errados. «Ofereceram-me drogas diversas e travestis passaram a berrar, com as suas vozes de tenor. Rimos muito, e Leo, o mestre da pandeireta, disse-me uma frase de sua autoria: «algo de errado aqui não está certo», até que chegámos ao sítio errado que não podia ser mais perfeito.»

São Luiz, Lisboa, 3 Maio

Saio em êxtase de «O Nosso Desporto Preferido: Futuro Distante», do Gonçalo [Waddington], que escreveu, encenou e encarna Hermes, e da Carla [Maciel], que faz de cego Tirésias, o que lê vaticínios e sabedoria na própria própria merda. O bilhete dizia que o lugar era no palco e não mentia. Do lado de lá da cena havia mais espectadores-deuses e a oscilação dos seus rostos e expressões tornou-se cenário vivo. O chão era de espelho partido e por todo o lado havia penas de badmington, a metáfora-bomba desta tetralogia: as penas da humanidade são jogo entediante. Os actores cobriam-se com uma transparência de órgãos bordados à superfície do seu lugar no mapa do corpo. Logo estalou a pura volúpia de uma linguagem entretecida de clássicos greco-vicentinos e quotidiana escatologia, caudalosa torrente em verso dos mais carnudos pensamentos. Enquadrados pelo bulício da dança, a luz como bisturi até ao esplendor final da abertura para a plateia nublada: o mundo. Este vórtice gira em torno do buraco negro que a ausência de sexo nos abre, da cabeça aos pés. Muita merda, desejam-se os actores, nas vésperas de subida a cena, para invocar sortes. Não havia necessidade. Nunca vi tanta e tão excelsa merda. A não ser em cada um de nós. (Cartaz de Alex Gozblau na ilustração).

Bairro Alto, Lisboa, 9 Maio

Cada homem importa por conter uma biblioteca de mundos, um modo único de segurar este com gestos e palavras. A morte de Baptista Bastos encerra como velho cinema de bairro um fragmento vivo do jornalismo-que-já-não-há. O passamento do Baptista Bastos atira para o pó das estantes uma literatura de esticanços, pendurada entre a fala das ruas e a língua trabalhada a escopro e maceta dos clássicos. O desaparecimento de Baptista Bastos apaga restos de uma Lisboa-que-já-foi.

O trespasse de Baptista Bastos torna a noite bastante mais banal. Não poupava nos ódios, aliás de tantos que estimo, nem na generosidade, menos ainda na vida. Não poupava. Ponto. Deu muito nas quatro direcções. Murros no ar. Palavras azedas. Ideias parvas. Sim, bem sei. Mas deu-se incontido e inconsútil e nisso o prefiro a tantos acanhados. Ficas a dever-nos as memórias, BB. Não te perdoo.

Nacional, Lisboa, 9 Maio

Aprimorado e estranho volume, este que reúne dois romances e outros tantos livros de poesia do Paulo [José Miranda]. O requinte deve-se ao cuidado posto na tradução, no prólogo e nas notas do Felipe Cammaert, mas também ao grafismo. Insólito por, assim reunidos, nos surgirem distintos, oferecendo a aparência de outras densidades. Despiciendo não será, portanto, nem rosto nem formato. «La enfermedad feliz y otras obras» brilha doravante em castelhano na importante Colección Labirinto, que o Jerónimo [Pizarro] dirige na Universidad de Los Andes. Estimulante o peso do título «A Máquina do Mundo», que se referia à violência, mas evocava Camões, na interpretação de Felipe: «Toda la escritura de Miranda, sea esta en prosa o en verso, apunta a descobrir las relaciones entre el universo, el ser humano y la naturaleza».

No excelente «Clube dos Poetas Vivos», animado pela leitura e curiosidade da Teresa Coutinho, o nómada e cosmopolita revelou-se em grande forma, afirmando, com verve, a sua vocação maior: leitor, leitor de outros. Os leitores do Hoje Macau conhecem bem as suas libertárias leituras.

Barraca, Lisboa, 11 Maio

De uma assentada, o Miguel Martins anuncia um «turning point» (sic): o fim do seu blogue, «o único verdadeiro deus vivo», o abandono da editora, a Tea for One, o fim das leituras nas quintas d’A Barraca, e a cessação, «num horizonte previsível», da escrita de poesia. Nenhum amigo lhe conseguiu arrancar explicação palpável na melancólica 235ª e última sessão, sublinhada a sopros de saxofone. Seriam avisos de reviravolta alguns versos de «Desvão» (não (edições), 2016): «nem sei estar indubitavelmente presente,/como o frasco dos picles, na prateleira de baixo do armário»?

Ou ainda: «Os meus dias são feitos de excessos e vazios/e o vazio excessivo é a própria matéria porque pugno/o muito tempo todo em que não me calha compor/estas vagas linhas sobrepostas/a que insistem em chamar poesia/mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono.»

17 Mai 2017

Obsessão pela transparência

REALIZAR:poesia, 23 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem houve conversa sobre música e poesia com devido apontar de raízes aos gregos, a que se seguiu estroina devidamente acompanhada à viola e sarcasmo pelo irrequieto Manuel João [Vieira] e muito mais do que foi parecendo solto, do que nos vai parecendo fragmento perdido de quotidiano, ganha sentido lendo os clássicos. Por exemplo, a Jessica Augusto acaba de ganhar a maratona de Hamburgo, minutos antes da apresentação desta tradução ágil e elegante do mano António [Caeiro], das «Odes Olímpicas», de Píndaro. A María José Velasco não lhe fica atrás no enquadramento justo e completíssimo, com a ligeireza de uma brisa. A poesia, dizem, resulta de Píndaro e os deuses a percutirem as cordas do tempo. A nós resta-nos saltar. Ou correr. Tornarmo-nos heróis. «Em ocasiões diferentes,/correntes de prazer de canseiras/atingem os homens.»

Logo depois chega-se à frente João Rios, companheiro de íntimas viagens neste festival, para nos puxar ao terra-a-terra de «Os Heróis Transformados em Floreiras» (ed. Douda Correria), em jogo de parada e resposta. «manda o poema/à guerra e às feras/não lhes prometas caldos/e opíparos despojos// se à potência do veneno/sobreviver/força-lo de novo a cair/até perder a mania/de quem guarda o mistério/de um Deus maior».

REALIZAR:poesia, 24 Abril

Neste festival, ideia forte do Isaque [Ferreira], que doou o corpo à ciência, quer dizer, a voz ao verso, a vida à poesia, as mesas viram-se, de facto, em conversas. O fulcro, nesta moderada pela Ana Cristina Leonardo, foi a filosofia. O Fernando Echevarría colocou-se em modo teatral e definitivo, o Fernando Guimarães atirou para a frente as suas lições, a Leonor Barata dançou e o mano António [de Castro Caeiro] iluminou ao deixar claro que a filosofia se faz istmo, itinerário por onde passar quando tudo está contra. Ressoa ainda a sua contra-definição do conceito: filosofia enquanto obsessão pela transparência.

REALIZAR:poesia, 25 Abril

Não encontro melhor maneira de celebrar Abril. Gargalhadas e ideias trocadas ao longo do dia, sobre sol, silêncio e importâncias, tão natural como sombra de respeitável pinheiro na Senhora da Pena. O riacho desagua ao fim da tarde na apresentação do tocante trabalho do André da Loba e da Dulce Cruz interpretando em imagens e livro o disco-concerto inaugural como estas manhãs de «No Precipício Era O Verbo» (projecto que visitará Macau no início de Junho). O livro, sobretudo aqui em Coura, seu primeiro palco, encerra e relança ciclo de múltiplos caminhos, criativos, mas não apenas. Voltaremos ao livro, que apuro destes merece leituras e releituras. Até para sublinhar o que tende a ser esquecido, pois este filho de urgências não estaria aqui sem o esforço do Vasco Malheiro, da Rainho & Neves. Ouvir agora o mano [José] Anjos contar das cronologias, o André [da Loba] expor as suas minuciosas atenções, a vibração do Carlos [Barretto] com os encontros ou os comentários do António [Caeiro] que penduram sempre o banal no panorama de um destino, tudo me grita que o risco compensa. Momento píndaro? O concerto arrepiou-me, inquietou-me, comoveu-me, disse-me. Antes, à laia de primeira parte, algo que só podia acontecer em Coura. Conversa de peito aberto sobre as poesias de cada um, moderada pelo Isaque, com Vitor Paulo Ferreira, o sempre imprevisível e já querido Presidente da Câmara, e Tiago Brandão Rodrigues, Ministro da Educação, que tinha no colo o «Sérgio Godinho e as 40 ilustrações». Após com intensa leitura do «Poema do Menino Jesus», do Caeiro-Pessoa, a propósito de fronteiras dos géneros e dos sotaques, e portanto de territórios, notável foi o ministro ter posto a sala a dizer trava-línguas: o rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia. O logótipo do REALIZAR:poesia, que arrisca tornar-se dos mais interessantes festivais, faz de um serrote o poiso de um pássaro (de António Pinto, na ilustração). Esta conciliação de improváveis traz-me estranho consolo.

Horta Seca, 27 Abril

Talvez seja apenas mais uma história de marinheiros e sereias. Talvez, mas para a Arranha-céus, este «Desenhar em Cima da Conserva» será registo memorável de viagem ímpar, tida e a ter. Por ser o primeiro título em banda desenhada, de qualidade superior e toque surrealista, mas sobretudo por nascer da amizade. Durante um ano, a convite do mano Tiago [Cabral Ferreira], da Conserveira de Lisboa, artistas como Pierre Pratt, Cristina Sampaio ou João Maio Pinto desenharam ao vivo na loja do Mercado da Ribeira, no que se tornou festa mensal. Em paralelo, cada autor contribuía para o cadáver esquisito, reunido agora em volume, e cuja edição especial conterá ainda duas latas das incríveis conservas deste lugar clássico que sabe embalar o mar com mil cuidados. A delirante narrativa, desde o Nuno Saraiva, que a lançou como rede ao mar, ao André Carrilho, que a fechou com gráfica espectacularidade, narra os avanços e recuos, as possibilidades desdobradas de amor impossível e contudo sempre renovado. Nesta história de corpos que se reinventam, alguns detalhes interpelam-me: a passagem do Pedro Lourenço para o Alberto Faria, de homem que grita para baleia que desliza. Conseguirei ainda atravessar a vida com a naturalidade de uma qualquer natureza?

Horta Seca, 30 Abril

Estou com os gatos: uma porta, qualquer que seja, tem na sua matéria, além do alumínio ou da madeira, do ferro ou do papelão, a surpresa. Vencia as duas, de bela e velha madeira, que me separam do lugar de desarrumo onde cultivo estas palavras, quando um estardalhaço de fuga me pôs em guarda. Ainda fui a tempo de ver dois pés a escapulirem-se pelo alçapão. Não consegui marcar emergência nenhuma no telemóvel, limitei-me a trazer a desorientação para a rua. Esqueci mesmo que podia dar-se o caso de haver mais pés. Abriu-se então uma das guardas da galeria e vi o meliante de luvas amarelo gritante a expor-se à janela, tosca instalação, mas vivíssima no esforço de fuga. Terá sido mais a impossibilidade física de abrir para si a janela do que os meus gritos e fúria a afugentarem-no pela mesma escapatória do parceiro. Depois foi polícia e indícios e formalidades. Ficou o estranho cheiro da devassa, deveras organizada em montes de utilidades e putativos valores, que a surpresa da minha rotina impediu que desaparecessem. Escusado será dizer que não iam levar livros.

10 Mai 2017

Desacertos na recta do tempo

Santa Bárbara, 16 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] silêncio de um editor é sempre ofensa, falta de consideração, desrespeito, desatenção. De Profundis, diz o outro. «Não quero martelo e rima/Aqui no Largo da Graça/Quero ficar onde estou/para saudar a quem passa.»

Horta Seca, Lisboa, 18 Abril

Os dias andam tristes. Talvez nem tanto, apenas embrulhados em circunstâncias miúdas que não permitem abrir os braços e acolher de peito feito a cidade. Eis se não quando uma dúzia de páginas tintadas de azul e vermelho chegam pelo correio e impõem paragens. A história breve de uma solidão faz-se desdobrar por Bárbara R. em grandes planos e geometrismos e desacertos neste pequeno álbum auto-editado. O Sol da Sra. Azul celebra a vizinhança, a atenção ao outro, com simplicidade extrema. Detalhe: fá-lo assente na imperfeição. A impressão riso deste meu exemplar 51 em 90 torna-o único e não me canso de nele descobrir pormenores: de gente, de casas, de percursos. A gentileza de Bárbara deu-me a ver os velhos que ainda cruzam as ruas da cidade dos turistas cegos. Sim, ainda há velhos em Lisboa. Não sei se há sol ou Primavera.

Monumental, Lisboa, 19 Abril

Autismo, do mano Valério, dobra os 1500 exemplares em três anos bem medidos e atira-se em segunda edição. As sobras no armazém parecem desmenti-lo, mas há leitores para romances assim. De choque, dizem alguns. De rasgo, digo eu.

Horta Seca, Lisboa, 20 Abril

Faz 30 anos que Rui Baião, Al Berto e o mesmo Paulo da Costa Domingos, que passa a deixar-me prova de vida da frenesi, agora em edição viúva (!), cozinharam antologia que daria brado: Sião. Escolhas pessoalíssimas, a reinventar-se poema único de fôlego capaz de estabelecer correspondências íntimas de Antero a Fernando Luís Sampaio. «Nenhum detém uma ciência, sequer empírica, dos destinos da Poesia. Nenhum propôs a outrem cânone que não constituísse já a sua coluna vertebral e fado seu, irreversível». Palavras do ímpar editor, noutra ocasião comemorativa, de 1991, e que agora revela, entre outras mais ou menos provocatórias na brochura Sião – Doc. Interno, publicada a pretexto da exposição que comemora, na associação cultural do Porto, Sismógrafo, as tais três décadas da Sião. E que celebrava «o centro urbano, as sociedades nocturnas, pessimistas, decadentistas e que se afastavam da escrita agrária, bucólica do século XIX.» Numa altura em que surgem editoras como cogumelos, mesmos nos dias em que não chove, incautas que julgam que para editar basta imprimir livros, as reflexões suscitadas pelas dezenas de títulos postos a nu no chão ao longo da parede são de extrema importância. Contra o esquecimento, pela afirmação de uma ética. Uma editora faz-se, antes de mais, lugar de resistência pela reflexão, contra a vida, apesar dela, em nome de uma ideia de literatura que nos desarruma, que investe língua adentro, que experimenta, que pensa cada aspecto do não. O logótipo da faz-se «de um cabrito alado em silhueta, e era originalmente a asa de um recipiente persa, em ouro, talvez um jarro». A espiral foi inscrita pelo Paulo Costa Domingos e não deixou ainda de girar sobre si. A palavra vem de verso de Mário de Sá-Carneiro: «Um frenesi hialino arripiou/Pra sempre a minha carne e a minha vida.» A frenesi arrepiou. A frenesi arrepia. Basta subir, página a página, à última cidade do Armagedão.

Casa da Cultura, Setúbal, 21 Abril

E 30 anos passaram desde a morte do Zeca. Quantas décadas contém cada canção sua? As granadas de mão estão cheias de referências, supostas impurezas, nomes concretos, de lugares exactos, insultos dirigidos, asneiras de criar bicho, múltiplos sinais do seu tempo, que só tolos acharão passados pois são afinal palmos de terra sobre os quais se erguem cabanas, lares, fortalezas. Sopram nelas ventos que confluem em espiral, forças de assombrar futuros. Olha ele a cantar-me ao ouvido: «a fadiga é um dom da natureza/ Chiça!/ Com as minhas tamanquinhas/Com as minhas/ Com as minhas tamanquinhas/ P’ra quem não faz fortuna/ Mata as penas e faz covinhas». Desconfio, não tenho certezas, aprendi com ele a world music ou que o surrealismo era redondo vocábulo e isto de viver uma soma agreste. Utilidades, portanto. «Era um redondo vocábulo /uma soma agreste/revelavam-se ondas/em maninhos dedos/polpas seus cabelos/resíduos de lar». Onde andam os vinis da minha infância a querer-se outra coisa?

Mas Quem Vencer Esta Meta Que Diga Se a Linha é Recta comemora estes anos todos, os dele feitos meus. O mano José Teófilo [Duarte], que fez dele boa causa, comemorou o design na obra do José Afonso a partir da arte de José Santa-Bárbara, José Brandão, João de Azevedo, Alberto Lopes, produtores das imagens que me forram a memória. Venham mais cinco será o meu preferido? Ou antes Com as minhas tamanquinhas? Onde rodam os discos da minha infância pouco farta, mas rica? Conheci há pouco um velho amigo, o João Azevedo, que traz perfumes das quatro partidas do mundo, sendo nele mais intenso o de Moçambique, que por um triz não visito agora. As linhas não são todas rectas. O João vem de celebrar 50 anos de pinturas, em boa companhia de mais três nados na Figueira da Foz de costas para terra. Folheio o testemunho impresso, passeio pelas cores, pelos rostos. Invisto tempo nos Ícaros, divertem-me os crocodilos, céu apesar de quedas, horizontes que mordem. Pinta agora barcos apinhados de gente, refugiados. Parecem farpas as suas cores. Mas há sempre rostos, quase gritos. «A formiga no carreiro/andava à roda da vida/caiu em cima/de uma espinhela caída.» Mudemos de rumo.

26 Abr 2017

Pessoas privadas

Facebook, 2 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] meu querido exilado de si, Alex Gozblau, anima nas etéreas paragens uma rádio íntima, The Unborn Radio (https://www.facebook.com/The-Unborn-Radio-881810651873520/). Hoje ofereceu-me uma lágrima. A voz de Kevin Rowland diz cantando que «It’s okay to be a private person, John… It’s okay – I don’t show much of myself in life, but in my music… I reveal all. (…)  I’m learning to operate in this world; I’m just learning, and so can you. // I’m learning about how to be true to an idea, it’s a beautiful thing. I’m gonna do it, Johanna, I’m gonna it. I’m gonna spread beauty to the best of my ability.» Isto de ser pessoa privada e ter que custosamente arranjar maneira de nos mantermos fiéis a uma ideia, uma ideia de nós, é terreno comum. Quantas figuras da criação, além da canção, contêm esta potência explosiva de nos unir (uns aos outros) e de nos partir (em pedaços)? Tantas ramificações, entre terra e céu, podiam ancorar nesta pérola perdida dos Dexy’s Midnight Runners, sempiternos parceiros de adolescência, essoutro nome para aventura. Acresce que esta demo esquecida de It’s Ok Johanna vem de par com o screen test de Andy Warhol para Ann, the Girl Who Cried a Tear. Ele há dias assim, que nos escorrem pelo rosto.

Mymosa, Lisboa, 7 Abril

Sendo a agenda slightly promiscuous girl, difícil foi fugir dos seus avanços a tarde toda. Quantos dias de conversa em torno de música surfei com o mano surfista Rui Garrido? Conversa? Quantos discos, concertos, bandas, projectos, histórias ou vozes o Rui me apresentou? Pois. A minha perspectiva foi sempre a do usuário-otário. No meu dicionário íntimo, música define fascínio: limito-me a arder no encantamento. Não toco instrumento algum, não canto nem uma nota, raramente reconheço melodias, esqueço as canções de que sou feito, às vezes grito, há quem diga que me viu dançar. Sinto muito… Não foi surpresa sabê-lo de corpo inteiro, depois de anos à volta dos rostos, a desenhar linhas de baixo em banda: Democrash. Claro, a capa do primeiro álbum homónimo (na ilustração) leva a sua assinatura, com aviso de que apenas uma cassete foi ferida e um martelo usado. O martelo está bem, dizem. A fita da tarde embrulhou-se ainda no abrasivo meio editorial. O Rui dirige o departamento gráfico de um grande grupo e na bateria bate o Francisco Camacho, outro distinto editor da praça. Maduros também os outros três, que foram de fazer agora banda de garagem onde celebrar a energia bruta da adolescência. Sem merdas. Com riffs. A cassete congelada não podia ser melhor metáfora. O espírito conserva-se. Com a batida, o sax e o verso I’m better writer when I’me down enquadrando explicações sacadas a livro de psicologia, Writer’s block diverte-me de modo agudamente festivo. Devo passá-lo doravante aos meus autores? Mas o tema, como se diz, que não me abandona chama-se delete me: «delete me when I’m over/ delete me when I’m over/burn all these words and more/forget all the jokes I made» (https://youtu.be/GKVc__3Lcbw). E o gozo continua, apesar das vidas e não sei quê. De qualquer modo, ao vivo tendem a ser mais o contrário de estar morto.

Horta Seca, Lisboa, 12 Abril

Talvez fosse ideia de antologia (que cabeça a do editor, que transforma qualquer coisa em livro-projéctil!), a selecção de textos capazes de definir as paisagens apocalípticas que atravessamos. Do martelo e da navalha, portanto. Ainda que nesse contexto, Tresmalhado, de Jorge Roque (ed. Averno), não deixaria de o ser. São inclassificáveis estes textos notáveis, contos breves de atenção ao quotidiano, à linguagem, invectivas políticas, invocações de memória, contabilidade do falhanço, avaliação de rumos e ponto da situação, tendo por fundo, em baixo contínuo autobiográfico, a voz, o olhar e a dor do narrador. «O que sinto não é uma ideia, um pensamento, uma filosofia. Grito. Irreprimível grito. Lâmina desarvorada. Corta, fere, rasga, ceifa. Nada vê, nada mede. Galga, salta, escoiceia. Silêncio. Imóvel, ressoante.» Um despojamento singular da escrita faz dela lâmina: corta, fere, rasga, ceifa. E se marca o seu corpo, não pode deixar de ferir outros, sargentos deste estar vivo que basta. Mais. Trabalhando na área cultural do Estado lida a cada dia com a falência ética da literatura. «A literatura, à escala da vida, é coisa de nada. A literatura portuguesa, à escala da literatura todos os dias praticada em cada recanto da terra, pelos milhões de bichos esquisitos que a povoam, um nada desse nada. Cada escritor dessa dita literatura, génio da língua, da oportunidade ou do bairro, da sua crença, da crítica ou do mercado, compreendidos, incompreendidos e errantes, amados, mal amados e ainda os que nem uma coisa nem outra, a quem coube uma verdade mais estreita, talvez mesmo verdade nenhuma para lá do tempo a esgotar-se, um nada desse nada desse nada.» Mandaria a prudência que não dissesse o quanto me revejo nesta solidão sem rebanho.

Outro capítulo, relembrado há dias no Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/), pelo mano Valério [Romão], seria o poema-carta de veias abertas do Vasco [Gato]: Fera Oculta (ed. Douda Correria). Por ali sangra, além do lirismo de combate, photomaton do inferno doméstico, «este logro quotidiano/em que um homem e uma mulher/se esfalfam para manter à tona/a ampulheta instável dos seus nomes/quando esse punhado de areia/subtraído à erosão dos deuses/mereceria o sopro pleno/de um dia sem rodeios/um baptismo mais vasto e súbito/que não prendesse cada coisa/aos seus próprios pés». O puto, entretanto, nasceu e semeia desassossegos, apesar de. «Que se foda a época/digo-te já/que se foda a sépia dos futuros/eu quero aparecer no dia/dia do teu nascimento/desarmado como uma árvore/sem outra missão que não amparar-te o susto/e dizer-te baixinho/bem-vindo ao continente dos frágeis/podes parar de nadar»

Santa Bárbara, Lisboa, 15 Abril

Provavelmente não será verdade, pouco importa. O Teatro Amazonas, em Manaus, tem uma equipa a funcionar 24 sobre 24 horas para impedir a selva de engolir cada detalhe, das escamas de cerâmica da cúpula ao mármore das estátuas, dos lustres em vidro de Murano às paredes de aço de Glasgow, da boca de cena ao fosso da orquestra. A natureza reclama o seu, pouco importa que seja cultura. Alberto Carneiro (1937-2017) fez o mesmo, sem estrago, acrescentando na vez, com o alcance de uma sequoia e a elegância do bambu. Depois de lhe entrar obra adentro nunca mais vi da mesma maneira a cerejeira e o museu.

19 Abr 2017

Os olhos e a carne

Álvares Cabral, Lisboa, 31 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a dedicatória ao seu saborosíssimo «Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida» (com Carlos Pitella, ed. Tinta da China), diz o Jerónimo Pizarro que foi «uma noite de grandes palavras do caraças». Dou-lhe razão, que o debate regado fechou de boa maneira este mês desatinado. O Jerónimo abriu na fossa abissal dos estudos pessoanos uma lufada de ar fresco, com as ideias que trouxe, pela quantidade de trabalho e energia, além da generosidade, convém sempre sublinhar, de tão rara. Faça-se deste volume, aqui à mão, exemplo. Piscando irónico olho aos livros de auto-ajuda, oferece com grande rigor uma colecção de pinceladas, maiores e menores, que ajudam ao retrato sempre movediço do poeta da desdobra. Não deixa de me surpreender a quantidade de inéditos, de degraus que podem ser mundos, de minudências capazes de mudar a vida. A lista do inclassificável detalha, com bom gosto e humor, listas, muitas listas, claro, de projectos e livros e antologias, esquemas de passar tempo em namoro, as inevitáveis cartas astrológicas, mas também desenhos e ideias, traduções e episódios, correspondências que se cruzam e descruzam ora para divertimento ora para interpelação. Pessoa arde ainda em efervescências. Nada do humano lhe foi estranho. Nem o insulto, que jeito dá, por alturas em que as redes sociais se fazem cloacas: «De ti se suja a imaginação/Ao querer descrever-te em verso. Tu/Fazes dôr de barriga á inspiração.//Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,/Tu fazes sempre mal. É como um cú,/Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!»

CCB, Lisboa, 6 Abril

Mais uma conversa de estalo, a desta quinta, entre Mário de Carvalho e Valério Romão, gerida com a discrição habitual pela Maria João Costa, no ciclo Obra Aberta. Sobre livros, que outro assunto haverá? O Mário, invocando o esquecido Aquilino Ribeiro, defendeu o contacto com o difícil, seja texto ou autor, nos bancos da escola. Mas haverá, em período de mastigado didactismo, capacidade de atirar à cara dos educandos o enigma explosivo dos textos que nos resistem, que se impõem, que exigem regressos, que nos acompanharão pela vida fora? Mergulhei em apneia nas memórias que vou perdendo à procura do exacto volume que me abanou, irritou, encantou. Raul Brandão, talvez, o de Humus, em vetusta edição. O Fialho ou o Gomes Leal? Álvaro de Campos, com certeza, ilha no oceano Pessoa, que me foi apresentado nas aulas do liceu, sim, nas aulas do João Nogueira Costa, na Luísa de Gusmão. Aulas? Não sei se se deviam chamar assim, que aquelas sessões continham o espírito e a oficina do teatro, com cenários e figurinos, leituras em voz alta e pesquisas em voz baixa. Prolongaram-se de imediato para os intervalos e depois por longuíssimas horas e centenas de livros e cartas. Dá jeito que seja o Pessoa, mas de par veio o Sá-Carneiro e depois os surrealistas e o Herberto e. A vida mudou-se-me por ali, mas só o saberia décadas e milhares de páginas depois. Dito isto, se tivesse que escolher, punha nesta estante outro continente que o João me fez descobrir, essa deslumbrante continuação dos Lusíadas: as Quybyrycas – poema étbyco em oitavas, que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões em suspeitíssima atribuiçon de Frey Ioannes Garabatus. Não, Mário, mais importante que os clássicos era termos professores na escola.

Monumental, Lisboa, 7 Abril

Discutíamos ideias, desdobrávamos projectos, comentávamos os cactos, os vivos e os mais vivos pelo desenho do Manuel San Payo, ali sob o limoeiro, na primeira das grandes noites de Primavera. O olhar-câmara do mano Luís Gouveia Monteiro gravou-nos a ser percorridos pelas sombras. E derepentemente apanha-se um sentido, tal o perfume do limão, que abafa a dureza de não saber que responder a tantos, como pagar tanto ou o que resolver entretanto. Valha-me Pessoa: «O rio corre bem ou mal/Sem edição original./E a brisa, essa,/De tam naturalmente matinal/Como tem tempo não tem pressa.» (Como ser Livre, pág. 212)

CCB, Lisboa, 8 Abril

Tive o privilégio de entrever este impressionante projecto do António Gonçalves (detalhe na ilustração) em vários momentos da sua incarnação e subida ao altar. O esplendor da obra vista quase apaga a carpintaria do esqueleto onde as carnes se ergueram: os esboços e das maquetas, o cheiro das tintas e os cadernos, as madeiras e as dobradiças e o peso das folhas, a disciplina de trabalho, as hesitações e a indispensável dança em busca dos apoios. Fui contemplando particularmente, portanto, mas só agora vivi a experiência. Sendo pintura, ao relacionar-se com a escala e a tradição do sagrado, torna-se paisagem teatral. Uma sala, construída com este propósito a partir do desenho de Maria Eduarda Souto de Moura, para que fosse despida e neutra, nem igreja nem museu. No miolo, o vazio e a escuridão interrompe-se com o políptico, que se revela em crescendo ao longo do dia. Cada face apresenta aspectos distintos de um combate de carnes, coreografias das brutas musculações do desejo. Em ocasiões escolhidas, será tocada ao vivo a composição para piano de António Celso Ribeiro. A primeira afirmação do António diz respeito ao tempo. Precisamos parar, abrir lugar na agenda revolta dos dias para experimentar a Contemplação Particular. Na inauguração, o silêncio foi impossível, mas o restolhar dos sussurros e das movimentações espelhava bem o que acontecia perante os nossos olhos. Preciso voltar por causa do silêncio, que, temo, será sempre contaminado pelos turistas de época. Os turistas desta época tendem a perturbar-nos, essa será a sua santíssima identidade. Avancemos. Mergulhando raízes na leitura atenta de Tentações de Santo Antão, de Flaubert, o corpo desfeito em abstracções chega-nos logo pela temperatura de cor, depois pela textura até nos perdermos na dinâmica das volutas, que parecem em movimento perpétuo. Que há de erótico nisto? A visão do para além da pele, lugar onde perderemos o eu na paisagem do outro, a identidade no grande oceano dos corpos. O desejo faz-nos arder em absoluta liberdade, a de que o homem pode ser universo.

12 Abr 2017

Tango de créditos e de débitos

Santa Bárbara, 26 Março

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] passagem pelas Caldas da Rainha resgatou do meu Esquecimento a Antologia do Henrique Fialho, ficou já escrito. Entre outras preciosidades lá descobri melancólico elogio ao anónimo e tombado em combate editor maila sua vocação, a pretexto do tristonho-como-qualquer-obrigação Dia Mundial da Poesia. Apetecia transcrevê-lo na totalidade, mas seria batota. Vem possuído de carga poética sem perder a lucidez, ainda não se afaste do comércio. «O autor não pensa no assunto, o poeta não sabe, mas no final tudo acaba reduzido a isto, um tango de créditos e de débitos.» Um livro, sendo produto comercial, está longe de se esgotar nele. O seu capital simbólico transcende-o, torna-o uma potência iluminadora. Colocamos em circulação pequenos navios-faróis, que chegam até a evitar naufrágios, sem deixar de fazer perder olhos-viajantes. «A sustentabilidade é garantida pela quantidade, pelo acaso, por um prémio que abone publicidade e promoção, pelas redes de simpatia, pela recensão, por um título que ofereça fôlego financeiro, pelas parcerias com instituições dispostas a suportar, custear, patrocinar. Raramente a sustentabilidade se sustenta a si mesma, pelo que acabaram os exclusivos.» É muito isto, sim, mas de modo tal que o livro parece não ter valor facial, não custar mais do que um obrigado, ser de borla. Em que outras actividades se oferece tanto? Aliás, nos últimos dias circularam histórias de bibliotecas inteiras oferecidas, por força do tempo. Um velho alfarrabista em Faro faliu e alguém decidiu abriu as portas livremente, com um conselho: «levem uma lanterna, porque este espaço não tem atualmente eletricidade e existem locais com livros, mas sem luz…» Onde há livros, há luz. Noutro caso, no Porto, sem espaço para conter os 50 mil títulos caçados-recolhidos por Joaquim Sousa Pereira, foram disponibilizados pelos herdeiros às vontades alheias. «É verdade que nunca como hoje foi tão fácil e barato produzir um objecto, mas também nunca como hoje foi tão difícil respeitar um critério, manter os níveis de exigência, resistir à tentação meramente lucrativa, sustentar um projecto de saber. Isso. Um projecto de saber, um projecto que se distinga dos inúmeros elixires que ocupam o espaço e nos sufocam com promessas vãs. Raramente falamos dos editores porque eles executam o menos idílico dos papéis, obrigam-nos a pensar a realidade sem filtros, desligam-nos a antena do sonho sempre que neles pensamos.» Ainda assim, Henrique, há realidade para além do negócio. E do sonho.

Horta Seca, 29 Março

Sem variação, mas com variantes, cada visitante da minha oficina espanta-se com a aparente desarrumação das mesas e das estantes. Não, o plural não é gralha, que são várias as mesas onde acumulo, sobretudo livros, mas também revistas e jornais e revistas e cartazes e documentos, enfim, papel e pó. Esta acumulação resulta de um processo único, próximo do zen, desenvolvido com preguiça e argúcia ao longo dos anos: se não estiver perto, esqueço. Por folha estará ao menos uma ideia, cada monte contém infinita potência de leitura ou de projecto. Preciso sopesar formatos, respirar grafismos, tocar a haste da letra, beber a imagem, mergulhar no pensamento, enfim, achar que posso ler, a qualquer momento. Esta proximidade define horizontes e estruturas, sem as colunas em altura desmorono, sem a visão dos tons infinitos e movediços do papel paraliso. Moro nos antípodas do origami, a arte de, com dobras engenhosas, domesticar o espaço de modo a que o mundo e as suas formas caibam na mão. E assim encolher o tempo. Aqui, o caos parece congelar o tempo, propondo-lhe um labirinto. Não morro menos por isso.

Horta Seca, 30 Março

A edição (em papel) de abril da Agenda Cultural Lisboa (https://www.agendalx.pt/) traz o Alex Cortez na capa, já que um dos temas de abertura (sendo outro as cervejas artesanais) é a «Leitura Partilhada». As suas 200 sessões de Poesia no Povo justificam-no bem: parabéns!

Acompanho desde a primeira edição a Agenda e não posso deixar de ficar espantado e aflito com o volume de propostas que cada edição contém. Espantado com a quantidade, que aprecio e saúdo, até por saber que muito se pode ainda usufruir além disto. A cidade está toda riscada com entidades, maiores ou menores, oficiais ou nem tanto, a oferecer festas e festivais, enfim, cultura. Mas de que espectáculo falamos quando falamos de Cultura? E fico aflito, por não conseguir aproveitar nem um décimo. Fixo interesses, mas sei que o fazer dos livros não me vai permitir desfazer outras meadas.

Não posso deixar de notar que, no conjunto, o assunto literatura ocupa uma meia dúzia de páginas e, ainda assim, em relação com outras artes. Sintoma, mas de que doença? Sinal do fim de um mundo?

Horta Seca, 31 Março

Chega, finalmente, a segunda edição de Autismo, do mano Valério Romão. Foi dos primeiros que editámos e dos que mais contribuíram para definir projecto e identidade da abysmo, que o laboratório faz-se a caminhar. A escrita do Valério possui a força de um corpo, carne e sangue e sopro. Arrisca erguer-se de linguagem, mas sem que perca narrativa ou personagens. Assombrada pelo tema, que se assume título, está muito para lá dele. Pulsa vida nestas páginas, sem esconder as muitas mortes de que ela é feita. Não conforta, antes desafia. Chamemos-lhe, em termo fora de uso, literatura.

Embora não fosse novo, continuava arriscado isto da capa, assinada pelo querido Alex Gozblau (na ilustração), vir forrada a silêncio, apenas na lombada aparecendo título e autor. A princípio não era intenção desdobrar abysmo em colecções, antes afirmar cada título como único. Mas o resultado do conjunto, sobretudo com a abertura entregue a quatro imagens, que nos permitem espreitar ambientes, convenceram-nos de que podia ser um caminho. Era.

Percebemos melhor com este livro o disfuncionamento do mercado. Esteve muitas vezes esgotado, mas logo as devoluções daqui ou dali desmentiam a notícia. Livro de hoje tem dois ou três meses de existência, que digo?, de visibilidade nos escaparates das novidades. Findo esse período, se não se tornar best seller, acabará a vegetar nas prateleiras de trás, antes de acabar a ganhar pó no armazém. Ai de quem perguntar por ele, que a resposta (mentirosa) será (quase) sempre: está esgotado. Esgotado, nem por isso. Apenas cansado.

5 Abr 2017

Mortais e outros voos

Torre do Tombo, Lisboa, 20 Março

Poema de Mário Cesariny (1968)

[dropcap style≠’circle’]Ú[/dropcap]ltima reunião de um grupo de trabalho sobre livrarias independentes, a ideia da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que reuniu profissionais do sector para reflectir e sugerir medidas práticas ao Ministro da Cultura capazes de travar o seu definhamento e morte. Se bem que algumas tenham surgido nos últimos meses, e na sequência das conversas que tivemos, não consigo afastar esta sensação de miúdo com dedo no buraco do dique. O óbvio desamor ao livro e à leitura, a inexorabilidade de práticas comerciais tóxicas e selvagens, se não cultivadas, pelo menos ignoradas pelo Estado, e o nosso atavismo organizativo condenam-nos à sempiterna dependência da bondade de estranhos. Alinhavaram-se definições, na vã tentativa de circunscrever o sentido de independente, e propuseram-se medidas de alcance variável, mas o que está por fazer depende afinal da capacidade de cada actor construir independências. Cesariny dizia: «Faz-se luz pelo processo /de eliminação de sombras». Vou ficar à espera de uma rede que se faça cama elástica e permita pulos, cambalhotas, mortais e outros voos.

Horta Seca, Lisboa, 22 Março

Que crueldade! Seres tão frágeis não deviam andar para aqui e para ali, de trás para frente, de casa para o escritório. Outras formas há de preservar as formas além do museu. São frágeis, mas de todo o terreno. Um fotógrafo dado à moda que pouco vem a Lisboa, Sal Nunkachov, criou editora, a Paper View, não apenas para dar corpo às suas visões de um punk benigno, mas para acolher projectos, sobretudo fotográficos, de outrem. Por exemplo, os nus de praia de Leonor Ribeiro, esculturas a preto-e-branco que parecem tintadas de bronze, reflexos de sol a brutalizar as massas, a dançar nas águas, a desfazerem-se com suave raiva no fim, afinal: a areia. Matéria que nos fica nas pontas dos dedos, pois a capa deste Sand está impressa em lixa. Não se trata apenas de fotografia, mas de impressão. Sal experimenta. Em periódica Newds, no caso a #10, imprime a negro sobre papel preto explodindo em pleonasmo. No tradicional jogo das escondidas de quem se despe, a escuridão acrescenta luzes. Lá dizia o mesmo Mário: «Ora as sombras existem/as sombras têm exaustiva vida própria/ não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela /intensamente amantes loucamente amadas /e espalham pelo chão braços de luz cinzenta /que se introduzem pelo bico nos olhos do homem». Em Pin Hole, soma-se o verde e o desfoque e a objectiva sublima o desejo, amachuca o ser no parecer, ou pelo contrário. Fulgurantes são ainda as sobreposições de Here’s How To Do It e Round Abount. Sempre corpos femininos, rostos, torsos, cabelos e atitudes, mas por cima de moldes da Burda, no primeiro, e de cartas e mapas arrancados a atlas, no segundo. Estas sedes abrem-me o apetite.

CCB, Lisboa, 23 Março

Ainda Cesariny, o de Pena Capital (Assírio & Alvim): «Por outro lado a sombra dita a luz /não ilumina realmente os objectos/os objectos vivem às escuras /numa perpétua aurora surrealista /com a qual não podemos contactar /senão como amantes /de olhos fechados /e lâmpadas nos dedos e na boca». Após a gravação de mais um Obra Aberta, com Nuno Saraiva e António Gonçalves, descemos para visita guiada à exposição que homenageia Mário Cesariny, sublinhando a sua veia experimental, libertária e iconoclasta. E lá vimos as sismogravuras, os aquamotos e os objects trouvées, figuras onde o acaso vai de mão dada com o impulso artístico. Quem diz acaso diz a água, movimento dos eléctricos ou recolha do lixo. Interessa-me, sobremaneira, a colagem, essa faculdade de romper cortes no visto para deixar surgir o imprevisto. Fico horas ouvendo esta homenagem a Satie (ao lado, na imagem) e acabo a perder os óculos. Perder as lentes na noite, quem me manda mensagens?

No aniversário da morte, ressuscito pedaço de texto antigo. «Cesariny vem de um tempo em que viver era rasgar possibilidades, Mário, e as contas não foram ainda feitas, de Vasconcelos, pelo que não sabemos quanto lhe devemos em desejo e ventania, em confusão e lucidez, em verticalidade e camisolas de alças, inteireza e veludo com nódoas. Afiou cada âncora como palito, de maneira que os dentes acabaram por se tornar estrelas. Lugares irrequietos onde só se vislumbram regressos, como este, fazem-se difíceis de atracar aos mapas e só com muita sorte e acaso se conseguem indicações capazes de levar o viajante ao encontro da sua perdição, aquela que buscamos com íntimo desespero ao fugir-lhe. Noite e dia, trabalham algures os pianos escravos a escrever no chão com navalhas as maldades, que são outros tantos caminhos. Esta personalidade geográfica caracteriza-se pela aguda magreza que explode mais tarde, por vezes antes, em largueza de vistas.»

Museu Bernardo, Caldas da Rainha, 25 Março

Paulo José Miranda anima com extrema facilidade qualquer grupo, em girândola de assertivas observações, leituras selvagens e ditos de espírito. Mal se desloca para um palco recolhe-se, encolhe-se, isola-se, hesita-se. Passa a mão pelo rosto à procura da frase certa e a coreografia rima com gaguejo. Depois a gargalhada põe fim à fase do aquecimento e o poeta solta-se. Voltou a acontecer em «Bem em Tempos de Mal», sessão dos encontros íntimos que José Ricardo Nunes anima em descomprometido e irónico Museu Bernardo, com a cumplicidade de, entre outros, Henrique Fialho. Gente que ama a poesia das mais activas formas, pelo comentário em tertúlia ou pela leitura em voz alta. Às tantas, Fialho (atentíssimo leitor, a conferir no seu blogue Antologia do Esquecimento) sublinha a (omni)presença de Deus na obra do mano convidado e pergunta-lhe em que ponto está essa produtiva relação. «Sou viciado em Deus, estou em recuperação, mas a qualquer momento posso ter uma recaída», respondeu. A noite chuvosa ganhou esplendor acetinado, à maneira da impressão de preto sobre negro: precisamos mexer corpo e colagem para detectarmos mancha e brilho.

29 Mar 2017

Leitor de autores

EC.ON, Lisboa, 11 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão devia dizê-lo tantas vezes em público, para manter aquele orvalho das primeiras madrugadas. Ou, pelo contrário, devia gritar esta fraterna ideia de que podemos cultivar comunidades, hortas dos simples nas traseiras de paraísos de onde seremos sempre expulsos. Descobri em Luís Carmelo um irmão que não sabia ter. Além das afinidades que fomos desvelando ou continuaremos tecendo e a tendência para o desvario, une-nos um estranho sentido prático, nem tanto natural, que se faz indispensável para trazer à cena as ideias que nos atormentam. Acrescente-se nele a planície da generosidade e o fulgor da dança. Aquela discreta, como convém, e esta extravagante, porque se pode. Qualquer pista, formal ou improvisada, se expande com as figuras geométricas que o Luís desenha com o corpo todo: inventou a geometria descritiva dançada.

Nas últimas semanas, descontando a presença no Correntes D’Escritas, pude acompanhar de perto o mano Luís em três outras ocasiões, no El Corte Inglés, em dissertação integrada no ciclo «Este Livro que Escrevi», no lançamento do terceiro volume da trilogia, Sísifo, e hoje nesta sessão dos cursos Ícone, da sua activíssima Escola de Escritas. Sou testemunha do seu brilhantismo. E da sua perplexidade ao contar, em preparação para hoje, 53 títulos dados à estampa (e mais de duas dezenas de inéditos), sobretudo no ensaio e no romance, mas com incursões, apenas exemplos, na poesia ou no conto. Bibliografia em badana é uma coisa, outra ver os volumes a construir sobre a mesa uma parede cronológica, a vida disposta de maneira que uma mão as puxe pela lombada e as leve aos olhos. Escusado será dizer que em poucos lugares se poderá ter tal experiência, que as livrarias há muito deixaram ter fundos, ainda assim afundando-se cada vez mais. Carmelo consegue, com um danado poder de síntese, afastar-se da sua obra, semi-cerrar os olhos, agitar os dedos da mão direita no mais longe do braço e dissertar com espantosa certeza. Acerca da circunstância concreta que despertou o desejo de escrita, uma dor ou um exercício, mais os meandros articulados de cada mecanismo, sem esquecer o óleo que une o conjunto para terminar numa conclusão, quase sempre questão em aberto. Por vezes, ferida aberta.

Esta Trilogia de Sísifo ergue-se ponto cimeiro no dançado percurso do Luís Carmelo, que obedece, mais do que aos ritmos exteriores, a um rigor orgânico que propõe formas de contar caleidoscópicas, que busca capturar a essência de cativantes personagens em movimento através de uma linguagem renovada, que acrescenta, com sombras, que não esconde o erótico labor da escrita.

O fecho faz-se com um romance sobre a iniciação, construção literária que há muito fornece à vida a potência de uma explicação, um arrumo, ainda que instável, um sentido possível para os ziguezagues com que progredimos, não necessariamente em frente. Tive crónica na revista Ler, que levava por título «Este Livro e Não Outro», para mastigar a ideia de que a cada momento do vivido temos um livro, e não outro, que lhe corresponde. Por coincidir com experiência marcante será então cabalmente nosso, tal a árvore incorpora bicicleta esquecida encostada ao seu tronco. Reparo agora, tentando a virgindade de simples leitor, que este Sísifo se tornou paisagem actualíssima ao seu famigerado editor, que anda às voltas, sem saber se roda sobre si ou se se dirige em espiral para algures.

Aldeia de Paio Pires, 18 Março

Um dos ensaios do mano Luís, Uma Infinita Voz (abysmo), foi dedicado ao Exercícios de Humano, do mano Paulo José Miranda, agora mesmo homenageado na sua aldeia, com comovente singeleza, em tarde soalheira, na Sociedade Musical 5 de Outubro, pela mão da CoopA, de António Caeiro e Sérgio Gomes. Tentei dizê-lo atabalhoadamente: um regresso que nunca foi ausência. Por ser universal, as raízes do Paulo notam-se bem no que escreve. Momento central foi o testemunho do mano António de Castro Caeiro, um pouco antes das leituras do mano José Anjos. (Sorrio com a irritação que causará em alguns, mais dados à miséria e às comichões, esta luxuriante profusão de manos…). O próprio Paulo coligiu a antologia Resta Ainda Face (abysmo), seguida de ensaio, para a poesia de Helder Macedo, e este, em entrada para A Companion to Portuguese Literature (Tamesis Books), afirma que ele e António Cabrita «estão a destabilizar as reputações pronto a vestir». Manos que escrevem sobre manos, que se lêem a qualquer pretexto. Podia continuar puxando fios de rede que não pára de crescer, e cujas cores generosas me confortam. A identidade da literatura tem que arder nesta incessante procura do sentido e do cruzamento das noites de cada um. Portanto, não basta escrever. Antes gastar a vida assim, a tactear o não dito, a puxar o manto do silêncio. Portanto, a escrever. Ainda que isso nos facilite pouco a vida.

Disse ali o mano António, para mais de meia centena de pessoas. «As suas palavras poéticas dependem de uma compreensão do sentido. E poucos têm como plano de fundo um domínio do pensamento ocidental para poder produzir uma abertura à dimensão em que o sentido acontece. Em que se compreende e não compreende, onde há ou não inteligibilidade. O debate pela palavra é o debate pela compreensão das situações em que não se compreende, não se consegue nem pode.

Por isso muitas vezes parece haver uma impermeabilidade entre a poesia e a vida, como se houvesse duas e não se desse antes o caso de a vida enquanto tal existir na dependência da situação em que nos encontramos. Encontramo-nos continuamente, o mais das vezes e primariamente, sem qualquer necessidade de confronto com o sentido. O confronto com o sentido dá-se quando ele se esvazia, quando, a partir do seu próprio colapso, nos interroga, põe problemas, levanta questões e nos dificulta a vida.»

22 Mar 2017

Sei de rios

São Luiz, Lisboa, 12 Março

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue sei eu? Talvez por isso afirme que o fado atingiu agora extrema maturidade, sabor e saber entre figo e pão saído do forno, entre o vigor da técnica e o perfume do espírito. Fica-me isso em fundo de boca neste concerto, singelamente chamado de Camané e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, ainda que devesse incluir algures no título o director musical, Filipe Raposo. Lá está, que sei eu: quem decidiu o alinhamento, a escolha e o encadear dos temas, o avanço e recuo de cada instrumento, os silêncios? Saio esmagado no fim da semana, percebendo que desde a segunda-feira anterior tudo viria a estar contaminado por isto. Começa com o costumeiro atraso na percepção de que Camané está prestes a explodir e convém estar por perto. Salvam-me os bastidores (obrigado, Elsa. Obrigado, Aida). Os versos cantados em lâmina a sublinhar esses momentos revividos. O delírio de melodias despenteadas para lá da bainha descosida do pano negro. Bato com a mão na cabeça para interromper as correspondências entre o que agora oiço e o que vivi ao longo da semana, do ano, que digo?, dos anos. Camané, devias ser estudado pela física quântica, essas tuas maneiras de misturar num instante tempos e espaços. Esqueçamo-nos de mim, assunto implosivo do diário. Quem como ele arrisca experimentar sem perder o pé, voar de contrabaixo sem perder os arreveses da tradição. O verso de David Mourão-Ferreira seria o mesmo sem a energia de José Mário Branco? A paisagem de Jobim e Oliveira escavaria tão funda a sua inutilidade sem Raposo e a tua voz? Outros modos são possíveis, mas estes combinam lua e noite de forma única. Na variedade das canções, que vão do tango ao quase pop, na complexidade dos arranjos, no modo de jogar com os ritmos e as sensibilidades, com os instrumentos puxando o cantar para danças nada óbvias, com invariável certeza de que as palavras são o chão da boca Choro, quieto como convém. Na boca de cena do fado há um negro muito nosso, que precisamos escavar para libertar as selvas de cor que por ali se escondem. Sim, pode haver luxúrias de luz e aventura nas noites domésticas que guardamos nos bolsos. Reparo, não sem tristeza, que colecciono respostas íntimas a inquéritos de imprensa. Relembro esta, pela mão da Manuela Paraíso. «Qual é a característica dos portugueses que mais o irrita? O coitadismo. Somos o povo que mais se lamenta, mas também o que mais embirra com quem faz e que ignora o que fez. Enfim, o espírito de rés-do-chão». Camané, tu resgataste o fado do coitadismo.

Mymosa, Lisboa, 6 Março

Nunca pensei. Devia tatuar mais esta no corpo, tão desafinado que vai com o que pensa. Estou com o Ferreira Fernandes a partir História, que vai sendo maneira nossa de abrir conversa, e logo José transfigura para me contar das ocultas razões que levaram o rio Kwanza a inventar país. Tanto angolano na minha vida e nenhum me havia falado com tal rasgo destas histórias trágicas de amor: um rio daquele tamanho parte para Norte ao encontro do oceano; desenha no encontro uma baía capaz de se erguer capital de reino Ndongo; e daí, por portas travessas, resolvido conflito com o outro reino não menos mítico do Kongo, faz nascer país assente na língua portuguesa que, sofrendo barragens e transvases, não deixa de ser nascente e foz. Kwanda sendo rio, na vez de moeda, faz toda a diferença. E ponto. Um ponto é tudo, assim titulou ele a melhor crónica da imprensa portuguesa, citando poeta que se fez moçambicano, filho do que desenhou mitos à beira Tejo.

Foi o Bruno Vieira Amaral que me perguntou, há uns anos e para a Ler: «Falta alguma coisa no seu BI? Sim, uma identidade». Eis-nos fadistas. O Bruno de Almeida filmou o namoro das esquinas com o mar da Palha, cenário de Sei de um Rio, fecho inolvidável do que ainda não vi: «Rio onde a própria mentira/Tem o sabor da verdade/Sei de um rio».

Mymosa, Lisboa, 11 Março

Almoço longo com o Carlos Querido, em rotineiro e soalheiro costume de camponeses, ele da zona oeste, faroeste, eu da Penha, a mais alta e infértil colina de Lisboa. Ambos mondadores do silêncio, lavramos à mesa uma alegria pesada. «Se canto, não me dói tanto/O coração magoado/Mas há em tudo o que canto/Este silêncio pesado», risca a Manuela de Freitas. À laia de conclusão, passou outra resposta a interrogatório, desta para papel de jornal do Fernando Alvim. «Só escrevi um fado, que João Lucas compôs, mas quando ouvi pela primeira vez o António Zambujo a cantar pedaço da minha delirante infância pensei por momentos que a vida podia fazer sentido, breve é claro. Breve o sentido e a vida, que a poesia só ensina a cair. Fado do Homem Crescido, escrito para o filme de animação homónimo que o Pedro Brito realizou, diz com imagens e sons e palavras que a amizade é impossível, pelo que estamos condenados à solidão. Ora nada mais vale senão a amizade.»

Santa Bárbara, Lisboa, 13 Março, madrugada

A noite faz-se ainda mais noite com Lua cheia desta maneira. Faz-se bruta e provoca-me do outro lado do vidro, eterna companheira, lanterna de todos os versos. «É triste sorte/Que nos faz pensar na morte/E em tudo o que em nós morreu», diz João Ferreira-Rosa. Mas teria forma a vida sem o côncavo do que nos vai morrendo? Última resposta ainda ao Alvim. «Vi a chegada à Lua em directo e logo ali descobri uma vocação, que era magro e não me dava mal com as matemáticas. Um certo professor, contudo, deu-me a conhecer um tal de Fernando Pessoa, jaz morto mas não arrefece. Até já tinha lido poesia, mas nunca tinha lido poesia. Não mais me livrei dela, apesar de ainda ter continuado a achar durante anos que podia ser astronauta. Têm sido os versos a levar-me à lua e a prender-me à terra. A enterrar-me.»

15 Mar 2017

Desejos de mais luz

Santa Bárbara, 26 Fevereiro

Antero de Quental por Almada Negreiros, retrato patente na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ontinuo sem perceber este preconceito em relação ao conto, que o desvaloriza como mero exercício literário entre a sublime poesia e o trabalhoso romance, que o arruma sem mais na prateleira das fracas audiências. Que género se aplicaria melhor ao ritmo de vida de hoje, ao nosso nível de literacia, ao tamanho do metropolitano de Lisboa? Ainda assim, há quem insista, por exemplo, em traduzir o cubano Virgilio Piñera, um dos grandes contistas latino-americanos, além de poeta, enfim, intelectual, a merecer leituras em cabal que inclui dramaturgia, romance, ensaio e percurso. Aliás, na lista de projectos, desesperante para apenas 24 horas em cada dia e uma conta bancária despida, tenho a edição do seu notabilíssimo La isla en peso, traduzido pelo Cabrita. Deixemos para depois o depois que acontecerá e concentremo-nos na certeza deste «O Grande Baro e Outras Histórias», com escolha e tradução de Rui Manuel Amaral, a partir de três volumes (de 1956, 1970 e no póstumo de 1987). O cubano cria ambientes claustrofóbicos, constrói exímias arquitecturas narrativas, esculpe íntimas personagens tendo o absurdo como pano de fundo, mas sustentando-se em uma cirúrgica atenção aos mecanismos do quotidiano. No beco sem saída dos dias, a escapatória pode estar no muro. A nenhum conto, maior ou menor, lhe falta a lógica interna de uma granada, com diálogos afiados, detalhes luxuriantes e olhar raiado de ironia. Leia-se pedaço d’«A Carne», que abre o cuidado volume (e rima com a contracapa). «Ali chegado, fez saber que cada pessoa deveria cortar da nádega esquerda dois bifes, em tudo semelhante a uma amostra de gesso que pendia de um reluzente arame. E declarou que deveriam ser dois bifes e não um, porque se ele próprio cortara da nádega esquerda um belo bife, convinha que a coisa avançasse a bom ritmo, isto é, que ninguém comesse um bife a menos. Assentes estes pontos, todos se dedicaram a cortar dois bifes das respectivas nádegas esquerdas. Era um espectáculo glorioso, mas que dispensa mais descrições».

Detalhe de importância: assim começa a Snob, editora que absorve a livraria homónima de Guimarães, entretanto arrumada em caixas e tornada nómada pelo Duarte Pereira, com a cumplicidade da Rosa Azevedo. Procura, além de personalidade literária virada para raridades, estratégias outras de financiamento e circulação. Longa vida ao absurdo de editar!

Santa Bárbara, 28 Fevereiro

Perdido nas correrias, nem vi chegar a festa da carne. Não consegui a pausa, apenas o bálsamo de umas quantas páginas editadas por outros. A Anne, da Chandeigne, no meio da confusão da abertura da nova Librairie des éditeurs associés, teve tempo e gentileza para me enviar o encantatório álbum Le Chant du Marais, no qual Pascal Quignard vai de compor, com a ajuda ilustrativa de Gabriel Schemoul, uma perturbadora melodia sobre o desejo e a inveja. Um jovem cantor mata o seu concorrente sem com isso conseguir calar a voz que maravilhava a Paris do século XVI. Ainda parece ganhar com o sucedido, mas apenas o tempo necessário para que a armadilha se estenda em barroco esplendor. Schemoul põe a passar, em baixo contínuo, uma corrente de naturezas mortas, flores e raízes, restos, aqui um peixe, pequenos seres obreiros da decomposição, mariposas, ali um crânio. O fluxo passa por construções de carpintaria absurda, cruzamento de instrumento de tortura com exercício de geometria descritiva. Poderosa metáfora, a inveja feita máquina que se alimenta dos restos mortais do desejo.

Nestas águas navega também «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», assinado pelo director do Hoje Macau. (Hesitei em escrever nestas páginas sobre ele, evitando mal-entendidos talvez morais. No espírito do diário, entendo dever obediência apenas aos apetites do dia, pelo que). Qual contador, são inúmeras as gavetas, portas, passagens e compartimentos secretos deste poderoso romance disfarçado de histórico, que fervilha de ideias. Pisando o chão do milenar confronto entre metades do mundo, possui como núcleo o projecto católico, centrado em Macau, de um arquivo de confissões destinado a facilitar o entendimento dos males do mundo. Dele se extrai caso exemplar, este de Vasques. Com ele andaremos por Coimbra, pelo desejo de partida, baloiçaremos em caravelas, instigaremos motins, conheceremos o exótico, o delírio, mas sobretudo o fel pestilento da inveja. Vasques rouba manuscrito de Camões e por ele se deixa devorar em crescendo. «Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver à sua sombra. Destruí-la seria um acto humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem.» O achado desta narrativa, a pimenta desta viagem encontra-se na construção fantasmática de Camões, que nunca aparece estando omnipresente, magnífica e tóxica paisagem. Por instantes desfaz-se em volutas de perfume, quase sempre se ergue tornado arrasador. Causado sempre por aquele que em seu escravo se converteu. A inveja faz de nós escravos necrófagos.

Biblioteca Pública, Ponta Delgada, 2 Março

«Amem a noite os magros crapulosos,/ E os que sonham com virgens impossíveis,/E os que se inclinam, mudos e impassíveis,/ À borda dos abismos silenciosos…»

O lançamento da Poesia Completa de Antero, na sua terra natal, aconteceu intenso por via do atentíssimo Luiz Fagundes Duarte, pelo olhar esclarecido de Leonor Sampaio, pelas leituras de Nelson Cabral, e as versões criadas por Ana Paula Andrade para a voz dos alunos do Conservatório Regional. Mas não consigo esquecer a carta. A Biblioteca, pela mão de Iva Matos e de Margarida Mota Oliveira, preparou pequena mostra de manuscritos e primeiras edições. E nela brilha com a luz do enigma uma simples missiva dirigida, como hoje, uma quinta-feira, «á noite», ao seu médico. «Peço-lhe o obséquio d’uma nova visita sua, amanhã, por qualquer hora que mais lhe convier, desde a uma da tarde até ao anoitecer. Sinto-me cada vez peor e desejaria ser novamente interrogado e examinado.» No dia seguinte, ao anoitecer, suicidava-se não longe daqui. Ajudará este volume a vencer esta morte?

«Eu amarei a santa madrugada,/ E o meio-dia, em vida refervendo,/E a tarde rumorosa e repousada.//Viva e trabalhe em plena luz: depois,/Seja-me dado ainda ver, morrendo,/O claro sol, amigo dos heróis!» (de Mais Luz!)

8 Mar 2017

Subidas

Horta Seca, 22 Fevereiro

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]inda Helder, claro, que há muito para digerir no seu mais recente, Camões e outros contemporâneos (Presença). Ninguém como ele, justamente, fez de Camões meu contemporâneo. Puxou dos altares mais ou menos laicos, sacudiu-lhe o pó por desfastio, e, na vez de lhe puxar lustro, leu-o sem o retirar do seu tempo. Percebeu, então, que o poeta havia sido pioneiro do entendimento do corpo como instrumento de conhecimento da natureza das coisas, e com isso se arrogava o direito à felicidade na terra, para já, sem se desfazer da possibilidade de a repetir nos céus. Além dessa humanidade toda feita de malandragem, muito mais descobriu embarcando com ele, por exemplo que «O seu poema havia sido afinal uma viagem através de dúvidas em relação ao passado, de desespero em relação ao presente e de incerteza em relação ao futuro. Nós somos esse futuro.» Vai ao osso, este «Luso, filho de Baco», na interpretação sempre deleitosa, mas também na conclusão desgostosa. «Fazendo jus aos avisos de Sá de Miranda e de Camões, as riquezas das colónias foram servindo, ao longo dos séculos, para sustentar a oligarquia portuguesa, e por isso pouco serviram para o desenvolvimento económico e social da nação portuguesa.»

Horta Seca, 22 Fevereiro

Auto-retratos, de Paulo José Miranda, foi incluído na pequena lista dos candidatos ao grande prémio das Correntes d’Escritas, que distingue o melhor livro de poesia dos últimos dois anos. Os prémios literários tornaram-se, por isso, tema da minha agenda. E temo que assim continue, em chegando ao festival. Não acredito na fórmula, que pouco diz da real qualidade, que depende de tantas variáveis quanto combinações no euromilhões, que gera mais intrigas que telenovela mexicana, que excita bastidores e desperta os podres poderes. Está por fazer estudo aprofundado que, excluído o não despiciendo cifrão, me diga em que serviu ao labor literário do autor laureado. Reforço de auto-estima? Meia hora de visibilidade? Por dever de função, pode ganhar-se mais quatro ou cinco leitores. Talvez. Na arquitectura das convenções percebe-se que pode vir a ser ora porta, ora varanda, aqui parede falsa e ali escada. Fica por saber que construir: albergue espanhol ou casa de repouso? Coube em sorte Armando Silva Carvalho, parecendo confirmar por aqui a tendência de premiar mais a obra completa, que o volume solto. Antes assim. Podia ser pior, muito pior.

Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 23 Fevereiro

Sísifo fecha a trilogia e empresta-lhe o nome. Depois da paixão, em Gnaisse, e da perda, em Por Mão Própria, somos chamados à iniciação com Petrarca a marcar as respirações e tendo Camus por companheiro. Nada mais, nada menos. Luís Carmelo atinge aqui um cume. Logo no horizonte se apresentará montanha maior, mas este desafio foi domado. Para além do caleidoscópio da narrativa – um achado, este modo de organizar o que se vai contando desfazendo as coincidências, iluminando perspectivas ao infinito – as personagens possuem cativante densidade e as rochas em que sustentamos os passos da subida são de prosa poética brilhando com grande intensidade.

Esta semana, que acompanhei as suas ansiedades em variados momentos, percebi o que sabia. A vista que conta alcança mais escalando o monte Carmelo, e basta relembrar o seu Genealogias da Cultura, para tornar cristalino o que digo. O Pedro Teixeira Neves, ao passar-lhe a palavra, aqui na mesa, disse que ainda não tinha a atenção que merecia. Alguma ganhou ao responder ao mote «se as torturarmos as palavras acabarão por confessar» com uma metáfora que sobrevoou o Cine-Garrett cheio: um dos mais belos objectos inventados pelo homem é o boomerang, que constrói espaço com velocidade e movimentos sobre si a partir de uma dinâmica entre dois pontos. Para o mano Luís, que explicou com a sua característica dança de braços (ver foto), os textos que foram desenhando nos ares a tradição de que somos feitos, resultam da dinâmica entre a revelação e a confissão. Tocar o alto e experimentar o íntimo, que mais interessa?

Atlântico, 24 Fevereiro

Para a Isabel, poema breve por acabar. «Palma sobre palma/estendi-te a mão/para que não estivéssemos sós/ao descobrir na sabedoria/do crepúsculo uma quinta/estação pós-primavera//a das reparações»

Correntes d’Escritas, Póvoa do Varzim, 24 Fevereiro

Com tanta palavra atirada ao ar, o chão dos festivais literários muda com os dias consoante o lento desfiar dos oradores. Pode ser tapete, conforto baço que abafa o som dos passos, onde só o pó contém memória de vida. Pode ser feito de berlindes, obrigando-nos a esforços compassados para não cair em tentação. Algumas palavras, de tão leves, desfazem-se no ar com o som das palmas. Outras são vistas sobrevoando cabeças em busca de memórias que as conservem. Também as há pesadas, das que, ao cair e se não nos desviarmos, nos pisam com estrondo os calos, nos marcam com nódoas e arranhões. Vai sendo raro, que a cultura do presente pede ar condicionado, maneiras de salão, o refresco mentolado do chiste. Brita ou areia, acontece por vezes. De entre todos, abomino o chão movediço, pegajoso da babugem do diz que disse, da quotidiana telenovela que mastiga cada vocábulo em asco morno.

De súbito, o relâmpago. Alguém diz que a literatura se faz, não para reproduzir o mundo, mas para o acrescentar. Em luta. «Literatura – a poesia – é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, não seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, gastas, dos outros, não para dizer o mundo – para isso basta-nos uma mão cheia de enredos de dicionário –, mas para o construir pedra a pedra». Rita Taborda Duarte deu-me chão. E se ando precisado dele…

1 Mar 2017