Os olhos e a carne

Álvares Cabral, Lisboa, 31 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a dedicatória ao seu saborosíssimo «Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida» (com Carlos Pitella, ed. Tinta da China), diz o Jerónimo Pizarro que foi «uma noite de grandes palavras do caraças». Dou-lhe razão, que o debate regado fechou de boa maneira este mês desatinado. O Jerónimo abriu na fossa abissal dos estudos pessoanos uma lufada de ar fresco, com as ideias que trouxe, pela quantidade de trabalho e energia, além da generosidade, convém sempre sublinhar, de tão rara. Faça-se deste volume, aqui à mão, exemplo. Piscando irónico olho aos livros de auto-ajuda, oferece com grande rigor uma colecção de pinceladas, maiores e menores, que ajudam ao retrato sempre movediço do poeta da desdobra. Não deixa de me surpreender a quantidade de inéditos, de degraus que podem ser mundos, de minudências capazes de mudar a vida. A lista do inclassificável detalha, com bom gosto e humor, listas, muitas listas, claro, de projectos e livros e antologias, esquemas de passar tempo em namoro, as inevitáveis cartas astrológicas, mas também desenhos e ideias, traduções e episódios, correspondências que se cruzam e descruzam ora para divertimento ora para interpelação. Pessoa arde ainda em efervescências. Nada do humano lhe foi estranho. Nem o insulto, que jeito dá, por alturas em que as redes sociais se fazem cloacas: «De ti se suja a imaginação/Ao querer descrever-te em verso. Tu/Fazes dôr de barriga á inspiração.//Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,/Tu fazes sempre mal. É como um cú,/Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!»

CCB, Lisboa, 6 Abril

Mais uma conversa de estalo, a desta quinta, entre Mário de Carvalho e Valério Romão, gerida com a discrição habitual pela Maria João Costa, no ciclo Obra Aberta. Sobre livros, que outro assunto haverá? O Mário, invocando o esquecido Aquilino Ribeiro, defendeu o contacto com o difícil, seja texto ou autor, nos bancos da escola. Mas haverá, em período de mastigado didactismo, capacidade de atirar à cara dos educandos o enigma explosivo dos textos que nos resistem, que se impõem, que exigem regressos, que nos acompanharão pela vida fora? Mergulhei em apneia nas memórias que vou perdendo à procura do exacto volume que me abanou, irritou, encantou. Raul Brandão, talvez, o de Humus, em vetusta edição. O Fialho ou o Gomes Leal? Álvaro de Campos, com certeza, ilha no oceano Pessoa, que me foi apresentado nas aulas do liceu, sim, nas aulas do João Nogueira Costa, na Luísa de Gusmão. Aulas? Não sei se se deviam chamar assim, que aquelas sessões continham o espírito e a oficina do teatro, com cenários e figurinos, leituras em voz alta e pesquisas em voz baixa. Prolongaram-se de imediato para os intervalos e depois por longuíssimas horas e centenas de livros e cartas. Dá jeito que seja o Pessoa, mas de par veio o Sá-Carneiro e depois os surrealistas e o Herberto e. A vida mudou-se-me por ali, mas só o saberia décadas e milhares de páginas depois. Dito isto, se tivesse que escolher, punha nesta estante outro continente que o João me fez descobrir, essa deslumbrante continuação dos Lusíadas: as Quybyrycas – poema étbyco em oitavas, que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões em suspeitíssima atribuiçon de Frey Ioannes Garabatus. Não, Mário, mais importante que os clássicos era termos professores na escola.

Monumental, Lisboa, 7 Abril

Discutíamos ideias, desdobrávamos projectos, comentávamos os cactos, os vivos e os mais vivos pelo desenho do Manuel San Payo, ali sob o limoeiro, na primeira das grandes noites de Primavera. O olhar-câmara do mano Luís Gouveia Monteiro gravou-nos a ser percorridos pelas sombras. E derepentemente apanha-se um sentido, tal o perfume do limão, que abafa a dureza de não saber que responder a tantos, como pagar tanto ou o que resolver entretanto. Valha-me Pessoa: «O rio corre bem ou mal/Sem edição original./E a brisa, essa,/De tam naturalmente matinal/Como tem tempo não tem pressa.» (Como ser Livre, pág. 212)

CCB, Lisboa, 8 Abril

Tive o privilégio de entrever este impressionante projecto do António Gonçalves (detalhe na ilustração) em vários momentos da sua incarnação e subida ao altar. O esplendor da obra vista quase apaga a carpintaria do esqueleto onde as carnes se ergueram: os esboços e das maquetas, o cheiro das tintas e os cadernos, as madeiras e as dobradiças e o peso das folhas, a disciplina de trabalho, as hesitações e a indispensável dança em busca dos apoios. Fui contemplando particularmente, portanto, mas só agora vivi a experiência. Sendo pintura, ao relacionar-se com a escala e a tradição do sagrado, torna-se paisagem teatral. Uma sala, construída com este propósito a partir do desenho de Maria Eduarda Souto de Moura, para que fosse despida e neutra, nem igreja nem museu. No miolo, o vazio e a escuridão interrompe-se com o políptico, que se revela em crescendo ao longo do dia. Cada face apresenta aspectos distintos de um combate de carnes, coreografias das brutas musculações do desejo. Em ocasiões escolhidas, será tocada ao vivo a composição para piano de António Celso Ribeiro. A primeira afirmação do António diz respeito ao tempo. Precisamos parar, abrir lugar na agenda revolta dos dias para experimentar a Contemplação Particular. Na inauguração, o silêncio foi impossível, mas o restolhar dos sussurros e das movimentações espelhava bem o que acontecia perante os nossos olhos. Preciso voltar por causa do silêncio, que, temo, será sempre contaminado pelos turistas de época. Os turistas desta época tendem a perturbar-nos, essa será a sua santíssima identidade. Avancemos. Mergulhando raízes na leitura atenta de Tentações de Santo Antão, de Flaubert, o corpo desfeito em abstracções chega-nos logo pela temperatura de cor, depois pela textura até nos perdermos na dinâmica das volutas, que parecem em movimento perpétuo. Que há de erótico nisto? A visão do para além da pele, lugar onde perderemos o eu na paisagem do outro, a identidade no grande oceano dos corpos. O desejo faz-nos arder em absoluta liberdade, a de que o homem pode ser universo.

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