Cara, face, enfim, rosto

Santa Bárbara, Lisboa, 15 Fevereiro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esagua-me nas mãos o número oito da «Suroeste», a revista de literaturas ibéricas que o Antonio Sáez Delgado dirige a partir de Badajoz. O seu grande formato vem cheio de poesia, acompanhada de ficção e ensaio, ainda que em doses menores. O Edgar [Pêra] cruza palavra e imagem para alinhavar nas bainhas o que deve o seu olhar a Almada, Negreiros, está bem de ver. Constato que perdi duas ou três dessas suas incursões no universo arte-nativo. Ponho na lista dos afazeres. Rui Pires Cabral entrega-nos, em encarte, um poema em 12 figuras: Hotel Andaluz. Belo exercício, entre «la abstracción» e «el olvido», quando a palavra se atira à imagem despertando pequenas concêntricas de sentido e sentimento, aqui plástico, ali metafísico. Fixado que ando em rostos, «Variações sobre um tema de Rulfo» , do João [de Melo], tocou-me. Mas isto sou eu, lamechas de filhos e pais. Um filho que, em busca de um quase pai, reconhece-o na descoberta de um lugar-comum feito de feições, rugas e olhos. E a cara logo se torna ilha, em momento expressionista de alta intensidade. O mano Luis [Manuel-às-vezes-Miguel Gaspar], que contribui com o seu «Consejo» (de Redacción), pediu-me colaboração. Mandei-lhe um pequeno filme «surrea-listo», no qual os olhos se fecham para ver no escuro. «A mão que toca um rosto, agreste, fugidio. Os fins de tarde onde cada amigo se junta para trocar gestos assim. Chegam e bebem. Chegam e tocam. Riem antes de partir. Saúdam a noite. Param por quase segundos para que a imagem se componha. Ilusão que logo a chuva desfaz. Há além pálpebras que fecham, para melhor ver em si. Portas de igreja que chiam ao abrir arrepiando os santos. Logo esvoaçam desfeitos corvos para não concederem graças. Os santos andam cansados de quotidiano: pequenos-almoços, almoços médios, quase jantares, longas mesas festivas. Mortes rotundas ao longe, crimes hediondos ao perto. Vistos de perto. Que devem vestir os crimes, veludo sangue de boi ou chita vaporosa e transparente? Lavo disto as minhas mãos.»

 

Horta Seca, Lisboa, 16 Fevereiro

Sentado no escuro, projecta-se fita feita de corpos com voz. Bruno Ganz (1941-2019) será, sobretudo, Damiel, anjo de bibliotecas e desespero. Mas as palavras que vai dizendo são corpo ainda. No alemão que perdi algures lê «Il Canto Sospeso» de Nono, encantatoriamente evocando o fascismo, a invenção de possibilidades, a paixão. A vantagem dos que dão corpo ao manifesto funde-se nisto, na possibilidade de continuarem a ecoar à maneira dos corpos na nossa memória, a incorporar o que apenas intuímos. Desejava muito tê-lo visto em Tarkovsky, a tocar a água com versos. Não saberia nunca de Berlim sem ele, em Wenders. Mas isto sou eu, com os corpos.

 

Atlântico, 19 Fevereiro

A morte do [Geraldes] Lino (1936-2019) seria sempre triste surpresa, por muito anunciada que tivesse sido. A alegria contagiante pelas histórias aos quadradinhos construiu-se enorme cidade, com ruas e praças que passavam pelos fanzines, pela memória, pelo bem escrever, pelo prazer do acolhimento e da partilha, de liberalizar contactos e informação. Esteve sempre presente em cada momento, geração após geração; ele, a quem a idade desconfortava, era o mais jovem de todos, casquinando gargalhadas. Aliás, todo ele era infância desembocando no luminoso gozo da descoberta. Longe da social despedida, comovo-me lendo os testemunhos dos inúmeros criadores e confirmo, muito para além do gosto, que poucos se podem orgulhar de terem tornado tão amavelmente comum este lugar-linguagem.

 

Correntes, Póvoa, 19 Fevereiro

No habitual quotidiano, parto em pulgas sem saber se os livros chegarão a tempo desta prévia apresentação. Encontro o oceano a vociferar na devida constância sob uma luz que não esmaga os contornos, colocando assim cada gesto no seu contexto. A colecção «Fósforo» ganha dois novos volumes, ambos assinados pelo Helder [Macedo]. «Oitocentos Anos de Literatura», síntese histórica da nossa literatura, uma das mais desafiantes e completas, com os nomes essenciais, as temáticas estruturantes e os nomes principais, mas com atenção a outras correntes, mais profundas ou fracturantes, como agora se gosta de usar. E «Cada Um Com o Seu Contrário Num Sujeito», este inédito, em torno do sempiterno Camões. Helder está a dizê-lo neste instante, brilhando: «o conflito só poderia ser resolvido pela transformação recíproca do apetite em razão e da razão em apetite, tornando possível alcançar a desejada “mansa paz” através da coexistência de “cada um com seu contrário num sujeito”.» Fazendo do erotismo ferramenta do conhecimento, o poeta entendeu na carne que cada coisa pode ser ao mesmo tempo o que é e o seu contrário.

Depois abriu a noite.

 

Correntes, Póvoa, 20 Fevereiro

O João [Rios] estava em casa. Ou próximo. Vociferou a emoção de dizer, com todas as letras (todas?), que fronteiras à beira-mar não fazem grande sentido: o mar apaga-as. E atirou-se aqui segundo volume de uma poesia de escárnio e maldizer para bem reflectir. «Reter o amor no gancho do talho», também traz à ilharga a pulsação de um amor oceânico. Mas isto sou eu, que me deixo inebriar pela maresia.

O Valério [Romão] subiu na missão de propor leitura de «Fotografia Apontada à Cabeça», terceiro volume do outro mano José [Anjos]. Sobre a maré de ruído, enquanto passavam gatos na janela que lhes servia de espaldas, ouvi-o: «A infância corresponde, despida de qualquer carácter transcendental, ao Éden bíblico, à Arcádia, ao sítio da possibilidade de todas as possibilidades. A infância corresponde, pelo menos no mundo ocidental remediado, a uma espécie de território estaminal, onde todas as ideias de futuro podem ainda ser possíveis, e enquanto crianças ainda podemos sonhar ser, com a mesma facilidade desarmante, astronautas, bailarinos ou veterinários (acredito que o cardápio de sonhos tenha mudado nestes últimos vinte anos).» (Algures na página, o Pedro [Teixeira Neves] captou o momento e as faces).

De seguida, a noite espraiou-se.

 

Correntes, Póvoa, 21 Fevereiro

Resumo breve do dia. Onésimo Teotónio Almeida diz, aos microfones do Obra Aberta (RR e CCB em viagem), que a poesia não pensa sendo o verso apenas deriva barroca. A Carla [Craveiro] recebe-nos na Coquelicot Delicatessen com perfumado gin, Bica, e umas suaves delicadezas da Tia Quinota. Anunciou-se ao público a obscena «Flanzine», com frutos colhido pelo [João Pedro] Azul e pelo Carlos [Guerreiro]. Contributo modesto: «que procura o teu olhar/ lá fora/ que não possa o meu caralho/ dar-te dentro?/ horizonte, tempo/ mundo e possibilidades?/ dentro e fora/ eis ao que aspiramos/ quando respiramos/ tudo em nós/ pupilas e membros.»

Em breve, marulhava a noite.

 

Correntes, Póvoa, 22 Fevereiro

Treslendo o desafio, mandei para o cuidadíssimo dicionário de afectos, que agora folheio, «Palavras Correntes», uma entrada que desafina das incontáveis «correntes», «mares» e «marés» e «maresias», «noites» e «noitadas» para além do restante celebratório: atraso. Fecha deste jeito, «fora de tempo, por elogio, também se lhe aplica. Atraso de vida, e por idiotia, nem tanto. Entretanto, nada.» Não tem que ver com o festival, está na cara que isto sou eu. E a palavra maior da minha «noitidia». Como bem a define César Ibáñez París, no mesmo volume: «1 Pétalo de la flor del lenguage. 2 Espina del cactus del lenguage. 3 En cualquier caso, tanto si acaricia como si pincha. 4 Vínculo.»

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