Às vezes, a Lua

Horta Seca, Lisboa, 24 Setembro

 

[dropcap]Q[/dropcap]ue raio aconteceu? Uns fiscais da ASAE entraram pela Biblioteca dos Olivais, que ainda abriga os restos mortais da Bedeteca de Lisboa, para confiscar «As Gémeas Marotas», paródia à celebérrima Miffy, de Dick Bruna. A sinistra figura, Gonçalo Portocarrero de Almada, vangloria-se no facebook de ser o denunciante de tão infame crime à editora original, a holandesa Mercis, que reagiu com veemência: «foram ultrapassados os limites aceitáveis para uma paródia e ficaram preocupados com a possibilidade desse livro cair nas mãos de crianças, uma vez que estas o podem considerar um original de Dick Bruna, por não conseguirem discernir entre uma paródia e um original.» Atalhando, conseguiram a colaboração das autoridades portuguesas para começar investigação que teve aqui o seu momento mais visível, com a entrada em espaço público, lugar supostamente protegido de preservação da memória, toda a memória, para retirar o livrinho das mãos das pobres crianças. E com requintes ridículos, pois, ao que parece, os agentes de autoridade foram de luvas e grande aparato de segurança, como se se tratasse de ameaça sanitária ou securitária. Terão expurgado também a Biblioteca Nacional? E a sanha vai continuar pelo país todo? Imaginemos que um qualquer imã se sente ofendido com o «Genesis», de Robert Crumb, e pede às autoridades para tratar de os recolher das bibliotecas. Poderá tal acontecer perante a nossa indiferença? Os argumentos que justificam a censura são os mesmos há séculos e séculos: a protecção dos pobres inocentes contra o vício e a violência. Vale a pena ler alguns dos inúmeros relatórios dos censores que nos querem protegem para perceber por onde anda o vício, a violência e a estupidez. A obra em questão, como tantas vezes acontece, não justifica que se ergam bandeiras ao seu redor, mas se a paródia basta para justificar este acto infame, então há que reagir. E preparamo-nos para o pior. As bibliotecas sempre se ergueram belos castelos contra a insanidade. E sempre contiveram infernos.

Horta Seca, Lisboa, 25 Setembro

Coincidindo com a edição francesa, nas Editions Chandeigne, de «Les Eaux de Joana», com fortuna crítica assinalável, chega-nos a segunda edição de «O da Joana», do Valério [Romão]. Continua, para mim, o mais violento da trilogia, com um extraordinário arranque, o primeiro de muitos fôlegos a serem-nos retirados ao longo da leitura. Acompanhar pela mão um livro faz-se disto, de constatar que a sua vida pode ser mais lenta que a de outros, que não funcionará a contaminação entusiasta, mas um lento semear de leituras que se desmultiplicam, que se partilham, por vezes também de silêncios. Foi sendo testemunha de reacções curiosas, de psiquiatras e analistas, entusiasmados com o retrato de um sem número de actos médicos e da profundidade psicológica das personagens, ou de leitoras pesarosas a oferecerem o pequeno volume por junto com um sem número de avisos à navegação, de cautelas carinhosas. Aliás, também entre nós a crítica foi generosa, ainda que lançando avisos às mulheres, logo eleitas como óbvias destinatárias. Esquecendo quase sempre o mais notável, o tour de force que acaba por ser um homem-escritor meter-se na pele de uma mulher. E de uma mulher a perder-se no labirinto do feminino.

Horta Seca, Lisboa, 26 Setembro

Como interpretar este enorme pedregulho que nos atiraram à vidraça e que só a portada de madeira, embora ferida, evitou que entrasse galeria adentro. O estrondo despertou a vizinhança, mas nada aconteceu, nem identificação do magro meliante, nem travão ao gesto. Não terá, estou certo, significado por aí além. Na rua seca, de tão calma, o velho compincha absurdo passou e abusou.

Horta Seca, Lisboa, 28 Setembro

Em gesto raro por tão madrugador, o Jorge [Silva], companheiro de tantas aventuras, será homenageado este ano, no âmbito da Bienal de Ilustração de Guimarães. Calhou-me em sorte mais um texto sobre o seu trabalho, que me interpela e desafia há muito. Este sabor a avaliação de uma vida, do qual tentei fugir, complicou-me os ritmos e, por pouco, não atrasávamos o catálogo além de todos os limites. Partilhamos uma relação estranha com prazos, afinal. (Algures na página, temos uma velha ilustração sua para artigo no jornal «Combate»). São sete as vidas que em exposição, de colecionador a ilustrador, de designer a director de arte, mas surpreendeu-me o óbvio: pertence-lhe o desenho da minha cidade.

«Para afiançar da sua importância no esculpir do perfil da capital nas décadas que a fizeram, com vantagens e desvantagens, atravessar séculos de modo a regressar à luz e ao lugar no tempo que lhe pertenciam, podia aduzir outros casos de fauna e flora, mas chegam-me estas duas publicações, uma campanha e o supremo símbolo. A Lx Metrópole foi revista de grande formato, suscitada pelo Parque das Nações, e dirigida por José Sarmento Matos, e que revelou a urbe de modo único, desafiador, com ideias a estoirar a cada página, gigantesca atenção ao detalhe, viagens certeiras ao passado. Lisboa nunca se tinha visto assim ao espelho. E o espelho era uma página definida com lâminas. A campanha criada a pretexto dos 100 anos do Museu da Cidade (2010), alguns anos mais tarde, aconteceu com extrema fulgurância, com dezenas de grandes cartazes a assinalar carismáticos lugares da cidade. «Lisboa tem histórias» incluía dinâmico retrato, assinado por João Fazenda, e a apresentação da personagem histórica que, ao longo dos séculos, havia erguido a cidade, por função ou apenas sendo. Um conceito simples fazia da cidade museu vivo. Entretanto, já a Agenda Cultural, com edição mensal, dizia em voz alta que o lugar fervilhava.

A pequena e longeva publicação não se limitava à listagem do sem-número de eventos que tatuavam a pele da cidade. Cada vez mais se fez revista, produzindo matéria, alinhando temas, promovendo olhares, apresentando os agentes da mudança ou da constância. A arrumação pode ser dinâmica e será sempre uma interpretação do mundo. E o ponto final teria de ser a sardinha.

«Bicho mudo e quedo», assim a chamou Silva, empurrou o santo e o menino, destronou a esquecida alface, e tornou-se em meia dúzia de anos o signo universal de Lisboa. A pretexto das Festas da Cidade, começou por deitar-se em scanner na vez de assador, em versão quase abstracta, de cores básicas e berrantes, para depois passar pela mão de ilustradores de renome, sempre obedecendo a uma ideia, até acabar em concurso aberto a quem queira nela inscrever uma marca. O resultado foi de tal ordem que a colecção das sardinhas revela o mais notável vocabulário alguma vez feito sobre uma cidade. A forma, que brilha por si, soube conter milhares de visões e experiências. Formas universais, capazes de transportar conceitos e produzir pela imagem sensações, pensamentos: a que mais deve aspirar um criador que usa as mãos?»

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

Não páro de folhear, de me envolver, no convite para a festa da maioridade do Lux. O [Pedro] Fradique desafiou o André da Loba a conversar com Bruno Munari e o resultado vibra nesta peça única e delirante, celebração da cor e da dança, do encontro e da festa. Ambos acharam que as palavras acrescentariam e fui atrás. Nada me poderia dar mais gozo, puro gozo. Por milhentas razões. «Cada um desembaraça seus nós, faz do chapéu navio, para o mais longe do possível.

Desfaz-te do cais comigo, troca de corpo e faz de antena, raízes na madrugada abrindo a cada gesto teu, copa depositada pelos olhos no colo do céu. Leva-me a casa. A saída descobre-se pelo sorriso, maneira de tocar o rio. Às vezes, a Lua.”

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